Vila Real de Santo António e o Urbanismo Iluminista

Reprodução parcial do catálogo da exposição de 2010 – Vila Real de Santo António e o Urbanismo Iluminista. O catálogo completo pode ser obtido nos links que disponibilizamos em cima.

Trabalho realizado no âmbito da colaboração entre o Centro de Estudos de Património e História do Algarve da Universidade do Algarve (CEPHA/UAlg) e a VRSASRU, Sociedade de Reabilitação Urbana, E.M., S.A., tem como objecto de estudo o tema Vila Real de Santo António e o Urbanismo Iluminista.

No que concerne à indústria conserveira, são primeiramente destacados os factores que estimularam a actividade pesqueira após a interrupção da política pombalina de fomento das pescas no Algarve. Estímulo este que, aliado às excepcionais condições portuárias de Vila Real de Santo António, a tornaram na mais importante lota de venda de peixe do Sotavento algarvio e, consequentemente, num dos maiores centros produtores e exportadores de preparados piscícolas, facto que atraiu industriais estrangeiros, os quais fundaram as primeiras fábricas modernas de conservas do país, nos finais do século XIX, exportadoras para vários países. A partir de então, Vila Real de Santo António conheceu um período de grande dinamismo, uma vez que a indústria conserveira contribuiu para o surgimento de outras indústrias que lhe eram complementares e subsidiárias, bem como para um aumento da população, necessária à mão-de-obra.

O porto de Vila Real de Santo António beneficiou da sua localização estratégica, na ligação entre o rio Guadiana e o Mar, o que criou condições propícias para a circulação intensa de mercadorias. Sobretudo a partir da segunda metade do século XIX e até meados do século XX, era deste porto que partiam as embarcações carregadas de minério proveniente da Mina de S. Domingos, localizada a montante, no concelho de Mértola, e que constituía o grosso das exportações registadas na Alfândega da vila. Para além do minério, desciam o Guadiana outros produtos como o vinho, o azeite e, sobretudo, os cereais, provenientes do interior alentejano e algarvio. Pelo contrário, subiam o Guadiana os produtos tais como o peixe fresco da costa e o sal, este último muito importante para a conservação dos alimentos.

A Fundação de Vila Real de Santo António

Capítulo II – Marco de Sousa Santos

1 - A importância da actividade pesqueira para a fundação de Vila Real de Santo António

Na segunda metade do século XVIII, principalmente a partir da década de 60, com a diminuição das quantidades de ouro extraídas das jazidas brasileiras, e a consequente redução das receitas auferidas pela Coroa, a economia portuguesa, demasiado dependente do comércio de produtos coloniais e das importações, com uma capacidade limitada para produzir a maior parte dos bens que consome, e ainda mal refeita dos danos materiais causados pelo terrível terramoto de 1755, entra num acelerado processo de esgotamento.

Nesta conjuntura económica, extremamente desfavorável, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, ministro de D. José I, delineia um audacioso programa com vista ao reequilíbrio da balança económica portuguesa, e ao restabelecimento das finanças nacionais. O plano de Pombal assentava na indispensável necessidade de diminuir o volume de produtos importados, o que só se conseguiria através do desenvolvimento sustentado da produção nacional, secundado pelo incremento da actividade comercial interna, e da simultânea melhoria do sistema fiscal, com vista à rentabilização dos impostos arrecadados pela Coroa. Cabia ao Estado, nestas circunstâncias, “fomentar a riqueza para benefício da comunidade”126 .

É assim que, no início da década de 70 do século XVIII, à semelhança do que acontece noutras regiões, fruto da nova política económica instaurada pelo Marquês de Pombal, o Algarve, um território potencialmente rico, mas com um sector primário marcado por um sub aproveitamento crónico, uma capacidade comercial asfixiada por interesses estranhos à região,127 e uma política fiscal anacrónica, é “redescoberto”, e alvo de uma série de medidas, de cariz económico e administrativo, que têm como objectivo final a peremptória inversão do seu estado de estagnação, e a proclamada “Restauração do Reino do Algarve 128.

Particularmente preocupante para as autoridades portuguesas, conhecedoras enfim das potencialidades económicas do Algarve, era a questão da evasão fiscal, nomeadamente a decorrente da intensa actividade piscatória e comercial levada a cabo por armadores castelhanos, particularmente catalães que, nos princípios do século XVIII, se haviam espontaneamente instalado no areal da praia de Monte Gordo, no termo do que fora a antiga vila de Santo António de Arenilha, usufruindo livremente dos recursos piscícolas existentes na costa do sotavento algarvio, sem pagar os direitos devidos à Coroa portuguesa 129.

A mais antiga referência documental a Monte Gordo, e à pesca que se fazia na sua costa, remonta ao século XV, mais precisamente ao ano de 1433, quando o rei D. Duarte atribui ao seu irmão, o Infante D. Henrique, os direitos sobre “dízima nova de todo o pescado que pescarem quaisquer pessoas no mar do Monte Gordo”130

126) Joaquim Veríssimo SERRÃO, Marquês de Pombal: o homem e o estadista, in História de Portugal (coordenação de João Medina), volume IX, 2004 pp. 226 a 241.

127) Cf. Joaquim Romero MAGALHÃES, O Algarve económico 1600-1773, 1993, pp. 393 a 405.

128) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder na política pombalina, 1997, pp. 40-42.

129) Ibidem, pp. 43-44.

130) Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do concelho de Vila Real de Santo António, 1999, p. 73.

Note-se que o “pescado” acima referido seria, acima de tudo, o chamado peixe miúdo, nomeadamente a sardinha, já que as almadravas, isto é, as armações da pesca do atum, eram quase exclusivamente lançadas na zona do barlavento 131. Esta doação régia atestava, desde logo, a importância da actividade pesqueira no extremo oriental da região algarvia, assim como a presença de um núcleo populacional nas praias de Monte Gordo, certamente de carácter sazonal, porque dependente da época da safra, e maioritariamente constituído por pescadores. Há mesmo referências à existência de uma provável “fortaleza medieval”, hoje desaparecida, em Monte Gordo 132, que certamente teria como objectivo proteger a comunidade piscatória dos recorrentes ataques da pirataria berbere. Contudo, a designação de “Monte Gordo” não corresponderia necessariamente a uma povoação propriamente dita, mas antes a uma extensa “área territorial” 133, ocupada por uma comunidade de pescadores instalados em palhoças de colmo, que se estendia pela faixa litoral arenosa compreendida entre a foz do Guadiana e a antiga povoação de Cacela.

Já no século XVI, Frei João de São José, na sua Corografia do Reino do Algarve, impressa em 1577, volta a mencionar a existência de uma importante comunidade de pescadores no “sítio onde chamam Monte Gordo”; contudo, refere também o mesmo autor, do muito pescado que se capturava nessas paragens, quase todo era consumido em Castela, “por estar vizinha e nela sempre valer mais” 134. Ainda assim, parece que durante o período de união das Coroas ibéricas (1580-1640), talvez fruto de uma nova política fiscal, essa proveitosa pesca da sardinha entrou numa fase de declínio, havendo mesmo necessidade de importar esse produto de Espanha, para suprir as necessidades do Reino 135.

Porém, no final do século XVII, os rendimentos obtidos a partir da captura da sardinha seriam ainda consideráveis, como se deduz da publicação, nessa altura, de novas leis contra o contrabando de pescado, segundo as quais ficavam os infractores sujeitos à queima dos seus meios de subsistência, isto é, à destruição das suas embarcações e artes de pesca, e à pen de degredo para Castro Marim 136. Para além disso, a rotina do contrabando continuou a ser uma prática comum, desde logo potenciada pela distância a que se encontrava a alfândega da cidade de Tavira, para a qual tinha de ser conduzida toda a sardinha pescada “no mar de Monte Gordo a Cacela”, não obstante a posterior instalação de um posto de “Registo de Portagem” 137 em Monte Gordo, e a relativa proximidade da alfândega de Castro Marim.

No início do século XVIII, por volta de 1710, com a introdução de um novo aparelho de pesca nas costas de Monte Gordo, destinado à captura da sardinha, a chamada levada, tudo indica que por iniciativa de António Gomes, um pescador oriundo de Castro Marim, a actividade pesqueira volta a prosperar 138. Pouco tempo depois, atraída pela abundância de sardinha no mar algarvio, e pelo lucro que dela facilmente se podia obter, instala-se na praia de Monte Gordo uma numerosa comunidade de pescadores espanhóis, alguns oriundos da vizinha Andaluzia, mas a maioria da distante Catalunha. Tudo indica ter sido a proibição da prática do “arrasto costeiro” 139, por parte do governo espanhol, em 1725, a ditar a vinda dos armadores catalães para a costa do Algarve, onde podiam continuar a utilizar a xávega, uma arte tradicional de pesca da sardinha, até então pouco difundida no Algarve.

Todavia, apesar do efectivo aumento do número de xávegas registado nas costas de Monte Gordo, a partir das primeiras décadas do século XVIII, como consequência directa da instalação de uma colónia de catalães, esta arte já seria utilizada na região anteriormente, pelo menos desde o século XVI. De facto, sabe-se que, em meados do século XVI, o alcaidemor da vila de Santo António de Arenilha, um tal António Leite, recebia a terça parte da dízima do pescado capturado por todas as barcas e “xávegas, com que os pescadores de fora do reino” pescam na praia de Monte Gordo. Note-se, já nessa altura, a referência explícita aos “pescadores de fora do reino” 140, eventualmente referindo-se aos catalães.

Com o estabelecimento, sazonal ou definitivo, dos catalães, a população da praia de Monte Gordo aumenta exponencialmente, multiplicando-se as cabanas, com funções de habitação mas também acolhendo “salgas improvisadas”, onde a sardinha era amanhada, salgada, e acondicionada em barricas, para depois ser exportada, principalmente para Espanha 141.

No auge da temporada, a população residente, entre pescadores, jornaleiros, tanoeiros, salgadores e suas famílias, chegaria a alguns milhares de indivíduos, instalados ao longo de mais de uma légua de praia 142, com um núcleo principal formado por cabanas de colmo, umas poucas casas de alvenaria, alinhadas em três fileiras, e uma pequena ermida, dedicada a nossa Senhora das Dores, como se pode perceber a partir de um desenho esquemático da povoação executado em 1773, de autoria desconhecida.

No que diz respeito à frota pesqueira em actividade, pensa-se que, por volta de 1750, operariam na costa de Monte Gordo cerca de 60 barcas, das quais perto de 50 eram propriedade de armadores andaluzes e catalães, e pouco mais de uma dezena pertenciam a portugueses, na sua maioria residentes em Castro Marim, e que, alguns anos depois, no início da década de 70, de um total de uma centena de embarcações, cerca de 85 seriam espanholas 143.

A praia de Monte Gordo era, na realidade, “mais um empório de pesca espanhola do que portuguesa”144.

131) Cf. Fausto COSTA, A pesca do atum nas armações da costa algarvia, 2000, pp. 60 a 62.

132) João de ALMEIDA, Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses, volume III, p. 536, citado por José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 76.

133) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 76.

134) Frei João de São José, Corografia do Reino do Algarve, Cod.109, f. 49, citado por José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 75.

135) Cf. Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do concelho…p. 74.

136) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental – As vilas, o campo e o mar, volume I, 1976, p. 40.

137) Carminda CAVACO, O Algarve oriental…pp. 40 e 61.

138) Cf. Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do concelho…p. 74

139) Carminda CAVACO, O Algarve oriental…p. 43.

140) Hugo CAVACO, As alfândegas do Levante algarvio nos “Regimentos” quinhentistas, in Actas das IV Jornadas de História de Tavira, 2003, p. 38.

141) Carminda CAVACO, O Algarve oriental…p. 43

142) Cf. Constantino de Lacerda LOBO, Memória sobre a decadência da pescaria de Monte Gordo, Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo III, 1791, citado por João Baptista da Silva LOPES, Corografia ou memória económica, estatística e topográfica do Reino do Algarve, 1º volume, 1988, p. 382.

143) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve oriental…p. 43.

144) Alberto IRIA, Vila Real de Santa António reedificada pelo Marquês de Pombal (1773-1776), Separata da Revista ETNHOS, 1948, pp.8.

Porém, como já foi referido, a maior parte dos consideráveis lucros decorrentes da actividade pesqueira desenvolvida no extremo oriental da região algarvia acabava por, sistematicamente, escapar aos cofres do erário público nacional, indo parar às mãos dos espanhóis. Para fazer frente a esta situação, e para garantir os direitos da Fazenda Real sobre esta rendosa actividade, o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o verdadeiro orquestrador do já mencionado plano de restauração económica e administrativa do “Reino do Algarve”, decreta uma série de novas medidas legislativas, que tinham como principal objectivo inviabilizar a saída do pescado apanhado na costa algarvia para o reino vizinho, sobrecarregando-o com taxas e impostos. Como seria de esperar, a estas medidas, extremamente danosas para a actividade dos armadores catalães da praia de Monte Gordo, o governo espanhol responde com um pacote de medidas legislativas semelhantes, estas obviamente contrárias aos interesses comerciais portugueses 145.

