(7) A indústria conserveira em Setúbal - Memória e Identidades Profissionais - Sindicalização e profissionalização

Sindicalização e profissionalização

«…os sindicatos eram de um fabricante, a gente saía dali e ia queixar-se ao sindicato “que fábrica é que trabalha?” “Ai trabalho em tal sitio”, “Ai… não podemos fazer nada que ele é que é o chefe disto” e a gente não podia fazer nada.»

Os sindicatos corporativos controlados pelo estado novo não ofereciam confiança aos trabalhadores. Em 1934 registou-se um surto de inscrições no sindicato nacional dos operários da industria de conservas devido a obrigatoriedade imposta pelo governo. Para serem aceites na fábrica os operários tinham de ser sindicalizados e ter a partir de 1936 a caderneta visada pelo grémio onde estava tudo o que dizia respeito à vida profissional do operário.

(…) «A assinatura do Contrato Colectivo de Trabalho que hoje se celebra constitui o primeiro passo efectivo que, lado a lado e irmanados no mesmo pensamento construtivo, industriais e operários da industria de conservas de Setúbal dão no campo da organização corporativa.

O importante problema que bastante nos tem preocupado atingiu hoje o termo da sua resolução. Resolução teórica, digamos, que agora interessa tornar pratica, útil, eficiente.

Compreende-se que esta dada não passe como um dia banal, como o dia da assinatura de qualquer contrato vulgar; se assim fora cometeríamos a maior ingratidão para com um Homem que tudo tem sacrificado para que a paz na família portuguesa seja uma risonha e prometedora realidade.

Esse Homem, esse Chefe prestigioso que é o Sr. Dr. Oliveira Salazar, fez reviver no mais intimo da nossa alma o orgulho de sermos portugueses; temos por isso o dever de o acompanhar, de lhe seguir o exemplo, de o segundar no desejo patriótico de que o bem-estar reine em Portugal.

Posso assegurar que Setúbal não consentiria que deixa-se de ser consagrada, com a solenidade que a simplicidade da nossa vida e dos nosso hábitos em cousa alguma diminui, a grande obra do chefe e do seu ilustre colaborador Sr. Dr. Teotónio Pereira, alma da organização corporativa, tão carinhosamente seguida e orientada por V. Ex.ª Sr. Dr. Rebelo de Andrade.

Empenhamo-nos todos, patrões e operários, em que dia de hoje seja o inicio de um melhor equilíbrio e entendimentos entre o Capital e o Trabalho, que reciprocamente tão mal se tem compreendido.

Para nos apercebermos da importância que para todos nos tem a assinatura deste Contrato Colectivo de Trabalho basta cerrar os olhos e recordar os erros do passado – a que com tanta facilidade se esquece infelizmente…

Quantas lutas estéreis, em que a maior parte das vezes nada se conseguiu e, noutras, os benefícios não compensavam nos prejuízos nem os sacrifícios feito!

A má compreensão e o espirito de violência de certos patrões, a indisciplina e os exageros dos maus operários – todos de uma época de liberalismo faccioso e pernicioso – trouxeram a nossa indústria e a esta terra perturbações que é de desejar se não repitam.

Em quantas dessas lutas só os meneurs lucravam, levando vida desafogada e alçapremando-se a situações que aproveitavam para a sua passagem para o campo oposto, deixando os seu companheiros presos ás consequências dos erros cometido!

Com a organização corporativa e depois de celebrado este Contrato Colectivo de Trabalho, duas coisas deixarão de ser possíveis; o trabalho como simples mercadoria sujeita à lei da oferta e da procura:

Recorrem os operário á violência e à indisciplina como meio de fazerem reconhecer os seus direitos e conquistarem as regalias a que têm jús como cooperadores da industria.

Setúbal é o ultimo centro conserveiro à assinar o seu Contracto Colectivo de Trabalho. Ao contrário do que poderia supor-se, estamos satisfeitos por assim suceder: os «últimos são muitas vezes os primeiros».

Orgulhamo-nos, industriais e operários de Setúbal, de com evidente espirito de sacrifico e comedimento de ambições termos sido os guias e vigilantes seguros para quem desigualdades flagrantes tendam a desaparecer duma industria organizada, de forma que o trabalhador e as suas inferiores condições de vida não contêm como factores de economia e de concorrência.

Encontrou o Grémio dos lndustriais de Conservas de Setúbal, no Sindicato dos Operários, o defensor acérrimo, mas inteligente e conhecedor, das necessidades dos seus agremiados.

Eram e são aspiração do sindicato mais e melhores regalias, é e será desejo do Grémio dos industriais poder concede-las.

Conhecem bem o os operário e todos os setubalenses a situação difícil e critica que a industria de conservas de Setúbal atravessa, em virtude de uma acentuada crise de pesca.

