A Indústria Conserveira na Construção da Malha Urbana no Algarve: VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO (5)

Armando Filipe da Costa Amaro

3. OS PRINCIPAIS CENTROS CONSERVEIROS DO ALGARVE 34

3.1 Vila Real de Santo António 37

3.1.1 Caminho de ferro e a ponte-cais 42

3.1.2 Os pontões privados das fábricas de conserva 44

3.1.3 Fábricas de conserva em 1924 47

3.1.4 O redesenho da frente ribeirinha 48

3.1.5 Habitação 53

3.1.5 Bairro para as classes pobres 55

3.1.6 Anteplano de urbanização de Vila Real de Santo António 58

3.1.7 Cronologia industrial 62

3.1.8 Vila Real centro conserveiro de atum 66

6 – Vila Real de Santo António, c.1960. Autor: Alexandre Tavares da Fonseca. Centro Portugues de Fotografia, Cota: PT/CPF/TAV/VA/0078/000003.

3.1. VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO

No século XVIII, durante o reinado de D. José I, foi construída por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo – Marquês de Pombal –, Vila Real de Santo António, na margem portuguesa do Rio Guadiana.

Com o objetivo de tornar a região algarvia mais rentável e controlar o contrabando, que se verificava junto à fronteira com Espanha, o Marquês comanda ao Governador do Algarve, em 17 de dezembro 1773, que desenvolva um plano para uma vila de traçado regular, com a pretensão de explorar os recursos naturais de Monto Gordo, então uma vila de cabanas ocupada por Espanhóis. Contudo, o local escolhido para erguer a nova vila foi junto às ruínas de Santo António de Arenilha, a antiga povoação que existiu entre o século XVI e XVII, junto à margem do Guadiana, que apesar do seu despovoamento durante a guerra da restauração, conservou os seus poderes institucionais, com a movimentação da sua população para as localidades mais próximas, nunca deixando de existir.

Ali estariam reunidas as melhores condições para construir uma vila regular, com terrenos propícios ao cultivo, fácil acesso a água potável e, ainda, protegida da subida das águas. Assim, os poderes de concelho e município da povoação de Arenilha foram herdados por Vila Real de Santo António (Correia, 1997, p.69; Pessanha, 2014, p. 77-88).

Figura 7 - identifica a localização das Sociedades (1 a 10), que iriam instalar unidades industriais de pesca, para a indústria de salga e venda de peixe fresco.

A primeira planta (fig.7), identifica a localização das Sociedades (1 a 10), que iriam instalar unidades industriais de pesca, para a indústria de salga e venda de peixe fresco.

Igualmente, é identificado o futuro edifício da Alfandega, localizado junto à margem do rio, o mais próximo possível do porto, ocupando posição central na fachada da vila (Figueiras, 1999). Na base desta, estava a sua praça central, resultante das ruas e quarteirões que a definiam. A igreja, na praça central, bem como a alfândega junto ao porto, eram os edifícios em destaque.

7 – Primeira planta da nova vila, enviada para o Algarve em janeiro de 1774. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

Figura 8 - planta onde estão já definidos os nomes das ruas e atribuídas as propriedades

Na segunda planta (fig. 8), estão já definidos os nomes das ruas e atribuídas as propriedades, sobre as quais os donos tinham a responsabilidade de edificar (Figueiras, 1999).

A 17 de março de 1774, iniciou-se a construção de Vila Real de Santo António. Após cinco meses, e já erguido o edifício da alfândega, estavam reunidas as condições para a nova vila começar a cumprir o seu propósito de controlar as trocas comerciais e os movimentos junto à fronteira. Deste modo, passava a lota a efetuar-se, não em Monte Gordo, mas em frente ao novo edifício da Alfândega. Contudo, a sua “inauguração” ocorreria apenas a 13 de maio de 1776, com três dias de celebrações e manobras militares, embora não estivessem concluídos todos os edifícios. Estabelecida a nova vila, Monte Gordo continuou a ser local de pesca mas todos os poderes políticos, administrativos e religiosos centraram-se em Vila Real de Santo António (Correia,1997; Figueiras, 1999).

8- Planta da nova vila enviada para o Algarve em junho de 1774, com uma proposta de toponímia. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

Planta de Vila Real de Santo António em 1800.

9 – Planta de Vila Real de Santo António em 1800. Costa, 2011.

Vila Real de Santo António surge como um caso único no panorama português. Planeada antecipadamente e construída de raiz, assume-se como uma demonstração do poder absolutista em Portugal. A sua planta regular é um espelho do pensamento racional iluminista, por influência do Marquês de Pombal, devido à sua estrutura composta por quarteirões retangulares, que se desenvolvem a partir de uma praça central, centro cívico da vila, separadas por ruas perpendiculares. Esta pode ser, ainda, considerada utópica, à escala portuguesa, pensada como uma cidade ideal, onde a indústria da pesca e o controlo alfandegário desempenhavam papel fundamental, ocupando os quarteirões da frente rio. Além das várias semelhanças arquitectónicas e de organização racional com Lisboa, também aqui foi usado o sistema construtivo de Gaiola Pombalina (Correia,1997; Fidalgo, 2010; Figueiras, 1999).
Em 1777, começa um período de menor prosperidade para a vila, com fim do reinado de D. José I. O objetivo de incrementar a produção piscícola no Algarve sofre um grave abrandamento e, como consequência, “Vila Real ficou parcialmente desertificada” (Fidalgo, 2010, p.7).
Ainda que tivessem sido tomadas medida para a incrementação das atividades piscatórias e do comércio dos produtos daí provenientes, estas foram afetadas pela pirataria que se verificava na costa. Apesar de o porto de Vila Real de Santo António ter continuado a ser um local chave para a comercialização, devido à sua localização, e paragem para diversas embarcações, apenas na segunda metade do séc. XIX, atinge uma notoriedade regional e até nacional. Tal deveu-se, principalmente, à reativação das minas de S. Domingos, uma vez que o minério era transportado pelo Guadiana até Vila Real, sendo depois exportado por barco. Além do comércio do minério, a troca de vários produtos deu grande fulgor ao porto, como a comercialização de produtos agrícolas que vinham do Alentejo, em sentido contrário (carvão, sal e produtos alimentares, como o peixe fresco ou salgado), e alimentavam as aldeias interiores, incluindo a população operária da mina (Grilo, 2010; Fidalgo, 2010).
Paralelamente, a indústria moderna de conservas surge na segunda metade do século XIX, em Vila Real, tornando-se o primeiro local onde a indústria se instala, no Algarve.
Assume-se, assim, a par do minério, o principal motor económico da vila, sustentada por uma lota que se destacava nas capturas de atum, mas também importante na de sardinha.
Segundo Márcia Grilo (2010, p.155), tornou-se “um dos maiores centros produtores e exportadores de preparados piscícolas” do país.
A indústria foi, sem dúvida, importante para a retomada da importância da vila, como afirma Horta Correia (1997, p. 29): “De facto a vila recém construída caiu numa apagada e vil tristeza em que se mantem até a seu renascimento oitocentista, já sob o signo da revolução industrial e por via das novas conservas de peixe e azeite, com capitais, tecnologia e mão-de-obra provenientes da Itália e de Espanha”.

 

No que diz respeitos às primeiras instalações, os Inquéritos Industriais de 1881 e 1890 surgem como a documentação mais fidedigna, e indicam-nos as primeiras fábricas da cidade (Portugal Comissão Central Directora do Inquérito Industrial 1881; idem,1890).

O primeiro inquérito refere que funcionavam três fábricas em 1881, indicando a sua data de fundação:

Fábrica St. Maria de Ângelo Parodi & Roldan, 1879;
Fábrica S. Francisco de Francisco Tenório, 1880;
Fábrica de Domenico Migone, 1881.

No segundo inquérito (1890), além do número de fábricas (5), é indicado a rua das instalações:

Ângelo Parodi, Rua da Rainha (1879);
Migone, Rua da Rainha (1881);
António Soares Barreto, Rua do Príncipe;
Companhia Industrial, Rua do Príncipe;
Manuel GomesBaptista Júnior, Rua da Princesa.

Neste inquérito é importante referir a ausência da fábrica S. Francisco e a ausência da Fábrica Ramirez, que já estariam a funcionar.

Sabe-se que Sebastião Ramirez comprou a fábrica a Tenório, em março de 1883, para a vender em outubro do mesmo ano, de volta a Tenório. Igualmente, sabe-se que os terrenos da Fábrica Ramirez foram adquiridos em 1883 e a fábrica começou a funcionar no ano seguinte. Permanece a dúvida face a ausência de ambas as fábricas no relatório de 1890, seja por dificuldades económicas ou outro motivo. O mais provável é que não tenham laborado nesse ano (Correia, 2008).

