A análise destes quadros permite-nos deduzir que o espaço fabril se organiza em função de um sistema profissional onde predomina uma elevada componente de força de trabalho, maioritariamente feminina (200 mulheres / 20 homens), que realiza operações em cadeia. A matéria, o peixe, entrava nas fábricas e ia para as mesas onde se iniciava um ciclo de manipulações diversas. As várias operações desenvolviam-se através de actividades manuais (descabeçar, temperar, engrelhar, lavar, encaixar e azeitar, etc.) com recurso a pequenos utensílios(tesoura, pinças, cabazes, latas e grelhas) e a utilização de máquinas automáticas ou semi-automáticas. A cadeia de operações materializa-se espacialmente em postos fixos constituídos por equipamentos e máquinas:
1. Mesas e bancos para descabeçar (com tampos de madeira ou mármore)
2. Mesas com dobadouras e grelhas para engrelhar (madeira com tampos de mármore e grelhas de metal)
3. Pios de salmoura (em cimento)
4. Pio de lavagem
5. Autoclave para cozer o peixe
6. Mesa de enlatar
7. Cravadeira para cravar os tampos da lata
8. Cofres de esterilização (método Appert)
Sendo a circulação do produto assegurada pela massa operária e analisando o espaço fabril na sua globalidade, verifica-se a existência de duas zonas distintas: a dos trabalhos de mesa (22) e pio de lavagem, onde trabalham essencialmente as mulheres e raparigas para manipulação do peixe e outra constituída por máquinas e para as caldeiras para cozedura, esterilização e produção de energia e cravadeiras que era o território dos homens.
(22) Nome indígena utilizado pelas operárias
«Era a primeira coisa que a gente ia fazer era aprender a descabeçar o peixe, os trabalhos de mulheres também era meter na lata e encaixar. Cortava-se a cabeça ou o rabo e depois punha-se na lata, depois aquela lata ia a uma máquina para encher de azeite. E depois de meter o azeite, tirava-mos aquilo para uns tabuleiros, carregava-se para outras máquinas que eram as “lobas” (máquinas marca Lubin) chamavam-se as cravadeiras mas eram as “lobas” e depois então é que iam a uma mezinha, naquela máquina, a gente punha os tampos e depois aquilo acalca para baixo e ficavam cravadas as latas. Os homens é que estavam nas caldeiras, carregavam o peixe para cima das mesas, chamavam até os carregadores com os cabazes à cabeça, andavam a carregar para cima das mesas. À medida que iam carregar para cima das mesas, a gente íamos descabeçando, tirando a cabeça e íamos pondo dentro de uns cestos, quando o cesto estava cheio ia-se pôr para uma moura, nós púnhamos, os homens tiravam porque era mais pesado. A gente é que púnhamos as sardinhas nas grelhas e depois aquelas grelhas, a gente agarrava, ia a um pio muito grande e lavava-se aquilo, depois íamos levar a um carro onde já estavam duas mulheres a meter o peixe nos carros, aí já eram os homens que levavam os carros para dentro das caldeiras para cozer o peixe, depois tiravam o peixe e deixavam arrefecer e quando ficasse frio tiravam as grelhas e depois punham em rumas e nós no outro dia íamos encaixar, depois havia o azeitar, eram umas máquinas que tinham umas torneirazinhas muito pequeninas, que a gente é que punha uma correnteza e a lata corria, carregava-se num botão, a máquina começava a trabalhar e a gente punha a lata a correr e o azeitar corria para dentro da lata».
Como vemos por este testemunho, nunca o sexo masculino fazia trabalhos de mesa, nem as mulheres iam ao autoclave, fornos ou caldeira. Apesar de o argumento ser a habilidade versus força, na realidade pesava nas representações sociais dos operários, as divisão sexual do trabalho e prolongamento dos quotidianos domésticos: trabalhos femininos, trabalhos masculinos. A única situação em que esta evidente divisão sexual e espacial do trabalho se altera, coincide com o momento da substituição da cravadeira mecânica pela automática. A primeira movida por um pedal, exigia força e sincronização e era accionada por um homem. Na automática já trabalhavam mulheres que apenas tinham que se submeter ao ritmo da máquina.
Nas fábricas que para além das conservas (o cheio) também fabricavam a lata (o vazio) existia uma distinção e separação total entre estes dois espaços (cada qual em seu piso) situando-se nomeadamente “o cheio”, fabrico, acondicionamento e armazenamento da conserva no r/c pelo fácil acesso da matéria prima, saída do
produto e utilização de águas, sal e outros ingredientes e “o vazio”, ou fabrico de latas, num primeiro andar ou numa dependência à parte pois tratava-se de uma oficina com características diferentes. O escritório ocupava um lugar de destaque e suscitava a intimidação/atracção, não só pela situação estratégica de controlo, mas porque era um lugar limpo, isolado do barulho e dos cheiros e lidava com saberes e materiais que não fazem parte do quotidiano da maioria dos operários e operárias, que eram analfabetos e habitavam casas abarracadas e pátios sem qualquer conforto. Também era no escritório que se controlava o tempo e assiduidade. O mestre e o encarregado que nomeadamente era o patrão circulavam por toda a fábrica, posicionando-se por vezes numa plataforma ou varandim para controlar as operações.
A industria conserveira caracteriza-se por uma elevada força de trabalho em que predomina a corporalidade (23) ou seja onde a intervenção humana é decisiva, mediada por uma fraca presença de máquinas especializadas em sequência, produção em pequenos lotes e portos individuais fixos. Esta tipologia aproxima-se do modelo «taylorista». (24)
(23) João Freire, Variações sobre o Trabalho, pág. 3 Afrontamento Porto Junho 1996
(24) João Freire, Ibidem, pág. 41
A cravadeira era o símbolo da moderna industria de conservas de peixe, ocupando um lugar de destaque no espaço fabril, ladeada pelos aparadores, mesas que serviam de apoio à colocação das latas. Apesar de não ser uma máquina de grande porte, evidenciava-se porque era alta e estava normalmente instalada numa área desimpedida, ocupando um lugar de destaque, numa zona mais retirada onde os operadores podiam movimentar-se livremente e desenvolver o seu trabalho com concentração. Este avanço tecnológico foi causador do maior surto de desemprego na industria conserveira.
«A entrada da cravadeira foi uma grande desgraça que houve para o soldador. Aí depois veio ás montadeiras, as montadeiras vieram fazer o trabalho do soldador, e depois as pessoas começaram a despedir os soldadores, não é…, não havia leis naquele tempo e os soldadores ficaram desempregados muitos deles, e ficou aqueles que mais ou menos fazia falta para soldar a lata rota, ou outras coisas poucas que de vez em quando apareciam. Os soldadores foi uma desgraça quando apareceram as montadeiras, as montadeiras vieram fazer o trabalho do soldador. Cravadeira é uma coisa montadeira é outra, a montadeira é para soldar, as tiras que o soldador fazia e antes disso haviam as rebordadeiras que eu não sei dizer bem, para fazer a borda às tiras e mais tarde veio as topadeiras que já fazia a borda de cima e a borda de baixo.
As cravadeiras eram para cravar as latas. Do armazém vinha uma carrada de vazio, com borrachinhas que se punham na lata depois do peixe encaixado, e cravava-se a lata»
(Adelaide, mestra conserveira, 1999)