José Neto & Feliciano António da Rocha – excerto “Setúbal Economia, Sociedade e Cultura Operária”
José Neto & Feliciano António da Rocha – excerto “Setúbal Economia, Sociedade e Cultura Operária”
Publicamos em vários posts o
Capítulo II – INDUSTRIALIZAÇÃO – CONSERVAÇÃO DO PEIXE do livro SETÚBAL ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA OPERÁRIA 1880-1930, de Maria da Conceição Quintas.
Conservação pelo sal – o biqueirão
A conserva da sardinha
1 – Polémica internacional
2 – Concorrência interna e organização dos industriais
Maria da Conceição Quintas
Professora na Universidade Moderna
m.c.quintas@mail.telepac.pt
O biqueirão* era pescado fundamentalmente nos mares do Algarve e do norte de África.
Depois de chegado à fábrica, era-lhe retirada a cabeça (descarapuçado) e colocado em barricas ou em latas, onde era salgado por camadas, com a cabeça virada para as paredes do recipiente que, depois de cheio, era tapado com uma tábua e prensado.
BIQUEIRÃO *Peixe teleósteo, da família dos Clupeídeos, abundante nas costas marítimas portuguesas, também conhecido por anchova, boqueirão e chacaréu.
Depois de chegado à fábrica, era-lhe retirada a cabeça (descarapuçado) e colocado em barricas ou em latas, onde era salgado por camadas, com a cabeça virada para as paredes do recipiente que, depois de cheio, era tapado com uma tábua e prensado.
Permanecia ali alguns meses (o suficiente para ficar curtido).
Terminada esta operação, o peixe era retirado do recipiente e limpo com uma rede para extrair toda a pele. Seguidamente era aberto (sem utilização de faca, apenas com os dedos) e retirada a espinha.
Finalmente, os filetes eram colocados em latas (acto de enlatar ou encaixar) de vários tamanhos, direitos, ou enrolados com alcaparra (para esta operação era usado um pequeno pau, em torno do qual se enrolava o filete). Depois, enchiam-se as latas de azeite (ou óleo).
Este trabalho era manual, pois as mulheres passavam as latas empilhadas (duas a duas cruzadas, para manter o equilíbrio, dependendo a altura da destreza de cada operária) por dentro dos pios cheios de azeite (ou óleo), sendo de imediato transportadas para serem soldadas (mais tarde, cravadas).
Daí, seguiam os trâmites normais para a esterilização e embalagem, tal como acontecia com outras conservas.
O descabeçar de peixe numa fábrica de conservas em 1920-30
(Fonte: Cativo, Luciano Victor – Ainda Olhão e a indústria de conservas de peixe – 1ª Ed., Câmara Municipal de Olhão, Out. 2001)
Fábrica da Ribeira nos anos 60, em Lagos, operárias enlatando biqueirão
Como atrás referimos, as conservas em latas hermeticamente fechadas, vendidas no mercado internacional sob a denominação de “sardinha”, provocaram grande polémica, pois alguns países, como por exemplo a Noruega, enlatavam com esta designação peixes que pertenciam a outras espécies semelhantes, mas que não eram sardinha.
Portugal, país que em 1912 exportava mais sardinha em conserva, era, portanto, o mais prejudicado com a denominação falsa de sardinhas em latas contendo sprat, arenque, biqueirão e chicharro, entre outros.
Esta “fraude” era praticada, para além da Noruega com os sprat, pelos Estados Unidos que atribuíam a designação de sardinha às conservas feitas com pequenos arenques e pelo Japão que utilizava peixes parecidos com a espécie tão desejada. Estes países vendiam aqueles produtos em concorrência com os fabricados com a verdadeira sardinha.
Já em 1909, no Congresso de alimentação realizado em Paris, se discutira a situação dos Estados Unidos neste assunto e, em 1912, os industriais franceses estavam dispostos a fazer valer os seus direitos, intentando processos na Inglaterra e na Alemanha contra aqueles que pretendiam iludir os consumidores de sardinhas, prejudicando a verdadeira indústria M. Angus Watson, defensor no processo que decorria em Inglaterra contra os fabricantes noruegueses que enlatavam brinslings e sprats sob a designação de sardinha, numa tentativa de salvaguardar os interesses dos seus constituintes, pretende que a palavra sardinha não fosse dada exclusivamente a um determinado peixe mas a todos os pequenos peixes conservados em azeite, dentro de latas, acrescentando que, em épocas remotas, se chamava também sardinha ao atum.
