A Indústria Conserveira na Construção da Malha Urbana no Algarve: A INDÚSTRIA CONSERVEIRA AO LONGO DO TEMPO (3)

Armando Filipe da Costa Amaro

1. A INDÚSTRIA CONSERVEIRA AO LONGO DO TEMPO 18

1.1 A origem do ato de conservar 18

1.2 O início da Indústria Moderna de Conserva de Peixe 18

1.3 A indústria conserveira em Portugal e o contexto no séc. XIX e XX 20

1.3.1 As primeiras fábricas de conservas em Portugal (1880 – 1900) 20

1.3.2 A 1ª Guerra mundial e o corporativismo do Estado Novo (1900 – 1939) 20

1.3.3 A 2ª Guerra Mundial e o declínio da indústria conserveira (1939 – 1950) 24

1. A INDÚSTRIA CONSERVEIRA AO LONGO DO TEMPO

1.1 A origem do ato de conservar
Presume-se que a prática de conservar alimentos, tenha surgido através de conhecimento empírico, com a observação de processos que ocorrem na natureza, conduzindo o Homem a utilizar os recursos que o rodeavam para aproveitar os períodos de abundância e sobreviver nos de escassez de alimento. Na antiguidade clássica, o processo de conservação pelo sal, conhecido como salmoura, seria um dos mais comuns processos para conservar alimentos, sendo referido em manuscritos gregos e até por povos anteriores, que relatam esta prática na Península Ibérica (Barbosa, 1941).
Em Portugal, esta prática verifica-se principalmente junto ao litoral, existindo inúmeros achados arqueológicos da época Romana, que comprovam a existência em abundância de peixe e sal na nossa costa, que permitiriam a produção e comercialização de alimentos salgados, de barco, por todo o mediterrâneo (Santos, 1971). Estes achados, conhecidos como “cetárias”, possuem vários vestígios espalhados, pelo litoral do nosso país, “nas praias, sobre rochedos” (Santos, 1971),comprovando a dimensão desta “indústria” como, se referem alguns autores (Ferreira, 1967; Cerqueira, 2000).

Através da figura 1, verificamos que a maior concentração de achados, ocorre junto do Rio Sado, com 10 localizações, e na região do Algarve, com 21 localizações. Estes números tem uma ligação clara com o surgimento da indústria conserveira moderna, que se inicia em Setúbal e terá grande expressão no Algarve, devido à abundância de peixe e a cultura piscatória nestes locais.

A conservação de alimentos e a prática da pesca serão melhoradas ao longo do tempo, durante o período islâmico e, continuados, com a diversificação de técnicas, depois da formação de Portugal, nos Descobrimentos, onde foram importantes, para alimentação devido aos longos períodos de navegação e para comercialização (Barbosa, 1941; Santos, 1971; Cerqueira, 2000). A continuidade destas atividades “contribuiu poderosamente para a formação e enriquecimento de aglomerados populacionais” (IPCP,1969), tornando-se esta realidade “decisiva, para manter a tradição marítima dos primitivos povos da península” (IPCP,1969), contribuindo para a facilidade da instalação da indústria moderna de conserva a partir do séc. XIX.

1.2 O início da Indústria Moderna de Conserva de Peixe

Em 1804, Nicolas Appert descobre um método de conservação de alimentos em “recipientes hermeticamente fechados” através do calor. A sua publicação de 1810 “L’art de conserver pedante plusier années les substances animal set vegetables” [A arte de conservar durante vários anos todas as substâncias animais e vegetais], revoluciona a forma de conservar alimentos, utilizando recipientes de vidro. Esta publicação permitiu a difusão do conhecimento, sendo que no mesmo ano, Peter Durand regista a patente para a conservação num recipiente em folha-de-flandres, em Inglaterra, onde o uso deste material era comum, apresentando qualidade, em contraste com França (Robertson, 1998). O registo da patente levou à difusão e abertura das primeiras fábricas, utilizando folha-de-flandres, em Inglaterra (1810), em Boston, E.U.A. (1819), em Nantes, França (c.1924), na Noruega (1841) e no Japão (1871) (Barbosa,1941; Rodrigues, 1997).

