Política económica e modernização industrial no Estado Novo: o condicionamento da indústria de conservas de peixe

The political economy of industrial regulation in Portugal New State. The case of fish canning industry

Francisco Henriques

2019-10-29
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
franciscomaiahenriques@gmail.com

Resumo

O condicionamento industrial no regime autoritário de Salazar foi já amplamente estudado, embora o seu impacto no crescimento das principais indústrias portuguesas não seja ainda totalmente claro. Neste artigo, iremos focar-nos na regulação da indústria de conservas de peixe de forma a que se entendam melhor as relações estabelecidas entre o Estado, as empresas e a legislação criada para controlar a concorrência. Os dados recolhidos nos arquivos públicos demonstram que as decisões tomadas pela regulação dependeram do funcionamento de um amplo quadro político institucional que envolvia estratégias protecionistas e políticas sociais. Tendo em consideração estes pontos, iremos defender que esta é uma história de sucessos e fracassos: a regulação industrial não dificultou o crescimento da indústria conserveira e apoiou a sua especialização e competitividade internacional; mas, por outro lado, criou poucos incentivos à sua mecanização, ao desenvolvimento de novas tecnologias e à introdução do investimento estrangeiro.

Abstract

The topic of industrial regulation in the authoritarian regime of Salazar has been  widely discussed, although its impact in industrial growth is still not very clear. In this paper, we will focus on the regulation of the fish canning industry in order to understand better the relations between State, companies and legal systems created to control competition. The data collected in public archives show that decisions taken on regulation were depending on a wider political institutional framework, which involved protectionist strategies and social policies.

Considering this, we will argue that this is a story of success and failures: the industrial regulation didn’t hinder the growth of canning industry, and supported its specialization and international competitiveness; but, on the other side, it provided low incentives to mechanization, new technologies development and foreign direct investment.

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Introdução: a problemática do Condicionamento Industrial

Neste artigo estudamos o Condicionamento Industrial aplicado à indústria de conservas de peixe, uma das principais atividades exportadoras durante o período do Estado Novo. Tradicionalmente, a indústria de conservas dependeu, a montante, do crescimento da pesca costeira em Portugal, sobretudo da sardinha, e a jusante, da evolução das relações económicas internacionais. No entanto, o Condicionamento Industrial, enquanto mecanismo de diversas restrições regulatórias, parece surgir como o principal elemento de intervenção do Estado na indústria.

O Condicionamento quase dispensa apresentações. Consistia no processo administrativo a que estava submetida a abertura, transferência ou modificação de cada unidade industrial na maioria dos sectores produtivos. Segundo as suas leis fundamentais, implicava um processo ambicioso de decisão casuística, que envolvia a apreciação técnica das propostas, a publicitação dos pedidos e a apresentação de reclamações, bem como a consulta dos organismos de enquadramento de cada indústria.

Enquanto política regulatória dos investimentos, o Condicionamento ajustou-se às necessidades do poder ditatorial. Em 1931, quando surgiu como mecanismo transitório, estabelecia como fins, entre outros, o combate ao excesso ou ausência de concorrência, a resolução dos problemas de distribuição geográfica e a falta de bases técnicas e financeiras nas indústrias 1.

Num trabalho seminal sobre este tema, J. M. Brandão de Brito estabeleceu a relação fundamental entre a teoria da economia do corporativismo, a nova ordem constitucional e a institucionalização do Condicionamento 2. O corporativismo propunha a superação dos problemas do capitalismo liberal através de ideias de cooperação económica; mas a apropriação da ideia corporativa, em particular pelos regimes autoritários, resultou na criação de organizações que contribuíram para reforçar a autoridade pública e renovar as formas de intervenção do Estado na economia e na sociedade 3. Em 1937, com uma nova lei, o Condicionamento tornava-se um elemento permanente do novo Estado, legitimado pela necessidade de uma “economia nova, mais ou menos dirigida pelo Estado” que estabelecia limites à iniciativa individual na indústria 4. Em consequência, o Condicionamento ganharia uma dimensão estrutural que incidiu sobre cerca de 50% do emprego e 60% das empresas do sector secundário.

Após a Segunda Guerra Mundial, entre 1948 e 1965, mais de metade dos pedidos para novas instalações na indústria foram recusados, enquanto 80% das modificações de unidades existentes foram autorizadas 5.

Pela sua abrangência e por se tornar na principal expressão de uma política industrial, o Condicionamento teria um caráter “genuinamente português”, sem paralelo noutros regimes coevos 6. Investigações mais recentes salientaram, porém, a existência de um mecanismo semelhante na Espanha franquista 7. De resto, pode considerar-se que os mecanismos de condicionamento industrial não terminaram com o Estado Novo, ou que é verificável também em regimes democráticos que protegem estrategicamente alguns sectores industriais da concorrência interna e externa 8. Os homens da indústria portuguesa entrevistados por cientistas sociais, sobretudo nos anos oitenta e noventa, demarcaram-se do Condicionamento, condenando-o como um travão  à modernização das estruturas industriais, mas confessando também as habilidades para iludir o Sistema 9. De certa forma, esta memória confronta-se com a História: as baixas percentagens de autorizações concedidas a novas empresas indicam um protecionismo eficaz, mas o número elevado de autorizações aos investimentos das empresas instaladas sugere que o Condicionamento não foi um obstáculo à transformação da maioria dos sectores industriais.

A experiência histórica trouxe resultados concretos e aparentemente contraditórios na realidade portuguesa. Por um lado, o Condicionamento teria contribuído para a permanência de estruturas obsoletas e pouco dinâmicas, isoladas dos mecanismos de mercado; por outro, favorecia a criação de oligopólios e grupos económicos que garantiram o apoio do Estado através da aceitação das suas reclamações, e outras garantias, como as concessões exclusivas 10.

A contradição entre os objetivos de criar uma maior eficiência na alocação de recursos e a manutenção de estruturas frágeis, com um excesso de capacidade de produção, perpassou toda a intervenção deste mecanismo na indústria de conservas de peixe.

Decreto n.º 19:354, Diário de Governo, I Série, 14 de Fevereiro de 1931.
2 José M. Brandão de Brito, Industrialização portuguesa no pós-guerra (1948-1965). O
Condicionamento Industrial, Lisboa, Dom Quixote, 1989, p. 39 e seguintes.

