SETÚBAL ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA OPERÁRIA 1880-1930

Publicamos em vários posts o Capítulo II – INDUSTRIALIZAÇÃO – CONSERVAÇÃO DO PEIXE do livro SETÚBAL ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA OPERÁRIA 1880-1930, de Maria da Conceição Quintas.

 O capital e a mão-de-obra franceses 
1 – “Établissements F. Delory”
1.1 – Falsificações
1.2-Mão-de-obra
1.3 – Administração francesa
2 – “Société Arsène Saupiquet

O modelo conserveiro da região de Setúbal

Maria da Conceição Quintas
Professora na Universidade Moderna
m.c.quintas@mail.telepac.pt

 

O Capital e a mão-de-obra franceses

"Établissements F. Delory"

Embora, como já foi referido, desde 1854 os setubalenses se dedicassem à indústria de conservas de peixe (especialmente de sardinha), só com a chegada dos franceses em 1880, se verificou o grande impulso na dinâmica conserveira na cidade de Setúbal.

Os proprietários da sociedade Établissements F. Delory, com sede em rue de Brest, Lorient (França), ao defrontarem-se com a escassez de sardinha na costa francesa, decidiram instalar em Portugal empresas para produção de conservas daquela espécie, segundo o método Appert.

Assim, as suas fábricas iniciaram a laboração junto a dois dos principais portos de pesca de sardinha de então: Olhão e Setúbal.

Tendo em conta os documentos da empresa , a primeira fábrica foi instalada em Setúbal, embora os documentos da sociedade indiquem a sucursal de Olhão como nº 1 e a de Setúbal como nº 2.

O facto não parece muito significativo, uma vez que a fundação destas unidades foi, praticamente, simultânea. Para maior facilidade no transporte do peixe, os imóveis, onde se instalavam as explorações deste ramo industrial, eram sempre construídos junto ao cais.

Assim, a Société Anonyme Établissements F. Delory instalou-se na Rua dos Trabalhadores do Mar, junto ao rio Sado, num edifício construído para o efeito, segundo as normas exigidas para este tipo de estabelecimentos, cujas plantas podem ser analisadas em anexos. O espólio desta empresa, por nós consultado, refere-se, fundamentalmente, a épocas mais recentes. No entanto, alguns elementos mais antigos, que analisámos, justificam esta tentativa de abordagem específica.

Sobre o imposto que, em 1925, se pagava para manutenção do alvará de um estabelecimento industrial, sabe-se que, em Fevereiro daquele ano, o selo de alvará pago por F. Delory era de 10$00. Em cópia da resposta a um inquérito da Direcção Geral de Estatística, num Verbete de Sociedade o gerente informava que Établissements F. Delory era uma empresa industrial, Sociedade Anónima com sede em Lorient (França). Mas, ao pedido de indicação do número de sócios e valor de cada cota, encontramos um simples “rien”, tal como acontece no capítulo referente à situação financeira.

Em “notas”, P. Dassé (gerente) esclarecia:

“Somos unicamente um estabelecimento fabril. Todos os negócios e assuntos comerciais são tratados pela sede, em Lorient (França)”

Sobre combustíveis utilizados declarava não consumir energia eléctrica produzida pelo próprio ou comprada (em Setúbal a energia eléctrica só foi inaugurada em 1930, embora algumas empresas possuíssem geradores próprios), não gastar carvão nacional, mas ter consumido 75 toneladas de carvão estrangeiro.

Ao longo do ano de 1929 “os principais produtos fabricados” foram “conserva de peixe em azeite e tomate: 18 761 caixas”.

No verbete referente ao ano de 1931 informava que haviam sido produzidas 12 839 caixas de “conserva de sardinha em azeite e tomate”, no valor de 92 570$00.

Mas “a fábrica suspendeu a sua laboração em 2 de Outubro de 1931 por um prazo indeterminado”.

Através dos documentos existentes verifica-se uma total separação entre a empresa e a sociedade em que estava inserida, pois importava de França todos os materiais necessários à laboração, incluindo o próprio combustível, e utilizava apenas a matéria-prima que não podia importar do país de origem – a sardinha – e a mão-de-obra não qualificada, salvo raras excepções.