É neste ambiente de autêntica “guerrilha das pescarias” em que, ainda que de um modo diplomático, as partes envolvidas procuram prejudicar-se mutuamente, que Pombal vê a oportunidade para resolver, de uma vez por todas, o problema das pescarias no Algarve 146.

Para tal, promove a aplicação de um conjunto de novas reformas legislativas, de carácter fiscal e administrativo, tendencialmente centralizadoras, que, no campo das pescas, permitiriam aliviar a pesada carga fiscal que recaía sobre o pescado algarvio, privilegiando o seu escoamento para o mercado interno, ao mesmo tempo que procurava revitalizar a subaproveitada indústria da produção e extracção de sal, absolutamente fundamental para o sucesso da actividade comercial ligada ao pescado 147.

Neste clima reformista, tendencialmente centralizador de poder, Pombal ordena a constituição uma companhia monopolista, com o objectivo de superintender, em regime de exclusividade, a actividade pesqueira no Reino do Algarve, tornando-a mais competitiva e lucrativa, substituindo assim o secular sistema das almadravas pelo aparelho administrativo estatal 148. No dia 15 de Janeiro de 1773, é formalmente constituída a “Companhia Geral das Pescarias Reais do Reino do Algarve” 149, à frente da qual são colocados homens de negócio de reconhecida competência, comerciantes experimentados, que, mesmo a partir de Lisboa, comandariam as operações no terreno, em colaboração com um administrador residente no Algarve. Ao mesmo tempo, Pombal procurava atrair para a nova companhia estatal o grande capital privado nacional, condição indispensável ao sucesso deste negócio 150.

fig.2. Desenho esquemático do lugar do lugar de Monte Gordo em 1773.
Fonte: José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder na política pombalina, 1997, p. 466.

145) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder… pp. 44-45.

146) Ibidem, pp.45.

147) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 47-48.

148) Ibidem, pp. 47-48.

149) Joaquim Romero MAGALHÃES, O Algarve económico…p. 195.

150) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 49.

Atento a estas medidas, e ao impacto que as mesmas podiam ter nos seus cofres, o governo espanhol agrava ainda mais a carga fiscal sobre o peixe salgado importado do Algarve tornando absolutamente proibitiva a exportação deste produto para o outro lado da fronteira e procurando assim embaraçar os planos mercantis de Pombal, convencido de que o mercado português não teria capacidade para absorver a totalidade da produção algarvia. Contudo, estas acções não sobressaltariam o ministro de D. José I, que aproveitaria esta oportunidade para promover a comercialização e o consumo do pescado português, e em particular da sardinha salgada, em Portugal. Para isso, elabora uma nova série de medidas, de carácter proteccionista, que encarecem exponencialmente a importação de pescado, principalmente daquele que chega às províncias do norte do país, vindo da Galiza, ao mesmo tempo que isentava de custos tributários a circulação interna da sardinha salgada do Algarve, com base no pretexto de que os povos não deviam comprar aos de fora aquilo que tinham capacidade para produzir dentro das suas fronteiras. O objectivo era, portanto, acabar com a importação de sardinha salgada da Galiza para as províncias portuguesas do norte, criando um novo mercado de consumo para a sardinha do Algarve.

Ao mesmo tempo que promulgava estas novas directrizes comerciais, Pombal procurava atrair a burguesia do norte de Portugal para o negócio da pesca no Algarve, contactando, em absoluto segredo, os administradores da Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro, e pedindo-lhes que, em conjunto com o seu enviado extraordinário, Frei João de Mansilha, aliciassem para o negócio da captura e comercialização do pescado algarvio os comerciantes nortenhos, homens com considerável capacidade económica, experiência suficiente nas áreas do comércio e navegação, e capacidade para garantir a colocação da sardinha salgada do Algarve na região norte 151.

Para convencer os homens de negócio nortenhos, segue com a referida proposta um extenso relatório em que se enumeram as condições extraordinárias da praia de Monte Gordo, na qual, referia-se, poderiam os ditos investidores instalar, a um custo mínimo, os seus próprios telheiros e salgas, exportando com facilidade o produto desta actividade para qualquer porto do reino, à semelhança do que faziam anteriormente os armadores catalães, usufruindo da abundância de sardinha existente nas costas algarvias, e das medidas proteccionistas decretadas pelo Governo português 152.

Note-se que, por esta altura, no final do ano de 1773, a maior parte dos catalães, até aí instalados na praia de Monte Gordo, haviam já abandonado a costa algarvia, empurrados pelas medidas proteccionistas decretadas pelo governo português, vindo a instalar-se nas praias da vizinha Andaluzia. Contudo, é preciso ter em conta que a partida dos armadores catalães não seria necessariamente um dos objectivos de Pombal, na medida em que havia sempre o perigo de parte dos marítimos partirem também, acompanhando os seus antigos patrões 153, perigosamente desamparando as pescas algarvias. No sentido de evitar os riscos decorrentes de uma retirada geral, é permitida a permanência no Algarve de todos os catalães que estejam dispostos a naturalizar-se, o que alguns acabam mesmo por fazer, ao mesmo tempo que, certamente por iniciativa dos empresários nortenhos, se chama para a região uma colónia de experimentados marítimos de Ílhavo 154.

Logo em Novembro de 1773, chegam ao Algarve os primeiros representantes dos investidores nortenhos, já organizados em sociedades. A sua angariação fora diligentemente conduzida pela Companhia Geral do Alto Douro, na zona do Porto, e pelos enviados extraordinários de Pombal, noutros pontos do país, como por exemplo em Setúbal, onde igualmente se recrutaram investidores com capital suficiente para aplicar neste negócio, e com experiência acrescida na captura e comércio de pescado 155.

151) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 61-63.

152) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder… pp. 62.

153) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve oriental…p. 64.

154) Cf. Alberto IRIA, Vila Real de Santa António reedificada pelo Marquês…pp.14.

155) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 63-64.

Enquanto os representantes das sociedades instalavam na praia de Monte Gordo os seus telheiros e salgas, contratando os barcos e homens necessários à captura do pescado, o Marquês de Pombal, atendendo à visível fragilidade destas construções, na sua maior parte simples cabanas cobertas de colmo, constantemente sujeitas ao perigo dos incêndios, dava instruções ao Governador do Reino do Algarve para que mandasse delinear o plano de uma “vila regular”, de pedra e cal, onde se pudessem instalar, com mais garantias e segurança, os telheiros e armazéns pertencentes às ditas sociedades.

Porém, desde logo se percebeu que a praia de Monte Gordo não reunia as condições necessárias à instalação da pretendida “vila regular”. De facto, o areal de Monte Gordo, constantemente sujeito às incursões do mar e à movimentação das areias, não teria jamais capacidade para acolher a pretendida fundação 156. Para além disso, a manutenção de uma povoação como Monte Gordo, estabelecida na costa, ao longo de um extenso areal, acabaria por comprometer os planos de incremento fiscal da Coroa portuguesa, na medida em que nessas condições, seria praticamente impossível controlar eficazmente a actividade dos pescadores e assim acabar com o contrabando de peixe fresco 157.

Os relatórios enviados para a Corte, a partir do Algarve, mostravam que o melhor local para construir uma nova vila, com as características pretendidas, era efectivamente o chamado sítio do Barranco, no termo da desaparecida vila de Santo António de Arenilha. Para além disso, as disposições que chegavam ao Algarve, emanadas a partir da Carta Régia de 30 de Dezembro de 1773, que estabelecia os termos em que se havia de efectuar a apregoada “reedificação” de Santo António de Arenilha, anunciavam a construção de uma povoação regular, percorrida por arruamentos dispostos em linhas rectas, onde se poderiam acondicionar, comodamente, as “casas, telheiros, lagares e armações das pescarias”158 com uma Praça desafogada, Casa da Câmara, Igreja, e uma Alfândega, esta convenientemente implantada o mais perto possível do porto fluvial.

Aprovada a localização proposta, a oriente da praia de Monte Gordo, junto à margem portuguesa do Guadiana, e esboçada a sua configuração, a nova povoação, projectada de raiz, poderia em breve assumir o papel que lhe estava destinado, o de metrópole comercial do negócio das pescarias no “restaurado” Reino do Algarve.

156) José Eduardo Horta Correia, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 68-69.

157) Ibidem, p. 97.

158) Ibidem, p. 80.

2 - A projecção e edificação da nova Vila

Precisamente no centro da Praça de Vila Real de Santo António, outrora chamada Real, e hoje designada como do Marquês, ergue-se um dos mais eloquentes testemunhos evocativos da fundação da vila, um monumental obelisco em cantaria, encimado pela coroa real, ostentando uma breve, mas esclarecedora, inscrição, vívido testemunho deixado pelos contemporâneos para perpetuar tão singular instituição. Segundo informa a dita inscrição, foi o referido obelisco erigido em honra de D. José I, “restaurador das Armas, das Letras, do Comércio, da Agricultura, reparador da Glória e Felicidade pública”, responsável pela recuperação de Vila Real de Santo António, salva da inundação do oceano, e levantada em apenas cinco meses, sob a orientação do zeloso Marquês de Pombal. Porém, esta legenda de evidente carácter propagandístico, apesar de minimamente elucidativa do que foi, grosso modo, a emblemática edificação de Vila Real de Santo António, acaba por não fazer justiça ao complexo processo que culminou com a projecção e edificação, em tempo recorde, de uma nova povoação, num areal outrora isolado e ermo.

Decidida que estava, a partir do final de 1773, ao mais alto nível, a edificação, no extremo oriental da região algarvia, de um novo pólo urbano construído de raiz, predestinado a funcionar como a futura “capital” económica do negócio das pescarias, símbolo de afirmação política da soberania portuguesa na fronteira do Guadiana, era preciso transformar o audacioso projecto em realidade.

Logo em Janeiro de 1774, numa altura em que o Governador do Reino do Algarve, dando seguimento às ordens emanadas de Lisboa, procurava esboçar os planos de uma nova “vila regular”, contando apenas com os escassos meios técnicos que tinha ao seu dispor, eis que chega à região, enviada por Pombal, uma planta geral da nova vila, pronta a aplicar no terreno, e projectada em tempo recorde pela Casa do Risco das Obras Públicas, sob a direcção do arquitecto Reinaldo Manuel dos Santos. Juntamente com o projecto da nova “vila regular”, um enorme rectângulo voltado ao Guadiana, com o edifício da alfândega e os das diferentes sociedades projectados para a frente ribeirinha, uma “competente praça quadrada” 159, central, da qual derivavam arruamentos regulares, cortando a malha urbana em ângulos rectos, chegavam também ao Algarve as directivas que reafirmavam a urgência da implantação da obra no terreno, para que não se comprometesse a próxima safra da sardinha, com início em Agosto.

A inesperada resolução governamental de “reedificar” a antiga Vila de Santo António de Arenilha, levantando uma nova povoação na margem direita do Guadiana, terá surpreendido particularmente os investidores nortenhos, aliciados para o negócio das pescarias algarvias, muitos dos quais já estabelecidos na praia de Monte Gordo, e agora formalmente convocados a instalar-se na nova vila, onde eram “convidados” a ocupar o lugar que lhes estava destinado e, para além disso, a financiar a construção dos edifícios correspondentes às suas sociedades, conforme delineado no projecto global 160. Ainda assim, a decisão era definitiva, e irrevogável.

Para acautelar o bom andamento das obras da nova vila, cuja responsabilidade foi delegada nas autoridades regionais, e na perícia técnica dos engenheiros militares estabelecidos no Algarve, são formalmente requisitados os serviços de artífices civis de várias localidades algarvias, e destacadas para o terreno duas Companhias de Infantaria do Regimento de Castro Marim, que deveriam servir de apoio logístico ao enorme estaleiro de construção, por um lado ajudando a manter a ordem, e por outro fornecendo mão-de-obra. Para além disso, também para aligeirar o ritmo das obras, mas sobretudo para garantir a pretendida uniformidade estilística do conjunto, Pombal determina ainda que todas as pedras de cantaria destinadas à nova vila, bem como algumas ferragens, deveriam ser previamente executadas em Lisboa, e só depois enviadas para o Algarve, já prontas a assentar 161.

