ARTE DO VAZIO - A COMUNICAÇÃO VISUAL NAS LATAS DE CONSERVA DE PESCADO PORTUGUÊS

Ana Lúcia Gomes de Jesus

Orientador: Professora Doutora Cândida Teresa Pais Ruivo Pires
Co-orientador Prof. Doutor Vitor Manuel Teixeira Manaças

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Escola de Comunicação, Arquitectura,  Artes e Tecnologias da Informação
Lisboa 2012

CAPÍTULO 4 — COMUNICAÇÃO VISUAL 

4.1  A Marca

4.2  Cor    

4.3  Tipografia

4.4  Ilustração

CAPÍTULO 4 COMUNICAÇÃO VISUAL

4.1  A Marca

 

 

“O capitalismo não pode funcionar sem uma sociedade de consumo e é impossível uma sociedade de consumo sem marcas.” (HILTON, 2005, p.48).

A origem do conceito de marca surge de uma antiga expressão nórdica ”brandr”, que significa queimar, adoptada posteriormente para o léxico anglo-saxónico como “brand”.

Ao longo da história da Homem, podemos observar que as marcas visuais sempre existiram em diferentes formatos ou representações, como as marcas do gado, permitiam aos comerciantes distinguir os produtores e a respectiva qualidade do produto, ou os oleiros que identificavam as suas peças de barro com impressões digitais ou figuras simbólicas como a cruz ou o peixe.

Os símbolos representados na maioria das vezes estavam relacionados com uma significância mais profunda, associados a religiões como no judaísmo (a estrela), no cristianismo (o peixe), que foram aplicadas ao longo dos tempos em diferentes contextos e adaptando-se às diferentes intenções, como a cruz suástica, símbolo hindu, à ideologia nazi (BRUCE-MITFORD, 1996).

Reis, imperadores ou governos, de igual forma difundiam o seu poder com identidades próprias, simbologias aplicadas nos seus trajes, armaduras ou mesmo estandartes que distinguiam povos, religiões, classes sociais e até profissões (BLACKETT, 2005).

Com a industrialização novos modos de vida surgiram, as sociedades reformularam as suas necessidades e o aparecimento de diversas marcas ao longo do século XIX permitiu o reconhecimento e a protecção do consumidor em relação à origem e qualidade dos produtos.

Cintando Hilton:

“A migração em massa para as cidades fez com que as pessoas deixassem de saber a proveniência exacta dos vários produtos […] o branding fornecia um substituto útil do conhecimento pessoal dos produtores.” (HILTON, 2005, p.49).

Além do reconhecimento do local de origem o branding proporcionou crescimento e desenvolvimento económico a uma escala global. Os produtores sem marcas encontravam-se limitados em termos de notoriedade e ao nível das exportações.

Visualmente uma marca pode ter diversas combinações com os elementos: nome, letras, números, símbolos, assinatura, forma, slogan ou cor.

O nome é, sem dúvida, o elemento mais relevante da marca. É uma linguagem, o ponto de referência global e o único elemento que não deve ser alterado ao longo do seu percurso. Os restantes elementos podem ser alterados, redesenhados, por questões estéticas, de moda ou mesmo comerciais. Embora se deva respeitar a continuidade do nome, isso não significa que a marca perdure visualmente apenas pela sua designação (BLACKETT, 2005).

Figura 21 – Redesign da lata de conserva Falstaff (marca registrada da conserveira Júdice Fialho)
Fonte: Museu de Portimão

 

No que diz respeito à indústria conserveira portuguesa, a marca servia para a sua melhor implantação nos mercados estrangeiros, como identificação, prova da proveniência e de qualidade do produto.

A qualidade da sardinha portuguesa era tão desejada nos diferentes mercados que a expansão de marcas brancas começou a concorrer com as marcas autorizadas para exportação, embora a origem portuguesa fosse preservada com a marca cunhada no tampo das latas (BARBOSA, 1941).

Através da listagem anual publicada na Revista Conservas de Peixe podemos constatar que as marcas de fabricantes portuguesas eram dominadas por nomes ou adjectivos do género feminino[1] como Annie, Diana, Lola, Margot, MissBella, Rita, Suzeraine, em oposição ao masculino — Guerreiro — e outras variantes associadas ao mar, localidades — Alvor — ou mesmo deuses mitológicos.

A mulher, representada pelo seu nome, ganha visibilidade, torna-se um ícone comercial, respondendo à dualidade do seu público-alvo: a mulher dona de casa que compra um produto de excelência para a sua família e o homem, consumidor de um produto, que o transporta para diversas leituras relacionadas com o mundo feminino.

