ARTE DO VAZIO - A COMUNICAÇÃO VISUAL NAS LATAS DE CONSERVA DE PESCADO PORTUGUÊS

Ana Lúcia Gomes de Jesus

Orientador: Professora Doutora Cândida Teresa Pais Ruivo Pires
Co-orientador Prof. Doutor Vitor Manuel Teixeira Manaças

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Escola de Comunicação, Arquitectura,  Artes e Tecnologias da Informação
Lisboa 2012

Porque o futuro é feito do passado, dedico esta investigação a todos aqueles que outrora prestaram horas e vidas à indústria conserveira, em particular aos ilustradores e litógrafos que nos legaram tão rico testemunho.

RESUMO

A indústria conserveira foi um dos motores impulsionadores da indústria transformadora existente em Portugal, desde o final do século XIX até meados do século XX.

A expansão geográfica de pólos conserveiros tornou-se numa realidade de norte a sul do país, particularmente na região algarvia.

Portimão foi uma das localidades onde se implementaram diversas unidades fabris, nacionais e estrangeiras e onde diversas marcas foram desenvolvidas, nomeadamente, a Marie Elisabeth Brand.

A importância desta indústria não se limitou só ao sector alimentar, mas a todas as áreas subsidiárias que emergiram e progrediram em volta das fábricas conserveiras.

Com as novas tecnologias a indústria conserveira evoluiu na concepção das latas de conserva, no seu design, nos materiais utilizados, nos processos de conservação e na sua comunicação visual.

O processo de impressão litográfico — desenvolvido por ilustradores e litógrafos —, permitiu a criação de uma linguagem gráfica moderna e diversificada, possibilitando a exploração livre de alguns elementos gráficos — a cor, a ilustração e a tipografia —, permitiu revelar, num objecto do quotidiano, a identidade do país nos diferentes mercados internacionais.

ABSTRACT

The canning industry was one of the main central drivers of the manufacturing industry in Portugal, since the late 19th century until the mid-20th century.

The geographic expansion of fish product processors poles became a reality from North to South of the country, particularly in the Algarve.

Portimão was one of the regions where they have implemented several factories, foreign and domestic, and where various brands were developed, in particular, the Marie Elisabeth Brand.

The importance of this industry was not limited only to the food sector, but all areas subsidiaries that emerged and progressed around the canning factories.

With the advances in new technology the canning industry evolved into the design of preservation cans, in its design, materials used, in the processes of conservation and its visual communication.

The lithographic printing process — developed by illustrators and lithographers —, allowed the creation of a modern graphical language and diverse, allowing free use some graphics — the color, illustration and typography —, has revealed, an object of daily use, the identity of the country in different international markets.

INTRODUÇÃO 

CAPÍTULO 1 — O “SÉCULO DAS MASSAS”

Contextualização

CAPÍTULO 2 — A INDÚSTRIA CONSERVEIRA 

2.1  Portugal e a indústria conserveira

       2.2.1 Exportação das conservas

2.2  A arte do cheio e a arte do vazio 

       2.2.1 Arte do cheio

       2.2.2 Arte do vazio

Introdução

“(…) entendendo o passado seremos capazes de dar continuidade ao legado cultural da bela forma e da comunicação eficaz.” (MEGGS, 1983, p.11)

O passado e a memória colectiva foram um dos principais pontos de partida para o desenvolvimento desta dissertação. A procura de vestígios de um passado visual, de um objecto que pertencesse ao nosso quotidiano através da sua funcionalidade e mensagem, foram determinantes para a escolha do objecto de estudo.

Partindo destes pressupostos, as latas de conserva permitem abordar três aspectos importantes: um objecto de design, fundamental para o Homem, a sua comunicação visual e uma das maiores indústrias portuguesas, que se desenvolveu durante o século XX, sendo exportada para diferentes pontos do mundo.

Ao iniciar as primeiras pesquisas sobre a indústria conserveira em Portugal, facilmente se descobre a multiplicidade de caminhos que já foram explorados no âmbito histórico, social, económico, alimentar entre outras vertentes que enalteceram a indústria conserveira e seus produtos estando, no entanto, por explorar toda a sua comunicação visual e grafismos peculiares, deixando um vazio literário nas áreas associadas à criação e concepção das latas de conserva de peixe ou mesmo à produção associada ao processo da arte do vazio.