3 Para uma análise recente da economia do corporativismo ver Álvaro Garrido, Queremos uma Economia Nova! Estado Novo e corporativismo, Lisboa, Temas&Debates, 2016.

4 Ruy Ulrich, Parecer sobre a proposta de lei n.º 172, Diário das Sessões n.º 118, 18 de Fevereiro de 1937.

5 José M. Brandão de Brito, Industrialização…, cit., p 273.

6 José M. Brandão de Brito, Industrialização…, cit., p. 141-142.

7 Luis Eduardo Pires Jiménez, La regulación económica en las dictaduras: el condicionamiento industrial en España y Portugal, Tese de doutoramento defendida na Universidade Complutense de Madrid, 2003.

8 João Confraria, “Condicionamento Industrial” in António Barreto e Maria Filomena Mónica (org.), Dicionário de História de Portugal, vol. 8, Lisboa, Figueirinhas, 1999, p. 393.

9 Além do trabalho já citado de Brandão de Brito, ver João A. Loureiro, Economia e Sociedade. A indústria no após-guerra, anos 50 e 60, Lisboa, Cosmos, 1991, p. 139-244; Maria Filomena Mónica, Os Grandes Patrões da Indústria Portuguesa, Lisboa, Dom Quixote, 1990; Henry Makler, A Elite industrial portuguesa, Lisboa, Centro de Economia e Finanças, 1969; e Manuel Lisboa, A indústria portuguesa e seus dirigentes, Lisboa, Educa, 2002.

A análise historiográfica do Condicionamento decorreu numa lógica de compreensão dos mecanismos de funcionamento da autoridade do Estado.

Brandão de Brito defendeu, precisamente, a tese que o Condicionamento se foi tornando num “agente de corporativização” da indústria, absorvendo as ideias de cooperação entre os produtores que estariam consignadas, em teoria, ao funcionamento dos organismos corporativos 11. Esta ideia central, deduzida da análise de casos concretos, não foi prosseguida em estudos de tipo sectorial que permitam aprofundar os impactos do Condicionamento na indústria portuguesa.

Neste artigo, a análise centra-se em torno desta questão: foi o Condicionamento a travar a modernização tecnológica da indústria conserveira, ou foram os empresários, acomodados a um regime protecionista, que adiaram as estratégias de inovação, diversificação e concentração industrial, cuja ausência se sentiu no final dos anos sessenta? A questão colocou-se com especial acuidade durante as décadas de abertura da economia portuguesa, após a Segunda Guerra Mundial, em que se tornou evidente a necessidade de reorganização das indústrias transformadoras. A prática do Condicionamento, num sentido mais liberalizante ou restritivo, tornou-se num terreno de disputa entre os empresários, os organismos corporativos e a administração pública.

O desvio de atenção para a iniciativa empresarial coloca problemas teóricos.

A análise de Alfred Chandler sobre o crescimento da empresa moderna – a gestão assalariada e a formação das hierarquias de gestão, a distribuição de bens e serviços entre unidades da mesma empresa 12 – tem limites de enquadramento para este caso de estudo. Basta referir, por exemplo, que as sociedades anónimas – modelo de expansão das grandes empresas nos EUA, estudado por Chandler – estavam proibidas na indústria conserveira desde 1932 e foram, de facto, quase inexistentes. Todavia, também não Podemos supor um eclipse do empresário, como se o Condicionamento anulasse as suas capacidades de mudança, imaginação e previsão do futuro. Devemos, sobretudo, encarar a ação empresarial em condições históricas e sociais específicas, com regras formais que não inibiram a disputa entre os múltiplos agentes que intervieram nos processos 13.

Para inverter a análise do Condicionamento, partindo da atuação das empresas e das organizações sectoriais e inquirir o caráter centralizador do processo, é necessário explorar novas fontes documentais. O arquivo público do Condicionamento, à guarda do Ministério da Economia, tem paradeiro desconhecido. Quase não existem arquivos de empresas conserveiras mas, em alternativa, o arquivo histórico do Instituto Português de Conservas de Peixe possui cerca de seis mil processos, agrupados em mais de uma centena de empresas. Acessoriamente, a imprensa dos centros conserveiros (e a sua censura), os arquivos municipais e as publicações oficiais do Estado permitem desenvolver as relações entre os industriais e o Estado, e entre os diferentes organismos do Estado corporativo que concorrem nos processos de Condicionamento.

10 Fernando Rosas, O Estado Novo nos anos trinta. Elementos para o estudo da natureza económica e social do salazarismo, Lisboa, Estampa, 1986, p. 209-210. Para a análise de efeitos sectoriais, onde se inclui a indústria conserveira, ver João Confraria, “Política industrial do Estado Novo. A regulação dos oligopólios no curto prazo”, Análise Social, 112-113 (1991), 791-803.

11 José M. Brandão de Brito, Industrialização…, cit., p. 134 e seguintes.

12 Alfred Chandler, “Estados Unidos da América. O berço do capitalismo de gestão.” In Alfred Chandler e Herman Daems (org.), Hierarquias de gestão. Perspectivas comparadas sobre o desenvolvimento da moderna empresa industrial, Oeiras, Celta, 1994. Não quer isto dizer, certamente, que as análises de tipo chandleriano não se possam aplicar ao estudo do crescimento das empresas conserveiras, que na sua maioria tinham uma estrutura de gestão familiar. Ver Xoán Carmona Badía (coord.), Las famílias de la conserva. El sector de las conservas de pescados a través de sus sagas familiares, Pontevedra, Anfaco, 2011.

13 Num artigo importante para a história empresarial, Joseph Schumpeter destacava a necessidade de se compreender todas as condições sociais que influenciam a capacidade empresarial. Ver “Teoria Económica e história empresarial” in Ensaios. Empresários, inovação, ciclos de negócio e evolução do capitalismo, Oeiras, Celta, 1996, p. 233-249.