Só ao sacrifício que os industriais de Setúbal se dispõem a fazer, à compreensão clara de momento e à colaboração inteligente e criteriosa dos Ex.º Sr. Dr. Júdice da Costa, digníssimo delegado do lnstituto Nacional de Trabalho e Previdência, nesta cidade, se deve a Direcção do Grémio encontrou para a realização do contracto que hoje se assinará.

Esse contracto é melhor demonstração de muito que se pode conseguir dentro da ordem e da organização corporativa.

Nós, que conhecemos bem a vida dos operário de Setúbal, nos habituámos a conviver com ele e a trabalhar a seu lado, sabemos bem que eles precisam e desejam mais. Mas poder-se-ía, mesmo com sacrifício, sem se correr um risco grave, transpor de um salto brusco um vale profundo, passando de um campo abandonado e árido, como tem sido a vida dos operários, para um campo risonho e florido, imagem de todos os seus desejos, ainda mais legítimos?

lmpossível!

Primeiro é preciso preparar, com boa vontade, com ordem e trabalho profícuo, o caminho a seguir, para que , arrastados na queda dos industriais, não sejam igualmente vitimas os seus colaboradores.

Deve-se avaliar, antes de mais nada o que sejam um Contracto Colectivo de Trabalho feito para 57 fábricas, interessando o mundo de operários superior a 7000 numa industria em que a natureza domina e tem  seus caprichos.

Atrevemo-nos a afirmar que, a não serem os industriais de Setúbal, ninguém mais se atreveria, de bom grado, a outorgar um tal contracto depois da fatalidade que os têm atingido pela crise da época presente. Confiemos, porém, na Natureza, e em que ela, tão pródiga em épocas passadas, estenda de novo sobre a nossa terra o manto protector da abundância de pesca, e aos homens a inteligência e a sensatez de não desprezarem o que ela magnanimamente lhes conceda.

Operários:

Garante-vos o contracto colectivo de trabalho o mínimo de 6 dias de trabalho, ou o salário correspondente, em duas semanas; o mesmo estabelece para 16% das operárias vossas companheiras de trabalho.

Quando foi que tiveste a garantia de um dia sequer? Quando foi que vos concederam férias pagas?

Algum dia soubeste qual o salário que deveríeis ganhar?

Coisa alguma tínheis: pois tendes agora isso, e ainda mais a garantia de que será estudado e em breve levada à prática a sua resolução, o problema da assistência doença e na velhice.

Excerto do discurso de Mário Ledo, presidente do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro de Setúbal

Horários e contratos colectivos de trabalho

O horário de trabalho esteve na origem de violentos confrontos entre operários e patrões. A indústria de conservas funcionava ao ritmo da abundância ou escassez de matéria prima facto que impunha horários de trabalho irregulares.

No período em que havia abundância de pescado os patrões impunham jornadas de trabalho continuo de 17 horas durante 7 dias por semana e o recurso a “serões” e “madrugadas”. Nas altura do defeso encerravam as fábricas e os operários não ganhavam, excepto as designadas “por trabalhos de pé”, que ganhavam 3 dias por semana assim como os homens e as de trabalhos de mesa 1 dia.

A luta pelo horário das 8 horas, pela abolição do trabalho ao Domingo e das jornadas prolongadas marcou as lutas operárias, desde a república (1910), mas só após o 25 de Abril de 74 foi estabelecido um horário de trabalho.

Em contradição com a prática o contracto de trabalho de 1 de Dezembro de 1936, no cap. IV sobre horário de trabalho, distingue um regime normal e um regime extraordinário de trabalho.

O regime normal fixa em 8 horas, com excepção dos meses de Junho a Setembro que poderá ser antecipado uma hora.

O regime extraordinário aplica-se ao trabalho de “vazio” em que se permite o prolongamento de 10 horas diárias, mediante requerimento deferido pelo delegado do I.N.T.P., com excepção para o trabalho do soldador que só é permitido até ao pôr-do-sol.

Trabalho de “cheio” poderá ir até ao limite máximo de 13 horas, em períodos separados por descanso de 1 hora cada, após 3 a 5 horas de trabalho consecutivo.

A cessação do trabalho não poderá ir além das 23 horas, sendo permitido o prolongamento de 1 hora em casos acidentais de abundância de peixe ou de execução de embarque urgente, mas exclusivamente para as operações necessárias à preparação do peixe até à cozedura, ficando o industrial obrigado a justificar o facto, em carta e no prazo de 48 horas, ao delegado do I.N.T.P.

É concedida a entrada 1 hora antes e saída 1 hora depois sobre a hora de entrada e saída do demais pessoas, para o pessoal especializado… não pondo esse pessoas, com excepção dos mestres e encarregados permanecer na fábrica mais que 15 horas. Considera-se para o efeito pessoal especializado aquele que é constituído pelos mestres ou encarregados, afinadores, serralheiros, electricistas, motoristas, fogueiros, pessoal das caldeiras, operárias de azeitamento e pessoal da cozedura e da esterilização.