A necessidade de compreender de onde partimos até onde podemos chegar conduz-nos à questão do que realmente sabemos sobre o design de comunicação em Portugal.

Diferentes publicações fazem referência ao Design em Portugal e à sua evolução como a História do Design em Portugal I, mas sempre numa perspectiva redundante do que foi o design gráfico e a comunicação visual, com reflexões limitadas aos projectos concebidos em papel, como cartazes e publicações periódicas. Sobre a produção industrial e no que diz respeito a equipamentos domésticos e urbanos de maior porte e sobre o seu historial em Portugal, também podem ser encontrados, se não publicações, alguns estudos académicos[1].

[1] MANAÇAS, Vítor Manuel Teixeira – Percursos do design em Portugal [texto policopiado]. Lisboa: Universidade de Lisboa através da Faculdade de Belas Artes, 2006 [s.n.] 4 vol. Tese de Doutoramento em Belas Artes (Design de Equipamento). Orientador: Rogério Fernando da Silva Ribeiro.

Encontra-se, porém, um fosso quando se procura algo relacionado com os objectos do quotidiano, como as latas de conserva que comunicaram um produto de excelência mais externamente que internamente, impulsionando a identidade portuguesa nos mercados externos.

Contrariando essa tendência, e numa atitude exploratória, a presente dissertação iniciou o seu processo de investigação no início do século XX até à década de 60, eliminando os principais pólos conserveiros de Portugal, Setúbal e Olhão.

A escolha geográfica para aprofundar a temática da comunicação visual nas latas de conserva portuguesa incidiu, assim, sobre o pólo conserveiro de Portimão, devido ao acervo existente nesta localidade, o que permitiu uma análise aprofundada dos elementos visuais na generalidade das marcas e, em particular, por ter sido o local de produção da marca Marie Elizabeth Brand que veio a ser o nosso estudo de caso.

A investigação sobre as latas de conserva de peixe do pólo conserveiro de Portimão não teve como objectivo distinguir quem fez, mas o que se fez, como foi projectado e quais os processos inerentes a cada fase até à sua comercialização.

Os objectivos específicos para a fundamentação da dissertação pretendem assim:

  • Enquadrar e valorizar a indústria conserveira portuguesa no início do século XX até meados da década de 60;
  • Descrever a arte do vazio — desde a impressão da folha de flandres, às diversas fases de concepção do corpo da lata — e a arte do cheio — processos do desenvolvimento do produto;
  • Definir os elementos visuais predominantes nos grafismos das latas de conserva, enquadrando uma leitura transversal ao longo das diferentes épocas;
  • Cartografar e sistematizar as marcas existentes no pólo conserveiro de Portimão;
  • Apresentar e caracterizar a marca, as latas e envoltórios Marie Elizabeth Brand, observando e qualificando os seus elementos gráficos, — marca, cor, tipografia, ilustração — nas provas existentes ao longo das diferentes épocas.

A elaboração da dissertação foi baseada na metodologia qualitativa, objectivando uma melhor compreensão e interpretação dos significados e significações da linguagem visual utilizada nas latas de conserva de pescado do pólo de Portimão.

Os instrumentos utilizados para a sistematização da investigação basearam-se na recolha de dados, através da captação de imagens de acervos e inventários, na entrevista, observação e análise dos conteúdos, dando seguimento a um tratamento detalhado da informação da história da indústria conserveira portuguesa, das latas e dos elementos estruturais da comunicação visual nelas implementada.

O estudo de caso foi também uma das ferramentas utilizadas nesta pesquisa com o objectivo de explorar as particularidades da marca Marie Elisabeth Brand e o seu percurso, o que permitirá descrever, interpretar e desenvolver leituras que possibilitem a construção de significados induzindo a uma reflexão mais atenta e detalhada sobre o design de comunicação nas latas de conserva de pescado português.

A presente dissertação encontra-se estruturada em três partes distintas: a introdução, o objecto de estudo e a conclusão.

O objecto de estudo engloba a seguinte ordem: o primeiro capítulo, que tenciona contextualizar as transformações operadas no início do século XX, os factores socioeconómicos, culturais e tecnológicos, que permitiram um novo posicionamento e uma nova visão sobre as necessidades das massas.