Em meados de Março de 1774, procede-se ao nivelamento do terreno destinado à construção da nova vila, elevando a sua cota acima do nível máximo das águas do Guadiana, de modo a colocá-la a salvo de uma eventual subida das águas. Curiosamente, as fontes documentais parecem demonstrar que, nesta fase inicial das obras, ainda foi equacionada a hipótese de abrir um canal navegável entre a nova vila e o esteiro da Carrasqueira, criando uma nova ligação a Castro Marim 162, assim como a de fazer da nova vila uma povoação fluvial, percorrida por canais em vez de ruas, intenções que não viriam a materializar-se.

Poucos dias depois de demarcado o terreno para a construção, em 17 de Março, no denominado sítio do Barranco, junto ao Guadiana, na presença das autoridades civis da Câmara de Arenilha e de alguma da oficialidade e Juiz de Fora da vizinha praça de Castro Marim, é simbolicamente colocada a primeira pedra da futura vila que havia de “nacionalizar e disciplinar a actividade piscatória no Algarve”. Nesse mesmo dia, é ainda publicado o alvará régio que estabelecia a obrigatoriedade do registo “de todos os homens do mar, e pescadores do Algarve, com as qualificações das suas naturalidades, domicílios, embarcações, campanhas, e portos de que saem a fazer as suas pescarias” 163, proibindo os homens do mar de navegar e pescar fora das águas algarvias, sem a competente autorização, garantindo assim a manutenção da mão-de-obra necessária ao sucesso da política pesqueira do Reino.

Quase de imediato, começam a ser levantados os edifícios mais emblemáticos da nova povoação, nomeadamente a Alfândega, que pelas suas funções específicas desempenhava um papel absolutamente fundamental no funcionamento da pretendida capital mercantil das pescarias algarvias, mas também os quartéis e as Casas da Câmara, que albergariam as autoridades civis e militares, assim como os edifícios das sociedades comerciais, dos quais dependia, em grande parte, o sucesso de todo o empreendimento. Para além disso, à medida que crescia a nova vila progredia também, na margem portuguesa do Guadiana fronteira ao novo estabelecimento, então transformada num imenso estaleiro naval, a construção de uma nova frota pesqueira 164.

fig.5. Primeira planta da nova vila, enviada para o Algarve em Janeiro de 1774.
Fonte: José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder na política pombalina, 1997, p. 469.

159) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 81 e 82.

160) Ibidem…p. 83.

161) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 82-84.

162) Cf. Alberto IRIA, Vila Real de Santa António reedificada pelo Marquês…pp.12.

163) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 91 e 92.

164) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 92.

Ao mesmo tempo que no terreno arrancavam as obras, algumas medidas administrativas foram tomadas no sentido de auxiliar o “nascimento” da vila de Santo António de Arenilha.

É nomeado um novo executivo camarário, ainda que temporário, um pároco residente, para servir a futura povoação, e chegam à região, vindos da Corte, um cirurgião e um boticário 165, que são provisoriamente instalados na praia de Monte Gordo.

Nos finais de Março de 1774, sensivelmente um mês depois de iniciadas as obras, um relatório enviado para Lisboa pelo Governador do Reino do Algarve dava conta dos progressos realizados na nova vila, dando a conhecer que tanto a Alfândega, como os demais edifícios públicos, estavam praticamente concluídos, alguns deles apenas “aguardando telha”, e que também os edifícios das sociedades, na frente ribeirinha, se encontravam em avançado estado de edificação, estando já a maior parte deles com as “paredes levantadas” 166, esperando a vinda das cantarias.

Avançada que ia a construção dos principais edifícios públicos e da zona “industrial” da nova vila, onde se situavam a alfândega, os edifícios das sociedades, e os armazéns, era a altura de dar início ao que se poderá descrever, segundo proposta de José Eduardo Horta Correia, como a “2ª fase da edificação”, ou seja, a construção da zona habitacional da vila que, segundo o projecto elaborado pela Casa do Risco, seria constituída exclusivamente por “casas de rés-do-chão” 167, excepto na Praça, para onde estava prevista a existência de habitações de dois pisos, um térreo e um superior.

A 30 de Junho, desse mesmo ano de 1774, chega ao Algarve uma outra planta geral da vila, complementar à primeira, apresentando o loteamento dos quarteirões de habitação e o nome das pessoas que deviam ficar responsáveis pela construção de cada um deles, membros da velha nobreza fundiária ou burgueses endinheirados, e representantes do clero secular, todos da região. Para além disso, a nova planta incluía já uma proposta preliminar da toponímia pretendida para cada uma das ruas da nova povoação 168.

Ainda nesse mesmo mês de Junho, atendendo à falta de condições em que a multidão de pessoas envolvida nas obras da vila assistia à missa, numa indecorosa “barraca de campanha”, é decretado o começo imediato da construção da igreja paroquial, inicialmente prevista para o flanco poente da Praça, mas finalmente construída no flanco norte. Precisamente no dia em que é colocada a 1ª pedra da nova igreja, em 6 de Agosto, são também lançadas à água as primeiras embarcações concluídas nos estaleiros locais, é pela primeira vez cozido pão na fábrica do Assento, e são oficialmente descerradas, na frontaria do recém concluído edifício da alfândega, as Armas Reais portuguesas 169.

fig.6. Planta da nova vila enviada para o Algarve em Junho de 1774, já com uma proposta de toponímia.
Fonte: José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder na política pombalina, 1997, p. 473.

164) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 92.

165) Cf. Alberto IRIA, Vila Real de Santa António reedificada pelo Marquês…pp. 9 e 11.

166) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 94.

167) Ibidem, p. 95.

168) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António  – Urbanismo e Poder… p. 96.

169) Ibidem, pp. 95 e 96

A 30 de Setembro, inaugurada que estava a alfândega, e face à resistência por parte dos residentes da praia de Monte Gordo em conduzir o pescado até à nova vila, o Marquês de Pombal dá ordens para que se execute a “transferência imediata da povoação de Monte Gordo para a Vila de Santo António de Arenilha”, temporariamente garantindo aos marítimos o direito a instalar aí as suas cabanas, enquanto não se concluía a construção das novas casas de pedra e cal 170.

Pouco tempo depois, é extinta a alfândega de Castro Marim, sendo todo o seu despacho oficialmente transferido para a nova alfândega da vila de Santo António de Arenilha, onde os oficiais alfandegários podiam controlar mais eficientemente a actividade pesqueira e mercantil. É também nesta altura que, por ordem de Pombal, o Governador do Reino do Algarve, D. José Francisco da Costa, transfere a sua residência oficial para Castro Marim, abandonando o Palácio dos Governadores, em Tavira, e estabelecendo-se nas proximidades da nova vila, onde deveria acompanhar de perto a evolução das obras.

Porém, o processo de edificação das casas de habitação na nova vila estava ainda, nest altura, bastante atrasado, principalmente porque os “homens ricos do Algarve”, convocados por Pombal para financiar a construção dos lotes de habitação da nova vila, que depois poderiam arrendar aos pescadores, não se demonstravam particularmente interessados em investir neste projecto. De facto, apesar da bondade implícita ao empreendimento, sempre sustentado pelo executivo pombalino, da aparente facilidade com que se poderiam edificar as modestas habitações térreas que comporiam o grosso da malha urbana, e dos potenciais lucros que se poderiam obter do arrendamento das mesmas, muitos dos edificantes inicialmente propostos procuraram, quase sempre sem sucesso, desobrigar-se desta empreitada, alegando falta de meios. Na verdade, “só a muito custo e por que a tanto foram obrigados” 171, alguns deles acabariam por construir os lotes que lhes haviam sido outorgados.

Como consequência desta “resistência”, em Outubro de 1774, as obras na parte habitacional da nova vila encontravam-se ainda bastante atrasadas, conforme se pode inferir da observação de um desenho-relatório, atribuído a José de Sande Vasconcelos, que mostra como, na maior parte dos casos, os edificantes designados não tinham lançado ainda os alicerces das construções, e como alguns lotes não estavam sequer definitivamente atribuídos 172. Nesta altura, estariam apenas concluídos, e prontos a entrar em funcionamento, para além dos dois quarteirões ribeirinhos, onde se situavam os edifícios das sociedades, e os respectivos armazéns, os principais edifícios públicos, nomeadamente a alfândega, a fábrica do Assento, destinada ao fabrico de pão, os aquartelamentos para a tropa, e o quarteirão onde havia de funcionar a “Câmara, Cadeia, Casas do Governo e Celeiro”. Já no que diz respeito à parte habitacional, somente estava edificado o quarteirão que compreendia a chamada “Praça da Estalagem”, depois designada como do Pelourinho, na extremidade norte da vila, parte do flanco direito do quarteirão da igreja, e uma fiada de casas no extremo sul da Rua do Príncipe.

fig.7. Desenho-relatório da autoria de José de Sande Vasconcelos, enviado para Lisboa em Outubro de 1774.
Fonte: Rui FIGUEIRAS, Vila Pombalina – Vila Real de Santo António, 1999, p.33.

170) Ibidem, pp. 97 e 98.

171) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 101.

172) Ibidem, p. 104.

No fim do ano de 1774, dando seguimento à anteriormente referida provisão governamental que decretava o abandono imediato da praia de Monte Gordo, praticamente todas as cabanas de pescadores haviam já sido transferidas para as imediações da nova vila, permanecendo em Monte Gordo apenas umas poucas casas de pedra e cal, servindo de apoio à actividade pesqueira. Curiosamente, estas casas seriam compradas, pouco tempo depois, pela Fazenda Real, para albergar a tropa de cavalaria responsável pelo patrulhamento das praias da zona 173. Nesse mesmo ano, também com intuito de prevenir a prática do contrabando, foi constituída uma outra ronda, formada por soldados e oficiais da alfândega, à qual competiria a verificação da carga de todas as embarcações que se aproximassem da costa ou percorressem o Guadiana 174.

No início do ano seguinte, reafirmando a irreversibilidade da implacável decisão de desocupar a praia de Monte Gordo, o Santíssimo Sacramento é solenemente trasladado da ermida de Nossa Senhora das Dores para a Casa da Câmara da nova vila de Santo António de Arenilha, onde permaneceria, exposto numa das salas do edifício, que passou a desempenhar as funções de capela, enquanto não se terminavam as obras da nova igreja paroquial 175. Esta capela provisória, instalada nas Casas da Câmara, começa a funcionar em pleno, do ponto de vista litúrgico, a partir de Fevereiro de 1775, quando o representante da autoridade episcopal confirma as condições dos seus três altares 176.

Em Maio de 1775, um relatório enviado para a Corte anunciava oficialmente a conclusão do edifício da alfândega, dos quarteirões fabris, das Casas da Câmara e do Quartel, afirmando igualmente que estava bem encaminhada a obra do edifício do Corpo da Guarda, assim como a da igreja, e que, para além disso, estavam praticamente finalizadas as obras particulares em torno da Praça. Apenas as obras nos lotes de habitação continuavam particularmente atrasadas, já que alguns desses lotes não mostravam qualquer sinal de edificação, e outros permaneciam ainda por atribuir. A partir dessa data, multiplicam-se os avisos e intimações aos edificantes faltosos, com vista estimular a ambicionada conclusão das obras 177.

Entretanto, enquanto se construíam os lotes habitacionais, procedia-se também à abertura dos poços públicos que, apesar de inicialmente previstos para as duas pracetas laterais, acabaram por ser abertos fora da povoação, atendendo aos eventuais perigos que poderiam resultar da constante infiltração das águas resultantes do processamento do pescado. É também nesta altura que o Marquês de Pombal ordena a construção, na zona norte da nova povoação, “no alinhamento do eixo longitudinal da igreja 178”, daquele que seria o primeiro cemitério público português, proibindo, na nova vila, o insalubre costume de enterrar os mortos no interior das igrejas.

173) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 100.

174) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental – As vilas, o campo e o mar, volume I, 1976, p. 63.

175) Cf. Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do concelho de Vila Real de Santo António, 1999, p.84.

176) Cf. Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do concelho… p.80.

177) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 105 e 106.

178) Ibidem, pp. 105 e 106.

Ainda em 1775, através de carta dirigida à Câmara da então Vila Real de Santo António de Arenilha, o Marquês de Pombal ordena a supressão do topónimo Arenilha da designação da nova vila, por entender ser essa uma palavra castelhana e, portanto, imprópria para aplicar à povoação portuguesa, à semelhança do que já havia tentado fazer o rei D. João III, em meados do século XVI 179. Contudo, não obstante as directivas que ao longo dos séculos procuraram reprimir a utilização do designativo Arenilha, a verdade é que, em pleno século XIX, o carimbo nominal que identificava o correio oriundo de Vila Real de Santo António exibia ainda a sigla de “Santo António d’Arenilha”180.