As marcas, caracterizadas pelo elemento feminino, eram conotadas nas diferentes vertentes: a mulher doméstica, a mulher fatal, a mulher prendada, a musa inspiradora, entre outras reflexões possíveis. Muitas das marcas portuguesas surgiram de forma singela e simplista como forma de homenagear familiares, figuras religiosas, princesas ou rainhas até mesmo mulheres fantasiosas remetendo ao misticismo.

A transmutação de valores e ideologias num único produto possibilitavam a expansão e divulgação de variadíssimas marcas, que na realidade eram compradas pela própria mulher ou enviadas para muitos campos de batalha, onde a imaginação era fundamental como meio de escape: a imagem feminina, nos seus variados papéis era totalmente adequada e frutuosa.

Para além do género feminino ser o eleito, as marcas de conservas portuguesas tinham o seu nome em língua portuguesa, o que transportava nas exportações para o estrangeiro, o que o país tinha de mais genuíno e verdadeiro.

[1] Consultar no apêndice 1.1 a listagem das marcas de fabricantes publicadas na Revista Conservas de Peixe.

Adicione aqui o texto do seu título

“A cor é a tecla, o olho, o martelo. A alma, o instrumento das mil cordas.” (KANDISNKY, 1987, p. 60)

Abordagem da temática da cor não se resume ao no fenómeno óptico ou ao meio técnico. A cor é determinada pela sua contextualização, por vivências e conceitos que se estabelecem e se desenvolvem ao longo de um percurso (HELLER, 2009).

Na observação pormenorizada das latas de conserva registadas em Portimão, verifica-se uma predominância do amarelo e do vermelho nas ilustrações e nos logótipos que estão aplicados nos envoltórios e nas latas.

O preto, embora tenha uma percentagem maior em termos quantitativos, tinha a sua aplicação visível nos contornos das formas ou na tipografia, cumprindo uma função mais técnica do que ilustrativa.

O verde, o azul, o laranja ou o dourado também eram cores utilizadas em muitos exemplos como podemos observar no gráfico[1] que se segue:

[1] Estudo total de 85 latas de conserva e envoltórios de marcas sediadas em Portimão — 45 gerais e 40 Marie Elisabeth.

Gráfico 3 — Cores aplicadas em latas de conserva e envoltórios do pólo conserveiro de Portimão

Remetendo-nos à época, a escolha das cores tal como as marcas era feita em grande parte pelo gosto do fabricante, por influências artísticas ou sugestão do litógrafo.

Aparentemente, essas preferências não tinham uma fundamentação lógica, mas analisando-as aprofundadamente, constata-se que as opções não seriam tão lineares em termos perceptuais ou mesmo comerciais.

Se reflectirmos sobre a função da cor numa embalagem — neste caso específico lata de conserva —, é essencial que a primeira acção seja captar a atenção do consumidor e de seguida estabelecer uma relação emocional com o produto.

Uma comunicação imediata permite a memorização da marca, agregando pensamentos associados a confiança, a qualidade e ao produto (FARINA, 1982).

Aplicando as qualidades básicas da cor numa embalagem, o produto certamente alcançará a notoriedade e visibilidade necessária para a sua comunicação e comercialização.

Considerando que as cores são estímulos que nos permitem desenvolver a sensibilidade, facilmente o indivíduo define o que gosta ou não gosta, o que é agradável ou desagradável, o que o motiva e desperta curiosidade do que o repugna e o afasta.

Todos estes valores estão aliados a diferentes aspectos sociológicos, psicológicos e fisiológicos, determinantes para as suas escolhas (FARINA, 1982).

De acordo com a tabela 2, podemos compreender as opções feitas para as latas de conserva e envoltórios finais, através de uma interpretação conotativa das cores:

Tabela 2 – Cor e significados

PASTOUREAU, Michel — Dicionário das cores do nosso tempo – simbólica e sociedade. Tradução: Maria José Figueiredo. Lisboa: Editoral Estampa, 1997.
FARINA, Modesto — Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo: Edgard Blücher, 1982.

Actualmente o amarelo e o vermelho estão associados aos produtos alimentares, mas estas cores têm sido aplicadas ao longo dos tempos em diferentes latas de conserva, por serem visualmente atraentes, energéticas e tornarem as embalagens sugestivas, que se destacavam nos pontos de venda, permitindo ao consumidor identificá-las e despertando sentimentos de desejo de consumo.

O consumidor além de se sentir persuadido pela envolvência cromática e sua comunicação, também identificava as diferentes especialidades de conservas através de cores que estavam associadas a ingredientes, como o azeite, o tomate, óleo de soja ou mesmo o picante da malagueta.

