Pontos nos ii - Páginas referentes à Exposição Universal de Paris 1889
TEXTO EM http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/Pontosii.pdf
por Rita Correia (08.03.07)
PONTOS NOS II – Semanário humorístico dirigido e ilustrado por Rafael Bordalo Pinheiro, cujo primeiro número é lançado no dia 7 de Maio de 1885. Em 1886, a administração está sedeada na Rua dos Douradores, 20, em Lisboa, sendo apresentado como gerente, A. de Souza Pinto. A partir de, pelo menos, 1889, o endereço passa a ser: Rua do Norte, 39 – 1º.
Haviam passado pouco mais de três meses após a suspensão d’ O António Maria (12 de Junho de 84 a 21 de Janeiro 85), terceiro periódico da sua lavra. A relação de continuidade entre os dois projectos editoriais é evidente quer na forma quer no conteúdo, embora Pontos nos ii seja graficamente menos ambicioso, não contemplando a utilização da cor: apresenta-se com o mesmo número de páginas (8), numeradas de forma contínua, e revestidas por uma “capa” de papel colorido, de gramagem inferior às das páginas do miolo, com as seguintes dimensões: capa − 340 mm x 252 mm; miolo − 326 mm x 224 mm (p/ o no 289, de 10 de Janeiro de 91, intonso).
É nela, em caixa ocupando uma posição central, que consta a imagem que faz de “cabeçalho” do semanário. O espaço em volta dele, bem como o resto da “capa”, é ocupado com publicidade a diversos produtos. A partir de 1887 aparecem esporadicamente pequenas inserções publicitárias nas páginas do jornal, que remetem para a “capa”. Uma vez que, aquando da encadernação dos números por ano, estas “capas” foram removidas – operação infelizmente habitual –, disponibilizamos aqui separadamente alguns exemplares.
À semelhança d’ O António Maria, Pontos nos ii publica-se às quintas-feiras e vende-se (do primeiro ao último número) pelo preço de 60 réis avulso; e de 600 e 1$200 réis para as assinaturas de 12 e 24 números, respectivamente. Poder-se-á considerar “caro”, se comparados com os preços praticados por outros periódicos, não tão profusamente ilustrados, é certo e com menor número de páginas, como o Diário de Notícias ou O Século, ambos com 4 páginas, vendidos a 10 réis.
É pois inegável o sucesso da publicação, como resulta da sua relativa longevidade − o último número é publicado em 5 de Fevereiro de 1891 –, e consequentemente do interesse continuado do público que se adivinha no anúncio da venda de números anteriores ao dobro do preço: «Números do 1º, 2º e 3º anno: Avulsos 120 réis» (1) (capa do no 220, de 3 de Agosto de 1889). Pontos nos ii assume-se e é assumido pelo público, ou parte dele, como um coleccionável, como resulta da utilização da forma de tratamento «srs. colleccionadores»(2) quando pretende comunicar com os leitores (ver mesma capa).
1 Pontos nos ii, no 220, de 3 de Agosto de 1889.
2 Ibidem.
Inicialmente, é impresso na mesma litografia que Bordalo utilizara para O António Maria: a Lytographia Guedes, oficina de Justino Roque Gameiro Guedes, na rua da Oliveira, ao Carmo, 12 (Lisboa), como consta no pé da primeira página. Este adquiriu no estrangeiro, em 1886, «o privilegio exclusivo em Portugal e Hespanha d’um um novo processo lytographico» (3), que será usado pelo «Pontos nos ii» conforme é anunciado, sob o título «Expediente», em Julho. O número de 5 de Agosto, apresenta um tom sépia, de baixa definição e, após uma interrupção da publicação por uma semana, o «moderno aperfeiçoamento» é abandonado.
Em Janeiro de 1889, regista-se outra mudança: a litografia dá agora pelo nome de Companhia Nacional Editora, com a particularidade de apresentar a mesma morada que a anterior. A partir de Abril de 1890, associa-se-lhe, pela primeira vez, o nome da tipografia utilizada − Typographia Portuense, sedeada na rua de S. Boaventura, 20 − e o nome do Editor, Manoel Luiz da Cruz, com endereço na Rua do Norte, 39 – 1o (coincidente com o da Administração a partir de, pelo menos, 1889). Esta pormenorização da informação resulta certamente da promulgação do Decreto de 29 de Março daquele ano − ocorrida após a revolta republicana de 31 de Janeiro − «que constitui um dos pontos culminantes da repressão à Imprensa pela monarquia agonizante.» (4)
O diploma vem estabelecer, entre muitas outras, a obrigatoriedade da inserção «em todos os números, no alto da primeira página, ou no fim da última, o nome do seu editor, a indicação da sede da sua administração e a do estabelecimento onde se faz a sua composição e a sua impressão ou estampagem.» (Art.o 4º)
A receptividade de Pontos nos ii, na esteira da alcançada pelo título anterior, reflecte as alterações que a imprensa registou durante a segunda metade do século XIX: o aumento do número de títulos disponíveis e do número de leitores é coincidente com uma maior procura da informação objectiva, ao invés da opinativa, e também de pendor sensacionalista ou popular. Como refere José Tengarrinha, «Agora, é o jornal que tem de procurar o público, descer ao seu nível, adivinhar-lhe os gostos e apetites, mesmo os mais baixos, ir ao encontro da sua mentalidade» (5).