Estas novas instalações fabris surgem a sul da vila, na continuação do traçado Pombalino, construindo malha urbana de uma forma integrada no conjunto já existente. Manteve-se uma ligação o mais direta possível com o Rio Guadiana, pelo seu posicionamento na frente de rio e pela construção de cais privados, com a função de acelerar o processo de abastecimento das fábricas (Grilo, 2010).

 “As construcções recentes de fábricas de salga e preparação de peixe e de outros edifícios para depósitos de mercadorias e para habitações, a partir dos antigos limites e à beira do rio, prolongando-se na linha do sul até muito alem da dita fortalesa, teem augmentado consideravelmente n’estes ultimos annos, e já foi pedida auctorisação para a edificação, pode-se dizer, d’uma nova povoação ao sul da mesma fortaleza  em continuação das novas construções.” (Grilo, 2010, p.158).

11 – Planta de evolução da cidade de Vila Real de Santo António, por zonas consolidadas. Elaborado pelo autor.

10- Esquemas de funcionamento do ciclo do peixe com as Sociedades de Pesca do séc. XVIII. Figueiras. 1999.

Chegada do peixe em frente à Alfândega e posteriormente distribuído pelas Sociedades.

Entrada do peixe pela zona dos escritórios para controlo interno.

Nos alpendres o peixe, era escamado, salgado e colocado em pipas de sal. Seguindo pela rua posterior para os armazens.

O peixe conservado em pipas era guardado nos armazéns até ser conservado.

Para ser comercializado, passava pelo controlo da Alfândega, para o pagamento de taxas.

A mercadoria era depois transportada para os barcos para viajar até aos seu destino.

3.1.1 CAMINHO DE FERRO E A PONTE-CAIS

A construção da linha de caminho de ferro até Vila Real de Santo António veio auxiliar nas pretensões comerciais, mas também, como uma alternativa à deslocação da população para os outros centros urbanos. Até então, dependiam da navegação marítima ou pelo Rio Guadiana, sempre sujeitas as condições climatéricas, ou de uma viagem longa pelas estradas acidentadas que compunham a rede viária nacional no início do século (Cavaco, 1976; Serra, 2007).

Em 1906, a linha de caminho de ferro é inaugurada e com a chegada da mesma, as duas principais indústrias que moviam a economia da vila beneficiam de uma nova via para exportar e importar produtos. A indústria de conservas exportava a maioria da sua produção, mas vendia parte em solo nacional (além do peixe salgado ou fresco que alimentavam principalmente  as urbes do interior). Beneficiando com a chegada de folha-de-flandres, que era importada, ou do carvão que alimentava toda a maquinaria a vapor, importante também para a indústria do minério que era das mais importantes para o porto de Vila Real de Santo António, por onde era escoada a produção das Minas de S. Domingos (Cavaco, 1976; Fidalgo, 2010).

A primeira estação de caminho de ferro integrava um conjunto de edifícios e equipamentos complementares que pretendiam dar resposta às necessidades de uma vila industrial, que tinha um porto com um movimento significativo no panorama nacional. Sendo uma estação fronteiriça e o fim da linha de caminho de ferro, foram construídas as seguintes infraestruturas: um edifício estação, casas de habitação, dormitório para “funcionários da tração, trens e revisão”, um poço, reservatório de água, cais coberto e descoberto, feixes de linha de triagem e manobra, armazém com oficina de apoio e placa de inversão de locomotiva (Gomes, 2009).

Uma das principais características era o facto de ter uma linha de serviço que se prolongava, para além da zona da estação, por entre as fábricas Ramirez e Peninsular, até ao Rio Guadiana, com uma ponte-cais, construída entre 1906 e 1907, para o tráfego internacional.

Esta estrutura integrava uma zona que funcionava como estação intermodal junto ao porto da vila, sendo importante para o intercâmbio comercial com Espanha, para exportação de produtos como os mineiros das Minas de S. Domingos, e para as movimentações de população, principalmente na comunicação com Espanha.

Devido à articulação entre os transportes marítimos, fluviais, ferroviários e rodoviários, tornou-se necessário a presença de controlo alfandegário e policial, para o controlo de mercadorias e pessoas (Loureiro, 1909; Gomes, 2009).

Para se perceber a importância da comunicação a sul entre os dois países, existia a intenção de ligar, no futuro, Lisboa à Andaluzia, pela região do Algarve, o que não ocorreu por dificuldades técnicas e de custo para construir uma ponte que conseguisse vencer a largura  do rio e permitisse manter a navegação entre o rio e o mar (dada a importância dos recursos provenientes do Pomarão). O facto desta possível ligação poder existir, com a chegada da linha férrea até Ayamonte, ofereceu desde logo um caracter provisório à linha de caminho de ferro em Vila Real de Santo António (Loureiro, 1909; Gomes, 2009).

12 – Estação no início do século. Elaborado pelo autor com base na planta de expansão de 1916. P.D.M. de 1985, RISCO.

A figura 12 trata-se de uma tentativa de representar, esquematicamente, a primeira estação da vila. Foi concebida através das descrições, fotografias e plantas onde esta estação surge. Neste esquema, é possivel identificar a sua localização, bem como a de três edifício à mesma agregados – o armazém de apoio (facilmente identificável pelo seu arquétipo), o edifício da estação e um corpo longitudinal, que corresponderia às habitações dos operários do caminho de ferro. Paralelamente à estação, estava prevista uma avenida que, nos anos trinta, ainda não estava concretizada. Podemos, ainda, perceber o enquadramento da linha de serviço, que seguia por entre as fábricas Ramirez e Peninsular, até à ponte cais. Através do levantamento feito para o anteplano de urbanização, foi possivel representar corretamente as várias linhas, os outros edifícios de apoio e a placa de inversão de locomotivas.

13 – Edifício de apoio (dormitório) à estação  de comboios, vista do lado Norte. Cavaco, 2001.
Old Vila Real de Santo Antonio Railway Station

14 – Inauguração da Estação, 14 de abril de 1906. Passos, 1995.
Inauguration of the first Vila Real de Santo Antonio Railway Station – Wikipédia

Inauguration of the first Vila Real de Santo Antonio Railway Station – fonte wikipédia – não faz parte do trabalho, inserida por Conservas de Portugal

3.1.2 OS PONTÕES PRIVADOS DAS FÁBRICAS DE CONSERVA

Na primeira década do século XX, Ataíde Oliveira identifica 6 fábricas em laboração:

Fábrica Stª. Maria, de Angelo Parodi Fu Bartholomeu;
Fábrica S. Francisco, de Francisco Rodrigues Tenório;
Fábrica S. Sebastião, da Ramirez & Cª;
Fábrica Guadiana, da Piloto & Capa, identificada como Piloto Gomez & Cª;
Fábrica Peninsular, da Centeno, Cumbrera & Rodrigues, identificada como Centeno Cruz & Cª;
Fábrica Esperança, da Pedro J. Cândido & Cª.

Como se pode verificar, as fábricas têm todas um nome que identifica o edifício, ou por serem assim conhecidas pela população, ou atribuído pela empresa/proprietário, muitas vezes inscrito na fachada principal das instalações. Pode aqui fazer-se um paralelo com a tradição de atribuir um nome às embarcações. Não podemos dizer que esta prática fosse exclusiva de Vila Real de Santo António, mas ao contrário de outros locais no Algarve, sabemos o nome atribuído a quase todas as instalações e encontramos os nomes nos desenhos dos alçados de várias fábricas.

Esta não é a única característica comum à maioria das instalações. Antes de mais, o atum era o principal peixe utilizado pela indústria, o que implicava ter equipamento e logística para transportar o peixe dos barcos até ao interior das fábricas. Devido à sua localização no território e às condições portuárias da vila, as fábricas utilizaram, durante muito tempo, cais privativos para permitir que o peixe fosse descarregado o mais próximo possível das instalações, de forma a tornar eficiente este processo. Devido ao peso e dimensão, o peixe era retirado dos barcos com ajuda de guindastes, mais ou menos rudimentares e, de seguida, carregado a braços numa espécie de maca, em carro de bois ou transportado sobre carris, colocados sobre o cais, até à fábrica.

17 – Cais privados das fábricas em Vila Real de Santo António. Elaborado pelo autor com base na planta de expansão de 1916. P.D.M. de 1985, RISCO.

Na figura 17, podemos ver algumas destas estruturas em frente da vila, mais fáceis de identificar a norte, junto à ponte-cais da linha de comboio. Estas seriam, provavelmente, das três empresas que ali funcionavam (Ramirez & Cª, Piloto & Capa e Centeno e Cumbrera & Rodrigues). Através deste levantamento, podemos ver a relação que a linha de caminho de ferro mantinha com a malha urbana da cidade, ainda que de forma simplificada. O crescimento urbano deu-se, até aqui, em redor da estrutura inicial pombalina, principalmente em direção ao acesso viário da vila para Oeste. Por sua vez, as indústrias da pesca (seja de salga ou conserva) e os próprios estaleiros, vão ocupando o espaço disponível ao longo da frente de rio; a Norte (com os três exemplos já enumerados), e a Sul (além de armazéns de salga e os estaleiros), as fábricas de Parodi, Tenório, e Pedro J. Cândido.