O segundo capítulo retrata a realidade de uma das maiores indústrias que operou em Portugal durante mais de um século, a indústria conserveira, a sua implementação, a sua ascensão e as suas duas áreas específicas: o cheio e o vazio.

No terceiro capítulo, aprofunda-se a temática da arte do vazio, centrando-nos no objecto de análise — a lata de conserva — investigando a sua origem e funcionalidade, materiais, formatos, processo de impressão e divulgação.

O quarto capítulo evidencia a comunicação visual, através da observação geral dos elementos visuais predominantes nas diferentes latas de conserva de pescado, do pólo conserveiro de Portimão e, por último, o quinto capítulo visa o estudo pormenorizado da marca Marie Elisabeth Brand, tentando caracterizar uma das marcas portuguesas mais conceituada nos mercados externos.

Os apêndices e anexos contêm informação complementar que possibilita o esclarecimento de certos conteúdos abordados nos capítulos anteriores.

CAPÍTULO 1 O “SÉCULO DAS MASSAS”

1.1  Contextualização

“Vertiginoso e dramático marcado decisivamente, desde os finais do que o procedeu, nas sociedades mais desenvolvidas, e depois nas periferias do sistema mundial, pela irrupção das massas a todos os níveis da vida social. Século do povo, portanto ou século das massas, se se preferir.” (ROSAS, 1997, p. I)

As primeiras décadas do século XX foram particularmente caracterizadas pelos seus excessos, pelas suas evoluções e revoluções, pelo seu fervor, mas fundamentalmente a sua maior mudança decorreu ao nível do pensamento e da mentalidade.

A vida social, política, cultural e económica alteraram-se devido ao crescimento demográfico das grandes urbes, como Rosas afirma: “são as massas, os seus movimentos, as suas necessidades, o exponencial crescimento demográfico que ditam, mais uma vez, as grandes transformações económicas e sociais do século.” (ROSAS,1997, p. III).

A Revolução francesa e inglesa impulsionaram a luta pela igualdade social, o crescimento da alfabetização e o acesso à educação nos diferentes níveis para todas as classes sociais, mas a grande transformação ocorreu ao nível das condições de vida, do trabalho e da organização social após a Primeira Guerra Mundial.

Os aumentos salariais, a conquista de direitos sociais e políticos, a entrada da mulher no mercado de trabalho e vida pública, a alteração dos valores da vida privada, familiar e os novos pressupostos sobre a sexualidade impulsionaram novas reflexões, novas abordagens por parte dos escritores e artistas, criando novos conceitos e linguagens que questionavam e cortavam com as convenções existentes, assolando a visão objectiva e conservadora do mundo (ROSAS, 1997).

Meggs afirma: “ideias elementares sobre a cor e forma, protesto social e a expressão das teorias freudianas e estados emocionais profundamente pessoais ocupavam a mente de muitos artistas” (MEGGS; PURVIS, 2009).

Beneficiando das novas reflexões e do enorme progresso científico e tecnológico iniciado na viragem do século XX, o comércio e a indústria evoluíram substituindo a produção artesanal pela produção mecanizada.

Sistemas de produção em série foram desenvolvidos, novos métodos criados e a estandardização de peças simplificaram os diferentes processos das linhas de montagem, respondendo às necessidades emergentes desta nova sociedade de consumo.

O aperfeiçoamento e a criação de novos engenhos e materiais possibilitaram o aparecimento de novos meios de transporte, facilitando o deslocamento dos fluxos migratórios, e a difusão dos novos meios de comunicação, os mass media.

A divulgação da informação e das ideologias políticas difundiram-se através da propaganda com efeitos sociais opostos. Nos Estados Unidos da América a comunicação invocava a liberdade de expressão, o consumo, os valores e bons costumes, a uma vida cultural enriquecida, sobressaindo o pluralismo informacional.

A realidade europeia e da união soviética centrava-se num monopólio, no controlo do Estado sobre os diferentes meios de comunicação, sustentando a ideia de que o Estado representava o interesse público e se encontrava acima de qualquer interesse individual (LECLERC, 2000).