A convivência com os industriais locais também não era muito cordial, pois estes queixavam-se de que esta firma absorvia os mercados franceses, bloqueando-lhes o acesso aos mesmos, situação que levou alguns conserveiros qualificados a ter atitudes consideradas menos honestas para poderem vender o seu produto em França. Era o caso das tentativas de falsificação ou imitação de marcas conhecidas internacionalmente mas, sobretudo, acreditadas no mercado francês.

Falsificações

No início do século XX verificaram-se vários conflitos entre empresas que produziam conservas para exportação, acusando-se mutuamente de falsificação ou imitação de marcas, ou ainda de omissão da origem do produto, para penetração em mercados pertença de outros fabricantes.

E a casa Delory era uma das mais visadas pois, normalmente, limitava-se a indicar nas suas caixas a sede da companhia (Lorient- -France), não referindo que as conservas eram fabricadas em Setúbal.

Assim, no dia 13 de Fevereiro de 1901, terminou a audiência, com intervenção do júri comercial, de uma acção movida contra esta empresa por Firmin Jullien que se considerava prejudicado pela não referência da origem setubalense das conservas exportadas pela firma Delory. Esta foi condenada ao pagamento de 300$000 réis de indemnização ao queixoso, facto que a imprensa comentava, concluindo que se todos os fabricantes fossem para juízo pedir indemnizações, e todos tinham “tão bom direito como o Snr. Jullien, a rica casa Delory ficava num fanico”, facto que comprova o isolamento que esta firma praticava, em relação ao meio em que estava inserida.

O domínio do mercado francês, a que não era alheia a credibilidade das sardinhas em conserva produzidas por Établissements F. Delory, levou a que outros empresários produzissem marcas que possibilitavam a sua venda como se se tratasse de um produto desta empresa.

Como exemplo, citamos algumas missivas trocadas entre a administração residente em França e o seu responsável em Setúbal, Monsieur P. Dassé.

No dia 9 de Junho de 1925, em ofício dirigido a este, o presidente da administração, residente em Lorient, escrevia:

“Nous croyons savoir qu’il a été chargé tout récemment à Lisbonne sur le s/s MARTHA WASHINGTON de la Cosulich-Line: 1000 caisses de sardines en boites blanches munies d’enveloppages papier à une marque Rolland, contrefaçon parfaite de la nôtre. Ces boites auraient été vendues à notre plus gros client de Trieste, Mr. Lodovico WEISS, par la Maison WIMMER, de Lisbonne”.

E no dia 23 de Junho, novo ofício fornecia indicações e aconselhava a consulta do advogado da firma Gustavo Ferreira Borges, com escritório na Rua Arco Bandeira, 44, 1º, em Lisboa, na sequência de uma outra missiva oriunda de Setúbal, em que Monsieur P. Dassé, usine Delory, Setúbal, solicitava novas pistas para a pesquisa.

Em carta datada de 16 de Julho, P. Dassé era finalmente informado sobre o processo de falsificação verificado:

“[…] Notre représentant à Trieste a pu obtenir sans toutefois réussir à nous faire parvenir les échantillons qu’il est absolument indispensable que nous ayons en mains. Il s’agit d’une imitation très exacte de l’illustration de nos enveloppages papier Rolland, mais portant en outre l’indication: LINO DE SILVA – MARQUE DEPOSEE – Lda EN SETUBAL. Vous savez que Mr. Lino da Silva est le gendre de Mr. Alleno gérent de l’usine Vve Macieira & Fils de Setúbal”.

O responsável pela firma com sede em Setúbal respondeu aos administradores residentes em Lorient, confirmando que era realmente a casa F. M. Lino da Silva Lda que produzia a imitação da acreditada marca Rolland:

“Comme cette dernière, les enveloppages à la marque F. M. Lino da Silva Lda sont composés d’un corps imprimé en noir et d’une bande entourant la boit et imprimée en vert/noir/or. La composition ressemble énormément à celle de votre marque Rolland, les couleurs employées sont exactement les mêmes et à 3/4 mètres de distance aucune différence ne peut être faite. […] Il ne peut cependant y avoir aucun doute sur l’intention qu’ont eue les créateurs de la marque F. M. Lino da Silva de faire confondre leur marque avec votre Rolland et de profiter de cette confusion”.

