(2) A indústria conserveira em Setúbal - Memória e Identidades Profissionais - Reprodução de Sistemas Sócio-Técnicos

A indústria conserveira em Setúbal – Memória e Identidades Profissionais – Reprodução de Sistemas Sócio-Técnicos (2)

A indústria conserveira em Setúbal

Etapas, caracterização e geografia

A implantação da industria de conservas de peixe em Setúbal, decorre da sua localização geográfica e do desenvolvimento de uma forte economia marítima. No centro histórico de Setúbal são visíveis os vestígios de um importante complexo industrial de preparados de peixe, datado do ultimo quartel do séc. I d.C.. Nesta época os produtos fabricados eram basicamente dois: as conservas de peixe em sal (salsamenta) que utilizavam os lombos da cavala, sardinha e do atum, macerados em tanques (cetárias) de grandes dimensões: e os molhos, caldos e condimentos designados por liquamen, garum, hallec e muria, obtidos a partir das vísceras, guelras, ovas de peixes e mariscos temperados com sal e ervas aromáticas, mantidos em repouso dentro de pequenos tanques até atingir a consistência necessária.9

9 Gonçalves, Luís Jorge; A industria conserveira em Setúbal – Câmara Municipal de Setúbal; pág. 4 Setúbal 1996.

As actividades paralelas ligadas à industria de preparados de pescado desta época eram as olarias para fabrico de ânforas, pesos de rede e louças, pequenos estaleiros e oficinas destinados ao fabrico de redes, à extracção do sal e a todo o tipo de actividades ligadas à pesca. Com a queda do império romano do Ocidente e a extinção das rotas comerciais, as instalações industriais desta época foram abandonadas, mas os processos tradicionais de conservação do pescado, através da salga, secagem e fumagem foram retomados em diferentes épocas com relevo para os períodos áureos da expansão marítima (dos secs. XIV a XVI),. Estes processos permitiam prolongar a duração dos alimentos, mas não destruíam totalmente os microorganismos. A descoberta do processo de esterilização em vasos fechados (inicialmente de vidro), feita pelo cozinheiro francês Nicolas Appert em finais do séc. XVIII, veio revolucionar o sistema de conservação de víveres lançando as bases da moderna industria de conservas.

Na primeira metade do séc. XIX Setúbal acolheu as primeiras unidades fabris, fundadas por industriais catalães, baseadas nos métodos tradicionais da salga e prensagem (estiva). O processo de esterilização começa a ganhar vantagem, em Setúbal, a partir de 1855, com instalação das primeiras fábricas fundadas pelos Setubalenses Feliciano António da Rocha e Manuel José Neto. Esta data constitui um marco na história da industrialização em Setúbal.10

10 Afonso Alho, Albérico e Baptista Mouro, Carlos Mouro; A industria conserveira em Setúbal – Câmara Municipal de Setúbal; pág. 12 Setúbal 1996.

As conservas de peixe em azeite resultantes da produção destas fábricas foram distinguidas em 1855 com uma menção honrosa na exposição Internacional de Paris e em 1862 em Londres.

Inicia-se então a primeira fase da industrialização, marcada por uma forte dependência dos recursos marítimos, a pesca, o sal e o consequente desenvolvimento de industrias subsidiárias, latoaria, litografia e mecânica para fabrico das embalagens (latas) e maquinaria. Esta primeira fase caracteriza-se por ser um modelo monoindustrial edificado, em torno da industria conserveira que absorvia quase a totalidade a mão-de-obra disponível.

Em 1912, segundo dados do Boletim da Associação Comercial e Industrial de Setúbal (n.º 1), a população da cidade rondava os 30346 habitantes, trabalhando na industria conserveira cerca de 10%, sendo a maioria mulheres.

Nesta data existiam em Setúbal 42 das 106 fábricas em laboração no país. O mesmo boletim refere que uma fábrica em França não ultrapassava, na produção de um ano, 9000 caixas de 100 latas por unidade, enquanto que muitas fábricas Setubalenses produziam 30.000, 40.000 e até 50.000 caixas com o mesmo número de latas.

Após a implantação da república o operariado Setubalense assumiu um papel de vanguarda na luta pelos direitos dos trabalhadores. Os anos de 1910 e 1911 foram de crescente agitação social e de greves de operárias e operários conservarias, por melhores salários e diminuição do horário de trabalho. A promulgação em Dezembro de 1910 da lei da greve por Brito Camacho, foi prontamente contestada, porque a par do reconhecimento do direito à greve por parte dos trabalhadores, dava ao patronato a arma do lock-out.