A comunicação verbal e visual transformou-se num motor indispensável para a propaganda dos conflitos políticos e guerras que despoletaram durante a primeira metade do século XX por toda a Europa.

Com o desenvolvimento das artes gráficas no inicio do século XX, a comunicação visual tornou-se acessível a todas as classes, com uma forte componente comercial.

Conscientes da importância da representação figurativa numa comunicação eficaz com o público, nas primeiras décadas a concepção dos cartazes, anúncios, embalagens alternavam entre imagens expressivas ou simbólicas.

A crescente confiança nas novas tecnologias possibilitou a criação de linguagens vanguardistas com novos registos, conforme Fiell afirma: “a utilização de formas geométricas arrojadas, letras minúsculas e disposições simplificadas.”(FIELL, 2003, p.20).

Visualmente procurava-se obter a clareza comunicativa, fundamentada por princípios racionais através de tipos sem serifas, composições assimétricas, grelhas, criando uma relação conceptual com os tempos de austeridade, através de uma estética minimalista, reduzida ao essencial, privilegiando o conceito de que a forma segue a função.

Durante a Segunda Guerra Mundial, e mesmo após o seu termo, a comunicação visual tornou-se directa com imagens fortes e uma simplicidade formal, procurando criar impacto na percepção das mensagens. A expressão vanguardista europeia continuou a ser aplicada tanto por europeus como americanos, que desenvolviam de forma dinâmica e até humorística a mensagem visual (FIELL, 2003).

Portugal, em conformidade com o resto dos países europeus, nas primeiras décadas do século XX, padeceu de constantes alterações ideológicas, entre a democracia e a ditadura militar.

A instauração da I República Portuguesa com a revolução de 5 de Outubro de 1910, tinha como propósito a regeneração da sociedade, evoluindo e procurando a estabilidade social e económica tanto em termos qualitativos como quantitativos.

Com a participação na Primeira Guerra Mundial, comprometeram-se todos os ideais firmados para a regeneração do país, agravando a crise económica que já se encontrava instalada no país, facilitando a penetração do regime ditatorial com o golpe de estado de 28 de Maio de 1926, surgindo um novo regime dividido em duas fases: o Estado Novo sob o poder de António de Oliveira Salazar e o Estado Social presidido por Marcelo Caetano (VITORINO, 1994).

O conceito de Estado Novo conforme Nunes refere: “foi um termo inventado e sistematicamente utilizado por aqueles que, de forma mais decisiva, contribuíram para a estruturação e reprodução do novo regime — com destaque para o próprio António de Oliveira Salazar” (NUNES, 1994, p. 305).

A mensagem que se pretendia transmitir era de tempos de mudança: o caos e a decadência faziam parte do passado, este novo estado evocava a revolução nacional, a construção de algo superior e sublime, baseado nos valores da família e do orgulho nacional.

Antes do Estado Novo, a cultura e as artes sofriam influências das correntes europeias, nomeadamente o Modernismo, permitindo um crescimento na literatura e nas artes plásticas com diferentes correntes estéticas, que acabariam por escandalizar as mentes mais conservadores sendo posteriormente controladas pelos regimes políticos instituídos, condicionando todo o tipo de registo que induzisse a alguma forma de oposição.

O desporto, particularmente o futebol, ganhou visibilidade e tornou-se um dos maiores divertimentos de uma sociedade controlada pela propaganda que difundia os valores da ditadura militar.

Os quarenta e oito anos de ditadura decorreram com estratégias sociais, económicas e culturais muito marcadas, que sustentaram o desenvolvimento económico, cimentando a estabilidade financeira através do corporativismo, do conservadorismo, da colonização e mais tarde no esforço de industrialização que ficaria comprometida com a Revolução de 25 de Abril de 1974 (NUNES, 1994).

CAPÍTULO 2 A INDÚSTRIA CONSERVEIRA

2.1 Portugal e a indústria conserveira

“A abundância de peixe e a sua qualidade, a extenção da linha de costa e a tradicional inclinação para as artes de pesca, por um lado, a simplicidade da técnica e o diminuto capital a inverter, por outro, criaram, entre nós condições favoráveis ao estabelecimento da indústria de conservas de peixe” (NAVARRO, 1941, p. 47).