 

A indústria de conservas de peixe: um caso exemplar

As preocupações públicas sobre o sector remontam a meados dos anos vinte, quando a indústria atravessou uma tempestade quase perfeita: no exterior, os principais clientes europeus reduziram as compras de conservas de sardinha, sobretudo em França e Inglaterra, em resultado das condições económicas do pós-guerra; em Portugal, a partir de 1924, a política de revalorização do escudo de Álvaro de Castro, com a intenção de travar a inflação, resultou no encarecimento das exportações; e, o mais importante, entre 1925 e 1927 deu-se uma quebra acentuada das capturas de sardinha, que veio reforçar os conflitos internos, com os armadores a procurarem elevar os preços do pescado e os industriais a quererem conter os custos das matérias-primas.

Em 1925, o Ministro das Finanças republicano Armando Marques Guedes defendeu, depois de testemunhar a crise no Algarve, uma «política de vantagens indirectas» à indústria conserveira, concretizada num projeto de lei que previa a isenção de direitos de importação a máquinas e folha-de-flandres e a fiscalização pelo Estado da qualidade das exportações 14. Com o advento da Ditadura militar em 1926 e a persistência da crise, as associações comerciais e industriais desdobraram-se em esforços de ação coletiva com a formação de grupos de fabricantes (como a União de Conserveiros de Matosinhos) e, a partir da Associação Industrial Portuguesa, formaram um poderoso grupo de pressão sobre os governos da Ditadura. Em 1927, em Setúbal, reuniu-se o primeiro Congresso de Pesca e Conservas, e dele resultou uma Comissão de industriais que impôs, pela primeira vez, a proibição de constituição de novas empresas de conservas e pesca de cerco 15.

De certa forma, as condições de recursos e mercados inverteram-se durante a Grande Depressão (1929-1932). A abundância de sardinha provocou o aumento da produção de conservas de peixe que se tornaram na principal rúbrica da exportação, com 25% em 1931. Mas essa expansão foi feita à custa de uma quebra de 38,5% do valor das exportações, entre 1930 e 1933. Poucas indústrias terão sido tão atingidas pela descida dos preços provocada pela crise internacional. A grave crise social no litoral provava não só a ineficácia das medidas republicanas e da Ditadura até então seguidas, mas também Servia de exemplo às críticas sobre os excessos do individualismo liberal e as suas consequências sociais, diagnosticados pelos doutrinadores do corporativismo.

No verão de 1931, Salazar, ainda ministro das Finanças, visitou os centros conserveiros e publicou um relatório onde atribuía a causa de desvalorização das conservas à concorrência entre industriais portugueses nos mercados externos 16. Ainda que considerasse que as empresas mais frágeis seriam “condenadas” pelo funcionamento espontâneo da concorrência, Salazar preconizava uma intervenção forte do Estado através da criação de um monopólio do comércio exportador. Esta ambiguidade, em torno da manutenção da concorrência e da formação de monopólios administrativos, vai estar presente na prática do Condicionamento industrial e, em geral, no intervencionismo económico do Estado 17.

Tal como sucedeu com a exportação do vinho do Porto, a atenção dada ao sector das conservas deu lugar aos primeiros movimentos de “cartelização estatal” através de organizações com amplos poderes de fixação de preços mínimos, fiscalização da qualidade e concessão de créditos aos industriais.

O sucesso inicial destes organismos – que se confunde com a superação da Grande Depressão a partir de 1934 e a revalorização das exportações – seria aproveitado pela propaganda do novo Estado 18.

Em 1932, uma série de três diplomas criou o Consórcio Português das Conservas de Sardinha e regulamentou o Condicionamento da indústria conserveira.

A criação de um organismo de disciplina de produção era legitimada pela suposta incapacidade de auto-regulação do sector e a ineficácia das políticas de incentivos fiscais e cambiais; a intervenção do Estado constituía, para o legislador, um direito e dever de defesa do interesse geral, e deveria traduzir-se na imposição de disciplina, regras e limites às liberdades excessivas 19. No que diz respeito ao Condicionamento, as restrições eram tão amplas que, se fossem plenamente executadas, conduziriam a uma imobilização das empresas.

O decreto n.º 21:623 não só mantinha a proibição de estabelecimento de novas fábricas e empresas, mas também a transferência por arrendamento ou sublocação, a admissão de capital estranho ou a cedência e transferência de qualquer parte do capital social das empresas, e ainda a alienação de bens imóveis ou maquinismos, qualquer modificação nas fábricas existentes e a reabertura de fábricas fechadas por mais de dois anos.

14 Armando Marques, Guedes, Cinco meses no governo, Porto, Chardron, 1926, p. 282 a 287.

15 Decreto 15:581, Diário de Governo, I Série, 15 de Junho de 1928. Sobre o desempenho da União de Conserveiros de Matosinhos, ver José M. Lopes Cordeiro, A indústria conserveira em Matosinhos. Exposição de arqueologia industrial, Matosinhos, Câmara Municipal, 1989, p. 31-32.

16 António de Oliveira Salazar, Notas sobre a indústria de conservas de peixe, 1953 [1931].

17 Alfredo Marques cita, neste sentido, outro texto de Salazar no mesmo período: “As vantagens atribuídas à concorrência são duvidosas […] Para ultrapassar estes últimos, surge o monopólio sob as suas diferentes formas. Algumas destas são, no entanto, portadoras de abusos e despotismos, pelo que são condenáveis, mas o princípio de monopólio como forma de control e como alternativa à concorrência é a melhor solução para a organização do mercado e para o funcionamento da economia, desde que o poder do monopólio possa ser contrabalançado e doseado pela intervenção do Estado.”. Alfredo Marques, Política económica e desenvolvimento em Portugal (1926-1959). As duas estratégias do Estado Novo no período de isolamento nacional, Lisboa, Horizonte, 1988, p. 98.

18 Joaquim M. Vieira Rodrigues, “A indústria de conservas de peixe no Algarve (1865-1945)”, tese de mestrado apresentada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1997, p. 321-325; e Nuno L. Madureira, “Cartelization and Corporatism: Bureaucratic Rule in Authoritarian Portugal, 1926-1945”, Journal of Contemporary History, 42 (2007), p. 79-96.

19 Decreto n.º 21:621, I Série, 27 de Agosto de 1932.

Depois de aprovada a Constituição e o Estatuto de Trabalho Nacional, o sector sofreu as necessárias adaptações institucionais. As delegações do Consórcio criado em 1932 foram transformadas em cinco Grémios de Industriais (Norte, Centro, Setúbal, Barlavento e Sotavento do Algarve) e um Grémio de Exportadores, e as suas funções transitaram para o novo organismo de coordenação económica, o Instituto Português de Conservas de Peixe, em 1936.