Após identificar a empresa em causa, informava também da impossibilidade de dar imediato seguimento ao litígio porque Francisco Lino da Silva não se encontrava em Setúbal e os responsáveis declararam não estarem a exportar a referida marca (afirmação que não parece merecer-lhe muita credibilidade).

De posse de um invólucro referente à marca imitada, informava que iria consultar o advogado da empresa, até porque já fora informado de que estes eram impressos na casa Alfredo da Silva, sucessores de E. Barrault. De imediato procederia à inventariação da conserva já exportada, sob esta marca, para os diferentes países.

A empresa visada respondeu a Paul Dassé o seguinte:

“Para provar a V. Sas a nossa boa fé sobre o assunto que há pouco tratámos e jamais pela consideração que V. Sa. nos merece e ainda para satisfazer os seus desejos, resolvemos desde já suspender novas encomendas que tínhamos na Litografia e vamos propor ao nosso cliente o fornecimento de outro papel em encarnado, não nos importando de perder mesmo o cliente, se assim for necessário, para que possamos ficar bem com a nossa consciência e mantermos a nossa velha conduta. Como dissemos a V. Sa temos empate de capital na importância de 1 680$00, referente a papel litografado para 25 000 latas que poderemos inutilizá-lo para maior satisfação darmos à casa que V. Sa tão dignamente representa, no caso de sermos reembolsados desta importância, o que queremos ser justo e assim nós desde já lhe afirmamos que desistimos por completo de atender o nosso cliente”.

Esta situação parece um pouco insólita, uma vez que a firma F. M. Lino da Silva obteve, em várias exposições nacionais e internacionais prémios pelas conservas produzidas, facto que mostra a credibilidade da empresa, antes e depois do acontecimento, não apenas a nível nacional como também a nível internacional.

No entanto, a imitação foi uma realidade que não entendemos senão como uma intenção de penetrar num mercado que era pertença de outra empresa sua concorrente, que dominava as vendas no norte do continente europeu.

Entre os vários prémios obtidos por Lino da Silva citamos, como exemplo, o “Diplome de membre honoraire de la Chambre de Comerce Belge de Portugal, délivré á Mrs F. M. Lino da Silva, Lisbonne, Avril 1923” e “Medalla de Plata – Exposicion internacional, Barcelona, 1929”, concedida a F. M. Lino da Silva pelas suas conservas de peixe, existentes, entre outros, no MTS.

 

Mão-de-obra

Através do livro de Pessoal relativo aos anos de 1907-1908, podemos verificar que em qualquer das secções da empresa o pagamento à maioria dos trabalhadores era feito semanalmente, havendo várias categorias de operários que, de acordo com as mesmas, recebiam a féria; o preço por hora variava de homem para homem, tal como o número de dias a que tinham direito.

O dia de trabalho era de 10 horas e o pessoal era agrupado nas seguintes rubricas:

“Personnel poisson Vieille usine, Personnel poisson nouvelle usine, Ferblanterie” e “personnel femmes”.

Os salários do pessoal das duas fábricas eram iguais, salientando-se alguns trabalhadores que ganhavam à semana (trabalhavam ao Domingo quando necessário, sem que recebessem qualquer importância extra), enquanto que outros ganhavam em função dos dias e horas que laboravam.

De todos os operários inscritos nas folhas de féria salientamos Francisco Calafate e António Calafate que recebiam 10 000 réis semanais, encarregados respectivamente da “Ferblanterie” e do “personnel poisson”, seguidos de Manuel da Silva e Pépe que recebiam 8 500 réis por semana. Os irmãos Calafate deixaram de constar das folhas de vencimento de Julho de 1908, desaparecendo a referência especial a “Ferblanterie”, ascendendo Pépe ao lugar cimeiro.