A implementação da indústria conserveira em Portugal ocorreu nos finais do séc. XIX, com o fabrico de conservas de atum, operando desde 1865 em Vila Real de Santo António. Por volta do ano de 1880 em Setúbal, Lorient F. Delory, industrial francês decidiu estabelecer a primeira fábrica de sardinha, devido à escassez que se encontrava na costa de Bretanha (BARBOSA, 1941).

Após a criação das primeiras fábricas no país, o crescimento e a evolução da indústria conserveira portuguesa de peixe multiplicou-se de forma acelerada, relativamente com outros países produtores como Espanha, Itália ou Áustria.

Passados estes primeiros anos de prosperidade, em 1890, Portugal sentiu um enfraquecimento nas exportações devido à competitividade francesa, conseguindo, no entanto, passados seis anos, restabelecer e superar os preços anteriormente praticados.

Progrediu de tal forma, que acabou por tornar-se numa indústria de excelência, empregando tantos trabalhadores quanto a indústria têxtil ou a tabaqueira (PERDIGÃO, 1938).

Neste sentido Barbosa afirma: “o seu desenvolvimento vai-se acentuando cada vez mais e a capacidade de resistência perante a concorrência que as indústrias congéneres estrangeiras lhe movem no mercado mundial, aumenta também” (BARBOSA, 1941, p.19).

Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a expansão da indústria conserveira sucede-se, não só devido ao aumento do consumo, mas também devido às medidas restritivas implementadas em certos países produtores de conservas. Em 1917, já existiam 188 fábricas a laborar, empregando cerca de 14.679 operários, alcançando depois dela, em 1925, cerca de 400 fábricas em Portugal (BARBOSA, 1941).

No entanto, na década de 20, a crise instituiu-se na indústria conserveira, por distintos factores, desde os socioeconómicos ao desprovimento do produto. A carência da matéria prima, os diferentes ajustamentos económicos que se realizaram no pós-guerra, a quebra dos mercados externos, os ajustamentos dos débitos e créditos internacionais mal solucionados, ou a política de auto-suficiência de muitos países na época, tornaram inevitável o enfraquecimento provisório.

Considerando o panorama desta indústria e seu patronato, testemunha-se que a ausência do ensino industrial, a diminuição financeira das empresas, a falta de formação comercial das exportadoras — perante os constrangimentos da guerra e as trabalhosas exigências para obtenção de crédito — indexavam os principais fundamentos para o estado preocupante da situação (BARBOSA, 1941).

Em 1927, em Setúbal, realizou-se o Congresso de Pescas e Conservas, com o objectivo de deliberar e executar novas medidas que auxiliassem a ultrapassar a crise estabelecida nos anos anteriores. As diferentes propostas que foram difundidas, auxiliaram a execução e elaboração de vários diplomas legais que visavam fortalecer a organização da indústria conserveira de peixe.

Somente em 1931, com a queda inesperada dos preços, houve uma consciencialização por parte do Governo e pelo Ministro das Finanças Oliveira Salazar, que iniciou um inquérito. Este resultou na publicação de «Notas sobre a indústria e o comércio das conservas de peixe», documento que impulsionou a organização da indústria.

A metodologia adoptada para as novas medidas realizou-se de forma indirecta, começando não pelo princípio — a indústria —, mas pelo fim do processo — o comércio de exportação. A aposta de Oliveira Salazar nesta opção, deveu-se ao baixo consumo interno de conservas, quando comparada com os altos níveis de exportação existentes na altura.

A sua estratégia de manter e intensificar a exportação das conservas foi uma prioridade. Inicialmente, a finalidade seria a organização da exportação, depois o desenvolvimento da própria indústria conserveira e, por último, a pesca e respectivo consumo de peixe, conforme Barbosa expõe:

“Monopolizando todo o comércio externo num centro exportador de conservas, formado industriais interessados na exportação, desde que as instalações e o seu fabrico corresponde às condições que fora determinadas. (…) A política da qualidade, — tomando esta no sentido da perfeição no fabrico, exactidão no pêso, designação precisa da mercadoria —impôe-se, pois gozando nós duma superioridade marcada da matéria prima, convêm-nos valorizar ao máximo o que a natureza liberalmente nos dà.” (BARBOSA, 1941, p.25).

