SETÚBAL ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA OPERÁRIA 1880-1930

Publicamos em vários posts o Capítulo II – INDUSTRIALIZAÇÃO – CONSERVAÇÃO DO PEIXE do livro SETÚBAL ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA OPERÁRIA 1880-1930, de Maria da Conceição Quintas.

 Conservação pelo sal – o biqueirão

A conserva da sardinha
3 -Importância da sardinha na alimentação humana
4 -Do mar à mesa do consumidor

Maria da Conceição Quintas
Professora na Universidade Moderna
m.c.quintas@mail.telepac.pt

Importância da sardinha na alimentação humana

Entre todas as espécies piscícolas, utilizadas na alimentação humana, ressalta a sardinha, alvo de tratados vários sobre o modo de a conservar.

Assim, no ano de 1804, foi composto na Oficina Régia (por ordem superior), em Lisboa, um documento escrito por Clemente Pereira França que explicava alguns métodos para conservação de vários alimentos, sob o título Memória sobre as diversas salgas da sardinha, com o método de aproveitar as enxovas, e sobre a salga dos peixes grossos, como atum, corvinas, pescadas, gorazes, ruivos e outros semelhantes etc.

Sobre a sardinha, somos informados de que, das espécies pescadas, era certamente “a mais abundante, a mais rica, e a mais preciosa”, embora desaproveitada pelos pescadores nacionais, que descuravam a sua conservação, permitindo que os espanhóis a viessem vender a Portugal, já salgada.

No subcapítulo intitulado “Memória sobre as diversas salgas da sardinha”, explica vários métodos, como o da salmoura, do fumo e da salga (à semelhança das enxovas ou biqueirões). Ao salgar a sardinha por este processo, que implicava prensar as espécies, era aproveitado o óleo que, quando o peixe estava gordo, abundava (uma barrica de óleo por quarenta barricas de sardinhas prensadas) e tinha utilização idêntica à do óleo extraído das baleias.

O documento termina com um apelo ao Rei para que se dignasse a:

“remeter aos pescadores os direitos, tão somente dos peixes destinados para semelhantes géneros de salga, e principalmente das sardinhas, animando o mesmo Augusto Senhor com a sua Piedade estes homens tão necessários à economia do Estado, à sua população, à sua riqueza, e tão necessários, e interessantes ao Público, por ser a sardinha [em 1804] um alimento de primeira necessidade, e absolutamente indispensável […]”.

Esta importância é mencionada em numerosos documentos escritos nos séculos XIX e XX, onde podemos verificar que a sardinha foi frequentemente o principal alvo de estudos em várias áreas científicas, capazes de fornecer elementos que visavam a protecção e proliferação da espécie nas águas portuguesas, para que a indústria de conservas de sardinha continuasse florescente em Portugal.

“Sabe-se que a sardinha passa por períodos de engorda e emagrecimento, que lhe modificam o sabor, o valor nutritivo e o valor comercial. Quando está gorda, constitui um produto de escolha e presta-se admiravelmente a toda a espécie de conserva […]”.

Numa tentativa de análise do ritmo de crescimento da sardinha nos mares do norte e nos mares do sul, Leon Fage realizou um estudo de que nos fala Luiz José Supico em comunicação feita ao I Congresso Nacional de Pesca e Conservas, realizado em Setúbal, em Dezembro de 1927.

O cientista concluíra que o crescimento, durante o primeiro período de vida do animal, era mais rápido no sul e mais lento no norte, facto que se invertia no segundo período, originando exemplares de tamanho idêntico – 15,5cm. No entanto, numa terceira fase, a sardinha francesa crescia menos do que a sardinha das águas portuguesas e espanholas, pelo que a espécie adulta pescada em França era sempre mais pequena do que a pescada nas águas da Península Ibérica.

Dos estudos realizados conclui-se ainda pela existência de três raças distintas, como, aliás, já referimos anteriormente. A qualidade da sardinha era, pois, elemento fundamental para que a conserva fosse desejada e racionalmente equilibrada, de modo a afirmar-se no mercado, onde era distribuída por dois lotes distintos: “grada” (própria para exportação) e “maneira” (apropriada para a conserva).

O preço em lota variava entre 1$400 a 1$600 réis a canastra das espécies inseridas no primeiro lote e 500 a 700 réis a canastra de sardinhas classificadas no segundo lote .

Não podemos esquecer que, ao longo do processo de fabricação, o peixe sofre alterações que devem ser controladas para evitar a deterioração do produto final.

“Por alteração deve entender-se o conjunto das modificações organolépticas, bioquímicas e bacteriológicas experimentadas pelo peixe desde a saída do mar”, pelo que deverá ser sujeito a exames cuidados: “

primeiro o exame organoléptico;
segundo o exame físico;
terceiro o exame microbiológico
quarto o exame químico”
para ser possível manter a melhor qualidade da conserva de sardinha em latas.

Assim, Charles Lepierre realizou estudos, a partir dos quais concluiu que a sardinha fresca é composta por:


A conserva de sardinha portuguesa em azeite, com um valor alimentar de 370 calorias por 100 gramas, apresentava em média:

O azoto é o elemento indicativo da qualidade da conserva, pois qualquer produto que “apresente mais de 80 mgs de azote amoniacal por 100 grs, deve ser considerado como preparado com peixe atrasado, se a lata não se apresentar opada ou em via de opação, o que provaria esterilização insuficiente […]”.

Do mar à mesa do consumidor

Saída do buque ou da enviada, a sardinha era vendida na lota.

Os fabricantes de conservas de peixe concorrem à lota em igualdade de circunstâncias de qualquer outro indivíduo interessado no pescado, tendo que responder ao pregão decrescente que o dono da embarcação ou seu representante organiza, dependendo da compra da mercadoria a laboração do seu estabelecimento.