Entre Fevereiro e Abril de 1911 registou-se um período de grande perturbação social com consequências dramáticas devido à morte de dois operários (um homem e uma mulher), pelas forças da ordem.

A introdução das máquinas de soldar e das cravadeiras no inicio de século11 lançou no desemprego milhares de soldadores, facto que marca o protagonismo desta classe nas lutas operárias fortemente documentadas na imprensa local.12 As mulheres como grupo maioritário e mais mal pago, juntam-se aos homens nas lutas, engrossando as fileiras do descontentamento.

11 “O Trabalho”; As vitimas da máquina; 1901

12 “O Conserveiro”; As vitimas da máquina; 1935

Apesar de as primeiras décadas deste século, terem sido fortemente conturbadas, foram sem sombra de dúvidas o período áureo da industria que colocou Setúbal como o primeiro grande produtor do país. Em 1929, esta cidade era primeiro porto português de sardinhas conforme anunciava um cartaz da época, pois produzia 955.000 latas de conserva num total nacional de 1.500.000.

A partir de finais dos anos 30 a situação altera-se gradualmente, caminhando para o declínio, que em termos gráficos é visualizado13 por uma curva descendente pontualmente contrariada no período da 2,ª guerra em que as conservas de peixe eram exportadas para os países beligerantes como ração de combate. O condicionamento da indústria de conservas, instituído por decreto-lei de 15 de Maio de 1928, foi reaproveitado pelo Ministro das Finanças do Estado Novo em 1932, reorganizando esta indústria. Em 1936 dá-se a criação dos Grémios dos Industriais de Conservas, instituídos por Oliveira Salazar.14

13 Guilherme de Faria, Setúbal e a industria de conservas, pág. 24 Setúbal, 1950

14 Arranja Álvaro; A industria de conservas de peixe em Setúbal (1930-1960), pág. 48 Câmara Municipal de Setúbal, Setúbal 1996

Ainda na década de 30, caminha-se lentamente para a diversificação industrial, com a criação da SAPEC (Société Anonyme de Produits Engrais et Chimiques), empresa de capital belga instalada em 1926 e inaugurada, em 1931, e do primeiro forno rotativo da fábrica de cimento Secil (Outão).

O terceiro período de desenvolvimento industrial da cidade dá-se nos anos 60 com a instalação de grandes industrias de fabrico de papel, metalurgia, metalomecânica e de componentes industriais. Setúbal entra na lógica da divisão internacional do trabalho e do capital, atraindo populações de meio rural, maioritariamente do Alentejo.

Conforme refere Vasco Pulido Valente15 «a cidade de Setúbal propriamente dita sofreu uma evolução semelhante à do concelho. Se entre 1864 e 1890 aumentou modestamente 5268 residentes, entre 1890 e 1891 aumentou 12765, isto é, mais de 142,3%. E no conjunto dos quarenta e sete anos de 1864 a 1911 expandiu-se na proporção impressionante de 138%.

A causa principal destas violentas mudanças reside no desenvolvimento económico da cidade (sobretudo na implantação da industria de conservas e no incremento das actividades dela subsidiárias, como a pesca), não na prosperidade geral do concelho – como o contínuo alargamento da parte da população urbana demonstra. Na verdade, até 1900, esta andou sempre por volta dos 58%. Mas em 1911 chegava já aos 63%. A ruptura com o campo tinha começado e dali em diante apenas se agravaria».

15 Pulido Valente, Vasco, Análise social, vol. XVII (67-68) 1981 – 3.º – 4.º, 615 – 678 pág. 616

Pelos vestígios de arqueologia industrial, observados na cidade e pela consulta da toponímia existente, podemos afirmar que a primeira geração de fábricas de conserva situava-se junto ao rio, pela proximidade da matéria- prima, o peixe e o sal, carregados em cabazes à cabeça dos descarregadores ou em carroças, da lota para a fábrica. Outro factor que condicionava a localização das fábricas era o recrutamento da mão de obra disponível de mulheres, homens e crianças oriundos dos bairro piscatórios, Fontaínhas e Troino. Consultando um artigo do jornal, O’Distrito de 26 de Novembro de 1893, um articulista anónimo de algum modo confirma a nossa afirmação, referindo que a «maior parte dos soldadores eram filhos de pescadores».