Por este conjunto de acontecimentos que procederam à descoberta de Appert, justifica-se a seguinte afirmação: “Pode mesmo dizer-se, sem receio de exagero, que a indústria propriamente dita só depois de Appert se constituiu” (Barbosa, 1941). Mas, apesar da sua importância “nos primeiros 50 anos apos a descoberta Appert”, assistimos a um desenvolvimento lento da indústria conserveira, com um índice baixo de produção. Só com a explicação científica do processo por Pasteur e com o aperfeiçoar da técnica, se regista um aumento de produção e do consumo. A indústria conserveira atinge o interesse económico, para se afirmar como uma indústria importante (Barbosa,1941).

1 – Mapa de localização de cetarias romanas em Portugal. Elaborado pelo autor com base em Cerqueira (2000).

1- Alto do Martim Vaz (Póvoa de Varzim)
2- Angeuras (Matosinhos)
3- Atougia (Peniche)
4- Guincho (Cascais)
5- Lisboa
6- Cacilhas (Almada)
7- Alfarim (Sesimbra)
8- Creiro (Setúbal)
9- Rasca (Setúbal)
10- Comenda (Setúbal)
11- Setúbal
12- Cachofarra (Setúbal)
13- Pedra Furada (Setúbal)
14- Senhora da Graça (Setúbal)
15- Santa Catarina (Setúbal)
16- Tróia (Grândola)
17- Alcácer do Sal
18- Sines
19- Ilha do Pessegueiro (Sines)
20- Ilhéu da Baleeira (Vila do Bispo)
21- Salema (Vila do Bispo)
22- Boca do Rio (Vila do Bispo)
23- Burgau (Lagos)
24- Senhora da Luz (Lagos)
25- Lagos
26- Vau (Portimão)
27- Mexilhoeira Grande
28- Portimão
29- Ferragudo
30- Armação de Pêra (Silves)
31- Cerro da Vila (Loulé)
32- Loulé Velho (Loulé)
33- Quarteira (Loulé)
34- Faro
35- Olhão
36- Alfanxia (Olhão)
37- Antas (Tavira)
38- Torre de Ares (Tavira)
39- Cacela (Vila Real de Santo António)
40- Quinta do Mouro (Vila Real de Santo António)
41- Quinta do Lago (Castro Marim)

1.3 A indústria conserveira em Portugal e o contexto no séc. XIX e XX

Do surgimento das primeiras fábricas de conserva de peixe no séc. XIX até ao seu declínio no séc. XX, foram vários os acontecimentos relevantes que influenciaram a evolução da indústria e dos locais onde esta estava instalada. Este capítulo serve de contextualização para os acontecimentos políticos, económicos e sociais.

1.3.1 As primeiras fábricas de conservas em Portugal (1880 – 1900)

Em Portugal, a primeira fábrica moderna de conservas de peixe surge em Setúbal, em 1854, propriedade de Feliciano António da Rocha e de Manuel José Neto (Alcântara, 2008, p.12), tendo representado Portugal na Exposição Universal de Paris em 1855, com uma “conserva de sardinha em azeite” (Barbosa, 1941, p.18). Surgem, nos anos seguintes, fábricas em outros locais do Algarve, como a “Parodi & Roldan” (1879) em Vila Real de Santo António, ou as fábricas dos Ètablissements F. Delory, que abrem em Setúbal, Lagos e Lagoa (Barbosa, 1941; Cavaco, 1976). No que diz respeito à primeira fábrica moderna de conserva de peixe no Algarve, o I.P.C.P. (1969) considera que, em 1965, existia uma fábrica em Vila Real de Santo António, da família Ramirez. No entanto, Carminda Cavaco (1976), que analisa a indústria no sotavento, não faz qualquer referência a esta fábrica, assim como Horta Correia (2008), na sua análise cronológica dos negócios da família Ramirez, sendo que para o ano em questão, refere apenas a existência de armazéns de salga. Não cabe nos objetivos deste trabalho verificar a veracidade desta hipótese, e por essa mesma razão, resta apenas referenciar os vários autores e as suas perspetivas, permanecendo a dúvida, por falta de evidências conclusivas.