Seguidamente o peixe era transportado para a fábrica pelos carregadores, se esta ficava perto da doca, ou em carroças, quando ela se situava mais longe.

Ainda no barco, a sardinha era mergulhada em água do mar, à qual se adicionava sal até que a densidade permitisse a flutuação do peixe.

Assim, o “apanhador” mergulhava a canastra onde as sardinhas entravam, sem sofrerem quaisquer danos.

Na doca, esperavam-nas os “carregadores” que, usando chapéus próprios (feitos em chapa, com grandes abas, para receberem o peixe que, eventualmente, caísse da canastra, e que passava a ser pertença sua), transportavam as canastras para a carroça.

Dentro do barco, estavam os “apanhadores de peixe” que tinham como função encher os “canastrões” que os “ajudantes de apanhadores” colocavam à cabeça dos “carregadores”, com auxílio dos “carroceiros” (ou carreiros).

Quando o peixe chegava à fábrica, os “descarregadores” da empresa levavam-no e despejavam-no sobre uma mesa de pedra.

Então, as mulheres cortavam as cabeças da sardinha com uma faca, de modo a puxar a “tripa” conjuntamente.

Dali o produto seguia para as mouras feitas em pios, onde as sardinhas estavam entre meia hora e uma hora, conforme o seu tamanho.

As mouras eram feitas da seguinte maneira: havia um depósito com sal para o qual a água era puxada por uma bomba. O encarregado da fábrica (ou um “moço” qualificado) media a densidade da água. Para a mistura havia umas pás que se moviam até estar conseguida a densidade ideal. Por cima da sardinha era colocado sal, uma tábua e pesos para ajustar o peixe. Os restos eram transportados para selhas de madeira, posteriormente despejadas em pios, donde eram retirados por funcionários das fábricas de adubos.

Terminada a fase da moura, a sardinha era transportada pelas mulheres (manipuladoras de peixe), em cestos quadrados, e colocadas sobre uma mesa de pedra.

Seguidamente, as mesmas mulheres arrumavam o peixe em grelhas (engrelhagem) que eram colocadas em carros próprios para as transportar aos “cofres” ou estufas, aquecidos a vapor, onde eram “cozidas” as espécies lá colocadas. Ali permaneciam durante o tempo necessário (cerca de uma hora, tempo que variava conforme o tamanho do peixe).

Terminada a “cozedura”, os carros passavam pelos túneis de arrefecimento e seguiam para as bancadas (transportados por raparigas) onde se iniciava o processo de “enlatagem” (por mulheres especializadas, “manipuladoras de peixe”). A sardinha era cortada ao tamanho da caixa (1/4 de club, 30mm, que comportava, normalmente, 3 exemplares) e colocado no referido recipiente, seguidamente arrumado em pilhas (duas a duas desencontradas). Junto de cada mesa de 20 mulheres havia uma “visitadeira” que garantia a qualidade na fase de enlatar a sardinha.

Seguidamente as “mulheres de levantamento de lata” (ou “mulheres de trabalhos de pé”) transportavam estas rimas para as bancadas junto aos pios em pedra, cheios de azeite ou óleo, onde outras, “as mulheres de molhar a lata” (ou “mulheres do pio”), passavam a pilha por dentro do azeite (ficando as latas cheias) e colocavam-nas em bancadas do lado oposto.

Dali seguiam para a secção de soldagem (mais tarde de cravação) onde os tampos (que eram os fundos das latas) eram soldados ou cravados (a cravadeira foi inserida na indústria na segunda década do século XX) .

Quando era utilizada ainda a soldagem manual, a operação processava-se do seguinte modo: as latas eram conduzidas à mesa do soldador, pelas “mulheres do pio”, onde os soldadores lhes colocavam os “tampos” através de soldagem dos mesmos. O ferro era aquecido a gás. De início o gás era da Companhia mas, posteriormente, as fábricas tinham geradores de “gás pobre” que alimentavam os ferros. Estes tinham um bico de cobre e estavam inseridos nas “ocainas”. As latas eram instaladas em “ratoeiras”, fixas em discos que giravam de modo a receber a solda uniformemente.

Quando o trabalho manual dos soldadores deu lugar às cravadeiras, a operação processava-se do seguinte modo: chegadas as latas ao local da cravagem, uma mulher colocava o tampo sobre a lata, e um homem procedia à cravagem em máquina própria; seguidamente, as latas eram “visitadas” à mão por uma mulher especializada (“visitadora” ou “visitadeira” de lata), que as arrumava em cestos, nos quais seguiam para a “zorra” onde eram esterilizadas (cerca de hora e meia).

Então, as latas eram transportadas para um armazém, onde permaneciam em monte até serem “batidas”.

Esta operação tinha como finalidade verificar se o recipiente estava bem cheio de azeite ou óleo, ou se estava roto (trabalho realizado pelas “mulheres de armazém” ou “batedeiras”) que voltavam a colocar as latas de novo em monte.

Seguidamente, estas eram limpas (por rapazes) e “visitadas” por mulheres com esta função (acima referidas) que verificavam de novo se havia “latas rotas”.

Então, procedia-se à operação de encaixotamento para exportação ou venda no mercado interno.

Os soldadores ganhavam por lata soldada e pagavam uma multa por unidade rota (em 1930, cerca de cinco tostões), facto que provocava a diminuição de exemplares defeituosos.

Seguia-se a embalagem em caixas de madeira onde era indicada a espécie em conserva, a sua origem e o seu destino.

A limpeza da casa era feita pelos homens e mulheres, que trabalhavam na fabricação, quando não havia peixe.

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