Além desta mão de obra referenciada, Pulido Valente16 no seu artigo sobre «Os conserveiros de Setúbal (1887 – 1901)» alude ao recrutamento que também se efectuava no seio dos trabalhadores das salinas, e da indústria conserveira «cujas notórias dificuldades no fim do século muitos «braços» trouxeram às apetecidas «mesas de soldar».17

16 Pulido Valente, Vasco Ibidem, pág. 628
17 Pulido Valente, Vasco. Ibidem, pág. 628

Pulido Valente refere ainda que a partir de 1887 , Setúbal tinha-se tornado um local de atracção para milhares de trabalhadores rurais e urbanos do país inteiro. As primeiras fábricas, em muitos casos construídas de raiz, constituíram bons exemplares de arquitectura industrial, encimadas por enormes chaminés fumegantes, símbolos da vitalidade e prosperidade da indústria.

Mais tarde, com o crescimento da cidade, o afastamento das classes operárias do centro histórico e o desenvolvimento das acessibilidades, verificamos a instalação de unidades fabris junto a estes novos aglomerados populacionais.

Os primeiros industriais responsáveis por este surto de indústria, eram nativos da Galiza e França construindo em Setúbal bons exemplares de edifícios industriais. No entanto, ao longo do século XX, proliferaram inúmeras fabriquetas na cidade, na maioria improvisadas em armazéns e bancos. Esta construção compulsiva visando o lucro imediato leva a que a revista «Conservas de Peixe» de Junho de 1946 a dê como exemplo contrapondo o novo modelo nacional apregoado pelo Estado Novo: «Os armazéns abarracados, sem ar nem luz, que eram a grande maioria das nossas fábricas, onde os operários se moviam como prisioneiros em celas, foram substituídos por edifícios de linhas modernas, amplos, arejados, higiénicos, que dignificam e dão alegria ao trabalho».

«Os anos 30 são para a industria conserveira em Setúbal, o momento do início do declínio gradual que se prolongará ao longo de décadas. O grande desenvolvimento das duas décadas leva à existência em Setúbal, de grande número de estabelecimentos fabris, muitos dos quais não efectuam as transições tecnológicas necessárias».18 Este cenário manteve-se inalterável, com excepção para o período da 2.ª guerra Mundial, em que a conserva de peixe era utilizada como ração de combate, beneficiando Portugal da sua posição neutral face aos países beligerantes, com destaque para a Alemanha.

Do pós-guerra aos anos 60 o declínio acentua-se sendo visível ainda hoje na cidade a falência e abandono das unidades fabris, através de equipamentos em ruína.

Esta crise conduziu a uma concentração de capitais que resultou do afastamento dos proprietários locais de pequena e média produção, transferindo-se a pertença da grande maioria das fábricas para investidores fora do centro conserveiro de Setúbal. É neste período que se começa a desenhar a concorrência externa de que é exemplo, Marrocos, cuja produção em 1949, já ultrapassava a Portuguesa.19

A partir dos anos 70, após a diversificação industrial operada no concelho, assiste-se ao encerramento acelerado das unidades fabris. As que restaram a este declínio foram artificialmente sustentadas pelas lutas operárias pós-25 de Abril.

Nos anos 90 deu-se o colapso em Setúbal, de uma indústria que nunca se renovou tecnologicamente e que sempre se baseou na exploração desenfreada da mão de obra, essencialmente feminina.

18 A industria de conservas de peixe em Setúbal (1930-1960) Albano Arranja, in A Industria Conserveira em Setúbal – Edição C.M.S. Museus Municipais, Setúbal 1988. pag.42

19 A industria de conservas de peixe em Setúbal (1930-1960) Albano Arranja, in A Industria Conserveira em Setúbal – Edição C.M.S. Museus Municipais, Setúbal 1988. pag.50

Vista exterior da fábrica Algarve Exportador (Setúbal)

Aspecto do interior de uma fábrica de conservas em Setúbal

Visita de industriais alemães em 1930

Mudanças técnicas e modernização de sistemas de fabrico

Mudanças Técnicas e/ou organizacionais

Séc. XIX / inicio XX
Alterações: Aplicação do método da esterilização
Consequências: Acabar com a estiva (salga e prensagem)