Justificava a sua tese com o argumento de que até 1906 se tinha vendido em França, sob o nome de sardinha, toda a sorte de pequenos peixes e só depois de realizado, nesse ano, um congresso de fabricantes franceses, se decidira não mais dar aquele nome senão ao “Clupea pilchards”, designação científica da sardinha . Perante polémica tão complexa, M. J. T. Cunninghan fez publicar, em 18 de Maio de 1912, no Fish Trade Gazette, uma carta esclarecedora dos factos ao longo dos anos em que se fabricaram conservas de peixe enlatado. Nela declarava pretender corrigir erros e esclarecer afirmações pouco claras e correctas, uma vez que o próprio Angus Watson afirmara durante vários anos que os “sprats” que ele vendia eram feitos de sardinhas tomadas no Outono.
A verdade é que existia em todas as costas de França uma espécie de peixe a que chamavam sardinha, do mesmo modo que em Inglaterra existia uma outra denominada sprat.
A generalização do termo sardinha foi intencional, quando esta espécie preparada em França conseguiu reputação e se tornou um importante artigo de comércio.
Também o chicharro não era uma espécie de cavala mas o nome atribuído pelos franceses e pelos portugueses a um peixe conhecido em Inglaterra sob a designação de “Horsemackerel”, tal como “brisling” era simplesmente o nome que os noruegueses atribuíam ao “sprat” que se pescava nas águas do Norte da Europa. Com base na decisão do Supremo Tribunal Britânico que definiu “sardine” como a palavra francesa atribuída a “pilchard”, o peixe cientificamente conhecido como “Clupea pilchardus”, M. J. T. Cunninghan concluiu que havia designações comerciais incorrectas que os comerciantes noruegueses pretendiam ignorar, mas que era urgente esclarecer.
Dado que Portugal era então o principal país onde se pescava sardinha, a Associação Comercial e Industrial de Setúbal, em 1912, considerou urgente a organização dos conserveiros nacionais para que se juntassem aos seus colegas franceses na luta por tão importante campanha.
Aliada a esta necessidade de luta aparecem-nos outras preocupações relacionadas com a racionalização da venda das conservas e o financiamento da produção.
Numa tentativa de resolução dos problemas mais prementes, Leon Delpeut, conserveiro em Setúbal, apresentou aos membros do Congresso dos Fabricantes de Conservas de Peixe de Portugal, que iria realizar-se em Setúbal, algumas considerações sobre um projecto de formação em Portugal, com sede em Setúbal, de uma grande Companhia encarregada de fazer adiantamentos sobre a conserva de peixe, e de a vender.
Este documento, datado de 4 de Julho de 1913, protegeria os industriais mais vulneráveis, garantindo a venda dos seus produtos atempadamente e a preços justos, não sujeitos à concorrência desgastante, salvando assim a indústria nacional, mas mais concretamente ainda a setubalense.
Estas medidas favoreceriam os operários, com garantia dos postos de trabalho e de salários mais justos, os armadores que sentiriam segurança na venda da sardinha pescada e ainda a restante população que usufruiria de uma estabilidade económica propiciadora de desenvolvimento na área comercial.
Na proposta de estatutos, que continha, definia os princípios por que esta organização se deveria reger a fim de proporcionar estabilidade nas empresas, mais produção e racionalização dos preços de venda, sem interferir na exportação da mercadoria.
Apesar de se tratar de um projecto aliciante, não encontramos qualquer referência à formação desta Companhia, e a seu respeito disse-nos Manuel Veiga que os fabricantes não conseguiram chegar a acordo, pelo que só alguns anos mais tarde se fundou uma federação com características diferentes.
Sobre a recusa dos industriais em se organizarem para manutenção do mercado e dos preços, fala-nos Agostinho Fernandes, que foi proprietário da Algarve Exportadora (com uma fábrica em Setúbal), num trabalho escrito em 1949, mas no qual refere a sua experiência como industrial desde o início do século.
Sob o título “Psicologia do industrial conserveiro”, faz-nos uma verdadeira caricatura da situação vivida no mundo das conservas de peixe. Oiçamo-lo:
“[…] De facto, por mais que, no fundo, os nossos defeitos provenham da raça […] eu não acredito que outra classe seja capaz de nos arrancar a camisola amarela de campeões da insensatez! […], os nossos industriais – de um modo geral – participam de todos aqueles complexos de inferioridade.[…]. Depois, segue-se a inveja:. […] Se há um daqueles industriais menos pequenos, a quem eles próprios chamam grandes, e que – depois de parados dias seguidos, se vêem forçados a lhes seguir as pisadas imprudentes – reagem logo: ‘lá vem a loba’. A isto chama-se maldade. Mas o mais cómico é quando ‘armam em espertos’, praticando a petulância: […]. Também cultivam a independência e o orgulho: ‘Organização para quê? Acaso não nos sabemos governar sósinhos?’. Finalmente, acabam (ou começam) na desconfiança: […]”..