Antes de o Condicionamento se tornar numa prática estrutural, em 1937, a nova lei orgânica do IPCP já admitia a sua participação na regulação industrial, através da emissão de pareceres no Conselho Geral, depois de ouvido o Grémio de Industriais 20.

O pós-guerra e a ação do Condicionamento Industrial.

A segunda guerra mundial expôs as debilidades da indústria portuguesa, a insuficiência do mercado interno e as dependências da importação de bens intermédios essenciais ao funcionamento das atividades agrícolas e industriais.

Quando em 1945 foi publicada a Lei de Fomento e Reorganização Industrial (n.º 2005), o governo promoveu não só o lançamento de indústrias base, mas também a reorganização daquelas indústrias que davam sinais de dispersão, excesso de equipamentos e problemas de qualidade 21. A estas medidas concorria outro problema: a retoma do comércio europeu, e a adesão portuguesa a organizações internacionais, iria obrigar à liberalização das trocas comerciais e exigir à indústria melhorias de produtividade para suportar o aumento da concorrência externa.

Todavia, a gestão do Condicionamento Industrial parece ter ficado à margem deste problema; a nova lei, em 1952, e a discussão que acompanha a sua preparação na Assembleia Nacional, centraram-se em depurar os excessos de protecionismo de que tinha sido acusado, sem proporem uma reflexão sobre os desafios futuros 22. Mas no seio das atividades exportadoras, o problema da reorganização industrial começou a ganhar peso. Num parecer apresentado à Câmara Corporativa em 1955, Correia de Oliveira expôs uma análise atenta dos mercados de conservas de peixe. As exportações teriam margem de crescimento nos mercados europeus, onde a exportação estava liberalizada na maioria dos países, mas a flutuação de preços continuava a indicar uma excessiva concorrência entre os industriais portugueses. Entre outras medidas, Correia de Oliveira concordava com a formação de uma Comissão que estudasse a concentração de fábricas e a aproximação dos potenciais técnico e económico entre as diferentes empresas conserveiras 23.

20 Decreto-lei n.º 26:777, Diário de Governo, I Série, 10 de Julho de 1936.

21 Lei n.º 2005, Diário do Governo, I Série, 14 de Março de 1945, Base VI.

22 Ver o parecer de Pedro Teotónio Pereira sobre a nova lei, Diário das Sessões, n.º 101, 25 de Abril de 1951. Outros indícios, como a publicação do Decreto 38:783, expunham atitudes de resistência ao desenvolvimento industrial. Ver Manuel Lisboa, “Trabalho caseiro familiar e autónomo. Uma contribuição para a compreensão da política industrial do Estado Novo”, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 34 (1992), p. 283-298.

23 José Correia de Oliveira, “Parecer n.º 28/VI” in Actas da Câmara Corporativa, VI Legislatura, 18 de Junho de 1955, p. 533.

O quadro 1 demonstra que, entre 1940 e 1964, a indústria conserveira teve a sua maior expansão, com um aumento de 40% nas exportações nas conservas de sardinha, sem que, na realidade, tivesse necessitado de uma concentração das unidades industriais. O apetrechamento tecnológico – representado pelo número total de cravadeiras, a principal máquina suscetível de aumentar a capacidade de produção – foi lento, mas significativo. Em 1964, as conserveiras tinham duplicado o número de cravadeiras em relação aos anos da Guerra.

A permanência de uma estrutura industrial dispersa com recurso a mão de obra intensiva pode ser explicada por fatores demográficos e políticos, como a abundância de trabalho feminino e a contenção dos custos através dos Contratos Colectivos de Trabalho. Mas também por outras circunstâncias particulares.

A irregularidade do fornecimento do pescado aumentava os riscos de inovação e a manutenção do trabalho intensivo poderia ser, na realidade, a estratégia empresarial mais racional 24.

No entanto, o que importa compreender é em que medida o Condicionamento foi ou não responsável por uma certa cristalização industrial. O número total de pedidos de instalação reduziu-se substancialmente nos dois decénios posteriores à Guerra (quadro 2) devido às isenções entretanto decretadas 25.

Note-se, no entanto, que esta evolução não deixa de ser paradoxal, porque as exportações estavam em franca expansão. As barreiras de entrada no negócio já seriam, nos anos cinquenta, um dado adquirido que afastava os potenciais interessados em elaborar novos pedidos de entrada na indústria. O número geral de autorizações concedidas é superior a 75%, mas a maioria dos novos pedidos de instalação foram recusados 26. As reclamações apresentadas também foram mínimas – inferiores a 10% do total, em todos os anos –, o que reforça a noção de existência prévia de um ambiente de concorrência protegida.

Mas, no que diz respeito às modificações das empresas instaladas, dificilmente poderíamos ver o Condicionamento como um entrave à modernização tecnológica ou à capitalização das empresas. Uma análise atenta dos pedidos revela que estes se destinaram sobretudo à substituição de máquinas no interior das fábricas (cofres de cozedura e esterilização, cravadeiras e caldeiras) e à instalação de motores elétricos. Mudanças tecnológicas de maior impacto, como a instalação de frio industrial nas fábricas, por exemplo, teriam de esperar até à segunda metade dos anos sessenta, tal como revela a biografia de uma das maiores empresas, a Ramirez 27.

Poderíamos então supor que o Condicionamento foi uma forma monótona de manter o “status quo”. Mas a análise mais profunda, a partir de fontes primárias, revela que foi muito mais do que um instrumento de regulação autoritária. A prática do Condicionamento esteve comprometida com outros mecanismos que, em última instância, tornaram-no num elemento de estagnação, mas também de contínua especialização no fabrico de um produto – as conservas de sardinha em azeite e molhos. Entre estes mecanismos, relevam quatro preocupações: o dilema da modernização tecnológica; a alocação de recursos à indústria de conservas em azeite e molhos; o controlo do investimento estrangeiro; e a localização industrial.

24 Diane Newell, “The rationality of Mechanization in the Pacific Salmon-Canning Industry before the Second World War”, Business History Review, nr. 62 (1984), p. 626-655.