Nesta altura, é decretada a extinção da câmara de Cacela, e a anexação do seu antigo termo ao de Vila Real de Santo António, estabelecendo a jurisdição territorial do novo concelho. É preciso ter em conta que a incorporação do termo de Cacela, e do seu território, no termo de Vila Real de Santo António era absolutamente fundamental para a subsistência da nova vila, na medida em que anexação de boas terras de cultivo, que escasseavam no território pertencente à antiga povoação de Arenilha, permitiria garantir a auto-suficiência alimentar, condição essencial para a fixação definitiva dos seus habitantes 181.

No início do ano 1776, quando a edificação da vila estava já bastante adiantada, o governo decreta a imediata remoção das cabanas de pescadores entretanto instaladas nas suas proximidades, proibindo a construção de novas estruturas deste género à volta da povoação, obrigando assim os pescadores, que não se mostravam demasiado interessados em mudar-se para as casas de pedra e cal, a fixar residência na nova vila 182.

Finalmente, no dia 13 de Maio de 1776, apesar de não estarem completamente concluídas as obras de construção, que se prolongariam até ao fim do ano, têm início as aparatosas festividades de inauguração da nova vila. As cerimónias festivas, que duraram por três dias, incluíram a trasladação do Santíssimo Sacramento das Casas da Câmara para a nova igreja, ainda inacabada, fogos de artifício, bailes, manobras militares, o descerrar solene da coroa do obelisco implantado no centro da Praça Real, e da respectiva inscrição comemorativa.

Assistem a estas festividades mais de 300 convidados, que são instalados nas recémconcluídas habitações da nova vila, achando-se representadas, como não podia deixar de ser, as direcções das sociedades, a maior parte das autoridades civis, militares e religiosas da região, e ainda os mais destacados membros da nobreza e burguesia algarvia, entre os quais se contavam alguns dos edificantes, bem como alguns convidados espanhóis 183.

Depois de oficialmente concluída a edificação, e criação administrativa, da Vila Real de Santo António, apenas decorridos dezassete meses entre o lançamento da 1ª pedra da nova vila e o descerrar da coroa no topo do obelisco, momento solene com que se “inaugura” a povoação, estava enfim concluída a mais extraordinária das iniciativas desenvolvidas na sequência do pretendido plano de “Restauração do Reino do Algarve”, que poderia agora começar a dar os seus frutos.

179) Cf. Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do Concelho…p. 71.

180) Luís FRAZÃO, Os Correios do Algarve na época pré-adesiva Portimão, 1996, p. 33.

181) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 81.

182) Ibidem, p. 107.

183) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 108 e 109.

fig.9. Desenho esquemático das manobras militares feitas nos dias 13, 14 e 15 de Maio de 1776, durante a inauguração solene de Vila Real de Santo António.
Fonte: Rui FIGUEIRAS, Vila Pombalina – Vila Real de Santo António, 1999, p.34.

3 - O ciclo da sardinha - dos telheiros às sociedades pesqueiras

No início da década de 70 do século XVIII, a Coroa portuguesa, até então particularmente empenhada na exploração das riquezas dos territórios ultramarinos, cada vez mais escassas, redireccionou a sua atenção para as potencialidades internas do Reino, sistematicamente subaproveitadas. Entre as potenciais fontes de riqueza negligenciadas encontrava-se o negócio das pescarias do Reino de Algarve e, em particular, a pesca da sardinha nas praias de Monte Gordo, que se desenvolvera exponencialmente a partir das primeiras décadas do século XVIII, com a instalação de uma colónia de catalães no extremo oriental do Algarve, a multiplicação do número de artes de pesca, nomeadamente das designadas xávegas, e a introdução de novas técnicas de salga e conservação do pescado.

A abundância de recursos piscícolas era tal, e de tal modo mal aproveitada pela Coroa, que o executivo pombalino, aliciado pelos potenciais lucros que poderia obter a partir deste autêntico “tesouro oculto”184, como na altura chegou a ser classificado o negócio da beneficiação e exportação da sardinha, acabaria por decretar, em 1773, a “nacionalização” desse próspero comércio, medida que seria complementada pela simultânea fundação de Vila Real de Santo António, núcleo urbano apto a comandar e disciplinar a actividade pesqueira no terreno, fomentando o seu desenvolvimento.

Contudo, como se tornou evidente aos olhos das autoridades portuguesas, subitamente interessadas em usufruir do negócio da sardinha da praia de Monte Gordo, a manutenção das técnicas tradicionais de captura e manipulação do pescado praticadas nessa praia, muita delas introduzidas pelos catalães aí instalados, constituía um factor essencial ao seu sucesso.

De facto, a arte de arrasto da xávega continuava a ser a que mais eficazmente garantia a captura dos grandes cardumes de sardinha que povoavam os mares de Monte Gordo, e a técnicas de beneficiação utilizadas pelos catalães as que melhor garantiam a qualidade d pescado e a sua posterior exportação.

Consistia a secular arte da xávega na utilização de um enorme pano de rede, de malha apertada, composto por um saco central, o chamado copo, ao qual estavam conectadas as asas, duas longas peças, também em rede, que se estreitavam progressivamente desde o saco até aos extremos, de modo a aumentar a área de actuação do aparelho, e eram rematadas pelos cabos utilizados para puxar as redes para terra. Esta arte podia ser lançada apenas por uma embarcação, movida a remos, que se afastava da praia, deixando preso em terra o chamado cabo de alagem, ligado a uma das asas, descrevendo então uma longa trajectória envolvente, paralela à linha de costa, voltando depois à praia, onde largava o segundo cabo de alagem, já depois de lançadas as redes ao mar. Uma vez concluído este procedimento, as ditas redes podiam ser finalmente aladas, isto é, recolhidas para terra, normalmente à força de braços, com a ajuda dos dois cabos de alagem 185 .

Dependendo das dimensões da arte, o lançamento da xávega podia implicar a utilização adicional de mais duas embarcações de apoio, habitualmente caíques, que desempenhavam as funções de calima, como então se denominava a embarcação que ficava de sentinela, e de enviada, ajudando a transportar as redes e demais cordoagens que formavam o aparelho.

Calcula-se que, em média, o número de tripulantes por xávega, a chamada companha, rondaria os 30 homens, sem contar com o mestre, o contra-mestre e o escrivão 186. Na praia, o número dos envolvidos no alar das redes podia variar bastante, mas empregaria normalmente algumas dezenas de indivíduos, entre homens, mulheres e crianças.

Cada lançamento da xávega podia demorar, em média, entre 3 e 4 horas, desde o arremesso das redes até à recolha do pescado, já na praia. Para além disso, entre lanços, haveria ainda necessidade de reparar, em pleno areal, os panos de rede, em fio de linho, e os cabos de alagem, em regra feitos de esparto, tarefa habitualmente reservada às mulheres dos marítimos.

Pensa-se que, no final do século XVIII, por volta de 1790, se lançariam, no termo de Vila Real de Santo António, entre a foz do Guadiana e a povoação de Cacela, um total de 9 xávegas; mais tarde, na década de 40 do século XIX, esse número seria de 17, e por volta de 1875 ultrapassaria já as duas dezenas 187. Não obstante, é preciso ter em conta que o termo xávega, apesar de usualmente utilizado para designar a aparelhagem necessária ao lançamento da arte, em termos genéricos, pode também ser utilizado para designar especificamente a embarcação utilizada para lançar essa mesma arte.

fig.10. Representação da arte d xávega, e do alar das redes.
Fonte: Hugo CAVACO, Pelas praias de Arenilha e mares de Monte Gordo, 2007, p.85.

fig.11. Embarcação denominada como xávega, e habitualmente utilizada para lançar essa arte.
Fonte: Hugo CAVACO, Pelas praias de Arenilha e mares de Monte Gordo, 2007, p. 67

185) Cf. Miguel CARNEIRO; Rogélia MARTINS; Fernando Rui REBORDÃO, Contribuição para o conhecimento das artes de pesca utilizadas no Algarve, Publicações avulsas do IPIMAR, n.º 13, Lisboa, 2006, p. 41.

186) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António –Urbanismo e Poder…pp. 310 a 314.

187) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve oriental…p.221.

Note-se que, ao mesmo tempo que decorriam as obras de edificação da nova vila, no estaleiro naval instalado a norte da povoação avançava também a construção das embarcações que haviam de constituir a nova frota pesqueira e mercantil, nomeadamente botes, barcas ou xávegas, para a pesca propriamente dita, enviadas, para o transporte dos aparelhos e condução do pescado, e iates e caíques para a sua posterior exportação. Por exemplo, em Outubro de 1774, o desenho-relatório feito por José de Sande de Vasconcelos dá conta da recente construção de trinta e seis novas barcas, vinte e quatro enviadas, seis caíques, num total de sessenta e seis embarcações fabricadas nos estaleiros navais instalados a norte da vila, junto ao Guadiana, às quais se poderiam acrescentar as doze novas barcas que se estavam presentemente executando, e mais dezasseis “barcas velhas”, estas provavelmente trazidas da praia de Monte Gordo.

Uma vez chegado a terra, e separado por canastras, parte do pescado era imediatamente vendido, para ser consumido em fresco. Contudo, a maior porção do pescado capturado tinha de ser “beneficiada”, isto é, submetida a um processo de manipulação, que envolvia necessariamente a salga, com vista à sua conservação e posterior exportação. O sal era, portanto, um elemento absolutamente fundamental para esta actividade. No ano de 1739, por exemplo, já depois da instalação dos catalães, a quantidade de sal expedida para a praia de Monte Gordo, a partir de Castro Marim, foi de 447,5 moios 188. Tendo em conta que a quantidade de sal utilizada no processo de salga da sardinha era de cerca de um alqueire por cada milhar, e que cada moio é equivalente a 60 alqueires, é possível perceber a enorme quantidade de peixe anualmente capturada nesta zona da costa algarvia. Para além disso, convém recordar mais uma vez que nem todo o pescado era salgado, sendo parte dele directamente consumido, ou vendido, em fresco.

Na praia, a sardinha era amanhada, salgada e embarricada no interior dos chamados telheiros, instalações precárias, de madeira, canas e colmo, simples estruturas rectangulares, constituídas por um telhado de duas águas, com cobertura de colmo, firmado sobre estacaria de madeira 189. Todos os anos, durante a temporada da sardinha, que decorria entre os meses de Agosto e Dezembro, os telheiros da praia de Monte Gordo aumentavam expressivamente em número, animados pela chegada de uma multidão de peritos e versados naqueles trabalhos de preparação, salga, e embarricamento da sardinha, homens, mulheres e criança dos termos de Castro Marim, Arenilha e Cacela, mas também da vizinha Andaluzia, que sazonalmente regressavam à praia de Monte Gordo, atraídos pela riqueza piscícola do seu mar.

O primeiro passo no processo de beneficiação da sardinha era a evisceração, isto é, a extracção das vísceras e das guelras, tarefa reservada às mulheres e aos rapazes. Imediatamente a seguir, as sardinhas eram colocadas em água saturada de sal marinho, a chamada salmoura, onde permaneciam durante um período que podia variar entre os oito e os dez dias. Uma vez retiradas da salmoura, as sardinhas eram acondicionadas no interior de barricas, onde se dispunham em círculo, em sucessivas camadas sobrepostas, intercalando cada camada de pescado com uma de sal grosso.

Depois de colocadas no interior das barricas, eram então submetidas à última etapa do processo de beneficiação, e porventura a mais importante, a prensagem, que visava a extracção do excesso de gordura animal ao pescado, com vista a garantir a sua conservação por períodos de tempo mais longos, possibilitando assim a sua exportação para destinos mais longínquos.

O processo de prensagem, descrito por Frei João de Mansilha, em 1773, consistia em comprimir mecanicamente as barricas, completamente repletas de sardinha, com o recurso a uma viga de madeira, munida de pesos, directamente aplicada sobre a tampa das mesmas.

Lentamente, sob a acção deste mecanismo, as sardinhas vertiam a sua gordura natural, que gotejava para uma calha colocada por debaixo da barrica, através de orifícios previamente abertos na base da mesma, e daí para uma caldeira. Este procedimento, que se dava por concluído quando o pescado deixava de largar gordura, podia demorar, em média, quatro dias.

188) Cf. Joaquim Romero MAGALHÃES, O Algarve económico…p. 212.

189) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p.149.

fig.14. Representação esquemática do processo de prensagem da sardinha.
Fonte: José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder na política pombalina, 1997, p. 467.