Nestas listagens encontramos referências especiais a profissões e secções específicas como “Machiniste”, “Dechargeurs”, “Garde de nuit”, “Charpentiers”, “Tamponnage”, “Equarrissage”, “Pose de Clefs”, “Nettoyées et aupillage de boites”, “Zinqueur”, “Etiquettage”, “Transp. c/ Fers”, “Caisseurs” e “Mecanniciens”, sem referência aos nomes dos respectivos trabalhadores, pelo que inferimos tratar-se de trabalhos realizados casualmente por pessoal externo.

Verifica-se ainda, mas nem sempre, referências discriminadas ao pessoal feminino da fábrica nova, da fábrica velha e às mulheres que recebiam à peça.

Na secção de vazio (Ferblanterie) trabalhavam, em média, 40 homens cujo salário semanal total variava entre os 143 185 réis (ex: 17 de Outubro de 1908) e 178 590 réis (ex: 24 de Agosto de 1907). Oito destes homens recebiam um salário semanal fixo (recebiam sete dias), dos quais se salientava Francisco Calafate (10 000 réis).

Nas restantes tarefas das duas fábricas (velha e nova) laboravam também em média 40 homens, dos quais cinco recebiam um salário semanal fixo, salientando-se António Calafate (10 000 réis).

Não nos foi possível saber o número de mulheres que laboravam na F. Delory porque apenas dispomos do total dos pagamentos semanais, sem outra indicação. Havia, no entanto, uma equipa efectiva de trabalhadores, de ambos os sexos, cujo pagamento se realizava mensalmente.

No capítulo “pessoal” do verbete de sociedade, referente ao ano de 1929, acima referido, diz não possuir empregados, integrar um elemento “de direcção”, três técnicos e 94 indivíduos de “pessoal auxiliar”, dos quais 20 “varões” e 74 “fêmeas”.

Os “vencimentos mensais do pessoal” eram os seguintes:

“pessoal auxiliar – vencimentos máximos (hommes) (paie du mois le meilleur) 40 430$25 – vencimentos mínimos (femmes) (paie du mois le plus mauvais) 678$80.

Pessoal técnico – vencimentos máximos – (appointement du gérent) 1 600$00 – vencimentos mínimos (d. de la contremaîtresse) 625$00.

“Para as várias categorias de pessoal assalariado” era indicado como salário médio por dia de oito horas dos “moços de fábrica” 18$00 (salário máximo 19$00 e mínimo 17$00).

Para as “mulheres de fábrica” o salário médio era de 1$05 por hora (máximo 1$10, mínimo 1$00) e para os “rapazes de fábrica” o salário médio era de 0$875 por hora (máximo 1$00 e mínimo 0$75).

Do estudo feito concluímos que nesta empresa existia pessoal efectivo com três categorias, conforme o modo de pagamento: mensal, semanal e à hora de trabalho e pessoal com emprego precário. No grupo que recebia semanalmente e de acordo com as horas e/ou dias de trabalho predominavam os setubalenses, enquanto que nos que recebiam ao mês, especialmente os que exerciam cargos de chefia ou técnicos, prevaleciam os indivíduos de nacionalidade francesa.

Administração francesa

Como simples sucursal que era, este estabelecimento fabril regia-se pelos estatutos de empresa com sede em Lorient (França), subordinada à lei geral daquele país.

O gerente, pessoal administrativo e técnico eram de origem francesa.

Toda a escrita do estabelecimento se fazia em francês, tal como os comunicados internos, apenas traduzidos quando dirigidos aos trabalhadores.

Acidentalmente, houve delegação de poderes a empregados de nacionalidade portuguesa para resolução de problemas no país.

Na parte do espólio que nos foi possível observar, encontramos procurações para facilitar o funcionamento da filial portuguesa.

