“A aprendizagem por imitação ou repetição permite uma considerável economia de energia e uma garantia de limitação de riscos, mediante a reprodução de comportamentos já experimentados e seguros. O mimetismo social constitui uma das forças de coesão e continuidade da espécie.”25
25 In Dicionário de Pedagogia, Mauro Laeng, publicações D. Quixote (2.ª edição), Lisboa 1978 (pág. 49).
A rápida e quase sempre bem sucedida, aprendizagem dos rapazes e raparigas que se iniciavam no trabalho fabril, tinha como primeira e talvez única motivação a sobrevivência. Oriundos, na sua maioria de famílias de operários e pescadores, o trabalho destes jovens e crianças constituía um recurso indispensável. Mal alimentados, mal agasalhados e em alguns casos pouco estimados estes jovens aprendizes eram treinados para aceitar as duras condições do trabalho na fábrica de conservas. Trata-se de uma forma consciente e intencional de aprendizagem sensorial e motora que reproduz miméticamente gestos, atitudes e comportamentos já experimentados pelos operários mais velhos, em muitos casos familiares ou vizinhos “a aprendizagem é intencional, se estiver orientada de modo sistemático após uma tomada de decisão pelo sujeito discente”(26) Esta transmissão de conhecimentos era o legado (sofrido) de uma mãe a uma filha ou a alguém a quem se queria bem mas a quem nada mais se tinha para dar. O trabalho era o único garante de sobrevivência era “o pão para a boca”. Esta aprendizagem coerciva constituía um treino duro para os que a ele se submetiam, mas resultava fácil e barato para quem dele se apropriava. Os patrões das fábricas (industriais conserveiros) formavam assim, a baixos custos, sem qualquer investimento, toda a mão-de-obra de que necessitavam e que só ficava habilitada para trabalhar neste ramo da indústria. Na sua quase totalidade analfabetos estes operários estavam dependentes das fábricas de conservas que, até meados deste século, absorviam toda a mão-de-obra disponível.
“… a distinção entre o rendimento do trabalhador do trabalhador e o da empresa permaneceu formal enquanto o operário não podia escapar efectivamente à empresa, ou a um ramo da indústria bem preciso e homogéneo, nem o patrão separar-se facilmente do seu empregado. Era, por exemplo, o caso do artesanato em que a prática e aprendizagem do trabalho se confundiam em grande parte, de modo que na oficina só um número restrito de operários, ou mesmo apenas um, se encontrava preformado para assegurar um dado posto. A empresa tinha necessidade do trabalhador que ela tinha produzido, e este trabalhor só podia utilizar as suas capacidades nesta empresa, ou numa outra perfeitamente semelhante. A noção de qualificação, no sentido moderno, não teria tido qualquer significado, pois não se teria podido isolá-la da tarefa precisa do operário, do seu papel, do seu grau hierárquico, nem da situação da sua oficina. O salariato, se se encontra aí, funciona de uma maneira completamente diferente do que na indústria moderna traçando ao operário um destino muito diverso. O operário não é exterior à empresa mas coincide com ela. Sabe-se que, para evitar a constituição de unidades concorrentes e a emigração de métodos produtivos, foi necessário, até ao início da indústria, restringir autoritariamente as deslocações dos (27) operários de ofício.
26 In “Dicionário Geral das Ciências Sociais e Humanas” – Direcção de G. Thines e Agnés Lempereur, Edições 70 (pág.82).
27 In “Introdução à Sociologia do Trabalho”, Pierre Rolle, edições A regra do jogo, Lisboa 1978 (pág. 237).
Das mulheres esperava-se uma aprendizagem rápida baseada na rentabilização de saberes e habilidades domésticas que desde cedo as preparava para a eventualidade (quase destino) de virem a trabalhar na fábrica. A titulo de exemplo, foi-nos dado a verificar que a operação de “descabeçar” e tirar a espinha do peixe sem o amassar não é operação fácil para uma iniciada nestas lides. Só a prática trazida de casa (intencional) lhes facilitava a aprendizagem. As mulheres “levavam para casa” as técnicas e saberes que de um modo natural antecipavam a aprendizagem dos jovens. O recrutamento de mão-de-obra mão de obra para trabalhar nas fábricas de conserva baseava-se essencialmente no empenhamento de familiares e de vizinhos. Esta situação levava a que se desenvolvessem relações informais de compromisso e solidariedade que facilitavam a iniciação dos mais jovens no trabalho e na disciplina fabril.