Contudo, podemos ver a expressão que estes elementos atingiram através de um desenho que retrata a malha de expansão da vila em 1915 (fig.16), ao longo da Rua da Rainha (Avenida da República). Tais serviam os estaleiros, a linha de comboio, o porto e, na sua maioria, as fábricas de conservas. A necessidade destas estruturas não surge apenas da eficácia para a chegada do peixe às fábricas, mas também pelas condições portuárias da vila que, depois da avenida principal, não tinha nenhuma estrutura para aportarem dos barcos, sujeito ao recorte “natural” do Rio Guadiana e a subida e descida da água, causada pelo caudal do rio e a da maré.

A figura 17, permitem-nos ter uma ideia da relação que os cais, que existiam em toda a frente rio, mantinham com a cidade, sendo estes mais expressivos nas zonas em frente das fábricas, uma vez que estas dispunham de embarcações próprias, para a pesca do atum. Os cais serviam ainda, outros propósitos, como apoiar os serviços dos estaleiros. Estas estruturas não serviam apenas as fábricas que estavam na frente de rio, mas também as que se instalavam em ruas recuadas, como o caso da Fábrica S. Francisco de Francisco Tenório que, além de cais próprio, usava uma linha de carril para levar o peixe até as suas instalações.

15 – Transporte de atum por carris, cais privado da Fábrica S. Francisco (Tenório). Museu de Portimão, cota: MP-DP1-14A.

16 – Plano Hidrográfico da Barra e Rio Guadiana, 1915. Retirado do livro “Vila Pombalina. Vila Real de Santo António” de Rui Figueiras, 1999.

A estrutura urbana regular e a génese de “vila fábrica”, conferem oportunidades singulares a esta indústria, que se integra na malha urbana ao ocupar os espaços junto ao rio. O ciclo de produção da indústria assemelha-se ao das Sociedades de Pesca, que praticavam a salga de peixe, no tempo do Marquês de Pombal. Apartir do século XIV, a indústria de conserva, simplifica-se e torna mais célere a chegada do peixe à fábrica, concentrando todos os processos seguintes em apenas um edifício de maiores dimensões, que também servia para armazenar o produto antes de ser vendido. Podemos observar, nos esquemas das figuras 10 e 20, as diferenças e similaridades entre os ciclos de produção destes períodos distintos, que beneficiam de igual forma da estrutura urbana de Vila Real de Santo António, pensada para oferecer as melhores condições possíveis às indústrias de processamento e conservação de peixe.

Na figura 10, podemos ver o circuito de produção de peixe, no século XVIII, em que este chega nas embarcações, é vendido em frente ao edifício da alfândega e, depois, segue para os diferentes edifícios das Sociedades, localizadas ao longo da frente de rio. Era processado e depois armazenado nos edifícios, para esse efeito, na rua posterior. Quando seguiam para serem vendidos ou exportados de barco, passavam novamente pelo controlo alfandegários no centro da vila (Figueiras,1999).

Na figura 20, está representado o circuito do atum para o fabrico de conservas em lata. No caso exemplificado, a fábrica Parodi e Tenório beneficiavam de cais próprio onde, com assistência de um guindaste, carregavam o atum das embarcações para vagonetas, que sobre uma linha de carris levavam o peixe para o interior da fábrica. Este processo  acontecia em todas a fábricas que tinham cais próprio e frota que pescava exclusivamente para a sua fábrica. As que não usufruíam destas condições adquiriam o peixe na lota e transportavam-no depois, para a fábrica. Algumas fábricas não tinham carris, por isso, o atum era transportado numa espécie de maca por dois homens ou em carroças puxadas por animais, até ao interior das mesmas. Nas seguintes fases do processo, produção e armazenamento, na maioria das fábricas o processo era simplificado, pois tudo acontecia no mesmo edifício e, no que diz respeito à venda ou exportação, esta na maioria do período estudado era feita por barco e (por isso) a mercadoria era carregada no cais privado da fábrica. Referir ainda que as fábricas que surgem a partir do séc. XIX, vão procurar zonas com mais espaço no tecido urbano e, por essa razão, não ocupam os edifícios das antigas Sociedades. Procuram proximidade, seja a norte ou a sul da vila, inserindo-se na malha urbana na mesma lógica Pombalina, mas ocupando espaços que se resultam em quarteirões de maiores dimensões.
Sendo assim, pode dizer-se que estas novas estruturas replicam a logística dos seus antecessores, simplificando o processo e tornando-o mais eficiente (Grilo, 2010, p.158 e 162).

18 – Transporte de atum por dois operários. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

19 – Transporte de atum por carroça. Arquivo Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

20 – Esquema simplificado do circuito do atum, na fábrica Parodi e Tenório. Elaborado pelo autor com base na planta base de 1947, do anteplano do arquiteto Paulo Cunha.

3.1.3 FÁBRICAS DE CONSERVA EM 1924

Nos anos 20 do século XX, devido à crise do escudo, a indústria conserveira torna-se mais competitiva nos mercados estrangeiros, sendo que neste período surgem inúmeros pedidos de alvará para novas instalações, como regista a 5º Circunscrição Industrial. Vila Real de Santo António não é exceção à regra, registando um maior número de fábricas neste período.

Não se conhece um levantamento gráfico da vila para este período que pudesse auxiliar na tarefa de localizar as indústrias, nem bibliografia que nos diga um número concreto.

No entanto, o registo da 5ª Circunscrição, em conjunto com outras fontes, pode ajudar-nos a especular sobre um possível número de fábricas existentes neste período de rápido crescimento.

Partindo do princípio que as principais fábricas já funcionavam antes deste período, e continuaram a faze-lo, temos:

(1) Societá Acc. Ângelo Parodi Fu Bartholomeu – Fábrica Stª, Maria;
(2) Viúva e Herdeiros de Francisco Féria Tenório – Fábrica S. Francisco;
(3) Ramirez & Cª – Fábrica S. Sebastião;
(4) Pilotos & Capa – Fábrica Guadiana;
(5) Centeno, Cumbrera & Rodriguez – Fábrica Peninsular.
A fábrica (Boa) Esperança de (6) Pedro J. Candido & Cª, funcionava desde o início do século, mas já não funcionava nos anos 30,
e a fábrica Aliança da (7) Sociedade de Conservas Aliança iniciou atividade em 1918 e funcionava nos anos 40.

Por estas razões, ambas poderiam ou não, estar a funcionar neste período (Rodrigues, 1997).

Através do Jornal Europa, temos acesso ao anúncio de seis fábricas no ano de 1924:

Ângelo Parodi – Fábrica Stª, Maria; Centeno, Cumbrera & Rodriguez – Fábrica Peninsular;
(8) José Pedro de Souza Oliva, Lda – Fábrica Lisboa;
(9) Carmos, Cardoso & Cª limitada – Fábrica O Futuro;
(10) Société Internacionale Limitée
(11) Empresa Industrial Lusitania, lda – Fábrica Lusitânia.

Nos registos da 5ª Circunscrição Industrial surgem oito licenças para este período:

Empresa Industrial Lusitania, lda – Fábrica Lusitânia;
(12) Joaquim dos Santos Anselmo;
(13) Rebocho, Lima & Cª, Lda;
(14) Cruz Martins & Cª;
(15) D.N. Charalampopoulos S.A. – Fábrica do Grego;
(16) Empresa de Conservas “Triunfo”, Lda;
(17) João de Sousa Brito – Fábrica Alegria
(18) Tenório & Madeiras. Temos, ainda, a
(19) Fábrica de Conservas de peixe “A  Popular”, que faz parte dos registos da 5ª Circunscrição Industrial, mas apenas contém uma planta da fábrica sem qualquer data, que poderia estar a funcionar neste período, sendo que a maioria dos pedidos de alvará se enquadra neste período.

Ainda que este exercício seja, parcialmente, especulativo, o número máximo de fábricas ultrapassa, as treze fábricas em 1934, confirmado por várias fontes, em Vila Real de Santo António (Rodrigues, 1997; Grilo, 2010). Mesmo excluindo as fábricas onde existem dúvidas significativas, temos, pelo menos, quinze fábricas a funcionar em 1924, confirmando que esta foi a data em que se registou maior número de fábricas a funcionar em simultâneo.

21 – Recortes de anúncios de fábricas de conserva. Suplemento do Jornal  Europa, ano IV, janeiro de 1924. Cedido pelo Museu de Lagos.