Em 13 de Abril de 1918:

“Mr. Alphonse Sévéne na qualidade de delegado do Conselho de Administração dos Estabelecimentos F. Delory, Sociedade Anónima com o capital de três milhões de francos da qual a sede é em Lorient, rue de Brest [constituiu] seu mandatário especial: o Snr. Carlos de Figueiredo, empregado dos Estabelecimentos F. Delory em Setúbal (Portugal), com poderes para, em nome da Sociedade e em seu nome a representar, nas relações com a Associação Industrial Portuguesa de Lisboa, representá-la nas suas relações com a Alfândega, fazer entrar e despachar mercadorias, assinar e marginar registos e falhas, reclamar e receber prémios, fornecer justificações, dar garantias e cauções, assinar requerimentos, petições do correio, companhias de transporte, caminhos-de-ferro, entre outros. “

Este documento foi redigido em português, situação que se não verifica no seguinte, dirigido ao gerente que era de nacionalidade francesa. Em 24 de Março de 1923, perante o mesmo notário,

“Monsieur Maurice Delacroix, industriel, […], et Monsieur Maurice Daron, […]. Agissant: Monsieur Delacroix, en qualité de Directeur et Monsieur Daron, de délégué du Conseil d’administration de la Société des Établissements F. Delory, au capital de cinq millions de francs, dont le siège est à Lorient, rue de Brest […] constitué pour leur mandataire spécial: Monsieur Paul Dassé, gérant d’usine, demeurant à Setubal à qui ils donnent conjointement pouvoir, au nom de la Société des Établissements F. Delory: Représenter la Société dans tous rapports avec la Douane; […]”.

As atribuições eram as mesmas da procuração que referimos anteriormente, embora com algumas alterações pouco significativas, uma vez que todas as decisões eram tomadas pela administração francesa, sendo o gerente simples executante das determinações daquela, com funções puramente burocráticas, facto que comprova a falta de autonomia da filial portuguesa.

Esta fábrica irá ligar-se, em Janeiro de 1965, a uma outra com sede em Boulevard Sébastopol, 16, Nantes e que se chamava Société Anonyme Établissements Arsène Saupiquet, com sede em Setúbal, de que falaremos, ainda que mais superficialmente por falta de documentação, pois apareceu em Setúbal mais tarde, e por ter a sede em Nantes, embora o seu funcionamento fosse idêntico

"Société Arsène Saupiquet"

Société Arsène Saupiquet

“Société Anonyme des Établissements Arsène Saupiquet, au capital de 6 000 000 de francs [em 1930], divisé en 60 000 actions de cent francs, siège social: Boulevard Sébastopol, 16, Nantes”, foi fundada em 29 de Maio de 1891.

Os estatutos, então aprovados, foram sucessivamente modificados pelas Assembleias Gerais Extraordinárias, ao longo dos anos .

Este documento era válido “tout en France, à l’étranger ou dans les colonies”. O capital social, inicialmente de 1 150 000 francos foi sucessivamente alterado até 25 de Março de 1920, data em que a quantia registada se fixou em 6 000 000.

A filial de Setúbal foi construída num espaço entre a Rua da Saúde e a estrada da Rasca, perto do rio como era hábito.

No referente a relações humanas, os documentos de que dispomos pertencem a épocas mais recentes. No entanto, do que nos foi possível analisar, concluímos que o ambiente que se vivia nesta empresa era tenso e pouco cordial. No espólio descobrimos cartas de trabalhadoras para os patrões, denunciando colegas para conseguirem favores. Desde acusação de roubo de um anel da “madama”, a revelação de encontros secretos entre empregadas e empregados, encontrámos ainda sugestões para melhor funcionamento dos trabalhos. Embora as provas de situações de denúncia, como as que referimos, sejam referentes, fundamentalmente, aos anos 1930, pudemos inferir que já nos anos 1920 elas se verificavam, pois estão implícitas noutros documentos da empresa que foi uma das primeiras a iluminar as suas instalações, poucos meses após a inauguração da luz eléctrica na cidade de Setúbal.

A luz, além de imprescindível para a fabricação, facilitava a fiscalização das actividades dos operários.