Assim, se o azeite está mais barato, mas sabe-se que a situação não se manterá, baixam o preço do produto, nivelando-o com o das conservas em óleo, facto que, posteriormente, prejudicava o processo financeiro, tal como acontecia com outras atitudes tomadas inconscientemente e que destruíam o sucesso das empresas.
Este facto, realidade absoluta comprovada por todos os documentos existentes desde finais do século XIX, devia-se, e o autor da sátira que transcrevemos di-lo posteriormente, ao baixo nível cultural dos industriais das conservas de peixe, na sua maioria antigos operários, principalmente soldadores. Nos momentos de crise surgiam propostas de estudo e de uma hipotética associação, que raramente se concretizavam ou, no caso de consecução, se goravam algum tempo depois.
No I Congresso Nacional de Pesca e Conservas, realizado na cidade de Setúbal em Dezembro de 1927, foi proposta a formação da Associação Portuguesa dos Fabricantes de Conservas, com sede nesta cidade, na qual se integrariam todos os Fabricantes de Conservas de Portugal, mediante o pagamento de uma quota mensal.
A sua vida foi efémera, transformando-se no Consórcio Português de Conservas de Peixe, criado em 1932 pelo Ministério de Comércio e Indústria e, como tal, inserido já no projecto corporativo instituído pelo Estado Novo.
Em 1949, Agostinho Fernandes dizia ainda:
“Há um quarto de século que eu ando à espera de ver melhorada esta ancestral e arrepiante mentalidade da grande maioria dos industriais, que conheço há trinta anos, e confesso ter confiado na nova geração – de rapazes mais ou menos instruídos e bastante viajados, filhos de velhos industriais, geralmente sem cultura e sem contactos – para o efeito de se renovar o ambiente primário que caracterizava a classe naqueles tempos. Mas começo a desanimar. Às vezes até suponho que não avançámos um passo! E chego a interrogar-me: Não estaremos mesmo pior agora, neste campo?” .
Ao analisarmos o relatório da gerência do Consórcio Português de Conservas de Peixe, publicado em 1935, verificamos que esta opinião é extensível aos então responsáveis pelo processo conserveiro em Portugal, que referem a incapacidade dos industriais portugueses, face ao desenvolvimento tecnológico que se verificava noutros países.
As condições higiénicas das instalações eram deficientes, e a qualidade dos produtos ajustava-se, apenas, às condições mínimas exigidas pelos mercados, sem que procurassem criar ou impor tipos certos. Limitavam-se a copiar a clássica sardinha de Nantes; mas como esta era conhecida nos mercados, a concorrência portuguesa efectuou-se por via de rebaixamento de preço, facto que prejudicou a indústria nacional . Esta situação provocou a diminuição do ritmo de produção que se limitou à quantidade, subestimando a qualidade, mantendo-se assim até ao momento da Guerra de 1914/18, data em que os fabricantes, visando apenas o lucro imediato, aumentaram desordenadamente os seus elementos de produção, sem atender a que o consumo era anormal e transitório.
As empresas proliferaram, mas a sua existência foi efémera, fazendo perigar não apenas a sua existência, como o futuro das conservas em Portugal.
O aumento desses elementos fabris veio trazer à indústria nova causa de perturbações: a luta entre os próprios industriais portugueses para obterem preferências de colocação nos países que já mostravam relutância em absorver toda a mercadoria produzida por Portugal e pela Espanha que nos fazia concorrência conjuntamente com os Estados Unidos e o Japão. O volume médio dos negócios de cada fábrica diminuiu, levando as frágeis à falência.
Em 1918, com 223 fábricas, exportávamos 35 879 toneladas, ou seja em média, 189,89 toneladas por fábrica
Pois em 1926, existindo cerca de 400 fábricas e exportando-se 31 509 toneladas, a parte de cada fábrica correspondia a 78 toneladas, isto é, apenas 49% da capitação de 1918. Mesmo aquelas empresas sólidas, que fabricavam cuidadosamente e que haviam criado mercados próprios, acreditando neles as suas marcas, mesmo essas se viram laqueadas pela pressão deprimente do estado geral da indústria que, reduzida à extrema pulverização, só buscava aumentar o volume das vendas, baixando o preço.
Numa tentativa de recuperar o mercado internacional, Oliveira Salazar, então Ministro das Finanças, elaborou um estudo que foi publicado na imprensa no dia 28 de Dezembro de 1931, seguido de um trabalho que consta dos relatórios dos decretos de 27 de Agosto de 1932, da autoria do Ministro do Comércio e Indústria, engenheiro Sebastião Garcia Ramirez. Nestes textos, o apelo à organização dos empresários conserveiros é uma constante, mas já segundo as normas corporativas .
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