Conferimos assim, que o elemento cor permite amplificar uma reminiscência visual recheada de significações que assentam numa pluralidade de relações que, apesar de poder não haver no seu uso uma pré-intencionalidade, pode ser encontrado nos objectos de estudo.

4.3 Tipografia

 

“A boa tipografia requer não apenas um conhecimento do tipo em si mesmo, mas também uma compreensão da relação entre as letras e todas as outras coisas criadas e realizadas pelo Homem.” (BRINGHURST, 2005, p.136).

O desenvolvimento da tipografia no final do século XIX e início do século XX relacionou-se continuamente com os movimentos artísticos, acompanhando-os ao longo da história.

A multiplicidade de influências dos estilos artísticos, possibilitaram a criação e o desenho de vários tipos, embora se consiga sintetizar duas abordagens distintas que mais se destacaram: a ornamentação e o minimalismo.

A vertente da ornamentação tinha como base a predominância da Arte Nouveau, remetendo para formas orgânicas, linhas de construção curvilíneas ou ondulantes, caracterizadas também pela utilização de linhas grossas e contrastantes.

Por sua vez o minimalismo organizou os elementos gráficos da letra através da redução e da simplificação. A racionalidade influenciada pelo Construtivismo, De Stijl e a inovadora Bauhaus sustentaram a concepção de tipos com hastes direitas, formas geométricas, utilizando segmentos de curva sem qualquer adorno (HEITLINGER, 2006).

A crescente produção de diferentes tipos de letra permitiu inovar nos diferentes materiais impressos como os jornais, revistas ou cartazes, mas também nas embalagens de produtos alimentares e outros.

No caso específico das latas de conserva oriundas de Portimão, observa-se que a tipografia era aplicada na informação técnica como as características do produto e na concepção das marcas.

Fundamentada pela interpretação de Robert Bringhurst, constata-se que, aos estilos tipográficos escolhidos pelos litógrafos na informação técnica baseava-se na letra realista ou modernista geométrica, embora a realista fosse a mais aplicada.

Esta opção permitia uma maior legibilidade e volume de informação, num espaço que também era preenchido pela identidade e ilustração do produto.

A letra realista tem a mesma forma básica das letras neoclássicas e românticas, com a diferença de algumas terem patilhas pesadas, classificada por alguns autores como egípcias, ou não terem patilha.

As letras modernistas geométricas, distinguem-se por não terem patilhas ou o seu peso ser igual ao traço principal, composta a partir de formas matemáticas como o círculo e a linha (BRINGHURST, 2005).

Na concepção dos grafismos das latas de conserva era comum existirem diferentes tipos para a hierarquização do texto. O litografo desenhava o texto baseando-se numa família de letras variada, com negritos, condensados ou tipos extremamente largos ou, por vezes, optava pela aplicação do que mais de dois tipos de letras diferentes, para enfatizar a informação.

Figura 26 – Família de letras: influências da Arte Nouveau nas iniciais e realistas nas restantes.
Fonte: Museu de Portimão

Figura 27 – Diferentes tipografias aplicadas: influências da Arte Déco na letra A da marca;
realistas nas restantes e cursivas na nomeação da origem. Fonte: Museu de Portimão

Figura 28 – Lata de conserva Dainty
Fonte: Museu de Portimão

Figura 29 – Lata de conserva Palace
Fonte: Museu de Portimão

 

Na concepção das marcas a aplicação das letras realistas ou modernistas geométricas também se utilizavam, mas com o predomínio dos movimentos artísticos, nomeadamente a Arte Nouveau ou a Arte Déco, ou cursivos simplificados, como se pode observar nas próximas figuras.

Em oposição à informação, a letra dos logótipos, tinha como desígnio criar uma imagem diferenciadora, aplicando tipos de letra já existentes ou inovando com letras personalizadas.

A tipografia, a par dos restantes elementos gráficos, assumiu um papel primordial na valorização de uma identidade, na divulgação dos produtos ou mesmo nas campanhas de sensibilização. As novas linguagens tipográficas permitiram que o final do século XIX e a primeira metade do século XX fosse repleta de criatividade e exploração dos processos de impressão.

4.4 Ilustração

A ilustração de uma ideia, sempre facilitou a comunicação entre os homens ao longo da sua história.

Com a evolução dos diferentes processos de impressão, a ilustração deixou de ser exclusiva ou limitada na sua reprodução, alcançando uma criatividade e liberdade significativa na sua forma e função visual.