O título respeitante à instalação eléctrica no escritório da empresa, destinada a iluminação, “alimentada pela Câmara Municipal”, foi concedido nos termos do decreto-lei nº 5 786, de 10 de Maio de 1919, e do Regulamento de 30 de Novembro de 1912. A instalação era de corrente contínua a 2 fios e compreendia um contador de 5 amperes e 220 voltes e um quadro geral donde saía um circuito que alimentava 15 lâmpadas num total aproximado de 580 Watts, e 3 tomadas absorvendo um total de 120 Watts. Para custeamento dos serviços técnicos de fiscalização das instalações eléctricas, foi cobrada a taxa inicial de 64$00, relativa ao ano de 1930, a que se seguiria o pagamento das “taxas anuais fixadas na respectiva tabela”.

Podemos ainda verificar que esta empresa possuía um “seguro colectivo” (apólice nº 304), na Sociedade Portuguesa de Seguros, “contra os acidentes que [pudessem] ocorrer aos seus assalariados”. Esta apólice, passada em 1931, substituiu a nº 4 117 da M.G.S. e nela se fixava o total dos salários e quaisquer outras remunerações a pagar pelo segurado durante três meses e a taxa do prémio em 1% que este se obrigava a satisfazer antecipadamente. O Depósito, cobrado pela M.G.S,. seria entregue à S.P.S. para manutenção do seguro de trabalho efectuado pela empresa. As determinações desta apólice baseavam-se na “Lei nº 83 de 24 de Julho de 1913, nº 801 de 3 de Setembro de 1917 e decreto 5 637 de 10 de Maio de 1919 pelos acidentes de trabalho sucedidos aos seus operários, aprendizes ou empregados dos quais resulte incapacidade temporária, permanente e morte”. Para que os beneficiários usufruíssem das regalias devidas, a empresa devia enviar à seguradora cópia das folhas de férias, conforme determinava o nº 3 do artigo 5º das “Condições Gerais” da apólice, cláusula que era cumprida atempadamente.

O modelo conserveiro da região de Setúbal

O processo conserveiro em Setúbal, embora inserido no contexto nacional, revestiu-se de características muito próprias pelas condições da região e especialmente do seu porto, tão perto da capital. Assim, conheceu, ao longo dos anos, momentos de prosperidade e graves situações de depressão, gerados por condições naturais (maior ou menor abundância de peixe) e humanas (fraca preparação dos industriais que pecavam pelo excessivo individualismo, prejudicial ao desenvolvimento da indústria e seu mercado). No entanto, desde muito cedo, sempre que sentiam necessidade, os conserveiros uniam-se para resolução dos problemas que afectavam o ramo.

No Elmano, de 10 de Abril de 1897, podemos ler a notícia de uma reunião, numa das salas da Associação dos Lojistas e Industriais dos proprietários das fábricas de conservas, a fim de tomarem conhecimento e resolverem sobre uma petição dos operários soldadores que lhes fora dirigida por intermédio da associação daquela classe.

Os fabricantes resolveram responder por escrito refutando algumas das alegações dos operários e demonstrando a inanidade de outras. A petição foi rejeitada, como poderemos verificar na acta da reunião publicada no referido semanário no dia 14 dos mesmos mês e ano. A Associação dos Soldadores não desistiu, acabando por conseguir o diálogo e, consequentemente, a satisfação de algumas das suas reivindicações, inseridas, posteriormente, no Regulamento sobre o contrato de trabalho nas fábricas de conservas, impresso em Setúbal no ano de 1908.

Com a implantação da República, em 1910, a indústria de conservas de peixe sofreu mudanças muito significativas, para as quais poucos fabricantes estavam preparados. Assim, nos anos subsequentes é comum encontrarmos nos periódicos locais anúncios de arrendamento ou venda de fábricas instaladas em Setúbal, ao mesmo tempo que surgiam firmas destinadas ao comércio de exportação e importação de conservas alimentícias, compra e venda destes produtos, fornecimento de azeite e de outros artigos para a respectiva indústria.

Outro problema que afectava as fábricas de conserva de peixe, instaladas em imóveis sem qualquer espécie de condições de trabalho e de segurança, eram os incêndios, que a fraca capacidade de resposta dos bombeiros locais não permitia solucionar de forma adequada. Assim, desde muito cedo, encontramos referências às empresas seguradoras que suportavam as despesas daí resultantes.