3.1.4 O REDESENHO DA FRENTE RIBEIRINHA 1926 - 1947

Vila Real de Santo António entra num período de redesenho da sua frente de rio, que iria conjugar alterações na linha férrea, porto e na avenida marginal.

Devido à importância do porto de Vila Real de Santo António, no final de 1926, foi aprovado, pelo Conselho Superior de Obras Públicas, um “plano geral de melhoramentos” que deveria ser executado consoante as necessidades de desenvolvimento da vila, proposto pela equipa de Duarte Abecasis. Os melhoramentos incluíam “melhoramento do estuário do Guadiana até Mértola e estabelecimento de serviços de navegação fluvial”, construção de instalações que permitissem o transbordo entre os veículos rodoviários, ferroviários e fluviais. Dava, ainda, prioridade à construção de um cais acostável, a norte, na zona mais larga do terraplano, para ali possibilitar uma ligação com o caminho de ferro e com o tráfego  fluvial vindo de Espanha. Numa segunda fase, seria construída uma doca de pesca na zona da Ponta da Areia, bem como um cais acostável na zona sul em frente às fábricas de conserva,  para servir não só os barcos das fábricas, mas também o tráfego local. O adiamento das  obras do porto, até aos anos trinta, pode estar relacionado com o estagnamento provocado pela crise monetária portuguesa e crise económica, que se verificou nos anos 20 (Abecassis,  1926).

No início dos anos 30, devido à perspetiva de início das obras do porto, a linha de caminho de ferro que acabava na zona portuária com a ponte-cais, iria ser, finalmente, modificada.

Ainda que um ano antes tenha recebido um conjunto de pequenos reparos e melhoramentos (como iluminação na ponte-cais, pintura de fachadas, sanitários na estação,  canalização nas habitações para os trabalhadores ferroviários, etc.), a relocalização da estação não era algo completamente novo. Já em 1906, com a inauguração da linha, Fernando  de Sousa falava das várias soluções definitivas que a linha poderia adquirir, assim como  em 1909 Adolpho Loureiro referia que a estação tinha um carácter provisório e que a solução poderia passar por uma linha “parallelamente á margem do Guadiana, onde a um cais longitudinal poderão atracar barcos e navios para serviço de passageiros e mercadorias de importação e exportação”, referindo que esta linha poderia passar a “montante das últimas fábricas”, sendo esse o traçado definitivo da linha (Sousa, 1906; Loureiro, 1909; Gomes, 2009).

Segundo registos da época, em 1930, a ponte cais, construída no início do século, apresentava já avançados sinais de degradação, deixando de servir os vapores que transportavam  mercadorias, assegurando apenas a ligação aos passageiros vindos de Espanha.

Por essa razão, era bem-vinda esta reestruturação do porto, que iria restabelecer os serviços de mercadorias. Em 1935, iniciadas as obras no porto, a ponte-cais é desmantelada e começam a as buscas por novas soluções para o traçado da linha férrea, de forma a servir a nova zona portuária, tendo sido adotada uma solução provisória, com a uma linha de caminho de ferro paralela ao rio, para permitir o funcionamento da comunicação ferroviária ao novo porto, que seria inaugurada em dezembro de 1937, para mercadorias em grande e pequena velocidade (Loureiro, 1909; Gomes, 2009).

Na figura 23, podemos ver a nova solução para a comunicação do caminho de ferro com a nova zona portuária, que fazia parte do aterro a norte da vila. Apesar de aquela ter sido, antes, uma zona ocupada pela linha férrea e porto, as cíclicas subidas do caudal provocavam a inundação de algumas zonas, daí a relevância da consolidação, com aterro, daquela zona, para garantir também a segurança do porto.

Quanto à expansão urbana, é possível ver que segue o mesmo padrão: para oeste,  ao longo da estrada nacional, onde é possível ver algumas construções espalhadas; a norte, a vila cresce até à estação de comboio, verificando-se uma afirmação desta como zona industrial, com a linha de caminho de ferro, consolidação do porto e três fábricas conserveiras.

A sul, o crescimento urbano é pequeno, com destaque para as indústrias a ocuparem esta  zona, principalmente junto ao rio, com fábricas, armazéns e estaleiros.

23 – Planta de Vila Real de Santo António, 1938. Autor: Lúcio Alves. Batista, 2017

Neste período, existem menos fábricas devido à regulamentação corporativista da indústria e a crise sentida nos anos 30, antes da Segunda Guerra Mundial. Seriam, então, onze as instalações em funcionamento:

1. Fábrica St. Maria, de Ângelo Parodi;
2. Fábrica S. Francisco, de Viúva e Herdeiros de Francisco Tenório;
3. Fábrica S. Sebastião, da Ramírez & Cª, Lda;
4. Fábrica Guadiana, da Pilotos & Capa;
5. Fábrica Peninsular, da Centeno Cumbrera & Rodrigues;
6. Fábrica Alegria, da Nóia de Brito, Lda;
7. fábrica da Cruz Martins & Cª;
8. fábrica do Grego da D.N. Charalampopoulos S.A.;
9. fábrica da Lucas & Ventura, Lda;
10. Fábrica Folques, da Raul Folque & Filhos, Lda ;
11. fábrica da Barbosa, Socorro & Cª Lda.

Fica, ainda, a dúvida se a Sociedade de Conservas Aliança estaria, ou não, em funcionamento neste período, sendo que teve início em 1918 e estaria a funcionar em 1947.

24 – Plano Geral de Arranjo do Porto de Vila Real de Santo António. Arq. Paulo Cunha, 1942. Fotografia de Mário Novais (1942). Retirado da Revista Monumentos nº 30, dezembro de 2009. P.95.

Outros dois planos se seguiram: o Plano Parcial de Urbanização de Vila Real de Santo António, de 1939, por Carlos Ramos, sobre o qual “desconhecem-se o âmbito, os objetivos e o enquadramento deste plano” (Fernandes, 2009, p.95); e o Plano Geral de Arranjo do Porto de Vila Real de Santo António, de 1942, por Paulo Cunha, para a Direção de Obras Públicas e Comunicações e Direção Geral de Serviços de Hidráulica. Este plano terá começado a ser elaborado em 1939 e prosseguiu até 1961. Uma vez que foi o mesmo arquiteto a elaborar o anteplano de Vila Real, depreende-se que tenha trabalhado em ambos, simultaneamente, a partir dos anos quarenta, período de arranque dos anteplanos.

Na figura 24, podemos ver parte do plano para o porto, destacando-se a proposta de arranjo regular da avenida com espaço ajardinados, uma doca central alinhada com os quarteirões e com a praça principal. A nova linha férrea a chegar paralelamente à costa, terminando em frente ao edifício que serviria de posto fronteiriço, com visível arco ao centro.

Os edifícios junto ao porto dividem-se em dois grupos: os que seguem a lógica pombalina e o enquadramento da malha urbanas e o conjunto, mais a norte, de armazéns, que se impõe e relaciona com as construções, mais irregulares, da indústria conserveira.

Na realidade, apenas parte deste plano foi concretizado exatamente como o arquiteto Paulo Cunha o pensou porque, em 1945, o engenheiro Duarte Abecasis, Diretor-Geral dos Serviços Hidráulicos, apresenta o plano final à referida direção, plano este que teve em conta as propostas dos arquitetos Carlos Ramos e Paulo Cunha, que seria integrado no anteplano de Vila Real (Anteplano de VRSA, 1945).

22 – Planta do Projeto de construção da Avenida da República, 2 de dezembro de 1944. UALG

Na planta da Câmara Municipal, de 1944 (fig. 22), encontramos um projeto para a Avenida da República, que reflete já, naquele ano, as diferenças do anterior projeto de Paulo Cunha. Estas passam pela transferência da doca, ao centro da vila, para a zona norte, por se defender que ali serviria melhor as indústrias de conserva e estaria mais próxima do caminho de ferro; o Clube Náutico, que passaria a ocupar o espaço ao centro da vila. A zona norte já estaria definida, nesta altura, como a zona industrial de futuro, prevendo que ali se fossem localizar as novas fábricas, definindo-se o novo espaço de aterro como multifuncional, partilhado pela indústria e a transição entre os vários acessos viário, férreo e fluvial (Anteplano de VRSA, 1945). Permanece o desenho da linha de comboio, que já tinha sido aprovada anteriormente e, por isso, não podia ser modificada com a pequena diferença de esta terminar em direção ao edifício de posto fronteiriço e não em frente do mesmo.

Na legenda pode, ainda, ler-se “Planta geral depois de realizadas as obras”, o que deixa algumas questões, pois comparando o desenho deste projeto para a avenida principal da vila, com a fotografia aérea da cidade de 1947 (fig.27), podemos perceber que apenas parte estava concretizado.