A partir de 1880 e, principalmente, na década seguinte, a indústria começa a ter maior expressão, já com 18 fábricas a nível nacional, em 1881 (Inquérito Industrial 1881). O aumento do número de fábricas neste período deveu-se, em parte, à falta de peixe na costa da Bretanha, bem como ao investimento de industriais Italianos, Espanhóis e, mais tarde Gregos, que já conservavam peixe em salmoura, em Portugal (Rodrigues, 1997; Cavaco, 1976). Aproveitando a “abundância de peixe com grande qualidade” na nossa costa, que se aliou à tradição piscatória, surgiram um maior número fábricas em Portugal, sendo que em 1890 eram já 54, aumentando para 70 até 1896 (Rodrigues, 1997). Estas primeiras fábricas surgiram junto aos núcleos urbanos, em estruturas similares aos armazéns de salga, com a produção de vazio (latas) a fazer-se num edifício anexo. Esta tipologia verificou-se, principalmente, no Sul do país. Uma outra tipologia, verificou-se, maioritariamente, a Norte do país, em edifícios que podiam produzir vários tipos de conserva, de legumes a carne, em espaços significativamente maiores, organizados num pátio central e fechados sobre si próprios com um muro a limitar o quarteirão onde se implantavam (Cerqueira, 2000). A estrutura, tecnologia e a organização da indústria até a 1900, era, muitas vezes, rudimentar. Ainda assim, viu a sua produção crescer 8% ao ano de 1885 até 1900, exportando a maior parte da mesma (Reis, 1993); Hugo Cerqueira (2000) caracteriza o país neste período, afirmando que nesta fase “Portugal que despontava lentamente para a ‘sua’ revolução Industrial”.

Neste período, a maior parte dos portugueses vivia no campo ou na periferia das zonas rurais, mas com a chegada da indústria de conservas (tal como aconteceu com outras), a população rural começa lentamente a convergir para os centros urbanos, que cresciam paralelamente com a indústria (Inquérito industrial de 1881 – Vol.5 p.16 e 17; Reis, 1993). No Algarve, Lagos, Portimão, Olhão e VRSA, eram já importantes centro piscatórios, com condições portuárias significativas em relação ao resto da região (a par com Faro) e existindo, já, naquelas localidades, a prática de conserva de peixe frito ou salgado. Estas características levaram à instalação de fábricas de conserva nestes locais, ao longo do tempo, e ao crescimento destes centros urbanos, fazendo destes os principais centros conserveiros do Algarve (Cavaco, 1976).

O governo Monárquico reagiu ao surto de crescimento industrial e às necessidades comerciais e sociais, promovendo a expansão das infraestruturas viárias do país. O troço de linha de caminho de ferro, inaugurado em Portugal 1856, era constituído em 1884 por 1685km de linha e, até 1900, aumentou para 2356 km, o que permitiu ligar Portugal com o resto da Europa, resultando num incentivo à exportação. Em relação às estradas, em 1884 existiam 9155km, tendo esta extensão atingido os 14230km em 1900, o que ajudou significativamente as trocas comerciais internas, bem como a reduzir o tempo das deslocações internas.

Mesmo com a modernização e expansão verificada até 1900, a via marítima continuou a ser o principal meio de exportação e de deslocação entre vários pontos litorais do país e Lisboa (Teixeira, 1992).

1.3.2 A 1ª Guerra Mundial e o corporativismo do Estado Novo (1900 – 1939)

No início do séc. XX, a indústria de conservas de peixe representava 2.5% do Produto Interno Bruto. Apesar de não ter a capacidade de ser motor económico a nível nacional, representava, ainda, um papel importante na economia do país (Reis, 1993). A indústria continuava a sua fase crescente, cimentando a sua influência nos locais onde se tinha instalado e, como consequência, multiplicou o número de operários e de pescadores, dependentes da produção e do êxito da indústria. As greves que foram sucedendo, são o espelho da crescente importância da população operária e do espírito operário que se foi criando e que se começou a afirmar neste período. Ainda assim, os operários continuavam a fazer parte da população mais pobre, ainda que bem remunerados à época, o trabalho não era garantido na totalidade do ano, muitas vezes paralisava no inverno, e dependia ainda do volume de pescas. Este foi um período, de transformações estruturais, crescimento e organização industrial (Reis, 1993; Rodrigues, 1997).