25 Em 1941, a indústria de conservas passou a estar isenta de condicionamento nas instalações de energia e força motriz, na instalação de pequenas máquinas, na transmissão ou cessão de cotas entre sócios da mesma sociedade, “quando portugueses, ou de estrangeiros para portugueses”, e na modificação de razão social quando não houvesse alteração de sócios.

26 Note-se que, para o ano de 1964, a percentagem elevada de autorizações de novos pedidos deve-se à instalação de fábricas de conservas de atum no arquipélago dos Açores, isentas do Condicionamento.

27 Nesta obra, produzida pela própria empresa, atribui-se ao diretor do IPCP na segunda metade dos anos 60, o engenheiro Paulino Pereira, a oposição à introdução do frio industrial na indústria conserveira. Ver Ramirez. Memórias de cinco gerações, Lisboa, Ramirez & Companhia, 2011, p. 80.

28 Arquivo da Direcção Geral dos Recursos Marinhos, Segurança e Serviços Marítimos [DGRM], Fundo CPCP, Livro de Actas do Conselho de Administração do CPCP, fol 126. Na realidade, de 1932 até 1948, a introdução de novas cravadeiras só poderia ser feita pela substituição de antigas, que deviam ser seladas, ou partidas, na presença de um funcionário da Circunscrição Industrial. Ficavam, assim, impedidas de serem revendidas para outras fábricas.

No início dos anos trinta, o Consórcio Português de Conservas de Peixe defendia uma visão clara sobre o avanço da mecanização: a introdução de novas máquinas nas fábricas só deveria ser autorizada se não aumentasse mais de 20 a 25% a sua capacidade de produção 28. Apesar de ser uma medida teórica, a capacidade de produção instalada resultara de um inquérito industrial do Consórcio e servira de base a todo o programa de intervenção estatal, que incluía a distribuição de matérias-primas e contingentes de exportação pelas fábricas, a repartição dos subsídios aos operários durante o defeso e a concessão de créditos a curto prazo às empresas. Alterar as capacidades de produção poderia significar a desestabilização de todo o programa de intervenção sobre a indústria.

Além disso, a autorização de novas máquinas mantinha como exigência contraditória a manutenção do número de operários permanentes de cada empresa. Como a maioria do trabalho feminino era dado como “eventual”, esta medida protegia sobretudo os operários masculinos. O Condicionamento aparece, assim, subordinado a imperativos de estabilidade social e dependente de outras políticas sociais que ajudaram a controlar as tradições reivindicativas do sector conserveiro. Depois das garantias aprovadas nos Horários de Trabalho, em 1934, os operários soldadores tinham alcançado, no ano seguinte, a interdição de mulheres e moços no uso das máquinas. O principal efeito colateral desta medida foi a manutenção de numerosas oficinas de «vazio» (fabrico de latas) anexas às fábricas conserveiras, impedindo a concentração e redução dos custos de laboração em latoarias independents 29.

Os industriais conserveiros não tardaram a reagir – e as críticas ao Condicionamento foram também alvo de censura. Em Setúbal, os conserveiros queixaram-se da morosidade dos processos e das multas sofridas por instalarem máquinas antes de publicada a autorização 30. Já durante a Guerra, em 1942, previam que o Condicionamento iria em breve prejudicar a sua competitividade externa, devido ao rápido crescimento da indústria marroquina 31.

Não por acaso, em 1948 seria revista a proibição de instalação de novas cravadeiras e cofres de esterilização, medida que respondia a numerosas críticas dos industriais 32.

Em segundo lugar, o Condicionamento terá servido como mecanismo privilegiado de alocação dos recursos à indústria de conservas em azeite e molhos, estabelecendo uma hierarquia entre esta fileira e outras duas, a conservação de peixe pelo sal (salmoura) e a congelação. Esta atuação correspondia, antes de mais, à política de valorização das exportações de conservas de sardinha, e tornou-se num mecanismo de proteção aos conserveiros que assim enfrentavam uma menor concorrência na aquisição do pescado nas lotas. Em 1946, por despacho ministerial, foram chumbados em bloco mais de uma centena de pedidos de instalação da indústria de salmoura; sentindo-se impedidos de exercer a atividade, os industriais de salmoura reuniram-se e reclamaram a sua representação na organização corporativa do sector 33.

No caso da congelação, a proteção aos conserveiros é ainda mais evidente.

Os pedidos de instalação foram sistematicamente negados até, pelo menos, 1970. Excecionalmente, foi admitida a expansão da Companhia Portuguesa de Congelação, formada em 1934, com o compromisso de colaborar no abastecimento de peixe congelado no mercado interno. A barreira à preparação de congelados para exportação teve duas consequências centrais: a indústria conserveira tardou em utilizar o frio para resolver um dos seus maiores problemas, a regularização no abastecimento de peixe, e laborar outras espécies poucos abundantes na costa portuguesa, como o atum; e, sobretudo, não pôde acompanhar a tendência de crescimento do consumo internacional de produtos congelados. Em Espanha, por exemplo, esta mudança foi percebida a tempo e a ditadura franquista apoiou a difusão da fileira da congelação, com o processamento de pescado a bordo, onde sobressai a constituição da Pescanova 34.

Em terceiro, o Condicionamento surge como um nítido controlador do investimento estrangeiro, tal como sugere o percurso de algumas empresas. A sua prática é coerente com as ideias defendidas na Constituição de 1933 e na legislação económica, como a Lei de Nacionalização de Capitais (1943), que exigia uma posição maioritária portuguesa nos investimentos estrangeiros 35. Subjacente à prática do Condicionamento estava também o problema específico das pescas costeiras e os conflitos com os armadores espanhóis.

29 Poole da Costa, Inquérito à indústria de vazio das fábricas de conservas de peixe e à indústria de latoaria mecânica, Lisboa, Tip. Jorge Fernandes, 1946. Sobre as conquistas laborais dos operários soldadores nos primeiros anos do Estado Novo, por oposição à sua perda de liberdade sindical, ver Fátima Patriarca, A Questão Social no Salazarismo, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999, p. 423-425.

30 “Condicionamento Industrial” in A Indústria, 31 de Março de 1938. Quanto à censura, ver Instituto Arquivo Nacionais/Torre do Tombo (Lisboa), Ministério do Comércio e Indústria, Caixa 23, pt. 9.

31 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1941-1944), fol. 289.