No Elmano de 28 de Setembro de 1912, sob o título “Incêndio”, podemos ler a seguinte notícia:

“Depois das 23 horas de segunda-feira manifestou-se grande incêndio na fábrica de conservas de Ferreira Mariz & Cª, situada na praia da Saboaria desta cidade […], salvou-se ainda um depósito da fábrica que continha grande número de conserva pronta para embarcar. Reconheceu-se a falta de bocas de incêndio”.

A fábrica estava segura na “The Liverpool and London and Globe”.

Como já se disse a I Grande Guerra estimulou a produção, provocando uma conjuntura económica favorável, situação que, embora fictícia, criou expectativas entre os fabricantes.

Em 1918, com o fim das actividades bélicas na Europa, verificou-se uma regressão na exportação de conservas alimentícias e, logicamente, a situação dos industriais do ramo tornou-se de novo instável.

Ao longo dos anos 1920, a situação manteve-se insegura, totalmente dependente das condições naturais, quase sem protecção legal, facto que provocou momentos de instabilidade, verificando-se redução de núcleos de fabricação, anunciada na imprensa local (de 130 empresas em 1920 passam para 63 em 1928) .

A partir de 1930, com a introdução do corporativismo na indústria de conservas de peixe e do próprio condicionalismo industrial, iniciaram-se estudos conducentes ao aperfeiçoamento do produto, especialmente da sardinha enlatada que Portugal vendia para o estrangeiro.

Salazar definiu as regras e os princípios básicos do sistema, no qual o Ministério do Comércio, conjuntamente com as Câmaras Municipais, indicaria técnicos capazes de realizar pesquisas, elaborar planos e projectos, para cuja execução seriam precisas a autoridade e a boa vontade dos que viviam da indústria, principais interessados no seu progresso.

A organização nacional da indústria de conservas de peixe iniciou-se em Agosto de 1932 com a publicação dos decretos nos 21 621 e 21 622.

O primeiro estabelecia regras para orientar o futuro da produção e do comércio respectivo; o segundo criou o Consórcio Português de Conservas de Sardinha. Nestes diplomas vislumbrava-se já o método de intervenção que o Governo pretendia dinamizar e que, cerca de um ano depois, viria a consubstanciar-se nos preceitos genéricos e definitivos do Estatuto do Trabalho Nacional. De facto, no caso da indústria das conservas, o Governo, ao procurar organizá-la, viu-se forçado a definir objectivos e a impor normas gerais de orientação e disciplina. Mas, simultaneamente, teve de reconhecer que, para a observância e bom aproveitamento de tais medidas, seria indispensável pôr a funcionar um organismo novo com atribuições que não coincidiam com as de uma cooperativa comercial e industrial, nem com as fórmulas correntes de associação com base nas leis existentes nos finais do século XIX.

“Assim foi criado o Consórcio Português de Conservas de Sardinha e se promulgou um verdadeiro código da indústria, contido nas disposições dos decretos nos 21 021 e 21 623”.

Finalmente, poderemos definir quatro períodos distintos no evoluir da indústria conserveira em Setúbal, reflexo da política nacional, embora inserido num contexto muito próprio, como se pode verificar ao longo deste trabalho.

No primeiro, entre 1854 e 1880, os fabricantes setubalenses desenvolveram uma indústria bastante artesanal mas, mesmo assim, conseguiram afirmar-se no mercado internacional, obtendo alguns prémios em certames europeus .

No segundo, entre 1880 e 1910, lapso de tempo em que os industriais franceses recém-chegados a Portugal (e, especialmente, à cidade de Setúbal) imprimiram ao processo conserveiro uma nova dinâmica, ao instalarem nas suas fábricas as máquinas e técnicas mais modernas da época, verificou-se a conquista de novos mercados internacionais, especialmente europeus, já dominados anteriormente pelos franceses.

Neste período, iniciou-se uma estratégia individualista de que se ressentiram os industriais setubalenses, pois os franceses mantiveram uma política socioeconómica fechada, onde os funcionários e operários especializados eram, na sua maioria, de nacionalidade francesa, salvo raras excepções num período mais avançado. Nos documentos da empresa era usada a língua do país de origem, tal como no diálogo entre chefes, criando assim uma barreira entre pessoal especializado e operários.