Após a definição destes fundamentos orientadores, realizou-se a 16 de Dezembro, na sede da Associação Industrial Portuguesa, uma reunião com os conserveiros, administrada pelo engenheiro Sebastião Ramires[1], com o objectivo de regulamentar os princípios que os iriam reger.

[1] Engenheiro Sebastião Ramires – Presidente da Secção de Pesca e Conservas da Associação Industrial Portuguesa, licenciado em Engenharia de Máquinas pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa.

O resultado da reunião foi automaticamente entregue à Comissão delegada por Oliveira Salazar, onde estavam enumerados de forma sucinta os princípios concertados na reunião. Passados três dias, os exportadores decidiram entregar de igual forma no Ministério das Finanças as seguintes conclusões:

Matérias primas – o azeite poderia ser importado caso a produção nacional não a garantisse em abundância. O fabrico das conservas de sardinha seria interrompido durante o inverno para possibilitar o crescimento indispensável do peixe mantendo a qualidade das conservas;

Apresentação, formato, marcas – manutenção dos formatos existentes nos mercados mundiais e estandardização dos existentes para uma competitividade honesta, embora fosse possível a criação de novos formatos, se os mercados o carecessem.

A limitação de marcas, promovendo a liberdade e os interesses de quem as fabrica e vende;

Fabrico de conservas e seu comércio – financiamento preventivo e com interesse global, sendo dada a liberdade de exportação;

Produção qualidade ou quantidade – produção de produtos de primeira qualidade não sacrificando a quantidade. O estado à época da organização das industrias, não permitia concorrência aberta, em termos de preços, nos mercados globais;

Expansão e comércio de conservas – estabelecimentos dos tipos de fabrico, sem restringir o número de marcas, garantido pelo Estado;

Latas brancas e «remplissage» – Por razões comerciais e de díspares mercados é imprescindível a sua exportação da mesma forma que as marcas exportadoras portuguesas;

Intervenção do Estado – verificação e classificação das fábricas, separando os reais problemas dos aparentemente concertados.

Em 1932, surgiu o Consórcio Português das Conservas de Sardinha, que pretendia precaver todos os assuntos relacionados só com as conservas de sardinha, estando estruturado pelo Conselho de Administração — representava os industriais e exportadores —, o Conselho de Gerência — formado pelo delegado do Governo e por três membros escolhidos pelo conselho de Administração — e as suas delegações, que estabeleciam ligações com os centros conserveiros.

Os centros conserveiros por lei estavam localizados em Matosinhos, Aveiro, Peniche, Lisboa, Setúbal, Lagos, Portimão, Olhão e Vila Real de Santo António. Com a expansão da indústria em 1935, nova reestruturação é aplicada alterando determinados aspectos, como por exemplo, as áreas de jurisdição que foram ampliadas, criando a União dos Industriais e Exportadores de Conservas de Peixe. Posteriormente, a designação de Consórcio Português de Conservas de Peixe, que se encontrava agrupada aos Grémios Industriais e dos Exportadores. Os Grémios dos Exportadores, estavam sediados em Lisboa, mas detinham várias delegações e respectivas repartições, onde propagavam um perfil de associativismo possibilitando determinadas garantias, ou criavam outros fundos que permitiam apoiar e proteger quem vivia da indústria conserveira, como casos de invalidez, doença, desemprego ou mesmo a criação dos bairros operários, cantinas, creches ou ainda para a propaganda (BARBOSA, 1941).

A 10 de Julho de 1934, surge um reajuste na organização, identificando duas funções diferenciadas: funções oficiais, Instituto Português de Conservas de Peixe, e o outro com funções corporativas, Grémios de Industriais e de Exportadores.

Os Grémios de Industriais passavam assim a dispor de três fundos distintos, o corporativo, de providência social e de exercício. Os fundos corporativos são solidários entre si, destinam-se por princípio à concessão de créditos, o fundo de providência social é de igual forma solidário para aplicações em obras de conjunto e por último o fundo de exercício, determinado pelos lucros originários da cobrança de taxas exportadoras, que subsidiavam as despesas ordinárias de cada Grémio.