32 Caetano Feu Marchena, “Condicionamento Industrial. Capacidade de produção” in Conservas de Peixe, n.º 4 (1946), p. 11-12; e António Feu, “Um passo em frente” in Conservas de Peixe, n.º 33 (1949), p. 33-41.

33 “Uma exposição da indústria da salga” in Conservas de Peixe, n.º 18 (1947), p. 27.

34 Jesús G. Rivero, “Revisitando el nudo gordiano: el desarrollo de la congelación en la pesca gallega (1960-1970)” in Areas. Revista Internacional de Ciencias Sociales, n.º 27 (2008), p. 72-73.

35 Em parte, esta legislação pode ser vista mais como uma política de economia de Guerra e substituição de importações do que um ataque aos interesses económicos estrangeiros já instalados em Portugal. Ver Álvaro Ferreira da Silva, “Multinationals and foreign development: the Portuguese experience (1900-2010)” in Journal of Evolutionary Studies in Business, n.º 2:1 (2016), p. 54.

Durante o primeiro quartel do século XX, o Estado português foi assumindo um maior controlo sobre as águas territoriais portuguesas num processo de nacionalização dos recursos marinhos costeiros 36. Agora, na indústria conserveira, não só era proibida a entrada de empresas estrangeiras, como também a participação no capital social das empresas já constituídas. O cumprimento da lei foi, neste aspeto, particularmente escrupuloso. Em Olhão, entre outros exemplos, um pedido de José Correia Pontes para a aquisição de duas fábricas obteve o parecer favorável do Grémio de Industriais, sob a condição de ser alterada a escritura da empresa para que a sócia maioritária, no caso de “vir a casar-se com um estrangeiro, em comunhão de bens, […] não possa vir a ser sócio da firma» 37.

O caso Massó Lusitânia é sintomático dos receios que encobriam a entrada de empresas estrangeiras. Nos primeiros anos da Guerra, a Massó Hermanos, maior empresa conserveira da região de Vigo, procurou entrar no centro de Matosinhos através de uma aliança com o industrial Adão Polónia. Além de ser uma empresa de grandes dimensões, a Massó detinha a patente de uma nova tecnologia – canais de evisceração e fornos de cozedura contínua – que poderia introduzir ganhos de produtividade na indústria 38. A compra de duas fábricas foi, no entanto, indeferida pelo Condicionamento. No Conselho Geral do IPCP, todos os industriais se opuseram à empresa espanhola com três argumentos principais: a empresa iria introduzir “maquinaria moderna”, com graves consequências sociais; iria especular nos mercados externos com a conserva portuguesa, vendendo-a a preços baixos e compensando os prejuízos com as vendas no mercado espanhol; e, por último, “quanto maiores forem os lucros e a categoria industrial […] dão-lhes a faculdade de obterem, com relativa facilidade, o acesso rápido aos cargos mais importantes da organização corporativa” 39. Frente a esta ameaça, o IPCP ponderou adquirir as fábricas que corriam o risco de cair em mãos de estrangeiros. Estes exemplos servem, sobretudo, para demonstrar um percurso inevitável de isolamento: ao contrário de Espanha e França, onde multinacionais e «joint-ventures» permitiram a reconversão do sector industrial e a introdução de estratégias de capital intensivo, a indústria conserveira portuguesa continuou dominada por empresas domésticas, apesar de estarem quase todas orientadas para a exportação. Por último, o Condicionamento lidou com a questão da localização industrial.

A abundância de peixe era um factor tão importante na estrutura de custos das empresas que a deslocalização das fábricas seria a sua principal estratégia de diversificação. Entre 1937 e 1950, a escassez de sardinha em Setúbal e no Algarve suscitou 18 pedidos de transferência de fábricas para Matosinhos. Apesar das oposições do Grémio de Industriais do Norte, apenas uma transferência foi recusada. No início dos anos cinquenta, Matosinhos era já o principal centro conserveiro e porto sardinheiro do país. A tolerância na regulação industrial permitiu a afirmação de um distrito industrial compost pela concentração de pequenas empresas com vantagens comparativas, como as infraestruturas portuárias e a modernização da frota de pesca, o desenvolvimento da rede elétrica municipal, a existência de indústrias subsidiárias, como as serralharias Vulcano, onde se fabricavam as cravadeiras, e uma mão de obra abundante e flexível, com salários médios inferiores aos dos centros algarvios 40.

36 Ver, por exemplo, o decreto-lei n.º 24722, de 3 de Dezembro de 1934, que determinou a interdição da pesca em Portugal às embarcações transmitidas parcial ou totalmente a estrangeiros.

37 Arquivo Municipal de Olhão [AMH], Fundo do Grémio de Industriais de Conservas de Peixe de Sotavento do Algarve [GICPSA], “Condicionamento Industrial”, proc. “José Correia Pontes”.

38 Sobre os impactos desta mudança, ver Luisa Muñoz Abeledo, “Dos siglos y cuatro generaciones de dinámica empresarial” in Las Famílias de la Conserva…, cit., p. 135-136.

39 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1940-1941), fols. 66 a 71.

40 Para uma comparação com a exportação de cortiça ver Amélia Branco e Francisco M. Parejo, “La creación de una ventaja competitiva en la indústria corchera portuguesa: la contribución de un distrito industrial”, Instituto Superior de Economia e Gestão – GHES, Working Paper n.º 37 – 2009.

O processo de decisão: empresas, organismos corporativos e de coordenação económica

De acordo com os tópicos anteriores, o Condicionamento dificilmente poderia ser considerado um instrumento de agrupamento de empresas para a criação de unidades industriais mais robustas. A sua atuação não dependia unicamente do mérito das propostas ou das possibilidades entrevistas nos mercados, nem tão-só da proteção dos instalados, mas da conjugação de um conjunto mais vasto de políticas sociais e económicas. O modelo de intervenção do Estado na indústria conserveira, apoiado numa série de medidas micro como a distribuição de bens intermédios e o apoio à fileira das conservas em azeite e molhos, só seria possível se a estrutura industrial não sofresse alterações demasiado radicais.

Estes princípios consolidados ao longo dos anos foram, na realidade, alvo de disputa entre as empresas, os organismos corporativos e de coordenação económica, antes de os processos serem remetidos à DGSI 41.