A 1ª Guerra Mundial (1914-1918) é um dos mais importantes acontecimentos deste período, para a indústria em estudo. Devido às necessidades alimentares das tropas e de algumas populações durante o conflito, o número de fábricas no nosso país multiplicou-se, assim como o número de exportações, o que levou ao crescimento das zonas industriais e dos próprios núcleos urbanos (Cavaco, 1976). No primeiro ano do conflito, o valor de exportações sofreu uma queda, mas os valores foram crescendo, atingindo números máximos no ano de 1918, num período que significou a verdadeira afirmação da indústria em Portugal.

Em 1917 existiam 180 fábricas em Portugal, com a região algarvia a representar 42.5% do número de fábricas e de 54% do número de operários total, contando com 80 fábricas e com 7872 operários (Rodrigues, 1997).

Entre 1914 a 1925, assiste-se a um período de especulação, com o surgimento de fábricas improvisadas e de ocasião, que não seguiam qualquer tipologia ou lógica na sua localização, surgindo sem critério, em pequenos espaços nos centros urbanos ou afastadas destes, procurando apenas uma oportunidade de negócio, existindo empresas neste período que não tinham instalações próprias, comprando conservas a outras empresas (Duarte, 2003).

Com o fim do conflito, reduziu-se a procura de conservas no mercado internacional e surgem então os problemas provocados pela especulação, que levou à produção de conservas de pouca qualidade, descredibilizando o nome das conservas portuguesas. Ainda assim, a desvalorização do escudo que começa no início do conflito e atinge o seu menor valor nos anos 20, permite a continuação da especulação e o surgimento de novas fábricas até 1925 (Rodrigues, 1997). Alguns centros conserveiros, registaram o seu número máximo de fábricas neste período, o que trouxe diversos problemas urbanos, como sobrelotação de zonas habitacionais, habitação precária e problemas de salubridade, devido à falta de regulamentação do sector e ausência de planeamento urbano. O IPCP (1969) indica que em 1926, existiriam cerca de 400 fábricas em Portugal, número máximo registado. Infelizmente, desconhecem-se números concretos para a maioria dos centros conserveiros, de 1917 a 1930, o que dificulta a perceção da extensão que a indústria atingiu, a nível urbano.

Em 1925, a valorização da moeda e a crise de escassez de peixe (1925-1927) levaram ao fim deste período singular na história da indústria conserveira em Portugal (Neto, 1999). As fábricas que não tinham fechado no fim do primeiro conflito mundial, encerravam agora, muitas com graves prejuízos devido à prosperidade artificial dos anos anteriores.

Exemplo disso são os dados de 1926, ano em que se produziu quase o mesmo que em 1918, com menor número de fábricas (IPCP, 1969).

Devido à conjuntura nacional, em 1926 aocorre um golpe militar, que instaurou uma ditadura militar. O período da Primeira República tinha sido marcado por instabilidade política, desde 1920, e não resistiu à constante contestação face à situação económica do país. Este acontecimento marca o período de transição para a regulamentação industrial, que começa a tomar forma com o 1º Congresso Nacional da Pesca e Conservas, de 11 a 14 de dezembro de 1927, em Setúbal, sendo este centro conserveiro, conjuntamente com o de Olhão, os mais dinamizadores do encontro, o que revela a importância de ambos neste período (Rodrigues, 1997). No congresso, são apresentadas várias medidas, como a revisão dos vários impostos sobre a indústrias, com o objetivo de serem abolidos ou reduzidos;  criação de um crédito industrial e que o governo estabelecesse novos tratados comerciais e a revisão dos existentes; a limitação do número de fábricas, assim como a criação de um “Conselho Consultivo”, para regulamentar e fiscalizar a indústria de conservas; um período de defeso, para a pesca e proibição do fabrico de conservas em azeite e molhos, durante esse período (Rodrigues, 1997). Estas medidas tinham o objetivo de reverter a grave crise, na qual a indústria tinha mergulhado, mas nem todo concordavam com as propostas. Júdice Fialho, assim como outros industriais, manifestaram-se contra o período se defeso, pois “defendiam que tal medida era muito prejudicial, porque levaria para o desemprego e para a miséria muitos operários e suas famílias, já que era um período demasiado longo para as fábricas estarem sem laborar” (Serra, 2007). O governo militar reagiu aos apelos dos industriais com dois decretos (nº15.489 de 18/05/1928 e nº15.581 de 09/06/1928), que proibiram, primeiro, a abertura de novas empresas e que, mais tarde, acumularam a proibição de novas fábricas, até que fosse publicada regulamentação para a indústria (Rodrigues, 1997). Iniciando-se a regulamentação industrial, exigida pelos próprios industriais.