A técnica de extracção da gordura natural da sardinha foi, na realidade, a grand novidade introduzida pelos catalães na praia de Monte Gordo. De facto, como nos diz o académico Constantino de Lacerda Lobo, nas Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, dadas à estampa em 1812, nomeadamente no capítulo dedicado ao modo como se preparava o pescado na costa algarvia, a única preparação que davam “os nossos portugueses” à sardinha era, logo que esta saía do mar, amontoá-la ao ar livre, e misturá-la arbitrariamente com sal, em pequenas porções, deixando-a repousar, apenas coberta com esteiras, até poder ser expedida “para diferentes lugares do Reino, e fora dele”. Esse não era, porém, o método de salgar sardinha praticado pelos “catalães em Monte Gordo”, já que, como refere o mencionado autor, nessa praia do Sotavento algarvio as sardinhas, depois de amanhadas e embarricadas, “se espremem para lhes separar alguma gordura”, precisamente para que durem “muito tempo em bom estado”190.

Como já foi referido, a necessidade de extrair o excesso de gordura ao pescado tinha como principal objectivo garantir a conservação do pescado por um período de tempo mais extenso, possibilitando assim a sua exportação para lugares mais distantes, uma vez que a sardinha simplesmente salgada, sem mais preparação, rapidamente adquiria uma cor amarelada e um sabor desagradável 191. Para além disso, a gordura animal extraída da sardinha constituía ainda uma fonte adicional de rendimento, já que esta matéria podia ser comercializada como combustível para iluminação. Pensa-se que, grosso modo, por cada quarenta barricas de sardinha seria possível obter uma de gordura prensada, conforme calculado por Clemente Ferreira França, na sua Memória sobre as diversas salgas da sardinha, publicada em 1804 192.

Durante décadas, nas praias da costa de Monte Gordo, a sardinha foi capturada, utilizando a arte xávega, salgada e benfeitorizada, em cabanas de colmo, ou simples telheiros instalados no areal, segundo o processo atrás descrito, e depois exportada, sobretudo para o mercado espanhol, enriquecendo os armadores, proprietários das embarcações e artes utilizadas na pesca, que recebiam a maior fatia dos lucros, mas também garantindo o sustento a centenas, possivelmente milhares, de pessoas, directa ou indirectamente envolvidas nas diferentes fases deste processo. Porém, a partir de 1773, com a decisão de “nacionalizar” a pescaria de Monte Gordo, e principalmente a partir de Agosto de 1774, quando é inaugurada a nova alfândega de Vila Real de Santo António, o pescado, depois de inicialmente descarregado na praia, era novamente colocado em barcas, nomeadamente nas designadas enviadas, embarcações tradicionalmente destinadas ao transporte, e depois conduzidas rio acima, até à nova vila. Nas palavras de José Eduardo Horta Correia, por essa altura “Monte gordo deixava de ser o teatro dos acontecimentos”, enquanto “novo acto iria começar em palco diferente” 193.

190) Constantino de Lacerda LOBO, Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo IV, Real Academia das Ciências, Lisboa, 1812, pp. 254 e 255.

191) Cf. João Baptista da Silva LOPES, Corografia ou memória…p. 105.

192) Cf. Clemente Ferreira FRANÇA, Memória sobre as diversas salgas da sardinha, Lisboa, 1804, p. 16.

193) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p.70.

Este alteração de procedimentos, ditada pelos novos regulamentos decretados pelo Marquês de Pombal, constituía assim um enorme transtorno na rotina dos pescadores, na medida em que não só implicava uma deslocação de algumas léguas, como acabava por inevitavelmente contribuir para a perda de qualidade do pescado. Porém, a partir de 1774, não havia alternativa. De facto, a utilização de um método de captura por arrasto, como era o da xávega, só podia ser praticado num areal litoral, como era a praia de Monte Gordo, e o pescado tinha, obrigatoriamente, que ser conduzido para Vila Real de Santo António, onde se situavam agora a lota e a alfândega, assim como os edifícios das companhias pesqueiras, onde a sardinha poderia ser “industrialmente” processada, utilizando, grosso modo, as técnicas antes praticadas na praia de Monte Gordo, ainda que manifestamente com melhores condições materiais.

Ainda assim, pelo menos do ponto de vista funcional, as técnicas de manipulação e beneficiação da sardinha não se terão alterado significativamente com a transferência dos meios de produção da praia de Monte Gordo para a nova povoação de Vila Real de Santo António. Tudo indica que os métodos tradicionais foram integralmente mantidos durante a transição, não sofrendo quaisquer transtornos com a substituição dos precários telheiros de colmo pelos edifícios das sociedades pesqueiras.

Após a chegada ao porto comercial, frente à alfândega, e uma primeira verificação por parte dos funcionários alfandegários, o pescado era separado, e encaminhado para as diferentes sociedades. Conduzido pela Rua da Rainha, o peixe entrava seguidamente no edifício da respectiva companhia, pelo portão principal, directamente para o pátio, passando pela zona dos escritórios, situados no piso térreo de cada um dos edifícios, para ser submetido a um controle interno. Depois de inspeccionado pelos funcionários da companhia, era então transportado para a zona dos alpendres e das salgas, nas traseiras do edifício.

Uma vez chegado ao pátio interior, espaço definido por um telheiro contínuo em forma de U, directamente acoplado ao edifício principal, composto por uma série de arcarias em alvenaria e, do ponto de vista operacional, certamente comparável aos antigos telheiros da praia de Monte Gordo 194, o pescado era amanhado, salgado, e finalmente acondicionado em barricas. Seguidamente, as pipas com o pescado eram transportadas para o armazém da correspondente companhia, situado no lado oposto da Rua da Princesa, e aí aguardavam a oportunidade de serem comercializadas.

Chegado o momento, percorriam as ditas pipas o caminho até às traseiras do edifício da alfândega, por onde entravam, e onde se procedia à verificação de todas as expedições e ao pagamento das respectivas taxas e impostos, que antecediam o transporte para o cais e, por fim, o embarque nos navios que as haviam de conduzir ao seu destino 195, normalmente iates, ou caíques, 196 embarcações típicas da costa algarvia, munidas de dois mastros com velas latinas, ambas utilizadas em viagens de médio e longo curso.

194) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p.149.

195) Cf. Rui FIGUEIRAS, Vila Pombalina – Vila Real de Santo António, Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, 1999, pp. 126 a 128.

196) Cf. Carminda CAVACO, OAlgarve oriental…p.64.

Porém, não obstante o entusiasmo com que se deu início a esta verdadeira revolução no sector pesqueiro que operava na costa algarvia, a verdade é que, a curto e médio prazo, fruto de uma conjuntura política e económica desfavorável, o negócio da captura e beneficiação da sardinha de Monte Gordo acabaria por não produzir os resultados aguardados por aqueles que em tempos o haviam classificado como um autêntico “tesouro oculto”.

Por volta de 1790, na sua Memória sobre a decadência da Pescaria de Monte Gordo, o académico Constantino de Lacerda Lobo apontaria como uma das causas para o declínio da pesca da sardinha no extremo oriental da costa algarvia precisamente a inadequada situação geográfica de Vila Real de Santo António, aliada à escassez de capital, motivada pela dissolução das Sociedades pesqueiras, e ao desvirtuamento das tradicionais técnicas de preparação da sardinha, em parte provocada pela partida da maior parte dos entendidos na matéria, que se traduziria na inevitável diminuição da qualidade do produto final 197.

Para além disso, podem ainda indicar-se como motivos para o fracasso deste comércio “a insuficiente conquista do mercado interno”198, as dificuldades de penetração no tradicional mercado espanhol e, desde logo, a interrupção da protecção estatal verificada após 1777, com a morte de D. José I, e o imediato afastamento do Marquês de Pombal do panorama político nacional 199. De facto, a maior parte das sociedades pesqueiras, num primeiro momento cativadas pelas medidas propostas por Pombal, acabam por ser dissolvidas pouco tempo depois da fundação da nova vila. No final da década de 70 do século XVIII, apenas as sociedades administradas pelas duas companhias monopolistas, a das Reais Pescarias do Algarve e a do Alto Douro, estavam em condições de operar e lançar as suas barcas, juntamente com o particular José Martins da Luz 200.

O ciclo da sardinha de Monte Gordo, negócio que durante décadas prosperara, engrossando significativamente os cabedais dos seus usufrutuários, parecia ter atingido o seu pico máximo e entrado numa fase de estagnação e acelerado declínio, consequência directa de uma conjuntura económica adversa. Porém, o mar algarvio continuava a ser, ainda e sempre, uma abundante fonte de riqueza e, a curto prazo, novas oportunidades despontariam.

197) Cf. Constantino de Lacerda LOBO, Memória sobre a decadência da Pescaria de Monte Gordo, in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo III, 1791, pp. 351 a 374.

198) Carminda CAVACO, O Algarve oriental…p. 216.

199) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve oriental…pp. 64 e 65.

200) Cf. Constantino de Lacerda LOBO, Memória sobre a…, 1791, pp.364.

fig.15. Desenho-relatório da autoria de José de Sande Vasconcelos, enviado para Lisboa em Outubro de 1774 (pormenor do edifício de uma das sociedades).
Fonte: Hugo CAVACO, Pelas praias de Arenilha e mares de Monte Gordo, 2007, p. 66.

fig.16. Desenho esquemático da articulação entre os edifícios da frente ribeirinha e as salgas.
Fonte: Rui FIGUEIRAS, Vila Pombalina – Vila Real de Santo António, 1999, p.92.

fig.17. Arcarias do tempo da fundação no interior de uma das salgas.
Fonte: José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder na política pombalina, 1997, p. 499.

fig.18. O caíque, embarcação típica da costa algarvia.
Fonte: Carminda CAVACO, O Algarve Oriental – As vilas, o campo e o mar, volume II, 1976, p. 222

4 - O projecto original e o conceito de vila - fábrica

Não obstante os óbvios aspectos simbólicos inerentes à fundação de Vila Real de Santo António e o seu papel como elemento de afirmação da soberania nacional na zona de fronteira, foram sobretudo motivos económicos que estiveram na origem deste singular estabelecimento, no início da década de 70 do século XVIII. De facto, a decisão de fundar uma nova povoação no extremo oriental da região algarvia, criada com o intuito de disciplinar a lucrativa actividade pesqueira levada a cabo nessa zona, pode ser vista como parte do programa de reestruturação económica do Reino, de âmbito bem mais alargado, que assentava na imperativa necessidade de diminuir as importações nacionais e aumentar as exportações, produzindo cada vez mais e melhor. Este autêntico projecto nacional, desde logo estimulado pela acção tutelar do Marquês de Pombal, assentava numa premissa fundamental:

a necessidade de desenvolver as indústrias e o comércio, este último recentemente distinguido como actividade nobre e necessária ao bom desenvolvimento do país.

Somente como consequência desta conjuntura se pode entender o empenho político  promover a proliferação de “novos centros de produção manufactureira”, um pouco por todo o país, de modo a rentabilizar ao máximo as riquezas que cada região tinha a oferecer, e a garantir ao comércio nacional as suas indispensáveis bases de “segurança e de rentabilidade”201. O objectivo de Pombal era estimular o desenvolvimento do incipiente tecido industrial nacional, que efectivamente já existia, mas que se resumia a pequenas unidades de produção de tipo familiar, muito pouco lucrativas, normalmente não especializadas, c produtos de pouca qualidade e de difícil escoamento 202.

É precisamente nesta conjuntura, de promoção da produção nacional e valorização da actividade mercantil, que Pombal decide “nacionalizar” o negócio da sardinha de Monte Gordo, esse autêntico “tesouro oculto”, até então praticamente desconhecido do poder político e das autoridades alfandegárias, em benefício dos armadores catalães instalados nessa praia. Numa primeira fase, de carácter preliminar, o plano de Pombal consiste em substituir os investidores catalães por sociedades de homens de negócio nacionais, transferindo o lucros deste proveitoso negócio para mãos portuguesas. Numa segunda fase, certamente mais ambiciosa, é projectada a nova povoação de Vila Real de Santo António, núcleo urbano genuinamente vocacionado para a indústria da captura e beneficiação do pescado, autêntica “vila-fábrica”, pensada para, do ponto de vista funcional, albergar os meios técnicos e humanos necessários ao desenvolvimento e florescimento dessa tradicional indústria algarvia, até então circunscrita ao areal de Monte Gordo.

201) Joaquim Veríssimo SERRÃO, Marquês de Pombal: o homem e o estadista, in História de Portugal (coordenação de João Medina), volume IX, 2004, p. 226.

202) José Carlos Vilhena MESQUITA, O Marquês de Pombal e o Algarve – A Fábrica de Tapeçarias de Tavira, 1999, p. 19.