Na zona do porto, a alfândega, um armazém junto ao rio e o edifício do “guarda fiscal” foram construídos segundo o projeto da avenida. O restante desenho parece, apenas, ter sido cumprido parcialmente. No que diz respeito ao limite da linha de costa, foi construído um muro alinhado com o edifício a norte da Rua Manuel de Arriaga, que liga a avenida existente com o desenho do projeto. O resto da proposta para sul não tinha sido concretizado, até 1947.

Ainda na fotografia aérea de 1947, podemos ver que, além da zona do porto, a regularização da zona em frente às fábricas foi igualmente executada como tinha sugerido Duarte Abecassis, ainda que sejam salientes dois pontões das fábricas de Angelo Parodi e dos sucessores de Fransisco Tenório. Mais a sul, os armazéns/estaleiros continuaram a usar os cais privados, sendo que nenhuma obra de melhoramento nessa zona é visível neste período.

27 – Fotografia aérea do ano de 1947. Cedida pela C.M.V.R.S.A.

Comparativamente a 1938, o edificado da malha urbana não apresenta alterações significativas. No que diz respeito ao número de fábricas, temos oito em funcionamento:

1. Fábrica St. Maria, de Ângelo Parodi;
2. Fábrica S. Francisco, de Viúva e Herdeiros de Francisco Tenório;
3. Fábrica S. Sebastião, da Ramírez & Cª, Lda;
4. Fábrica Guadiana, da Pilotos & Capa;
5. Fábrica Peninsular, da Centeno Cumbrera & Rodrigues;
6. Fábrica Folques, da Raul Folque & Filhos, Lda;
7. Fábrica Aliança, da Sociedade de Conservas Aliança;
8. fábrica da Viúva e Herdeiros Francisco de Sacramento Pagarote.

A informação é referente à revista “Conservas de Peixe” nº25 de abril de 1948, que indica as fábricas em funcionamento no ano anterior, mencionando, ainda, a Companhia de Conservas Balsense e J.J. Celorico Palma, tendo ambas as sociedades sede em Tavira, desconhecendo-se qualquer instalação das mesmas em Vila Real de Santo António.

Como base dos anteriores planos, temos a nova ligação férrea ao porto, que estava prevista desde 1929. Incluído, estava um novo equipamento a norte da antiga estação, devido ao traçado da nova linha, que pretendia construir um edifício que servisse de estação de passageiros, projeto do arquiteto Cottinelli Telmo, (linhas com plataformas, cais descoberto, armazém de mercadorias, cocheiras de carruagens e máquinas, dormitórios, ponte de inversão de máquinas, reservatório de cimento e tulha e cinzeiros para o carvão). A linha férrea iria desviar-se para ir ao encontro da nova estação, seguindo em direção ao rio e curvando depois da fábrica Guadiana para entrar paralelamente ao Rio Guadiana, na zona portuária, como podemos ver, tanto no plano para o porto de Paulo Cunha, como na fotografia aérea de 1947. O decorrer das obras arrastou-se no tempo, sendo que a nova estação foi inaugurada em 1945 e o terminal para passageiros, previsto localizar-se junto ao porto, apenas em 1957 (Martins, 2009; Fermandes,2009).

25 – Construção do edifício da Alfandega e obras no porto de Vila Real de Santo António. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

26 – Perspetiva do edifício da estação de caminho de ferro de Vila Real de Santo António. Projeto do arquiteto Cottinelli Telmo. Retirado da Revista Monumentos nº30, p.123.

3.1.5 HABITAÇÃO

A migração de trabalhadores para outras vilas, em procura de trabalhos sazonais, era já um hábito antes do surgimento da indústria conserveira.

Vila Real de Santo António mantém uma relação de partilha de população com Castro Marim e Monte Gordo. Aquando do desaparecimento de Santo António de Arenilha, todos os poderes administrativos foram recolocados nas outras duas vilas, e terá sido nelas que a população procura abrigo. Com a construção de Vila Real de Santo António, a população de Monte Gordo e de Castro Marim povoaram a nova vila, além dos migrantes provenientes de  outras zonas do país. Sendo Vila Real um centro económico importante, na maioria do período  que se seguiu à sua construção, a população das zonas mais próximas foi atraída pelas oportunidades de trabalho. Monte Gordo, que se afirmará como uma vila piscatória, tinha principalmente a sua população feminina aliciada a trabalhar no processamento de pescado ou fábricas de conserva, em Vila Real de Santo António, mesmo antes de existir uma ligação rodoviária entre as duas vilas, em 1892. A população de Castro Marim manteve a mesma premissa, mas foi após a construção da ponte sobre o Esteiro da Carrasqueira, em 1902, que veio facilitar o percurso entre ambas as vilas, que se verificou maior movimentação (Cavaco, 1976; Correia, 1997; Pessanha, 2014).

28 – Locais de residência do operariado das fábricas de conserva de Vila Real de Santo António, em 1970. Retirado de “O Algarve Oriental : As Vilas, o Campo e o Mar”, p.318.

A indústria atraiu nova população e fez crescer Vila Real, mas ainda assim, devido à sazonalidade da mesma e as crises de pescado que foram ocorrendo ao longo do tempo, uma parte da população preferia manter a sua residência. Surgem, ainda, outros fatores como o facto da população de Monte Gordo ser composta de pescadores, onde não havia muito trabalho para as mulheres, que procuravam trabalho nas fábricas nas alturas de laboração conserveira, sendo que estas famílias não se pretendiam mudar. Acrescenta ainda o fator de as habitações serem mais caras em Vila Real e por isso parte da população fixava-se nas vilas mais próximas ou até na zona das hortas junto à estrada nacional, na periferia de Vila Real (Cavaco, 1976). A migração entre estas três vilas, com tendência na concentração populacional em Vila Real de Santo António, continuou ao longo dos anos e era comum na indústria conserveira, como confirma a figura 28, onde se pode ver onde residia a população operária, em 1970. Ao contrário de outros centros conserveiros em Portugal, não se conhece um estudo sobre as condições de habitação dos operários conserveiros, desconhecendo se existiram bairros de barracas ou outros, na periferia, junto às fábricas de conserva. Sabemos, no entanto, que nenhuma iniciativa estatal ou por parte do I.P.C.P. foi executada na vila, para colmatar a falta de habitação para a população operária, até 1944, quando se inicia o processo para a construção de um bairro de casas económicas para os operários de várias atividades.

Estudada a relação de Vila Real com as aldeias mais próxima, no que diz respeito às iniciativas públicas para a habitação, desconhecem-se iniciativas ou relatos de falta de condições de habitabilidade para a população em estudo. Fica por perceber se a migração e ligação da população com Monte Gordo e Castro Marim, absorveu, naturalmente, a população excedentária e nunca foi necessário investir em programas de habitação operária, ou se nunca foi posto em prática nenhum programa de habitação (até 1944) para colmatar os problemas de habitabilidade na vila, tendo a população acabado por se fixar nas vilas mais próximas e na zona das hortas.

3.1.6 BAIRRO PARA AS CLASSES POBRES

Considerando as evidências relativas à sobrelotação existente em determinadas zonas da cidade, onde famílias partilhavam habitações e onde se registavam “inúmeros” trabalhadores “(…) coagidos a procurar habitação nas vizinhas povoações de Castro Marim, Monte Gordo e no sítio das Hortas por lhes ser impossível a permanência nesta localidade” (Doc. 393; Acta 23; 5/12/1944 – C.M.V.R.S.A.), os organismos sindicais do concelho de Vila Real de Santo António avançaram com um pedido à autarquia para a construção de um bairro de casas económicas, como resposta a estas dificuldades crescentes em encontrar habitação condigna.

A Câmara Municipal acedeu ao pedido, promulgando o documento com o requerimento aos órgãos estatais para a construção do bairro, que data de 26 de julho de 1946. “O estudo de arranjo geral do Bairro com a implantação das casas foi elaborado pelo técnico encarregado do estudo do Plano de Urbanização da Vila” (Doc. 394; Acta 18; 5/09/1946 -C.M.V.R.S.A.). Este mesmo documento refere que, o arranjo geral propõe a utilização das tipologias A, B e C, já estudadas e aprovadas para os Bairros de Lagos e Portimão. Apesar deste estudo, é proposto, devido aos custos, que sejam adaptados materiais, técnicas e outras alterações, como a localização das casas do tipo C, (que estaria prevista ser junto à estrada para Monte Gordo), mas que devido ao seu custo seriam excluídas, sendo utilizadas apenas as outras tipologias apenas com um andar. A fase inicial – que iria ser submetida “à apreciação do arquiteto urbanista, afim de a desenvolver e corrigir as alterações propostas pelo município, de modo a conjugá-la com o estudo geral de urbanização da Vila” – o estudo previa seis casas do tipo A, com 2 quartos e catorze do tipo B, com três quartos, prevendo uma duração de doze meses para a conclusão da obra (Doc. 394; Acta 18; 5/09/1946- C.M. V.R.S.A.; Proc. 86/UM/45, DGSU).