Nos anos seguintes, a situação agravou-se com a crise económica mundial de 1929, que se traduziu no fecho dos mercados Alemão e Francês, para a indústria de conservas (Rodrigues, 1997). O resultado da crise industrial que se sentia desde 1925, foi o encerrar de fábricas por acumulação de dividas, o que levou à redução da malha industrial e à concentração económica nas grandes empresas, que adquiriam, por vezes, as fábricas abandonadas (Cavaco, 1976; Rodrigues, 1997). “As vilas e cidades do litoral, outrora prósperas, tiveram um retrocesso nítido no seu desenvolvimento facto que degradou as condições de vida de grande parte da população para níveis inferiores ao limiar da pobreza” (Neto, 1999, p.450 e 451). Sem condições mínimas de habitação ou alimentação, doenças como a tuberculose proliferaram nos bairros sobrelotados, bem como nas construções pobres e improvisadas em muitos centros conserveiros (Neto, 1999).

Em 1931, António de Oliveira Salazar, Ministro das Finanças desde 1928, visitou os principais centros conserveiros com o objetivo de diagnosticar os problemas da indústria, visitando no Algarve Portimão, Olhão e Vila Real de Santo António. Publicando um relatório das suas notas sobre a indústria, apontou a falta de organização do setor, sujeito à flutuação dos preços das matérias primas e dos mercados internacionais. Referia que a indústria se tinha desenvolvido ao acaso, devido à falta de regulamentação, levando ao surgimento de inúmeras fábricas com instalações rudimentares, que aproveitaram o lucro no período da crise do escudo. Ainda que a crise da pesca e a concorrência tivessem eliminado inúmeras fábricas, existiam ainda muitas outras em situação irregular, deficiente e em má localização.

Defendia, por isso, a redução do número de fábricas e a concentração em instalações melhor equipadas, bem como a qualidade do produto sobre a quantidade, para ser competitivo ao nível da exportação (Salazar, 1953).

Outras soluções apontadas eram a regulação do produto final para exportação, vendido através de um Centro Exportador de Conservas, com preço fixo enquanto no mercado interno, a livre concorrência de mercado poderia continuar. No entanto, seria imposta, para ambas as situações, a proibição de utilização de peixe de inverno nas conservas nacionais.

Sugeriu, ainda, a formação de uma união industrial para a negociação e compra dos produtos importados pela indústria.

Quanto à localização das fábricas existentes, Salazar (1953) era claro, “elas existem nos maiores centros piscatórios e só aí: Vila Real de Santo António, Olhão, Portimão, Lagos, Setúbal, Peniche, Espinho e Matozinhos”. O peixe era a matéria prima prioritária, existindo fábricas que mudavam de localização pela escassez de peixe num local e abriam onde este abundava. A maioria das empresas estava dependente de lotas e de empresas de pesca, sendo que o Algarve e Peniche eram exceção, pois a maioria das fábricas dispunham de barcos próprios. Algumas possuíam ainda cais privados, para a descarga de peixe. As restantes matérias primas necessárias era o sal (nacional), azeite, que obrigatoriamente teriam de ser nacionais para Salazar, e carvão e folha-de-flandres (importada). Além da pesca, outras indústrias subsidiárias empregavam parte da população nos centros indústrias, como, a litografia, a “lataria” ou produção de lata vazia, muitas vezes produzida nas fábricas; as fábricas de pregos e chaves, reparação de maquinaria e as fábricas de guano, que produziam óleos de peixe e adubos, através de restos de peixe (Salazar, 1953).