Figura 1 – Organigrama do Instituto Português de Conservas de Peixe, 1934. Fonte: Sobre a indústria de conservas em Portugal

O Instituto Português de Conservas de Peixe, desempenharia a parte técnica onde viria a desenvolver competências de organização, promoção, coordenação e produção certificando e recebendo toda a mercadoria.

A organização da indústria conserveira portuguesa foi um marco inovador, no mundo das conserveiras de peixe. Tardiamente, certos países com características similares implementaram de igual forma regulamentação em moldes próprios, tentando alcançar os níveis presentes em Portugal (BARBOSA, 1941).

Na continuação destas modificações comprova-se que a organização conserveira distinguiu-se em dois aspectos, segundo Barbosa, através da orientação e funcionalidade:

“primeiro, (…) a orientação da doutrina: (…) defende o princípio da auto-direção da economia. (…) são os próprios interessados que devem, através dos organismos corporativos, orientar e dirigir as respectivas actividades (…) sob segundo aspecto, não poderemos negar que a evolução se operou no sentido de uma melhor e mais racional distribuição de funções.” (BARBOSA, 1941, p.37).

Na realidade, a separação da função técnica do quadro corporativo possibilitou a fundação do Instituto Português de Conservas de Peixe, certificando a sua autoridade e independência. As funções corporativas permaneceram, ligadas aos Grémios administrando por melhores condições de trabalho, acção social, disciplina, salários e comparticipação para os organismos de previdência (Barbosa, 1941).

2.1.1 Exportação das conservas

“Poucos serão os países do mundo que não comprem conservas portuguesas, e muito especialmente sardinhas.” (COUTINHO ,1938, p.52).

A eficácia da exportação de conservas portuguesas de peixe, deveu-se sobretudo à pluralidade dos mercados que sempre se encontraram ávidos em acolher a nossa matéria prima, permitindo um alargamento do número de mercados compradores.

O desenvolvimento da indústria conserveira portuguesa deveu-se à crescente procura motivada pelos conflitos internacionais, amplificando assim o sector da exportação:

“a «abertura» da China forçada pelas potências ocidentais, nomeadamente pela França em 1885, a guerra sino-japonesa4 (1894) e a guerra dos Boers5 (1899-1902) foram alguns dos conflitos que estiveram na base desse primeiro período de expansão da indústria portuguesa de conservas” (CORDEIRO, 1995, p.26).

Com a crise internacional de 1924, verificou-se uma desaceleração de exportações, mas a qualidade das conservas portuguesas de peixe, conquistaram mercados que anteriormente não eram consumidores deste produto como por exemplo: a Albânia, a Finlândia, a Nova Zelândia e a Somália entre outros, revelando que a estratégia definida permitia a exportação dos nossos produtos para a o mundo inteiro6 (BARROS, 1938).

As medidas implementadas pelo Instituto Português de Conservas de Peixe, pretenderam disciplinar e elevar a conserva portuguesa de peixe, obtendo um nível de perfeição e particularidades que nenhuma concorrente patenteava.

A partir de 1934 com as novas medidas implementadas e com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), as exportações voltam aos níveis que tinham tido durante a Primeira Guerra Mundial. O fim da guerra dita também o declínio da grande indústria conserveira portuguesa.

4 Conflito entre a China e o Japão, 1894-1895, pelo controlo da Coreia.

5 Conflito entre ingleses e os colonos de origem holandesa, francesa e alemã na África do Sul, 1880-1881.

6 Consultar no anexo 1.4 mapa das exportações portuguesas

Figura 2 – Infografia das exportações de Espanha, França e Portugal, 1938.

Fonte: Livro de oiro das conservas de peixe: 1938

2.2 A arte do cheio e a arte do vazio

A produção da conserva portuguesa de peixe encontrava-se distribuída em dois momentos ou artes diferenciados: o cheio e o vazio.

Esta denominação surgiu para determinar os dois processos fundamentais da indústria conserveira: a arte do cheio que contemplava todas as fases referentes ao produto — o peixe —, limpeza, engrelhamento, esterilização, entre outros e a arte do vazio associada ao objecto — lata de conserva —, à sua produção, concepção e impressão da comunicação visual e transporte.