Durante a construção, que se iniciou a 30 de novembro de 1946, existiram vários contratempos, muitos relacionados com a indisciplina no processo de construção. As inspeções dos técnicos revelavam que foram ignorados os métodos de construção previstos, tendo originado a demolição de estruturas de habitações devido a fissuras em paredes, relacionados com problemas nos ensaios das fundações e com os materiais a utilizar, que tinham sido aprovados, foram alterados, originando acabamentos diferente e até a inclusão de elementos arquitetónicos não previstos, como gelosias, iguais às utilizadas nos bairros dos pescadores de Portimão e Olhão. Entre problemas técnicos e problemas financeiros da Câmara Municipal, o projeto sofreu várias prorrogações e alterações.

29 – Localização dos Bairros estatais em Vila Real de Santo António. Elaborado pelo autor.

Em 27 de julho de 1949, foi aprovada a comparticipação para a construção de mais quatro casas, com nova prorrogação de mais dez meses, faltando construir seis habitações.

A sua localização seria entre as casas do tipo B, como é visível pelo preenchimento desse espaço na figura 30, as novas construções seriam do tipo C.

As habitações terão sido concluídas até ao final de 1950, sendo que a 12 de dezembro faltava aprovar e executar o projeto de urbanização, para a ocupação das casas. O último adiamento terminou à data limite a 31 de dezembro de 1951, abrindo as inscrições para a ocupação dos fogos ainda antes dessa data e determinadas as rendas. A 7 de fevereiro de 1952, pede -se ocupação rápida dos fogos, devido à demora na execução da obra, e que a inauguração seja na mesma data, a ocorrer no máximo, no espaço de um mês, tendo sido inaugurado mais tarde, em Maio de 1952.

O novo bairro foi implantado numa zona periférica da cidade, deslocada das zonas de habitação, entre as fábricas de conserva e os estaleiros navais, tendo o terreno sido adquirido à firma de conservas Centeno, Cumbrera e Rodrigues, em 1946, antes da comunicação à Direção Geral de Urbanização da intenção de construção do bairro. A escolha deste terreno poderá ter tido vários fatores em conta, como o preço deste comparativamente às zonas de expansão previstas para habitação, junto ao aglomerado central da vila; a proximidade das fábricas da zona industrial Sul, pelo volume de operários da indústria de conserva e pesca na vila, em relação a outras ocupações, sendo que o pedido partia dos organismos sindicais dos operários da indústria de conservas, construção civil e empregados de escritório e caixeiros; ou, ainda, o facto do pedido para a sua construção ter sido aceite durante o desenvolvimento do Anteplano de Vila Real de Santo António, “estando em curso o plano de urbanização da Vila, seria oportunidade de destinar desde já local apropriado para a construção do Bairro de Casas Económicas” (Doc. 393; Acta 23; 5/12/1944).

O Bairro de Casas para Famílias Pobres foi integrado na iniciativa do Decreto-Lei nº 34 486 de 6 de abril de 1945, ainda que, à data do seu pedido por parte dos sindicatos, em 1944, tenha sido evocado o Decreto-Lei nº 23052 de 23 de setembro de 1933, referente as Casas Económicas. No ano seguinte (1945), com a criação do programa conhecido como “Casas para Famílias Pobres”, passa a ser esta a denominação do bairro em todos os documentos escritos e desenhados. O programa previa uma parceria entre a Câmara Municipal, responsável pelo processo, e o Estado, que entrava com uma contribuição monetária, estando definido que a atribuição das habitações seria feita através de candidatura pública, ficando os ocupantes sujeitos a pagar uma renda acessível, definida consoante o tipo de habitação (Agarez, 2018; Doc. 393, Acta 23, 5/12/1944).

O projeto de arquitetura é de autor desconhecido, sendo provavelmente um projeto encomendado pela CMVRSA e, posteriormente, financiado pela DGSU, sendo que o arranjo geral de urbanização é do Arquiteto Paulo Cunha. A área do terreno adquirido pelo município tinha 5.000 mÇ, onde foram construídos vinte e quatro fogos, dos quais seis do tipo A, catorze do tipo B e quatro do tipo C, estando previstos um total de 132 ocupantes.

Nas três tipologias, a entrada era feita diretamente para a sala de estar, tinham uma cozinha, com porta para as traseiras e uma casa de banho. A tipologia “A” tinha dois quartos, a “B” tinha três quartos e a “C”, a única com dois pisos, tinha 4 quartos, senda a única que não foi possível encontrar os desenhos para aplicar neste bairro. Anexas, estavam, ainda, no mesmo processo um conjunto de desenhos tipo da DGSU, que incluíam a planta do 1º andar da tipologia C.

Foram construídas outras habitações que integraram um processo chamado “construção de casas de habitação para as classes pobres – 2º fase”, que se localizava na rua 14 (atual Padre Jorge Leiria), numa zona a sul da vila, pouco  densificada, mas junto de outras habitações e, por isso, mais integrada no tecido urbano, perto das fábricas de conservas. Este segundo grupo, também conhecido por Bairro Casas de Pobres, era constituído por doze fogos e só estaria concluído e urbanizado em 1964.

30 – Planta de implantação do Bairro de Casas para Pobres. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

31 – Planta de arborização do Bairro para as Classes pobres de Vila Real de Santo António. Enviada em 1949. Proc. 85/MU/45, DGSU, arquivo da UALG.

32 – Planta de Urbanização que serviu para a construção do Bairro para pobres em Vila Real, com tipos de casas. Enviada em 1952. Proc. 85/MU/45, DGSU, arquivo da UALG.

34 – Desenho exterior da tipologia B, do Bairro para famílias pobres de Vila Real de Santo António. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

35 – Desenho interior da tipologia B, do Bairro para famílias pobres de Vila Real de Santo António. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

À esquerda imagem 33 – Desenho da tipologia A, do Bairro para famílias pobres de Vila Real de Santo António. Cedido pelo A.H.M.A.R.M.

3.1.7 ANTEPLANO DE URBANIZAÇÃO DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO

Paulo Cunha ficou responsável, em 1945, de projetar o Anteplano de Urbanização de Vila Real de Santo António. Neste, estavam, desde logo, integrados o Plano Geral de Arranjo do Porto (1945), que associado tinha também um plano para a Avenida da República e o Bairro de Famílias Pobres (1944 – 1952), processos que tinham se iniciado antes do anteplano mas, que o integraram e onde o arquiteto esteve envolvido (CCDR Algarve). O Anteplano foi apresentado, pela primeira vez, a 1 de agosto de 1950, às várias instituições estatais (Direção- Geral de Serviços Hidráulicos, Junta Autónoma dos Portos, Direção Geral de Transportes Terrestes, Direção Geral dos serviços de Urbanização e Camara Municipal), às quais cabia dar o seu parecer, sendo o plano revisto e entregue nova versão em dezembro de 1955, tendo a correspondência entre as partes continuado até 1964.

A planta (fig.36) de análise do Estado atual (levantamento dos edifícios e da sua utilização), apresenta um registo dos vários edifícios industriais que na sua maioria eram edifícios ligados atividades piscatórias, como fábricas de conservas, litografias, armazéns de salga e outros. Esta análise inicial resultava também, na identificação dos problemas a resolver pelo próprio plano na sua proposta, como o acesso a eletricidade, esgotos e água canalizada no território da vila, edifícios devolutos e planeamento do crescimento urbano, bem como o arranjo urbanístico de toda a vila, em especial, na regularização da sua frente de rio. No relatório, era referido que os edifícios em ruínas eram mais frequentes nas zonas industriais.

No que diz respeito às áreas de expansão (fig.37), ficou definido que a zona de habitação deveria crescer para o interior a Oeste, com uma pequena parte para sul até à estrada de Monte Gordo (zona de habitação existente a azul claro e a de expansão a azul escuro). Por sua vez, a industrial devia consolidar-se em duas zonas, onde já tem a sua maior expressão, a Sul, crescendo para o extremo sul da vila onde se deve focar a construção naval, já ali existente e a Norte, a indústria de conserva , indústrias de óleo de peixe e peixe prensado, em ligação à zona portuária – indústria existente a amarelo claro e a zona de expansão a amarelo escuro. As indústrias que estavam em locais inconvenientes para a salubridade da vila deviam ser transferidas, prevendo o plano largas áreas a norte para esse efeito.

A planta de zonas (fig.38) mostra a organização da vila, onde claramente, a zona central é dedicada a habitação, pontuada por zonas de recreio, ensino e serviços públicos.

36- Planta do Estado atual, indústrias. Anteplano de Urbanização, Arquiteto Paulo Cunha, 1947. Cedido pela C.M.V.R.S.A.