A invenção da litografia permitiu aos artistas e litógrafos explorarem e expandirem a ilustração ao nível comercial, na aplicação de livros, jornais, cartazes, embalagens entre outros suportes publicitários. A técnica da cromolitografia proporcionou ao ilustrador a impressão cor a cor, nas diferentes pedras litográficas, reproduzindo de forma correcta os tons e desenvolvendo técnicas de desenho como o pontilhado, aguadas, sombreados, raspões ou salpicos que melhoraram visualmente a comunicação visual com as massas.

Os movimentos artísticos existentes no final do século XIX e metade do século XX, nomeadamente a Arte Nouveau, influenciaram as diferentes disciplinas como a arquitectura, a tipografia e em particular a ilustração.

As figuras femininas eram, por norma, representadas como figura central da composição, com linhas fluídas e orgânicas, dinamizando os diferentes elementos visuais, como a cor e a textura (MEGGS; PURVIS, 2009).

Esta nova linguagem surgiu no final do século XIX, na Europa devida às trocas culturais entre a arte oriental e a arte ocidental, influenciando os artistas na representação estilística de Ukiyo-e, caracterizada por figuras com contornos pretos, cores planas que retratavam cenas do quotidiano com belas mulheres.

A Arte Nouveau não foi só influenciada pela cultura asiática, mas também por diversos estilos como o rococó, os movimentos pré-rafaelitas, o Arts and Crafts e pelos ornamentos celtas.

De igual forma, o desenho linear e geométrico manifestava-se através do movimento Vienna Secession, simbolizando quadrados, rectângulos, círculos, criando ornamentos que se repetiam ou geravam combinações, ilustrando uma elegância visual de formas planas e de maior simplicidade, coincidindo com o culminar da Primeira Guerra Mundial.

As ilustrações das embalagens no geral mantiveram as influências artísticas referidas anteriormente, com entrelaçados e figura humana, mas de forma mais simplificada e moderada resultante das mudanças sociais provocadas pelo conflito.

Nos anos 20 do século XX, a sociedade pretendia o regresso à normalidade, com desejos de mudança, surgindo, em termos artísticos o movimento Déco, caracterizado pelo seu glamour geométrico, com referências à aerodinâmica e recorrendo ao poder da máquina, às cores fortes e motivos ornamentais das antigas civilizações (MEGGS; PURVIS, 2009).

Novos grafismos ilustrativos começavam a surgir de forma a alcançar uma comunicação simplificada e objectiva. Imagens simbólicas eram produzidas através da simplificação das formas naturais tornando-se quase pictóricas, complementadas pelas cores vivas e apelativas que captavam atenção do consumidor.

Outra vertente ilustrativa desenvolvida na época, especialmente para as revistas e jornais, era a caricatura humorística, que retractava a sociedade nos seus hábitos e costumes. Estilo internacional que foi bastante retratado pelas revistas da sociedade portuguesas como Ilustração Portuguesa (1903-1924) ou a Ilustração (1926-1939).

Na investigação desenvolvida sobre as latas de conserva de pescado em Portimão, observa-se que as ilustrações idealizadas foram influenciadas pelas tendências artísticas de cada época, embora tenham sido limitadas devido ao sistema político instaurado no Estado Novo.

As características predominantes nas ilustrações das latas de conserva de peixe foram os motivos sintetizados, representados em contorno, permitindo que as cores planas ocupassem grandes extensões e os motivos ornamentais, aplicados nos tampos e corpo da lata.

A figura feminina era um tema bastante retratado na indústria conserveira, a sua composição centrava-se ou na face ou na figura de perfil realçando a sua beleza, em alguns casos a ilustração era simplificada e sem pormenores.

A temática marítima era representada através das cenas do quotidiano, dos pescadores na faina, com ilustrações que transmitiam profundidade, dando a noção de que os barcos partiam em busca do pescado ou na apanha do peixe, descrevendo acções.

O peixe como ícone, era incluído em diversos casos como a ilustração principal ou também como elemento decorativo, que se repetia. Os elementos decorativos aplicados em determinadas latas tinham influências da Arte Nouveau e da Arte Déco.

As formas orgânicas e os elementos florais ornamentavam as molduras, transmitindo uma linguagem romântica e feminina, e os elementos geométricos, comunicavam uma simplicidade eficaz e ritmada, criando vivacidade e energia.

Como o avanço da tecnologia, a ilustração assume um lugar menos significativo e a fotografia evidencia-se começando a ser implementada nos grafismos das latas e dos envoltórios, apresentando a imagem real do produto e a própria marca, correspondendo às necessidades dos consumidores e das estratégias publicitárias.

Figura 30 – Lata de conserva Brillat
Fonte: Museu de Portimão

Figura 31 – Lata de conserva Rita
Fonte: Museu de Portimão

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