No que diz respeito à população operária, era apontado no relatório, a irregularidade e extensão prejudicial do volume de trabalho, assim como a sazonalidade da indústria.

Apontava a situação de Olhão, onde nos meses de verão existia uma população flutuante de milhares de pessoas, que eram atraídas pela certeza de trabalho. E o caso de Peniche, em que a maioria dos trabalhadores eram algarvios, o que levou a construção de bairros para estes operários, ainda que no mesmo local se verificasse habitações precárias, em bairros construídos em madeira. Referia, ainda, que aos trabalhadores a indústria não oferece qualquer tipo de equipamento de apoio, como balneários, cantinas, escolas, bairros operários ou outras formas de assistência dentro ou fora da fábrica. Com a exceção de duas creches, uma em Vila real e outra em Peniche, aponta, ainda, que a nível urbano, o centro conserveiro tem de conseguir atingir níveis mínimos de salubridade, sugerindo o auxílio do Estado aos municípios para a criação de planos e projetos para a solução do problema, apontando os casos de Setúbal, Peniche e Olhão, onde os esgotos eram deficientes ou inexistentes como os locais mais preocupantes (Salazar, 1953).

Através das propostas de Salazar para a indústrias e para os problemas sociais dos seus operários, podemos desde logo associar estas às políticas que o Estado Novo iria promover, com destaque para a ideia reguladora e corporativista que propõe para a indústria e para a necessidade de esta fazer mais pelos seus operários, como sugerido na construção de bairros operários, e de outros equipamentos de assistência social.

Em 1932, já com Salazar como chefe do governo, surge o Decreto-lei nº 21.623, de 27/08/1932, relativo ao condicionamento da indústria de conservas, que proibia a instalação de novas fábricas, constituição de novas empresas, arrendamento de fábricas ou qualquer transferência do exercício de produção, a transformação em sociedades anónimas, a “alienação total ou parcial dos bens imóveis e maquinismos das empresas ou quaisquer outras modificações” e a reabertura ou funcionamento de empresas que tenham encerrado por mais de dois anos (Rodrigues, 1997). Por sua vez, o Decreto-Lei nº21.622 criava o Consórcio Português de Conservas de Peixe (CPCP), ao qual cabia fiscalizar e controlar a qualidade de produção, publicitar a indústria nos mercados internacionais, criar uma marca nacional para a qual todos as fábricas têm que contribuir com 5% da sua produção, mediar a relação entre industriais e instituições bancárias e, por fim, garantir assistência aos operários, principalmente nos meses de defeso. Estava, desde logo, prevista a criação de bairros operários, escolas, cantinas, e serviços de saúde, patrocinados por um fundo social desta entidade.

A representação física deste organismo fazia-se pelas suas delegações nos vários centros conserveiros: Matosinhos, Aveiro, Peniche, Lisboa, Setúbal, Lagos, Portimão, Olhão e VRSA (Rodrigues, 1997).

Em 1935, já sob tutela do Estado Novo, a indústria conserveira sofre uma reorganização, que seria temporária, com a criação da União dos Industriais e Exportadores de Conservas de Peixe, que substitui o Consórcio e, ao mesmo tempo, são criados os Grémios dos Industriais de Conservas de Peixe do Norte, Centro e Sul, com sede em Olhão. No ano seguinte, o Instituto Português de Conservas de Peixe, vem substituir o anterior órgão e os Grémios sofrem uma reorganização, distribuindo-se agora da seguinte forma: Grémio do Norte (Matosinhos), Centro (Lisboa), Setúbal, Sotavento do Algarve (Olhão) e Barlavento do Algarve (Portimão). Estas alterações, sob a alçada dos Decreto-Lei nº 26.775, 26.776 e 26.777 de 10/07/1936, garantiram mais poderes ao Ministro do Comércio e Indústria, do qual dependiam todas as alterações ao setor, bem como a abertura de fábricas ou qualquer alteração ao equipamento, como acontecia com o C.P.C.P. O IPCP tinha poder para encerrar fábricas que não cumprissem com os parâmetros exigidos, formalizar contratos coletivos de trabalho e acumulava as funções de fiscalização, propaganda e assistência dos industriais e  operários, tal como o CPCP, cessando a venda sob marca nacional por protesto dos industriais  (Rodrigues, 1997).