37 – Planta das áreas de expansão com os edifícios industriais a desalojar. Anteplano de Urbanização, Arquiteto Paulo Cunha, 1947. Cedido pela C.M.V.R.S.A.

38 – Planta de Zonas. Anteplano de Urbanização, Arquiteto Paulo Cunha, 1947. Cedido pela C.M.V.R.S.A.

Nesta zona estava integrada a área pombalina, considerada de interesse histórico e artístico, onde não eram permitidos novos arranjos ou edifícios, preservando as características arquitectónicas existentes. Nos extremos, temos as zonas industriais (amarelo), com a pequena indústria na zona norte (laranja), com destaque para a dimensão do espaço reservado para atividades portuárias (azul) estendendo-se para norte, encontrando como limite um curso de água. A zona sul destinava-se a indústria e grandes armazéns, e a zona norte, à indústria, artesanato ou pequena indústria, indústria portuária e grandes armazéns.

A proposta do arquiteto Paulo Cunha pretendia que a expansão da malha urbana se fizesse, maioritariamente, por linhas ortogonais, mantendo, de algum modo, uma conexão ao desenho pombalino, ainda que se verifique uma nova zona de habitação que não segue este critério, mas já afastada do centro fundador da vila. É proposto uma menor densidade populacional nas novas zonas, com arruamentos mais largos e espaços arborizados, tanto nos passeios como em redor das novas zonas habitacionais.

Uma preocupação são os serviços públicos, com a proposta de melhorar as condições nos serviços atuais ou realojar os serviços em locais onde melhor possam servir a população.

Como já referido, na figura 38, existe uma clara distinção entre a zona de habitação e a zona indústria, com estas a serem separadas por zonas arborizadas, de recreio ou desportivas, quando possível. Pretendeu-se assim, retirar todas as indústrias da zona central da vila, até algumas indústrias pequenas e artesanato, recolocando-as a norte.

Na frente da vila, pretende o arquiteto harmonizar toda a frente de rio, regularizando-a para acompanhar as obras já aprovadas para a zona portuária, seguindo o arranjo proposto pelo próprio, no plano geral do porto e variante, com a diferença da doca, que agora está mais a norte, onde se previa a concentração da atividade portuária e conserveira.

No que diz respeito à habitação operária, inclui já o novo Bairro para Famílias Pobres, não definindo uma zona para os novos bairros do mesmo género, mas refere a possibilidade destes se localizarem nas zonas suburbanas e rurais. Contabilizando a necessidade de habitação para a população operária, nos cálculos de habitação a construir com o desenvolvimento da vila. Outro exemplo de aplicação afirma ser a construção de um bairro económico para os funcionários públicos, que vivem, na sua maioria, num aglomerado junto à estrada que segue em direção ao Alentejo, junto desse aglomerado de casas.

Em termos de acessos e transportes, previa-se a circulação de veículos pesados através das vias principais e mais largas, evitando as zonas habitacionais e facilitando o acesso às zonas industriais e portuárias, com a concentração dos transportes na zona do porto: ligação fluvial a Espanha, apeadeiro da linha férrea e estação de camionagem (autocarros) na mesma zona. A estação ferroviária já estava definida anteriormente para se localizar a norte da vila antes da zona portuária.

39 – Planta de Apresentação. Anteplano de Urbanização, Arquiteto Paulo Cunha, 1950. Cedido pelo arquivo da UALG.

O Anteplano de Paulo Cunha aproveitou as zonas já industrializadas e clarificou-as, não alterando muito as zonas onde se localizavam as grandes indústrias. Torna-se evidente, ao ler a documentação, o valor que ainda tinha a indústria na vila, neste período – ainda que se identifique as zonas industriais como as que mais têm edifícios devolutos. Evidência da importância da indústria neste períodos é a área prevista para a expansão industrial e a futura zona portuária, bem como o parecer da Câmara Municipal em 1953, que pede que “nos terrenos de reserva a norte e a sul da vila, estudar a possibilidade da sua imediata aplicação” e um “novo estudo de arruamentos desta área industrial em condições de permitir a ampliação da fábrica Luso-fabril”(Cunha, 1950).

Outros pareceres levaram a outros ajustes, como os terrenos da antiga estação de caminho de ferro ficarem reservados à Direção-Geral de transportes terrestres, a inclusão de uma zona de feiras e um parecer quanto aos bairros económicos, dizendo que estes não deviam ser construídos em zonas rurais, mas integrados na malha urbana da vila, entre outros pequenos ajustes.

No entanto, existem dois fatores a destacar na comunicação entre as várias entidades depois da apresentação do plano. A primeira é o facto da previsão do crescimento populacional, feita pelo arquiteto responsável pelo anteplano, que estava completamente errada .

40 – Prospeção, Preservação e Recuperação em Áreas Urbanas do Algarve, Cabeça Padrão, 1968. Retirado da Revista Monumentos nº30.

Em 1950, a população da vila era de 6.086 habitantes e estava previsto que chegasse aos 11.000 habitantes em 1960, quando, na realidade, o que se verificou foi uma população de 5.560 habitantes, um valor abaixo do que existia em 1950. Tal levou a um pedido de reavaliação das fases de expansão da vila e das áreas a utilizar para a ocupação futura. Outro fator que é apontado, por não terem sido tidos em conta, está relacionado com o turismo, que estava em fase crescente -“anteriormente a 1955, o movimento turístico no Algarve não havia tomado as proporções verificadas atualmente”. Referindo-se que Vila Real de Santo António tinha uma população flutuante, que devia ser tida em conta, pela sua proximidade a Espanha e à praia de Monte Gordo. Estava ainda, a ser considerada a construção de uma ponte que permitisse uma ligação a Espanha (ligação que só foi concretizada em 1991), que poderia aumentar a afluência à vila.

Vila Real de Santo António estava, claramente, a atravessar um período de menor desenvolvimento, adiando assim uma maior expressão do anteplano de imediato, como se comprova pela figura 40. Ainda assim, é possível observar uma clara evolução na zona do porto e da zona industrial a norte, bem como na regularização da frente de rio, que não foi concretizada como projetada pelo arquiteto Paulo Cunha, devido ao custo do terraplano associado ao avanço da linha de costa. É, ainda, possível, identificar alguns equipamentos públicos novos e os dois Bairros para famílias Pobres, um mais a sul, depois das fábricas de conservas e o outro a sudoeste, numa área ainda não completamente urbanizada, entre instalações indústrias e outras habitações. Importa concluir que, neste estudo de caso, a indústria não foi substituída pelo turismo a partir do Anteplano de urbanização, como aconteceu em outros casos, mas que passam a partilhar um papel importante na economia da cidade.

3.1.8 CRONOLOGIA INDUSTRIAL

A indústria conserveira surge em Vila Real de Santo António, no século XIX, destacando-se pela utilização do atum, e mantendo a sua presença na cidade até ao final do século XX. Através da informação encontrada, é possível localizar as fábricas na malha urbana e fazer um resumo da passagem da indústria pela cidade, analisando as zonas industriais, a importância da indústria na cidade e a importância da mesma para o crescimento urbano. A figura 41 resume, em si, a recolha documental, oral e escrita, que permitiu localizar as várias fábricas.

41 – Resumo das zonas industriais e localização das fábricas de conserva, assim como dos edifícios a esta complementares, em Vila Real de Santo António. Elaborado pelo autor

A pesca e a conservação do peixe existem em Vila Real de Santo António, desde a sua construção, iniciados com as Companhias de Pesca, que ocupavam toda a frente da vila com a exceção do edifício da alfândega. Surgiu, depois, o investimento e fixação de espanhóis, italianos e gregos, sempre conservando pelo sal. No final do século XIX, mais precisamente em 1879, surge a primeira fábrica de azeite e molhos, que conservava numa lata hermeticamente fechada (inquérito industrial de 1881).

A primeira fábrica era conhecida como Santa Maria, da sociedade Ângelo Parodi Fu Bartholomeu (1), que surge afastada do núcleo urbano mais a sul, junto ao rio;

a Fábrica São Francisco, de Francisco Ténorio (2) em 1880, mais junto ao núcleo urbano e duas ruas afastada do rio;

a Fábrica São Sebastião, de Domenico Migone (3), em 1881, junto à fábrica de Ângelo Parodi, na Rua da Princesa;

a fábrica de Sebastião Ramirez (4), em 1884, que se fixou a norte afastada do núcleo urbano 

e a Fábrica Guadiana, da empresa Pilotos & Capa (5) que foi criada 1884, segundo o registo do arquivo municipal, fixando-se a norte da cidade junto ao cemitério.

Ainda no final do século temos:
António Soares Barreto, Rua do Príncipe,
Manuel Gomes Baptista Junior, Rua da Princesa 
e a Companhia Industrial, Rua do Príncipe,
não tendo, no entanto, mais informação para conseguir localizar com certeza estas três fábricas que estavam em funcionamento em 1890.