Os conserveiros locais, numa atitude defensiva, tentaram sobreviver utilizando métodos idênticos e, num esforço de anular o domínio das empresas estrangeiras, utilizavam estratégias “suicidas”, como referia Agostinho Fernandes , grande empresário português.

O baixo nível cultural e a falta de preparação técnica bloqueavam-nos, tornando-os incapazes de distinguir a dinâmica dos portugueses mais avançados e a política isolacionista dos estrangeiros que tentavam aniquilá-los. Esta atitude, prejudicial ao são crescimento das indústrias locais, manteve-se ao longo do terceiro período, que se situou entre os anos de 1910 e 1930.

Terceiro período, que se situou entre os anos de 1910 e 1930

A situação, já dramática, que esta atitude provocava, agravou-se com o processo reivindicativo dos operários, organizados em associações dinamizadas pelos partidos políticos, portadores de ideologias revolucionárias.

Foi uma época de “selecção natural” que, levando à falência os industriais mais frágeis, proporcionou o desenvolvimento de empresas mais sólidas e, consequentemente, mais modernas, que tentaram impor-se num ambiente desorganizado e “selvagem”, pouco dignificante para a indústria nacional.

Então, assistiu-se ao nascimento de empresas intermediárias, fornecedoras da matéria-prima necessária à indústria, e outras angariadoras de mercados compradores das conservas produzidas. Sociedades especializadas na fabricação de “vazio” e nas “artes litográficas” iniciaram as suas actividades, antes desenvolvidas no interior das próprias fábricas de conservas, como confirma o artigo 3º do regulamento sobre o contrato de trabalho nas fábricas de conservas, publicado em Setúbal, no ano de 1908:

“A lata vazia, em geral, será sempre feita na respectiva fábrica, e só em casos extraordinários e urgentes, reconhecidos pelo Tribunal de Árbitros Avindouros, poderá ser adquirida fora dela” .

A existência da Associação Comercial e Industrial, onde os conserveiros tinham uma representação sólida, era, normalmente, a entidade que dirigia conflitos e incentivava o diálogo entre os industriais mais esclarecidos.

Assim, em 1913, a imprensa local anunciava uma reunião da comissão, delegada da secção dos fabricantes de conservas, eleita para estudar a situação desta indústria e fornecer sugestões para o seu desenvolvimento. Este trabalho visava a estruturação do processo na cidade de Setúbal, onde se vislumbrava já a hipótese de encerramento de todas as fábricas deste ramo industrial.

Foram convidadas as autoridades locais e a imprensa regional e nacional, para que se dissipassem todas as dúvidas que pairavam sobre a indústria conserveira da região.

Assim, no dia 25 de Janeiro, o Elmano publicou, a pedido da referida comissão, um relatório do processo desenvolvido por esta, no qual se informava que os fabricantes de conservas se haviam filiado na respectiva secção da Associação Comercial e Industrial da cidade, a fim de melhorarem a sua indústria. Na base da situação estavam os aumentos dos materiais necessários à fabricação, assim como os fretes e salários dos operários intervenientes no processo. Segundo informação inserta na mesma notícia, o relatório da comissão foi lido em reunião na sede da Associação Comercial e Industrial de Setúbal, presidida pelo Governador Civil do Distrito de Lisboa, estando presentes os fabricantes e os representantes de todas as colectividades locais. Ao longo dos estudos realizados, verificámos que a situação, embora passasse por momentos conjunturais favoráveis como o respeitante à primeira Grande Guerra, sofreu, ao longo dos anos entre 1910 e 1930, períodos difíceis, aos quais algumas empresas não conseguiram resistir .

O quarto período, marcado pelo corporativismo dinamizado pelo Estado Novo, só teve repercussões neste aglomerado urbano depois de 1930, após a realização da I Exposição Regional do Distrito de Setúbal nesta cidade, embora o I Congresso Nacional de Pesca e Conservas, efectivado em Setúbal, em Dezembro de 1927, pudesse ser, teoricamente, considerado como a génese do corporativismo na indústria setubalense.

Scroll to Top