2.2.1 A arte do cheio

O processo da arte do cheio iniciava-se quando o peixe depois de descarregado entrava para as fábricas sendo salgado e, posteriormente, de forma manual, descabeçado extraindo-se as tripas, para ser colocados em depósitos — as salmouras—, durante um tempo determinado, para, como afirma Barbosa: “«adquirir paladar, enrijar a carne e dar consistência à escama»” (BARBOSA, 1941, p.107).

Gráfico 1 – Processo da arte do cheio

Concluída esta etapa do procedimento, o peixe era disposto de forma apropriada nas grelhas — fase do «engrelhamento» — e colocado, de seguida nos cofres de cozedura onde se iniciaria o processo de vaporização. Depois do tempo de cozedura, as sardinhas passariam para as mesas de enlatar, onde o peixe era cortado de forma exacta, à medida da lata, conservando as características básicas do peixe e revelando uma imagem «deliciosa» e «autêntica» para o consumidor final.

Seguia-se para o «azeitamento», colocando-se a quantidade certa de azeite para cada contentor de forma automática e, por último, o fecho das latas ocorria nas máquinas designadas como «cravadeiras», onde se colocava o tampo do «cheio», finalizando todo o percurso nas «autoclaves» para a esterilização das latas de conserva 7.

Além das diferentes secções do cheio, algumas empresas ainda possuíam a secção do vazio, que se encontrava por vezes em zonas recônditas das fábricas, onde os soldadores se dedicavam à fabricação dos corpos das latas, durante os períodos de escassez do peixe. No entanto, com o desenvolvimento tecnológico, os soldadores deixaram de acumular funções e muitos deles acabariam por ser dispensados (QUINTAS, 2011, <URL:http://mcquintas.paginas.sapo.pt/indexb4.html>).

Enquanto a produção do cheio era basicamente feita manualmente e predominantemente por trabalhadoras femininas, no do vazio os processos mecânicos eram em maior número, estando direccionados para trabalhadores do género masculino (CORDEIRO, 1995).

2.2.2 A arte do vazio

Na «arte do vazio» é necessário compreender o fabrico da lata que se encontra designado por cheio — o corpo — e o fundo da lata, o vazio.

O processo da arte do vazio, começava nas oficinas litográficas, muitas delas pertencentes às conserveiras coexistindo no mesmo espaço que o vazio.

As folhas de flandres eram o suporte para a comunicação visual das diferentes marcas, desenvolvidas pelos litógrafos e ilustradores, alguns deles estrangeiros, como Victor Livradiilustrador italiano convidado de Júdice Fialho — que criavam os grafismos das latas de conserva.

Figura 3 – Pedra litográfica
Fonte: Museu de Portimão

Figura 4 – Folha de flandres
Fonte: Museu de Portimão

Após a impressão das partes constituintes do corpo da lata — os tampos e as tiras —, a folha de flandres era cortada no balancé, produzindo determinado número de tampos, sendo colocados mecanicamente numa linha de borracha líquida circundando os mesmo tampos.

Posteriormente, eram introduzidos na máquina que cozia a borracha à temperatura de 220º-250ºC, com os que já se encontravam prontos para serem cravados às latas. No final passavam às máquinas de marcar ou marcadores — cunhos — que gravavam várias informações, nomeadamente o país de origem e data de fabrico.

No caso específico do corpo da lata, iniciava-se pelas tesouras, que cortavam tiras consoante os formatos das latas e aparando em comprimento e largura. Na «montadeira», a tira era dobrada à medida do formato necessário, recebendo a solda, e na passagem pelo calor soldava-se o corpo da lata, terminando este processo com a passagem à refrigeração.

Gráfico 2 – Processo da arte do vazio

Os corpos das latas entravam numa fase a da «tamponadeira», que permitia fazer os rebordos do tampo de cima da lata — do cheio — dobra do vazio, após o estanho ter sido aplicado ao vazio. Depois deste procedimentos as latas eram verificadas por uma mulher, a visitadeira, que tinha a seu cargo a confirmação de hipotéticas anomalias do corpo da lata e, se fosse esse o caso, retornavam ao soldador para reparar as falhas detectadas.

Na sequência destas operações, Tato afirma: “A lata está completa no vazio quando a soldadeira solda o tampo de vazio ao corpo da lata: só ficará pronta em cheio nas cravadeiras depois de cheias com o peixe e os molhos.” (TATO, 2008, p.22)

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