No início do século XX, temos a Fábrica Peninsular, da empresa Centeno, Cumbrera & Rodriguez (6), que tinha as suas instalações a norte, entre as fábricas S. Sebastião e Guadiana;

a Fábrica Boa Esperança, da Pedro J. Candido & Cª (7), que se instala junto à fábrica de Francisco Tenório na zona sul da cidade

e a Fábrica Aliança, da Sociedade de Conservas Aliança (8), em 1918, na zona sul sendo das fábricas mais distantes do rio junto à malha urbana.

Nos anos vinte, existe um pico de fábricas em funcionamento das quais pouco se sabe:
a Fábrica Lisboa da José Pedro de Souza Oliva, Lda (Jornal Europa);
a Fábrica O Futuro da Carmos, Cardoso & Cª, lda (Jornal Europa);
a empresa Société Internacionale Limitée (Jornal Europa);
a fábrica de Joaquim dos Santos Anselmo (5º Circ. Industrial), na rua 31 de Janeiro (atual Rua 25 de Abril);
a fábrica da Rebocho, Lima & Cª, Lda (5º Circ. Industrial), na Avenida da República;
a fábrica de João de Souza Brito, na Rua São Sebastião.

Ainda, no mesmo período, surgiram
a Fábrica Lusitânia da Empresa Industrial Lusitânia, Lda (9), em 1921, que se instalaria na Avenida da República junto à fábrica de Parodi;
a Cruz Martins & Cª (10), no cruzamento da Rua D. Infante Henrique com a rua Dr. Manuel Arriaga;
a Fábrica do Grego da D.N. Charalampopoulos S.A. (11), em 1924, que ficava a sul também junto da Parodi;
a Fábrica Triunfo da Empresa de Conservas “Triunfo”, Lda (12), na Rua Cândido dos Reis; a Tenório & Madeiras (13), em 1924, instalada a norte, integrada na malha urbana da vila;
e a Conservas de peixe “A Popular”, lda (14), que surge sul, no fim da malha urbana da sua época (5ª Circ. Industrial).

Mais tarde, surge a Fábrica Victoria da firma Barbosa, Socorro & Cª Lda (15), em 1928, instalada onde hoje é o edifício da capitania (arquivo VRSA);
a Sales & Brito, Lda (16), em 1929, junto à avenida principal da vila;
a Lucas & Ventura, Lda (5º Circ. Industrial), com alvará de 1933, da qual apenas se sabe que o edifício dava para a Rua D. Infante Henrique;
a Fábrica Folque da Raul Folque & Filhos, lda (17), em 1930, a fábrica mais sul da vila, na periferia mas junto à água, em zona de armazéns e estaleiros.

Nos anos quarenta, sabemos que estavam a funcionar as seguintes fábricas:
Fábrica Lisboa da Luso Fabril, lda (9), a última fábrica sul antes da estrada para Monte Gordo onde teria funcionado anteriormente a Fábrica Alegria da empresa Nóia de Brito, lda;
a fábrica de Tiago Samudio (13), com alvará de 1944, que terá funcionado apenas durante um ano, no mesmo edifício que a Tenório & Madeiras (5º Circ. Industrial);
a fábrica da Viúva e Herdeiros Francisco de Sacramento Pagarote, da qual não foi possível recolher qualquer informação, a não ser que laborou em 1947 (Conservas de Peixe, 1948).

Quando a indústria parecia ter o seu destino traçado, um último esforço fez surgir a empresa Cofaco ou Comercial e Fabril de Conservas, lda (17), por junção das empresas Raul Folque & Filhos, Lda e Centano, Cumbrera & Rodrigues & Cª, sendo a sua localização na fábrica da primeira, tendo sido transferida para os Açores e, mais tarde, surge
a Comalpe (17), em 1976, fusão das empresas Águia-Peixe, Conservas SARL, SotAlgarve, Pilotos & Capa e o grupo COFACO. A passagem esporádica de algumas fábricas/empresas, tornou dificil obter informação suficiente para as localizar.

Ao longo do período estudado, é possível identificar cinco núcleos industrias: na zona sul, onde surgiram as primeiras fábricas e onde se concentra o maior número de instalações;

a zona norte, afastada da cidade junto ao porto, sendo a segunda zona a ser ocupada; duas zonas interiores no centro da malha urbana, uma mais a norte e outra mais a sul, caracterizadas por fábricas, na sua generalidade mais pequenas; e a zona mais periférica no extremo sul, ocupada principalmente por armazéns e estaleiros.

Ainda que Vila Real de Santo António nunca tenha atingido o número de fábricas de outros centros conserveiros, o impacto do seu surgimento, assim como, da especulação e das crises, características da indústria conserveira, foi tão ou mais significativo devido à dimensão do seu centro urbano e das suas características.

3.1.9 VILA REAL CENTRO CONSERVEIRO DE ATUM

A sua localização geográfica, motivo do surgimento daquela povoação, desde do tempo que era denominada Santo António de Arenilha, continuou a ser benéfico ao seu crescimento e importância ao longo do tempo – perdendo força mais tarde com o fim de controlo da fronteira em 1995 –, seja pela movimentação do seu porto, que servia de entrada em Portugal, seja pelo controlo de fronteira e ligação a Espanha motivo da construção da Vila Pombalina.

“A povoação de Vila Real de Santo António era, então, conhecida pela designação de Vila de Santo António de Arenilha, designação esta que foi proibida por D João III e, mais tarde pelo ministro D. José. Em 1673, a vila havia desaparecido, tendo-se dispersado a população, pelos campo e povoações vizinhas de Monte Gordo, Cacela e Castro Marim. O Marques de Pombal, em 1774, mandou nas imediações da antiga vila de Arenilha, projetar e construir nova vila…” (correspondência Anteplano, 1964)

A indústria conserveira e as indústrias que lhe eram subsidiárias, foram, durante um largo período o motor económico da vila, fixando a população na vila nos tempos de maior trabalho. Beneficiando da relação de proximidade com Monto Gordo e Castro Marim, que absorviam a população excedentária e ofereciam mão de obra sazonal, Vila Real de Santo António beneficiou, ainda, das suas excelentes condições portuárias – mantidas pela indústria do minério – sendo a mais importante lota de atum do Algarve, o peixe mais utilizado nas fábricas da indústria de conserva, que ali se fixou e desenvolveu a partir de 1879. O crescimento populacional, que se deu ao longo do tempo e que andou, sempre, a par com a indústria de conservas e de peixe, fez a malha urbana crescer e trouxe a necessidade garantir melhores condições portuárias, bem como soluções viárias para sua população e para a transação de mercadorias. Não se encontrando provas que este crescimento tenha sido, desproporcional, a capacidade de crescimento da vila, não se justificando, talvez, por essa razão a construção de bairros operários de iniciativa privada ou estatal, surgindo o primeiro Bairro para Famílias Pobres já no fim da primeira metade do século XX.

“A população de Vila Real de Santo António tem oscilado, no decorrer do tempo, em conformidade com as vicissitudes das indústrias de pesca e das conservas de peixe e, dada a influência predominante destas duas indústrias básicas, na economia Algarvia e, particularmente na economia deste concelho” (correspondência Anteplano, 1964).

A sua importância é demonstrada, também, pelos vários planos que foram sendo elaborados ao longo do tempo, desde da linha de caminho de ferro ou o Plano de arranjo do porto até ao Anteplano de Urbanização. O arranjo do arquiteto Paulo Cunha manteve as duas zonas industriais mais importantes a Sul e a Norte. A Sul, estavam priorizados a construção naval e os estaleiros, o que ainda hoje é uma realidade. Ali existiram, também, fábricas de conserva até ao final do século XX, sendo que as mais próximas da zona central da vila deram lugar a edifícios de habitação ou permanecem devolutos, sendo a fábrica COFACO, mais tarde COMALPE, localizada no extremo sul da vila a última memória desta época conserveira.

A Norte, junto ao porto, previa-se a instalação de mais fábricas, mas tal nunca se verificou. Nenhuma fábrica de conservas se instalou a norte depois do Anteplano, estando atualmente as fábricas Ramirez, Guadiana e Peninsular em ruínas. Na zona a Oeste das antigas fábricas, concretizou-se a deslocação das pequenas indústrias que estavam na zona central, prevista no plano, sendo hoje a zona industrial da cidade de Vila Real de Santo António.

Depois da aprovação do Anteplano, a indústria de conservas manteve, ainda, alguma importância na vila, importância que partilhava com o turismo a partir dos anos 50. Enquanto, a indústria seguiu um caminho descendente até ao seu desaparecimento, o turismo percorreu o caminho oposto, crescendo na sua importância económica até aos dias de hoje.

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