Porém, mesmo integrada no âmbito de um plano de recuperação económica nacional, a iniciativa de fundar Vila Real de Santo António continua a ser, a todos os níveis, singular. De facto, enquanto noutras regiões do Reino se criavam novas pequenas unidades industriais, ou se desenvolviam as já existentes, só na região algarvia se conjecturou a hipótese de construir, de raiz, toda uma povoação, pensada para funcionar como uma avantajada unidade manufactureira.

Uma das possíveis explicações para a escala verdadeiramente monumental deste empreendimento, especificamente previsto para o extremo oriental da região algarvia, terá sido a própria natureza do produto final desta indústria. De facto, o pescado, nomeadamente o pescado salgado, e de boa qualidade, era um produto bastante apetecível e facilmente exportável, principalmente para os países de tradição católica, onde os crentes estavam proibidos de consumir carne em determinados dias da semana, criando assim um mercado particularmente rentável. Esta circunstância, aliada à conhecida abundância de sardinha na costa de Monte Gordo, parecia garantir, à partida, o sucesso de tão arrojada iniciativa.

No terreno, as condições eram, de facto, extraordinárias. A matéria-prima, isto é, a sardinha, era abundante e de boa qualidade. A mão-de-obra era também numerosa e altamente especializada. Tudo parecia concorrer para o sucesso deste negócio. Para além disso, a possibilidade de implantar o novo núcleo urbano na margem direita do rio Guadiana, a curta distância da foz, permitiria usufruir dessa via de comunicação e transporte privilegiada, facilitando sobremaneira a chegada de matéria-prima e a exportação do produto final desta indústria.

Do ponto de vista arquitectónico e urbanístico, o projecto de Vila Real compreende essencialmente quatro grandes tipologias, funcionalmente diferenciadas: os edifícios de dois pisos da frente ribeirinha, destinados às sedes administrativas das sociedades; as salgas de peixe e os armazéns, que no seu todo constituíam a zona industrial; as casas “nobres” da praça, de 1º andar; e por fim as restantes casas de habitação, estas exclusivamente construções térreas.

Toda a malha urbana estava pensada em função do conceito da vila-fábrica. Os quarteirões da frente ribeirinha albergavam a “linha de produção”, isto é, os edifícios onde se processava a actividade industrial propriamente dita. A praça, em torno da qual se erguiam os principais edifícios públicos, constituía o verdadeiro centro cívico da vila, apesar de, em termos de hierarquização dos espaços e de impacto urbanístico, ser um espaço em “permanente concorrência” 203 com a frente ribeirinha, disputando o apanágio de se assumir como espaç privilegiado. As casas térreas, autênticos módulos, sistematicamente reproduzidos de modo a formar os quarteirões habitacionais, destinavam-se a albergar condignamente a multidão de trabalhadores. Como excepção à norma, podem referir-se ainda alguns edifícios que, pelas suas funções específicas, não se podem integrar em nenhuma das referidas tipologias, designadamente a Igreja e a fábrica do assento (destinada ao fabrico de pão), as quais cumprem um papel absolutamente fundamental na vivência diária do núcleo urbano. Refira- se ainda o caso específico do edifício da alfândega, funcionalmente o mais indispensável da povoação, e o único a ostentar na sua fachada as Armas de Portugal, cuja diferenciação formal assentava essencialmente em pressupostos simbólicos 204. Não obstante, é curioso verificar que outras construções, à partida também destinadas a funções bastante específicas e que se prendiam igualmente com o exercício do poder real, como sejam os edifícios da Câmara e da Cadeia, o Corpo da Guarda ou ainda os aquartelamentos, não foram arquitectonicamente diferenciados, integrando-se perfeitamente, do ponto de vista formal, em cada um dos quarteirões em que se inserem. Ou seja, para além de princípios estritamente utilitaristas, a vila foi projectada para funcionar como um todo formalmente coerente e lógico.

Como povoação imaginada a partir do nada, liberta portanto de quaisquer constrangimentos ditados por estruturas pré-existentes, e com objectivos funcionais e simbólicos claros e bem definidos à partida, Vila Real assume-se como materialização do antigo modelo da cidade ideal, utopia urbanística de funcionalidade e pragmatismo. Singular exemplo urbanístico de “colonização interna”, a nova povoação, desde logo norteada por princípios genuinamente práticos, como sejam a singeleza formal da arquitectura, a simplicidade dos materiais e a mais elementar funcionalidade, foi pensada como símbolo de afirmação da soberania nacional numa região de fronteira mas, acima de tudo, como pólo de desenvolvimento económico do território no qual estava inserida.

203) José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 125

204) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p.146.

Vila Real de Santo António e o Urbanismo Iluminista

Capítulo III – Andreia Fidalgo

As Sociedades de Pescarias

Os blocos laterais à Alfândega, no quarteirão central, assim como todos os outros quarteirões  da Baixa-Mar, são ocupados pelas Sociedades de Pescarias, que ao todo constituem doze unidades perfeitamente simétricas e se agrupam duas a duas nos quarteirões, sendo que as duas dos extremos norte e sul partilham o seu espaço com os torreões.

Excepto as Sociedades que ladeiam a Alfândega, que têm uma área quadrada de 100/100 palmos, todas as outras unidades têm 120 palmos de largo por 100 de comprimento. Estes edifícios, que cumprem, simultaneamente, duas funções distintas – a habitacional e a industrial – dividem-se também em duas partes distintas, articuladas entre si: um pavilhão rectangular de dois pisos com telhado simples amansardado, virado para o Rio; e um telheiro aberto para o interior, que ocupa a restante área. No interior, cada unidade era constituída por divisões com funções administrativas, localizadas no rés-do-chão, e por divisões destinadas à habitação, no andar superior.

Adequadas a objectivos políticos e económicos, as doze unidades estão tratadas como “casas nobres”, onde, para o efeito, foi aplicado um especial cuidado no tratamento dos vãos.

Cada unidade é composta por sete portas alinhadas com sete janelas de sacada, distribuídas uniformemente com espaçamentos iguais entre si, correspondentes à mesma largura dos vãos (com excepção das duas unidades que ladeiam a Alfândega, de menores dimensões).

Destaca-se a porta central, bastante mais larga que as outras, de verga arredondada e contracurvada nos cantos, com o recorte da moldura ao estilo barroco, que forma conjunto com a janela de sacada em cima, à qual está ligada 240. Estas portas centrais, especialmente nobilitadas no conjunto pelo cuidado decorativo, serviam funcionalmente de entrada para o interior do pátio, com acesso directo à salga, e estavam alinhadas com os dois portões na Rua da Princesa correspondentes à salga e ao armazém. Por servirem funções industriais, encontram-se protegidas por dois moirões que evitavam a degradação das cantarias quando em contacto com os carros de transporte do pescado.

A acentuar, por outro lado, a horizontalidade dos edifícios, salientamos o friso corrido que faz a transição do rés-do-chão para o andar nobre e a cornija comum a todo o quarteirão.

Lateralmente, os quarteirões são rematados por dois cunhais em cantaria, que revestem a forma de pilastra toscana com capitel simulado e base saliente. Entre as duas Sociedades que compõem cada quarteirão não existe qualquer divisão, excepto no corta-fogo de separação das coberturas.

No que respeita às fachadas laterais das Sociedades, são rematadas por pilastras e compostas por duas janelas de peitoril alinhadas verticalmente e de diferentes proporções, o que ajuda a sublinhar a importância e valor cénico da fachada principal. Isto porque, analisando ao pormenor, a verga das duas janelas do rés-do-chão alinha-se, não pelas vergas do mesmo edifício, mas pelas demais existentes nos edifícios das ruas perpendiculares à Rua da Rainha, integrando-se, desta forma, na escala dos edifícios térreos.

A outra parte que compõe o conjunto das Sociedades, as salgas, é constituída, essencialmente, por um telheiro em forma de U que assenta exteriormente sobre três paredes e interiormente sobre três séries de arcadas. Forma, portanto, um pátio interior destinado à salga da sardinha, muito possivelmente inspirado nos primitivos telheiros de Monte Gordo 241.

As Sociedades de Pescarias incorporam, portanto, um conjunto de funções – habitacionais, administrativas, comerciais e industriais – das quais resulta a síntese entre duas tipologias muito diferentes, senão opostas: por um lado, a casa nobre, “descendente do velho solar seiscentista português”242 e, por outro lado, o complexo industrial constituído pelos telheiros em forma de U, inspirados nos telheiros dos catalães em Monto Gordo. Estas duas parte articulam-se na perfeição, cumprindo evidentemente a sua funcionalidade. Pela porta principal entravam os carros de transporte do peixe, passando pelos “escritórios” onde todo o processo era registado, em direcção ao pátio onde era descarregado; debaixo dos telheiros, o peixe sofria as transformações da salga e, depois de devidamente acamado em barricas de sal, seguia pelo portão que dava para a rua da Rainha para outro portão simétrico no lado oposto da rua, correspondente ao respectivo armazém onde ficava a aguardar escoamento.

240) Segundo Horta Correia, “este conjunto portal-varanda lembra o sistema projectado por Mardel para o Rossio e adoptado em determinadas zonas da cidade, como até certo ponto pode lembrar os conselhos de Manuel da Maia de adicionar portais cuidados para a obtenção de casas nobres”, in Vila Real de Santo António, Urbanismo e Poder…, pp. 147-148.

241) Cf. Idem, Ibidem, p. 149.

242) Idem, Ibidem, p. 150.

fig.6. Foto antiga que mostra parte do bloco central da Baixa-Mar, com a Alfândega ladeada das Sociedades de Pescarias.
Fonte: Colecção de postais: Aspectos Antigos de Vila Real de Santo António, postal nº2.

fig.7. Foto antiga da Avenida da República onde se destaca o edifício da Alfândega ladeado das Sociedades de Pescarias. 
Fonte: Rui FIGUEIRAS, Vila Pombalina – Vila Real de Santo António, 1999, p.31.

fig.8. Alçado de um quarteirão-tipo da Baixa-Mar, assinado pelo Marquês de Pombal.
Fonte: José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder… p. 494.

As Sociedades de Pescarias

Os armazéns, localizados na Rua da Princesa e fronteiros às salgas correspondentes, são muito semelhantes a estas em termos de estrutura interna e fachada. São compostos por um telheiro suportado por uma arcaria orientada perpendicularmente à fachada, que se abre sobre um pátio que aqui é de menores dimensões que nas salgas, pois partilha o espaço com metade do quarteirão que deita para a Rua do Príncipe e que é composto por habitação com o respectivo quintal. No telhado, as mansardas evidenciam a utilização como sótão.

As fachadas dos armazéns são rigorosamente iguais às das salgas, compostas por cinco vãos: um portão central alinhado com o portão da salga e, consequentemente, com a porta principal da Sociedade, ladeado por duas janelas equidistantes.

fig.18. Foto antiga da Rua da Princesa, do primeiro quartel do século XX.
Fonte: Vila Real de Santo António, Cidade de Suaves Mutações – Um Século de Fotografias, p. 49.

Entre o Guadiana e o Mar: desenvolvimento económico

Capítulo IV _ Andreia Fidalgo _ Márcia Luísa Grilo _ Marco de Sousa Santos

A extinção da Companhia das Reais Pescarias do Reino do Algarve e o fomento das actividades pesqueiras no contexto da política liberal.

Márcia Luísa Grilo

A Companhia das Reais Pescarias do Reino do Algarve 285 foi criada pelo Marquês de Pombal em 1773 com o objectivo de promover e desenvolver uma das mais rentáveis actividades económicas do Algarve, mas que na altura estava em decadência: a pesca. Tendo de início um considerável surto através do restabelecimento da prosperidade da actividade pesqueira, em breve a Companhia começou a evidenciar sinais de quebra, desde logo com a morte de D. José em 1777 e o consecutivo afastamento de Pombal do Governo, desmotivando assim o propósito restaurador das pescas no Algarve.

Após Pombal, várias medidas foram tomadas no sentido de estimular a pesca e o comércio de peixe, nomeadamente o alvará de D. Maria I datado de 18 de Junho de 1787, no qual todo o atum salgado foi isento de direitos por um período de dez anos. Esta isenção prolongou-se através de um decreto de 30 de Março de 1797 e alvarás de 1805 e 1825. Outra lei favorável foi o alvará de 3 de Maio de 1802, que concedeu liberdade de pesca no alto mar e no litoral, livre de direitos 286. No entanto, estas medidas não se revelaram tão frutíferas quanto se desejava, dada a existência de outro factor externo que impossibilitava o conveniente desenvolvimento das pescas no Algarve: a secular pirataria que infestava as costas algarvias, envolvendo os pescadores num clima de receio e hesitação 287. Neste contexto, Vila Real de Santo António, povoação essencialmente voltada para a pesca, acabou também por se ressentir economicamente nos inícios do séc. XIX.