O contrato colectivo de trabalho, firmado em Fevereiro de 1938 entre o Grémio dos Industriais de conservas de peixe de Setúbal e o Sindicato de Conserva Nacional do Distrito de Setúbal no cap. III sobre disciplina no  trabalho refere:

– Consideram-se motivos justificados de despedimento:

A recusa a execução de ordens de serviço, dadas pelos chefes, sempre que esses serviços não sejam do que se proíbem no presente contracto;

A embriaguez e os actos ou palavras que promovam escândalo mesmo entre companheiros de trabalho; A inaptidão para o trabalho ao a falta propositada de razoável rendimento do mesmo;

A indisciplina ou a insubordinação durante o tempo de trabalho; O mau comportamento moral e civil;

Discussões de caracter político ou social dentro das fábricas;

O abandono do trabalho ou a falta propositada de razoável rendimento do mesmo; A falta repetida de pontualidade, sem motivo razoável e justificado;

Recusa ao desempenho de serviço em classe diferente.

Estas normas eram largamente desrespeitadas pelos patrões e encarregados que obrigavam a um clima austero de trabalho no qual era interdita a troca de palavras entre operários e paragem para tomar algum alimento. As operárias tinham de permanecer debruçadas sobre as mesas de forma constante.

«Não, nunca levava lanche não tinha, eu chegava a casa não tinha, quanto mais para levar… e então a gente ia, mas se havia pessoas que levavam um bocadinho de pão, ou uma peça de fruta, essa pessoa tinha de comer as escondidas» – Esmeralda ex-operária da industria conserveira

Conclusões

A industria conserveira em Setúbal atingiu o seu auge no início do séc. até aos anos 20 e o declínio a partir da 2.ª guerra mundial até aos 90.
Constituída por mão-de-obra feminina, considerava na sua maioria não especializada pelos contratos colectivos de trabalho, permitiu aos patrões a exploração desenfreada, sem horários e com salários 50% mais baixos que os dos homens.

O recrutamento era feito através de redes informais de familiares e vizinhos, junto dos jovens e crianças oriundas de famílias operárias e piscatórias que viam neste sector uma das únicas hipóteses de sobrevivência.

A industria conserveira caracteriza-se por uma divisão sexual do trabalho acentuada (95% mulheres – 5% homens) com tarefas específicas e remunerações diferenciadas.

As representações das tarefas de homens e mulheres na fábrica têm conotações valorativas verbalizadas pelos próprios que nos leva a concluir que existe uma construção social do género na comunidade fabril.

A industria conserveira é uma produção em linha que se desenha num espaço aberto, onde o conjunto de etapas se subdividem em sequências e operações ritmadas, de forma a assegurar a quota diária de produção.

É uma industria onde predomina claramente a corporalidade e manualidade. As máquinas aparecem pontualmente para cumprir funções determinadas e ao longo de mais de um século não sofreram mudanças significativas (com implicações no processo de fabrico). Excepção para a cravadeira, causadora da extinção da classe dos soldadores que teve uma intervenção social marcante no início do século.

A industria conserveira moderna baseia-se no método Appert, processo de esterilização através do vapor produzido por caldeiras e autoclaves.

Com um papel preponderante na economia portuguesa desde o início do séc. até ao Estado Novo tinha como principal objectivo a exportação a nível mundial.

A indústria conserveira define-se por um conjunto de denominações indígenas reveladoras de várias etapas na hierarquia fabril, com identidade própria, expressa através de um código restrito.

A par das técnicas de fabrico, a gestualidade e a capacidade sensorial são aptidões desenvolvidas e utilizadas no processo de fabrico.

As relações horizontais são restritas devido a um forte controle disciplinar e a uma hierarquia vincada, em que o mestre e a mestra são o interlocutor do encarregado e patrão.

Os 9041 registos femininos e 1871 registos masculinos, recolhidos nas fichas do antigo sindicato das conservas revelam entre muitos aspectos um baixo nível de instrução dos operários, várias denominações para uma mesma tarefa e o ano de 1934 como o grande momento da sindicalização obrigatória.

Os operários conserveiros não se revêem no sindicato que consideram completamente “fantoche” devido à instrumentalização feita pelos patrões.

A indústria conserveira extinguiu-se, em Setúbal, na década de 90 (a ultima fábrica encerrou em 1995) e tende a desaparecer no resto do país, pois trata-se de uma industria com elevada componente de força de trabalho pouco qualificado e que nunca introduziu mudanças técnicas significativas. Devido a estas características a indústria conserveira deslocou-se para o norte de África onde a mão-de-obra barata e os produtos não estão submetidos às leis da comunidade Europeia.

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