Já dissemos que o Condicionamento afetava a liberdade das empresas. Não podemos dar aqui uma ideia completa desse movimento, mas salientamos três casos expressivos. Em 1943, a Fábrica de Conservas da Murtosa começou a laborar com um alvará para o fabrico de conservas em escabeche. A nova fábrica resultara da iniciativa privada para agregar produtores que exerciam a transformação da enguia em “condições higiénicas e técnicas reprováveis” 42.

Logo em Abril de 1944, a empresa requereu a modificação do seu alvará, para que fosse autorizada a produzir conservas em azeite e molhos. Alegavam que a Murtosa, afastada dos centros industriais, tinha dificuldades em aproveitar o pescado que era desembarcado na praia da Torreira e que a sua transformação em conserva iria animar a atividade da pesca. Apesar da bondade do projeto, o pedido foi rejeitado por despacho ministerial, sustentado pelo parecer negative do Grémio dos Industriais do Norte.

Dezasseis anos mais tarde, em 1960, a empresa voltou a requerer a transformação do alvará, alegando que a escassez de enguia na ria de Aveiro não permitia continuar com a especialização de conservas em escabeche, e que novas empresas de conservas em azeite e molhos estavam em processo de transferência do Algarve para a região 43. O pedido foi novamente recusado, com o mesmo argumento. Após uma terceira tentativa sem sucesso, o fabrico de conservas em azeite e molhos na Murtosa só seria aceite no final do regime de Condicionamento, em 1974.

O caso demonstra, inequivocamente, que houve estratégias de diversificação interrompidas pelo Condicionamento. Dada a rigidez do sistema, os alvarás existentes foram sobrevalorizados, mesmo quando representavam unidades sem viabilidade económica, porque constituíam a única forma de entrada na indústria ou a aquisição de quotas de produção concedidas a outra empresa.

Mas a iniciativa empresarial não foi só condicionada a partir das recusas de novos pedidos. Os processos autorizados revelaram, frequentemente, condições especiais definidas pelo IPCP ou pela DGSI, como a resolução previa de conflitos de interesse, a integração vertical da pesca e transformação, ou a manutenção dos quadros de operários. Delfim Linhares de Andrade, na ilha do Pico, desejou instalar uma fábrica de conservas de atum em 1964, mas só seria autorizado se construísse quatro barcos atuneiros e incluísse na empresa os pescadores e armadores interessados 44. A arbitragem de interesses atingiu tanto as pequenas como as grandes empresas. Desde 1936, a Algarve Exportador – a maior empresa do sector – desejava transferir a sua fábrica na região de Lisboa, em Alcântara, para Matosinhos. A transferência foi autorizada, mas com a condição de se manter a secção de “vazio” da fábrica de Alcântara e o número de operários do quadro permanente. Filipe Nazareth Fernandes, gestor da empresa e filho do fundador da Algarve Exportador, confirmava as exigências do Condicionameno. A manutenção das oficinas de latoaria era pouco eficiente, mas necessária para compensar a irregularidade da indústria e cumprir com os encargos dos Contratos Colectivos de Trabalho 45.

41 Para uma análise detalhada dos procedimentos, a sistematização dos argumentos e as tensões entre os agentes do Estado, ver, respetivamente, José M. Brandão de Brito, Industrialização…, cit., p. 187-224; e Luis E. Jiménez Pires, La regulación…, cit., p. 204-288.

42 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, “Fábrica de Conservas da Murtosa, Lda.”.

43 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, “Fábrica de Conservas da Murtosa, Lda.”.

44 Boletim da Direcção Geral dos Serviços Industriais [BDGSI], Despacho de 29 de Abril de 1964.

Enquanto o comportamento das empresas parece estar coartado pelo Condicionamento, a atuação dos Grémios de Industriais nos processos oscilou entre a vontade liberalizante e o reforço do protecionismo. A julgar pelos relatórios dos Grémios, estes opunham-se, na generalidade, a um clima restritivo da iniciativa privada; mas quer no Conselho Geral, quer na prática quotidiana de apreciação de propostas enviadas aos seus centros, as posições parecem ser mais conservadoras. Se tomarmos como exemplo um conjunto de 27 processos de Condicionamento que deram entrada no Grémio de Sotavento do Algarve, entre 1936 e 1974, verificamos que o Grémio emitiu 13 pareceres positivos e 14 negativos. Entre os pareceres negativos, todos diziam respeito a novas instalações – incluindo reaberturas e novas linhas de produção – apenas com uma exceção. Os argumentos para a negação dos pedidos incluíram, entre outros, a localização imprópria, a ausência de condições técnicas, a falta de recursos para suster o aumento da procura, e a indesejável concorrência com projetos industriais patrocinados pelo organismo corporativo, como era o caso das fábricas de subprodutos 46.

Finalmente, importa regressar ao papel do organismo de coordenação económica, o IPCP. Dentro do organismo há que distinguir duas instâncias: os serviços industriais do IPCP, e o Conselho Geral, que emitia o parecer final à DGSI. O nível de concordância entre os pareceres do Conselho Geral do IPCP e as decisões finais é tão elevado que leva a crer, neste sector, numa preponderância das decisões do organismo de coordenação económica sobre a DGSI 47.

Desde os anos trinta, o IPCP estabeleceu, através de circulares e do seu laboratório, uma regulamentação precisa sobre as máquinas, o controlo da qualidade das matérias-primas e do produto final. Tudo indica, portanto, que o IPCP dispunha de quadros ocupados por engenheiros que avaliavam as propostas, exigiam alterações ou recomendavam o seu indeferimento. Esta regulamentação específica estendia-se à própria dimensão das empresas 48. Além disso, os serviços industriais foram dirigidos por engenheiros com visões críticas sobre o próprio carácter excessivo do Condicionamento. Henrique Parreira, diretor dos serviços industriais, opunha-se às “concentrações capitalistas” mas sublinhava a necessidade de concentrar “as pequenas oficinas em fábricas de tamanho conveniente, utilizando maquinismos de melhor produção e maior rendimento” 49. Já o seu sucessor, Pinheiro de Magalhães (também membro da Direção do IPCP), advogou pela liberdade total na montagem de cofres e cravadeiras nas fábricas, salientando a urgente necessidade de redução dos custos de produção 50. Contudo, frente a estas visões progressistas, opuseram-se, mais do que uma vez, os próprios industriais que presidiam aos Grémios e compunham o Conselho Geral do IPCP. Os serviços industriais, conhecendo as posições conservadoras no Conselho Geral, eximiram-se por vezes de emitir opiniões contrárias 51.