Este período de ajuste e regulamentação da indústria de conservas, através do condicionamento industrial e do corporativismo dos grémios, permitiu controlar o número de fábricas de conservas, permitindo assim a sobrevivência do parque industrial existente, levando à estabilização do número de fábricas nos anos seguintes. Outro dado importante é a afirmação do centro conserveiro de Matosinhos, em relação a Setúbal e ao Algarve, a falta de peixe sentida nestes centros levou à transferência de várias fábricas para o norte do país, onde o peixe abundava. Em 1938, Matosinhos tinha o centro com maior produção, apesar de ser o terceiro em número de fábricas, com 26, atrás de Setúbal, com 48, e Olhão com 26. Até aqui, Setúbal tinha assegurado sempre a dianteira da indústria seguido de perto pela região do Algarve, sendo este um ponto de mudança das dinâmicas a nível nacional, que se iria manter com larga vantagem para o norte do país (Barbosa, 1941; Rodrigues, 1997).

Cerqueira (2000) define a tipologia mais comum deste período, como uma transição do modelo agrícola para um modelo próprio. Ao edifício principal da fábrica agregavam-se outros, conforme a necessidade, num quarteirão fechado sobre si, criando em alguns casos fábricas com grande expressão urbana. As que se inseriam nas zonas urbanas destacavam-se pela sua tipologia de fachadas, numa tentativa de harmonização com o conjunto construído, mas muitas implantaram-se em zonas de baldio, afastadas das zonas urbanas, “tendo sido absorvidas, aos poucos, pela expansão do tecido urbano destes centros portuários” (Cerqueira, 2000, p.41).

1.3.3 A 2º Guerra Mundial e o declínio da indústria conserveira (1939 – 1950)

Em 1939, com o início da 2º Guerra Mundial, foi garantido novamente um período de lucro para a indústria de conservas. A posição neutra assumida pelo Estado Novo, durante o conflito, permitiu a paz no nosso território, mas essa posição tornou difícil a comercialização de produtos. Os países que participaram do conflito criaram um embargo, com prejuízo para a importação de folha-de-flandres carvão e outros combustíveis para Portugal. A falta desta matéria prima levou à redução e até a paralisação da indústria, no caso de Olhão, levando ao encerramento de fábricas. A solução encontrada foi a mediação do Estado, através do IPCP, que negociava a compra das matérias primas necessárias e as distribuía por capacidade de produção pelos vários centros. A falta de rotas seguras, por mar e por terra, levou também o IPCP à negociação do produto nacional, junto dos países em conflito. Os acordos com Inglaterra e Alemanha, pela compra de folha-de-flandres com a condição de venda de conservas, que estes países precisavam para alimentação das tropas, iriam, finalmente, regularizar a produção e as vendas da indústria de conservas até ao final do conflito (Rodrigues, 1997).

Estes problemas não impediram, novamente, o oportunismo em torno do dinheiro “fácil” da venda de conservas, apesar de as políticas de regulação e condicionamento da indústria impedirem a abertura de novas fábricas, como tinha acontecido no primeiro conflito.

No entanto, a venda especulativa de alvarás, de fábricas obsoletas, entre 1938 e 1943, foi uma realidade, muitas vezes para a transferência para centros conserveiros onde abundava o peixe (Cavaco, 1976).