Os periódicos cómicos e humorísticos, sobretudo os que fazem da vida política a sua principal matéria, embora sejam destituídos de propósitos formativos de natureza doutrinária, desempenham um papel inegável na consolidação de uma opinião pública hostil.
A instabilidade política resultante de um «rotativismo» desvirtuado que faz alternar no poder «regeneradores» e «progressistas», mas não resolve os mais prementes problemas nacionais, acarreta um crescente descontentamento social e um também progressivo desprestígio e descrença nas virtudes do sistema monárquico- constitucional e dos seus protagonistas. O humor político vai pois ao encontro do sentir do público leitor, interessado − ou melhor: curioso − em acompanhar o evoluir do país, através de uma narrativa crítica, mas bem disposta, que tomava como referências as contradições e outras fragilidades do regime.
3 Idem, no 63, de 17 de Julho de 1886.
4 TENGARRINHA, José M., História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2.a ed. Revista e Aumentada, Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 247.
5 Ibidem, pág. 220.
Maria, personagem que se dera a um convívio discreto no jornal anterior, era agora a protagonista, seria ela a pôr os «pontos nos ii». Mas, para sossego dos espíritos mais desconfiados e, sobretudo dos poderes instituídos, Maria, viúva do António, esclarece, no número-programa de 7 de Maio, que o seu objectivo é «Rir, rir sem descanso, de boca escancarada ate ao cavernante, de todos os mil grotescos que por ai fervilham como formigas num açucareiro». Tudo se processaria no quadro de uma «admiração ingenua pelos poderes constituidos e estupefacção capital pela pessoa do Sr. Fontes»; sem contestação, nem propósitos explícitos de mudança, que ela, Maria, não «tinha aquele maldito vício de indireita encasquetado no miolo» que levou o seu António «para a cova sem indireitar coisa nenhuma».
No que toca a «deixar correr o marfim», as principais fontes de inspiração são, claro está, os políticos e as respectivas políticas, além do rei. Ninguém escapa a ver-se retratado pelo lápis de Bordalo, ou de seu filho, Miguel Gustavo Bordalo Pinheiro (a partir de meados de 86). Já em matéria de texto (prosa ou verso) Pontos nos ii contou com a colaboração regular de Pan d’ O António Maria, agora Pan-Tarantula (Alfredo Morais Pinto, de seu nome) e, a partir de 1890, de Irkan (Fialho de Almeida).
Mas Pontos nos ii vai além da acção erosiva da caricatura política. Nas suas páginas também há espaço para a notícia, a crónica e até a reportagem dos mais variados eventos: a oferta cultural que anima os dois maiores pólos urbanos, Lisboa e Porto; a actividade literária; o glamour das festas e dos bailes; os desastres e os crimes mais chocantes; os episódios que assinalam o progresso e desenvolvimento do país, como a inauguração da linha-férrea de Mirandela, a introdução dos candeeiros a gás em Lisboa ou o sucesso das viagens de exploração em África; a representação portuguesa na Feira Internacional de Paris, projecto em que Bordalo participou e que é tratado num suplemento especial editado em 1889, em Paris − a lista é praticamente inesgotável.
O humor domina quase sempre, mas não são raras as homenagens de tom sentido por motivo de morte, que são chamadas à primeira página, formando uma extensa galeria de notáveis.
Uma estrutura organizadora da informação vai sendo ensaiada e, na sequência de uma reforma anunciada em Julho de 1887, define-se nas secções: «Política em Bolandas», «Por Ahi…», «De Raspão», «Gente Fina», «Sciencias, Letras, Artes e Officios», «Fora de Portas», «Contos em Branco, «Perguntas e Respostas». Estas duas últimas, particularmente regulares nos anos 87/88, constituem espaços de participação do leitor.
Outro sinal dessa “interactividade” promovida pelo jornal são as subscrições que vai dinamizando ao longo dos anos para apoio das mais diversas causas.
A partir de meados de 1889, a politica colonial, no quadro do conflito de interesses entre Portugal e a Inglaterra, é o tema que domina semanalmente as páginas do Pontos nos ii. Em face das vacilações do governo perante as «prepotencias inglezas», o semanário assume-se como porta-voz dos interesses nacionais e chama todos para a luta: «Fidalgos ou plebeus, sinceros monarchistas, Democratas leaes, ardentes socialistas, N’uma explosão de amor, de colera titanica, Unidos combatei a sordidez britânica.» (6)
Crescem também as alusões aos republicanos e à República. A tensão política e a indignação popular ribombeiam em cada página. A 31 de Janeiro, estala no Porto a revolta republicana, que o jornal Pontos nos ii não se coíbe de analisar nos números seguintes: «Cobardes!» – barda Irkan referindo-se ao povo que «cedeu hontem perante as ameaças de duzentos ou trezentos guardas, mal armados, mal dirigidos». «Não, isto não é povo, é lama plastica. Isto não é amor da patria, é balela ridicula.»(7) – acusa com a raiva de quem vê goradas as suas expectativas.
Em Fevereiro do ano seguinte, o mesmo autor apresentará uma leitura mais sóbria dos acontecimentos sob o título «Gloria aos vencidos!». É um verdadeiro manifesto republicano que Pontos nos ii acolhe nas suas páginas. O preço de tão alto arrojo não se faz esperar: o semanário é suspenso.
6 Pontos nos ii, no 239, de 23 de Janeiro de 1890.
7 Idem, n.o 242, de 13 de Fevereiro de 1890.