No pano de fundo desta disputa parece estar a questão central: a ausência de reorganização na indústria conserveira nos anos de integração na economia europeia. Quase duas décadas após a “lei Ferreira Dias”, em 1964, foi formulado o projeto de decreto regulamentar do Condicionamento da indústria conserveira. Nele se explicitava que os estabelecimentos conserveiros não deviam precisar que lhes fossem determinadas as capacidades de produção para atingir melhores rendimentos, e a concentração industrial não deveria ser mais entendida como uma imposição do Estado, mas deixada à livre iniciativa das empresas52. O decreto não seria publicado, mas este parece ter sido preparado à luz da nova lei do Condicionamento Industrial, publicada em 1965.

Com este diploma, que reduziu substancialmente as funções do Condicionamento, as obrigações do Estado deveriam reduzir-se ao respeito de normas de segurança, higiene e qualidade mínima dos produtos, deixando as condições de dimensão, viabilidade económica e capacidade técnica dos empreendimentos aos empresários 53.

45 Filipe Fernandes, “Condicionamento do Vazio” in Conservas de Peixe, n.º 6 (1946), p. 7.

46 AMH, Fundo do Grémio de Industriais de Conservas de Peixe de Sotavento do Algarve [GICPSA], “Condicionamento Industrial” (vários processos).

47 Se tomarmos como exemplo os 30 processos da Fábrica Algarve Exportador em Matosinhos, notamos que apenas um não obteve a concordância entre o parecer do IPCP e a decisão final tomada por despacho ministerial. Arquivo DGRM, Fundo IPCP, “Algarve Exportador, SARL. Matosinhos (I)”.

48 Ver, sobre a autoridade técnica dos pareceres do IPCP, Arquivo DGRM, Fundo IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1937), fols. 5-6. No mesmo ano, deliberou-se que “salvo razões especiais […] seja exigido às empresas industriais que se reorganizem com pessoas estranhas e sob a forma de sociedades limitadas, um capital correspondente a 15$00 por cada caixa de capacidade de produção”.

49 Henrique Parreira, “Concentração Industrial” in Conservas de Peixe, n.º 6 (1946), p. 11-12.

50 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1947-1950), fols 49 a 54.

51 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, “Fábrica de Conservas da Murtosa, Lda.”.

52 AMO, Fundo GICPSA, “Plano de reorganização da Indústria e Comércio de Conservas de Peixe, 1963-1964”.

53 Decreto-Lei n.º 46666, Diário de Governo, 24 de Novembro de 1965. Note-se que o II Plano de Fomento, preparado em 1958, reafirmava, para o caso das conservas, a necessidade de reorganização da indústria.

É certo que foram escassas as fusões empresariais no sector – como a Cofaco, ou a Compagnie Saupiquet – mas aquelas que o fizeram tiveram uma maior longevidade. No final da década de sessenta, a progressiva escassez da sardinha, as dificuldades em criar novos produtos e as restrições no mercado da CEE arrastaram as conserveiras para uma crise irreversível. Só em Matosinhos, entre 1970 e 1973, encerraram 15 empresas com um total de 941 trabalhadores.

E, nesse período, o IPCP não pôde fazer mais do que elaborar um programa de extinção voluntária de unidades industriais.

Conclusão

Tal como foi salientado pela historiografia, as decisões do Condicionamento parecem ser a substância da política industrial do Estado Novo, com o ajustamento do mecanismo regulatório à ação dos grupos de pressão e ao “interesse nacional” sobre os mais importantes subsectores da indústria.

A indústria conserveira enquadra-se nessa explicação. Após a ineficácia das medidas de autorregulação e a pressão sobre os poderes públicos, o Estado transferiu para a administração a disciplina sobre a concorrência e as decisões sobre as estratégias individuais das empresas.

Mas o escrutínio do Condicionamento revela também o seu compromisso com outros mecanismos de construção do Estado autoritário, como a manutenção do emprego nos centros do litoral ou a desconfiança face ao investimento estrangeiro. Mais do que isso, o Condicionamento funcionou como instrumento de um projeto político concreto – o desenvolvimento das exportações de conservas de sardinha em azeite e molhos – em detrimento de outras fileiras de transformação do pescado, como a congelação e a salmoura. Ao proteger os conserveiros e facilitar a sua concentração geográfica em Matosinhos, o Estado contribuiu para a especialização da indústria e a sua competitividade internacional.

Ainda assim, a intervenção estatal parecia ainda não ter resolvido, no final dos anos sessenta, o problema da flutuação dos preços das conservas no exterior, já diagnosticado por Salazar em 1931. Na base do problema parece estar a estrutura pulverizada da indústria, com pequenas empresas que continuavam a competir entre si nos mercados externos.

A reorganização das fábricas em unidades mais robustas, contemplada na lei n.º 2005, nos Planos de Fomento e em diversos projetos de Comissões especializadas, não convenceu a iniciativa privada. Mas as empresas viram tentativas de criação de novos produtos e introdução de novas tecnologias interrompidas pelo Condicionamento. A sua atuação não dependeu apenas da ação centralizadora da administração pública. Ao estudarmos os agentes, verificamos que a organização corporativa e o organismo de coordenação económica foram, em grande medida, favoráveis à manutenção das restrições do Condicionamento. E o principal resultado parece ter sido, no caso das empresas instaladas, a dificuldade em preparar o futuro face às transformações do consumo e a diversificação na utilização de novas espécies na produção de conservas.

in https://impactum-journals.uc.pt/rph/article/view/7306

173) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…p. 100.

174) Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental – As vilas, o campo e o mar, volume I, 1976, p. 63.

175) Cf. Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do concelho de Vila Real de Santo António, 1999, p.84.

176) Cf. Francisco Xavier de Ataíde OLIVEIRA, Monografia do concelho… p.80.

177) Cf. José Eduardo Horta CORREIA, Vila Real de Santo António – Urbanismo e Poder…pp. 105 e 106.

178) Ibidem, pp. 105 e 106.

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