Séc. XX (inicio)
Alterações: Soldadura feita manualmente por operários especializados com ferro de soldar alimentado a gás
Consequências: Existência de um quadro de operários especializados (soldadores)

Séc. XX (1.ª década)
Alterações: Introdução de uma cravadeira que cravava os tampos das latas (trabalho executado por homens, exige força e sincronização)
Consequências: Desemprego dos soldadores / greves e lutas sociais

Anos 20
Alterações: Substituição da cravadeira mecânica pela automática
Consequências: O trabalho passa a ser feito por mulheres

Anos 40 / 50
Alterações: Introdução de canais de descabeçamento e evisceração
Consequências: Aplicação reduzida por falta de espaço e eficácia

Dos anos 60 aos 90
Alterações: Não se registaram alterações significativas

Processos de Fabrico: o “Processo Francês” e o “Processo Português”

Estes dois processos distinguiam-se relativamente ao momento da cozedura do peixe. No “processo português”, assim designado por encarregados e mestres, o peixe era cozido e depois enlatado no processo francês é manipulado em cru e cozido depois de enlatado.

A introdução da cravadeira é um marco de modernização na industria de conservas, pois ela mudou realmente a estrutura organizacional e hierárquica da fábrica em que os soldadores ocupavam o topo, auferindo um vencimento quatro vezes superior ao das mulheres e com trabalho garantido durante todo o ano. A cravadeira e máquinas de soldar passaram a ser alvo da contestação desta aristocracia operária esclarecida e politicamente organizada que se vê assim substituída por uma máquina e relegada no desemprego. Sucederam-se as greves,  mas a cravadeira impôs-se definitivamente no inicio da segunda década deste século.

Esta mudança técnica suprime os soldadores e a cravadeira torna-se a grande inimiga da classe, proliferando na imprensa local o discurso do homem vitima da máquina “Não pretendemos este momento fazer acusações a A, B ou C, mas aproveita-lo simplesmente para focar a maneira pouco airosa como alguns senhores industriais pretendem aniquilar a todo o transe, a eterna vítima da máquina, (o operário soldador) esquecendo-se porem alguns deste senhores que já foram seus antigos camaradas de profissão, e que dentro das oficinas, eram daqueles que mais se revoltavam contra certas prepotências e injustiças dos patrões desse tempo, aconselhando muitas vezes os seus camaradas de trabalho à greve, e tomando esses comandos de revolta, inspirando nesse tempo o aniquilamento das máquinas que os iam afectar”.

Outra inovação no processo de fabrico, foi nos anos 40 a introdução de canais de descabeçamento e evisceração que procurava suprimir as tarefas de manipulação e transporte do peixe. Esta nova técnica designada por sistema “MASSO” importada de Vigo, acabou por ficar circunscrita a algumas experiências, mas não vingou,  pois exigia construção de canais em alvenaria, com pelo menos 50 m de comprimento e a maioria das instalações fabris não tinham estas dimensões.

As máquinas cravadeiras, símbolo de inovação tecnológica, vieram essencialmente de França para Portugal, porque este país forneceu-nos o Know How a nível de maquinaria e mão de obra.

«Os soldadores de Setúbal aprenderam a sua “arte” com soldadores franceses, importados de Nantes por industriais que a falta de sardinha atraíra a tão distantes paragens. Ainda em 1891 chegaram 50 trazidos pela Societé Métalurgique para fabricar lata vazia.»20

20 Polido Valente, Vasco, Os conserveiros de Setúbal (1887-1901), Analise Social, vol. XVII (67-68), 1981 – 3.º e 4.º, 615-

Segundo o nosso informante ex-mecânico e mestre de fábricas, vieram para Portugal várias marcas francesas de cravadeiras «As melhores máquinas eram na altura da guerra as “Sudry” essa fábrica fechou e venderam a patente a Portugal (Matosinhos ) e fizeram mais duas firmas (…) a “Cerley” e a Regina que fabricavam cravadeiras. Começaram a fabricar também a “Vulcano” que era a cravadeira portuguesa. Compraram a patente à Lubin e fizeram cá. Essa Vulcano era a melhor máquina. Para mim era a melhor máquina, mais robusta e mais prática para trabalhar e mais rápida.»

Podemos então verificar que as máquinas eram importadas até determinada data, sendo a afinação e manutenção feita por mecânicos e afinadores portugueses formados na experiência das fábricas, das fundições e das oficinas de serralharia e mecânica.

 

 

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