«Fui para lá como? Fui aos 12 anos, e um tipo chamado o Zé Pequeno, que já morreu, faleceu há pouco tempo, lá disse “Eu preciso de um rapazinho para ali, para a conserva”…, fui para lá, fui estanhar folha, para os soldadores.» (Raminhos, antigo trabalhador)
«Fui para lá porque a minha avó, a minha mãe e as minhas tias trabalhavam na indústria» (Anabela, antiga Operária)
As conserveiras que entrevistamos verbalizam que o mérito da aprendizagem se deve apenas à sua capacidade e esforço pessoal “Ninguém me ensinou nada eu é que tive que aprender” (Carolina – 1998 – Ex. operária da fábrica Perienes). Este sentimento é expresso pela maioria das operárias entrevistadas que se orgulham da forma expedita como interiorizavam as regras e preceitos do trabalho “ia ter com a minha mãe e estava ao pé dela e depois (…) eu via como ela fazia a encaixar a lata ou a cortar com a tesoura, o preceito de encaixar” (Francelina Baptista Dias, operária conserveira – 1999).
Relativamente aos homens que trabalhavam essencialmente com máquinas, a aprendizagem implicava a observação e experimentação, pois só prática permitia atingir os ritmos da produção e minimizar os riscos.
“… via sempre muito e fazia muito (…) onde eu ponho as mãos não fica rasto (…) às vezes os meus irmãos iam à casa de banho e diziam: “Ó Ermelindo anda cá!! Põe-te aqui sentado à máquina, e eu ia… estava ali, não cravava 20 latas, cravava 5 e entretinha-me ali e via, estava a ver, estava a aprender e assim fui… depois fiquei como moço de fábrica porque já sabia cravar lata, ía para a máquina cravar a lata (…) era uma Alban, cravava 18 latas por minuto” (Ermelindo Venâncio, Trabalhador fabril conserveiro).
O operário era formado na fábrica para aquela função e ficava “senhor do seu posto de trabalho” de tal forma que quando eram introduzidas máquinas mais modernas era testada pelos patrões a sua destreza e capacidade de aprendizagem para decidir a compra “Quando vieram as máquinas mais modernas… o meu patrão mandou-me aprender para o Algarve (…) para aprender eu fui lá, aprendi, vi, aprendi… estive lá duas semanas, estive a trabalhar com aquela máquina, vi as primeiras vezes (…) depois comecei a trabalhar (…) quando cheguei aqui ele (o patrão) disse-me: – Então deste-te lá bem?, dei. Então pode-se comprar? Pronto ele comprou a máquina e eu nessa já cravava 49 por minuto. Aquilo era da prática, era só prática…” (Ermelindo, Trabalhador fabril conserveiro).
Há casos em que o operário conseguia atingir um nível elevado de especialização, nomeadamente ao nível da mecânica e serralharia sendo aliciado a permanecer no seu posto de trabalho e impedido de se ausentar para o estrangeiro. “Tenho a carta profissional do Sindicato da Metalúrgica como serralheiro de primeira.
– Aprendi… o meu patrão um dia mais tarde os agradecimentos que ele me deu foi quando houve a fábrica… nos anos 48,49 começou a haver crises de trabalho e os operários… e ele passava-me a mim também e quando ocupei o trabalho da mecânica… eles é que me convidaram… e eu disse a eles gostava do ordenando mensal, que na maioria das fábricas os serralheiros tinham o ordenado mensal, e ele me disse: “Tu não és serralheiro. ” e nunca me deu (…) um dia mais tarde eles foram obrigados a dar um homem à metalúrgica e deram-me a mim, o empregado de escritório, o patrão não soube e … eu apercebi-me disso, que o patrão não soube de forma que um dia eles passaram-me várias vezes três dias de trabalho e um dia eu pensei que não devia estar a pedir para me dar mais umas horas… Fui para Marrocos (…) mas não podia ir com o passaporte… naquele tempo, no tempo do Salazar não deixavam sair as pessoas que tinham a minha profissão. só comerciantes e industriais é que deixavam ir. Eu era serralheiro (…) fui clandestinamente (…) o patrão era Argelino (Francês) (…) confiou em mim e deu-me logo trabalho.