Entretanto, com o advento das políticas liberais e as facilidades que estas vieram a promover, a actividade pesqueira conheceu um novo desenvolvimento. A 6 de Novembro de 1830 foi promulgado um decreto que aboliu todos os impostos cobrados ao pescado, permitiu a livre circulação do mesmo pelo reino ou para o estrangeiro, concedeu liberdade de pesca em qualquer aparelho usado para o exercício da mesma, acabou com todos os monopólios, privilégios ou direitos concedidos a entidades exploradoras da actividade piscícola, e em substituição destas liberdades criou um “módico”288 imposto de 3000 réis anuais sobre cada embarcação. Para além disto, ficaram os portugueses autorizados a formar sociedades de pescarias que investissem e dessem um novo alento ao sector pesqueiro. 289

É neste contexto que, em 1835, surge a Companhia de Pescarias Lisbonense, interessada na pesca da baleia, do bacalhau e da pescada, mas também na do atum e da sardinha capturados nas costas do Algarve. Esta, por sua vez deu origem a outra sociedade, a Companhia das Pescarias do Algarve, igualmente fundada no ano de 1835 e reservada a algarvios, sucedendo-lhe outras nesta região 290. Entretanto, a Companhia das Reais Pescarias do Reino do Algarve acabou por se extinguir pouco tempo depois, em 1836, não conseguindo suportar o peso da concorrência.

Igualmente importante para a reanimação da actividade pesqueira no Algarve foi a repressão da pirataria. Argel, um dos principais centros da pirataria mourisca, foi finalmente submetida pelos franceses em 1830, e alguns anos depois a prática do corso foi abolida pelo Congresso de Paris de 1856. Entretanto, a dinamização da navegação a vapor, fruto da Revolução Industrial e iniciada por ingleses nos finais do século XVIII, permitiu um melhor policiamento dos mares 291, tornando-os mais seguros a quem neles transitasse ou pescasse.

A liberdade de pesca promovida pela legislação liberal, a criação de novas empresas e sociedades pesqueiras que investiram no sector, e a conquista da segurança nos mares, foram factores determinantes para o desenvolvimento da actividade pesqueira. Tiveram como consequência o aperfeiçoamento das armações de atum e de outras artes de pesca, a multiplicação de xávegas na costa entre Cacela e a Ponta da Areia resultante de um maior investimento na pesca da sardinha 292, aumentando a capacidade em se empregar um maior número de pescadores e marítimos nas artes e nas frotas, e desenvolvendo a diversificação profissional ligada à actividade pesqueira. A abundância das capturas daí decorrente e uma maior quantidade de preparados de peixe (fresco, salgado, fumado, ou em escabeche) 293 dinamizou o comércio deste rico recurso marítimo, atraiu diversos investidores e empresários estrangeiros, e suscitou o forte desenvolvimento económico de alguns centros piscatórios, entre os quais Vila Real de Santo António, que chegou a adquirir o estatuto de mais importante deste género no Algarve, abrindo o caminho à moderna indústria conserveira em Portugal.

Mas deveu-o sobretudo à fácil acessibilidade e importante posição geográfica do seu porto.

285) Veja-se Capítulo II, A importância da actividade pesqueira para a fundação de Vila Real de Santo António.

286) Cf. António Miguel GALVÃO, Um século de história da Companhia das Pescarias do Algarve. Elementos para o estudo da pesca do atum na costa do Algarve. Sua evolução histórico jurídica, 1953, pp. 51-52.

287) “Não havia confiança nem garantia na colocação das armações do atum no mar, pois os piratas marroquinos levavam as redes e as âncoras e os próprios barcos, quando não os queimavam.” Idem, ibidem, p. 55.

288) João Baptista da Silva LOPES, Corografia ou memória económica…, vol. 1, 1988, p. 78.

289) Cf. António Miguel GALVÃO, Um século de história da Companhia…, 1953, p. 54.

290) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental…, vol. 2, 1976, pp. 218-219.

291) “Na marinha portuguesa os vapores «Napier» e «Terceira», antigos vapores mercantes ingleses, adquiridos em 1833, foram os primeiros navios que assinalaram o início da adaptação da propulsão a vapor”, António Miguel GALVÃO, Um século de história da Companhia…, 1953, nota 2, p. 56.

292) Embora as armações de sardinha tivessem surgido e difundindo-se por toda a costa algarvia a partir do último quartel do século XIX, as mesmas não conheceram grande proliferação no Sotavento algarvio, onde permaneceram as xávegas que se revelaram mais lucrativas, pois os fundos baixos e arenosos que caracterizam o mar entre Cacela e a foz do Guadiana oferecem condições naturais propícias à execução deste tipo de arte. Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental…, vol. 2, 1976, pp. 224-225 e 228-229

293) Cf. João Baptista da Silva LOPES, Corografia ou memória económica…, vol. 1, 1988, pp. 95-98.

A importância do porto para a dinamização de Vila Real de Santo António

Márcia Luísa Grilo

Desde a época da sua fundação que Vila Real de Santo António foi um importante entreposto comercial devido à estratégica localização do seu porto. Localizado perto da foz de um rio navegável e possuindo óptimas condições de acesso (superiores à de qualquer outro porto do Sotavento) 294, admitia embarcações de grande calado 295 que possuíam capacidade de transporte de uma avultada quantidade de espécies piscícolas, permitindo também um fácil escoamento das mercadorias para as regiões do interior, bem como para fora do Reino. Daí o considerável movimento comercial que por aqui se processava 296.

Por estes motivos, e tendo em conta o incremento dado às pescarias no século XIX, não surpreende que Vila Real de Santo António se tivesse afirmado, na segunda metade desse século, como a mais importante lota de venda do atum capturado nas armações do oriente algarvio, sendo também uma importante lota de sardinha 297, o que levou a que se tornasse num dos maiores centros produtores e exportadores de preparados piscícolas.

Para além das boas condições promovidas pelo porto, há que ter em conta outro factor que determinou Vila Real de Santo António como importante centro de venda de peixe: o de ter a Espanha por vizinha, onde Ayamonte e a Ilha Cristina detinham um mercado de peixe bastante activo e com uma importante indústria de salga de peixe fresco. No decurso do século XIX, o país vizinho foi o maior consumidor dos recursos piscícolas portugueses. O florescimento da actividade pesqueira em Portugal como consequência da legislação liberal, bem como a permissão do governo espanhol em se importar peixe fresco, dada no ano de 1839, contribuíram para tal. Por exemplo, no ano de 1870, 84% das exportações totais do peixe de Portugal destinaram-se ao mercado espanhol, entre as quais 23,8% correspondiam ao atum e 52,7% à sardinha, tomados nos mares portugueses 298.

Além da dependência do consumo da população de Espanha (o que valoriza a existência de uma lota próxima a este país), o comércio e o negócio do peixe fresco em Vila Real era também controlado por muitos espanhóis de Ayamonte que o levavam para a sua terra a partir do porto vila-realense, o que em tudo contribuiu para o crescimento da sua importância. Já em 1841, segundo Silva Lopes, havia em Vila Real de Santo António oito fábricas para o preparo da sardinha, que seria exportada para outros países e outras três para os “barrilinhos de enxoveta 299 que se exportam para a Itália”300.

Entretanto, a moderna indústria das conservas de peixe (por oposição à tradicional conservação em salga, em que o peixe era depois acondicionado em pipas ou barricas para ser comercializado) ia-se desenvolvendo nalguns países da Europa, através da aplicação do método desenvolvido por Nicolas François Appert, que consiste na preservação de alimentos em recipientes hermeticamente fechados 301. Na Bretanha, o método Appert foi aplicado com sucesso às conservas de sardinha e em breve chegou a Portugal.

Vila Real de Santo António, a mais importante lota de atum do Sotavento algarvio, possibilitada pelas condições do seu porto acima descritas, foi o sítio privilegiado para a instalação da primeira fábrica portuguesa de conservas desta espécie em azeite, fundada no ano de 1879 e por iniciativa do genovês Ângelo Parodi. A ele, seguir-se-iam outros industriais conserveiros, de diversas nacionalidades (espanhóis, italianos, gregos), que tornariam a vila pombalina no principal núcleo industrial algarvio produtor e exportador de conservas de atum dos finais do século XIX e inícios do seguinte.

294) Carminda CAVACO, O Algarve Oriental…, vol. 2, 1976, p. 256.

295) João Baptista da Silva LOPES Corografia ou memória económica… vol. 1, 1988, pp. 381-382.

296) Sobre a actividade comercial processada no Baixo Guadiana, veja-se o Capítulo I, Na margem direita do Guadiana face a Espanha.

297) Vila Real de Santo António era o principal centro para onde convergia  atum pescado no Sotavento algarvio, no entanto, era a sardinha a espécie mais pescada nos mares do seu termo, nomeadamente nas costas de Monte Gordo.

298) Carminda CAVACO, O Algarve Oriental…, vol. 2, 1976, pp. 222.

299) “Enxoveta”, hoje conhecida por “anchova”, é um peixe da família do biqueirão.

300) João Baptista da Silva LOPES, Corografia ou memória económica…, vol. 1, 1988, pp. 384.

301) Nicolas Appert (1749-1841), cozinheiro francês, desenvolveu uma das mais importantes invenções da época contemporânea: a conservação duradoura de alimentos em frascos de vidro hermeticamente fechados. Tal ideia partiu da suposição, na altura, de que a exposição ao ar estragava os alimentos, pelo que a solução para os conservar seria colocá-los em recipientes que vedassem a entrada do ar, seguidamente aquecidos e água a ferver durante algum tempo.

Sem o saber explicar, a verdade é que o método de Appert resultou, tendo sido um verdadeiro sucesso entre as tropas napoleónicas, o que lhe valeu a atribuição de um prémio de 12 mil francos por Napoleão Bonaparte, em 1809. Em 1810 a “appertização” já se tinha estendido à Bretanha, onde os frágeis frascos de vidro foram substituídos, em 1825, por embalagens feitas de folhas de flandres, adquirindo o actual aspecto de lata de conserva. Mais tarde, em 1846, Pasteur concluiu que o que preservava os alimentos não era propriamente o facto de não estarem expostos ao ar, mas sim, a submissão dos recipientes a altas temperaturas, eliminando os micro-organismos responsáveis pela decomposição.

fig.11. Foto antiga que revela o grande movimento de barcos no Rio Guadiana.
Fonte: Colecção de postais: Aspectos
Antigos de Vila Real de Santo
António, postal nº12.

A moderna indústria Conserveira em Vila Real de Santo António: aspectos Socio Económicos

Márcia Luísa Grilo

Privilegiada pelas óptimas condições do seu porto em relação a outros do Sotavento algarvio que aqui possibilitaram a existência de uma grande lota de atum, Vila Real de Santo António possuía ainda vastos incultos arenosos propícios à instalação de edifícios fabris, tendo sido, por isso, um dos sítios escolhidos pelos empresários conserveiros para a instalação das suas fábricas.

Assim, e por iniciativa do genovês Ângelo Parodi, é ali fundada a fábrica de Santa Maria 302, em 1879. A ela seguiu-se, no ano seguinte, a fábrica S. Francisco do industrial espanhol Francisco Rodrigues Tenório, também ela dedicada à conserva de atum em escabeche.

Em 1881, outro industrial italiano de nome Migoni fundou também a sua fábrica de conservas de atum (adquirida por Ângelo Parodi em 1886). 303

A partir de 1884 surgiram outras fábricas, S. Sebastião (fundada pelo andaluz Sebastian Ramírez) 304, Esperança, Peninsular e Guadiana.

Não tardou que nestes complexos industriais também se começassem a produzir conservas de sardinha, às quais se seguiram a do biqueirão e da cavala, embora de menor importância.

Rápido foi o crescimento da indústria conserveira em Vila Real de Santo António. Numa acta datada de 16 de Novembro de 1889, na qual se solicita a demolição do Medo Alto 305, podemos ler o seguinte:

“As construcções recentes de fabricas de salga e preparação de peixe e de outros edificios para depositos de mercadorias e para habitações, a partir dos antigos limites e á beira do rio, prolongando-se na linha do sul até muito alem da dita fortalesa, teem augmentado consideravelmente n’estes ultimos annos, e já fo pedida auctorisação para a edificação, pode-se dizer, d’uma nova povoação ao sul da mesma fortaleza em continuação das novas construccções.”306. Outras informações são-nos fornecidas por este documento. A primeira, é que as fábricas fizeram por se inserir no traçado pombalino, na continuidade da Rua da Rainha; a seguinte, o facto de as mesmas se terem instalado na zona ribeirinha, tanto a Norte como a Sul da vila, em perfeita conexão com o rio Guadiana, a ele ligadas pelos seus cais de desembarque privados 307. A localização destes novos complexos industriais foi, em termos práticos, de grande importância para o aumento da produção conserveira, dada a sua proximidade da matéria-prima, permitindo um fácil e rápido abastecimento das unidades fabris. O que, aliás, se insere na continuidade de uma lógica que vinha já dos tempos do Marquês, porquanto foi na Baixa-Mar que se instalaram as Sociedades das Pescarias e as antigas oficinas de salmoura 308.