Os primeiros anos de conflito, até 1943, coincidiram com maus anos para a pesca na região do Algarve, o que agravou, ainda mais, a situação na região já prejudicada com a falta de matéria prima e a subida dos preços de variados produtos, devido ao conflito mundial. As classes mais pobres, nas quais estavam incluídos operários e pescadores, sendo estes os mais prejudicados, apesar de terem um grande volume de trabalho na maioria deste período, o aumento do preço dos produtos básicos de alimentação, contrabalançavam o seu desafogo financeiro, agravado nos períodos de falta de matérias primas (Rodrigues, 1997).

A 2º Guerra Mundial foi uma oportunidade fugaz de negócio para a indústria. Apesar das várias dificuldades durante o conflito, os lucros foram muitos para a maioria dos industriais.

Em contraste, as populações mais pobres sofreram com a oscilação dos preços e foram atraídos para os núcleos conserveiros para trabalhar na indústria, sujeitando-se a condições de habitação precárias, agravando os problemas urbanos destes núcleos urbanos.

Os anos seguintes, foram igualmente difíceis, com o fim do conflito a reduzir a procura de conservas. As indústrias portuguesas tinham, agora, a concorrência dos países que tinham participado no conflito, assim como das conservas do Norte de África, que se afirmaram nos anos 40, pelo volume de produção e custo baixo. Além desta conjuntura, já por si difícil para a indústria, no Algarve mantinha-se a dificuldade em regularizar as capturas de sardinha para o fabrico de conservas, com destaque para os anos 1948, 1949 e 1952, no que diz respeito a escassez de peixe (Cavaco, 1997), o que levou parte da população algarvia a emigrar (Neto,  1999).

Pelo Decreto-Lei nº 33:921, de 5 de setembro de 1944, todos os municípios ficaram obrigados a realizar plantas topográficas e um plano geral de urbanização, com o objetivo de melhorar as condições de vida da população, promovendo assim organização urbana através dos instrumentos de projeto e planeamento. A Direção-Geral dos Serviços de Urbanização (DGSU), criada no mesmo ano como parte pertencente ao Ministério das Obras Publicas e Comunicações, tinha a função de promover, orientar e aprovar, os planos urbanos.

Era ainda responsável pela aprovação das comparticipações financeiras estatais, estudo de projetos e fiscalização (Diniz, 2015). Os primeiros estudos que se realizaram ficaram conhecidos como Anteplanos, que após aprovação, serviram de base para os primeiros Planos Gerais de Urbanização. Estes documentos, que tiveram por base levantamentos e inquéritos ao Estado urbano, habitacional e industrial, são importantes instrumentos para a análise de qualquer centro urbano neste período, permitindo uma melhor compreensão da relação, que a indústria mantinha em cada caso, com o conjunto urbano onde estava inserida.

No Algarve, estes foram os primeiros estudos urbanos, em grande escala. Tal deveu-se, provavelmente, à reduzida dimensão das zonas urbanas e concentração de população na maioria das localidades, não existindo por isso problemas urbanos graves na maioria das cidades e vilas. Faro, Loulé, Silves e Tavira, eram os concelhos com maior população e assim como os centros conserveiros, apresentavam-se como exceções. Ainda em alguns destes centros urbanos, a população só tenha atingido números expressivos a partir dos anos 30 e 40, outros como o caso de Lagos e VRSA, mantiveram sempre uma população pouco expressiva, comparativamente aos maiores concelhos do Algarve.

As fábricas que são construídas de raiz, ou remodeladas neste período, caracterizam-se pela sua modernidade, na organização funcional, considerando os vários programas produtivos e sociais (balneários, cresce, refeitório, etc.), na sua implantação e arranjo estético, pensadas por arquitetos; em contraste com as primeiras fábricas de programa exclusivamente produtivo e de organização simples ou inexistente. Estas fábricas surgem maioritariamente no norte do país, onde cresciam os centros conserveiros, como Matosinhos, em contraste com os do sul. Ainda assim, existe um exemplo identificavel a Sul, a remodelação da fábrica Algarve Exportador em Lagos, pelo Arquiteto António Varela (Cerqueira, 2000).

A partir da segunda metade do séc. XX, inicia-se o declínio da indústria de conservas no Algarve, substituída pelo turismo, que se afirmava como motor económico na região, num processo que se prolongou até ao final do século e, de formas diferentes, em cada centro conserveiro.

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