Esta mesma acta ainda nos dá conta do grande incremento económico proporcionado pelas fábricas: “Este augmento progressivo e realmente extraordinario da povoação e das suas industrias, tem dado uma grande importancia commercial, industrial e maritima a esta Villa, uma das mais florescentes do paiz e assás notavel, não só pela sua regular construcção, mas tambem pelo seu vasto porto quasi na foz do Guadiana e pela sua posição limitrophe de povoações do reino visinho, com quem mantem relações commerciais da mais alta importancia”309. No entanto, a Espanha importava o peixe fresco com sal, em vez da conserva 310, visto nesse país também existirem fábricas destinadas ao enlatamento do mesmo.

Embora Ataíde Oliveira, na sua Monografia do Concelho de Vila Real de Santo António datada de 1908, nos faça referência às fábricas de conservas existentes, que ao seu tempo seriam seis 311, Carminda Cavaco refere que a par das mesmas existiriam ainda outras indústrias complementares à conserveira, como as destinadas à extracção do azeite de peixe 312, à construção naval, no caso dos estaleiros destinados à construção e reparação de embarcações usadas na pesca e navegação costeira 313, acrescentando a indústria salineira 314 e ainda as carpintarias onde eram também fabricadas as caixas para acondicionamento das latas de conserva destinadas à exportação 315.

A autora sublinha ainda as indústrias subsidiárias àquela, como as litografias (oficinas onde se procedia à impressão do desenho das folhas-de-flandres 316) e as latoarias (oficinas destinadas ao fabrico das latas de conserva). As litografias podiam ser anexas às fábricas, quando estas eram grandes e importantes. É o caso da fábrica Parodi, que possuía uma. Existiam também as independentes, em Vila Real, às quais recorriam os industriais que não tinham como suportar uma secção deste tipo na sua fábrica, fosse por falta de capital, ou simplesmente por tal não se justificar, caso a produção de conservas não fosse muito avultada. O mesmo sucedia com as latoarias, também denominadas oficinas de “vazio”, todas as fábricas tinham uma. Oficinas de fabrico de chaves, bem como de preparação dos óleos, também eram subsidiárias às fábricas.

302) Esta veio a ser conhecida por fábrica Parodi.

303) Segundo um relatório datado de 30 de Outubro de 1881 elaborado pelos delegados da Comissão Central Directora do Inquérito Industrial desse mesmo ano no Distrito de Faro, “há em Vila Real três fábricas de conservas de atum, uma intitulada de Santa Maria, outra de S. Francisco e a de que é proprietário Sebastião Migoni (…). A primeira fábrica que visitámos, denominada Santa Maria e pertencente a “Parodi & Roldan”, foi fundada em 1879 (…). Visitamos depois a fábrica denominada S. Francisco, de quem é proprietário Francisco Rodrigues Tenório, que a fundou em 1880 (…). Não pudemos visitar a fábrica de Sebastião Migoni por este estar ausente (…)”, BNL Inquérito Industrial 1881 vol. 3º (F 7937), Concelho de Vila Real de Santo António. Citação extraída de António Horta CORREIA, Sebastian Ramírez (1828-1900). Subsídio documental para uma biografia, 2008, p. 27.

304) Para uma interessante biografia deste empresário conserveiro, veja-se a obra acima citada.

305) O Medo Alto era uma grande duna de areia em frente à fábrica Parodi, localizada a Sul da Rua da Rainha (actual Avenida da República), a qual era encimada por um mirante (daí que também fosse conhecido por Cerro do Mirante) que tinha por objectivo a observação do tráfego marítimo e fluvial, mas que à data se encontrava degradado.

306) Acta de 16.11.1889, in Arquivo Histórico Municipal de Vila Real de Santo António (A.H.M.V.R.S.A.), publicado por Hugo CAVACO, Pelas praias de Arenilha e mares de Monte Gordo, 2007, pp. 74-75. cada unidade fabril procurou ter o seu cais privativo, lugar onde aportavam as embarcações com o pescado, uma espécie de cordão umbilical entre a unidade de conservas e o rio Guadiana”. Jorge CUSTóDIO, “A indústria conserveira vila-realense: um caso peculiar de urbanização industrial e de património” in Monumentos nº 30, 2010.

308) Cf. idem, ibidem.

309) Idem, ibidem.

310) Em 1907, Vila Real de Santo António exportou atum fresco com sal para a Espanha, num valor de cerca de 58 contos e 300, enquanto a sardinha fresca com sal para este país terá chegado perto dos 159 contos. Cf. o quadro elaborado por Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do Concelho de Vila Real de Santo António, 1999, p. 172.

311) Idem, ibidem, p. 176.

312) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental…, vol. 2, 1976, p. 300.

313) Idem, ibidem, p. 325 e 327.

314) Idem, ibidem, p. 335.

315) Idem, ibidem, p. 226.

316) Folha de ferro estanhado, empregada no fabrico de numerosos utensílios domésticos, e também no das latas de conservas

fig.1. Chaminé da fábrica de Ângelo Parodi, Santa Maria, onde se vê inscrito o ano da sua fundação: 1879.
Fonte: Hugo CAVACO, Reflexos do passado em retratos do presente (contributos para o estudo da história vila-realense), 1997, p. 74.

fig1ChaminedafabricaAngeloPArodi

fig.2. Vista da frente ribeirinha de Vila Real de Santo António, onde se vêm algumas fábricas inseridas na continuidade do traçado pombalino.
Fonte: Colecção de postais: Aspectos Antigos de Vila Real de Santo António, postal nº 8.

fig.3. Diversos cais na margem do Guadiana. Inícios do séc. XX.
Fonte: Vila Real de Santo António. Cidade de suaves mutações. Um século de fotografias, s/d., p. 22.

fig.4. Estaleiros navais, barcos de pesca e um cais, frente à actual Avenida da República. Anos 30-40 do século XX. 
Fonte: Vila Real de Santo António. Cidade de suaves mutações. Um século de fotografias, s/d., p. 29.

fig.5. Litografia da fábrica “Parodi” em construção.
Fonte: Colecção de fotografias: Vila Real
de Santo António – uma visão fotográfica
do passado.

fig.6. Litografia de uma fábrica de conservas em Vila Real de Santo António. Anos 30-40 do século XX.
Fonte: Vila Real de Santo António. Cidade de suaves mutações. Um século de fotografias, s/d., p. 36.

fig.7. Oficina de “vazio” numa das fábricas de conserva de Vila Real de Santo António.
Fonte: Colecção de postais: Aspectos Antigos de Vila Real de Santo António, postal nº 21.

Tamanha actividade requeria um grande número e variedade de mão-de-obra, principalmente nas fábricas de conservas onde eram efectuadas as mais diversas tarefas. Os homens obtinham os salários mais altos e dedicavam-se às tarefas mais pesadas, como as de transporte ou carregamento, mas também às especializadas, como as de descabeçeador de atum, ronqueador 317, cortador 318, mestre de salmoura e cozedor, todas elas relacionadas com o trabalho desta espécie piscícola, e ainda a de soldador, este último ofício fazendo parte da “aristocracia operária”319. Por outro lado, e a par das crianças, eram as mulheres quem auferia dos salários mais baixos, apesar de constituírem o grosso do operariado.

Eram elas que preparavam a sardinha (descabeçar, engrelhar 320, tirar a espinha, limpar), procediam ao enlatamento da mesma e do atum, azeitavam as latas e verificavam-nas no final do processo.

Toda esta realidade gerou um grande movimento e dinamismo humano em Vila Real de Santo António, verdadeira cidade industrial, bem como o seu desenvolvimento económico, traduzido, por exemplo, nas mansões das famílias industriais que enriqueciam com a actividade conserveira, como é o caso da habitação da família Parodi, na Avenida da República (actual Conservatório da cidade).

A actividade comercial era cada vez maior, gerada pelas grandes quantidades de conservas que eram exportadas para a Itália, o principal mercado das de atum, bem como para outros países da Europa, nomeadamente a Alemanha, Bélgica, Inglaterra e França (estes últimos preferiam, ao contrário de Itália, as conservas de sardinha) 321, mas também para a América e colónias portuguesas 322.

Com o desencadear da I Guerra Mundial iniciou-se o período áureo da indústria conserveira por todo o país 323, em que a necessidade de abastecer as tropas levou a um aumento exponencial da exportação das conservas. Vila Real de Santo António contou, nesta época, com oito fábricas de conserva de peixe e 1349 operários, sendo o terceiro centro conserveiro algarvio em número de fábricas e o segundo em número de operários 324. Em 1934 já existiam naquela vila treze unidades industriais 325, mas as dificuldades começaram a fazer-se sentir pouco antes da II Guerra, devido à quebra na procura de conservas de atum por parte do seu mais importante mercado, a Itália 326. Embora neste período tivesse havido uma melhoria na produção e expansão das mesmas, a actividade conserveira vilarealense começou a decair após o conflito, nomeadamente a partir da segunda metade do século XX 327, em consequência de uma menor procura dos mercados estrangeiros e de uma grande escassez de capturas de sardinha 328. Era o começo do fim de uma “epopeia” 329.

Actualmente, pouco nos resta do património industrial conserveiro de Vila Real de Santo António. O abandono a que foi votado, por parte das autoridades vila-realenses, poderá levar à extinção de uma memória colectiva, à perda de uma identidade. Um dos momentos áureos e de maior importância histórica de Vila Real de Santo António foi precisamente o do florescimento e desenvolvimento da sua indústria conserveira, e hoje, importa perpetuar esse valor para as gerações seguintes. A descoberta de nova documentação e futuras investigações no âmbito da História da Indústria Conserveira vila-realense serão importantes contributos para a salvaguarda da memória e identidade colectiva, histórica, e cultural, da urbe.

317) Encarregado de esquartejar o atum, dividindo-o em quatro peças.

318) Encarregado de cortar estas quatro peças em postas.

319) Joaquim Manuel Vieira RODRIGUES, “Produção capitalista e organização do trabalho”, in O Algarve da Antiguidade…, 1999, p.399.

320) Acto de colocar as sardinhas na grelha para depois serem cozidas.

321) No ano de 1907 exportaram-se para Itália, a partir da Alfândega de Vila Real de Santo António, conservas de atum no valor aproximado de 212 contos de réis, seguindo-se a Bélgica, no valor de quase 3 contos.

No entanto, quanto às conservas de sardinha, o mercado alemão foi o maior importador das mesmas, chegando aos 283 contos. Neste mesmo ano, foi a França quem menos consumiu a sardinha em conserva, num valor de cerca de 29 contos de réis. Cf. o quadro elaborado por Francisco Xavier de Ataíde de OLIVEIRA, Monografia do Concelho…, 1999, p. 172.

322) Joaquim Manuel Vieira RODRIGUES, “Vila Real de Santo António…”, in O Algarve da Antiguidade…, 1999, p. 419.

323) “De facto, a indústria de conservas na conjuntura da guerra conheceu uma fase expansiva, o seu verdadeiro take off, traduzida no aumento do número de fábricas e de operários (…)”,Joaquim Manuel Vieira RODRIGUES, “Produção capitalista…”, in O Algarve da Antiguidade…, 1999, p. 401.

324) Idem, “Vila Real de Santo António…”, in O Algarve da Antiguidade…, 1999, p. 420.

325) Idem, ibidem, p. 421.

326) Idem, ibidem, p. 421.

327) José Alexandre PIRES, “A indústria conserveira em V.R.S.A.”, in Revista VRSA, nº1, 2008, p. 58.

328) Joaquim Manuel Vieira RODRIGUES, “Produção capitalista…”, in O Algarve da Antiguidade…, 1999, p. 402.

329) José Alexandre PIRES, “A indústria conserveira em V.R.S.A.”, in Revista VRSA, nº1, 2008, p. 58.

fig.8. O “trabalho infantil” numa fábrica de Vila Real de Santo António. Anos 20 do século XX.
Fonte: Vila Real de Santo António. Cidade de suaves mutações. Um século de fotografias, s/d., p. 36.

fig.9. Operárias conserveiras na preparação do peixe.
Fonte: A Indústria Conserveira em Vila Real de Santo António, catálogo da exposição temática do A.H.M.V.R.S.A., 2007, p. 12.

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