Pedras litográficas na indústria de conservas de Setúbal


Excerto do livro “SETÚBAL ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA OPERÁRIA 1880-1930”, de Maria da Conceição Quintas.

A litografia

A necessidade sentida por Aloísio Senefelder*, de um processo de reprodução de gravuras e texto sem grande dispêndio, levou-o, ainda nos finais do século XVIII, a “marcar numa matéria pastosa, mole mas consistente, diversas palavras e desenhos lineares servindo-se, para o efeito, de caracteres tipográficos.

Em seguida, tirava um positivo desta matriz utilizando, para tal, o simples lacre.

Esta chapa, porém, tinha o grande inconveniente de se quebrar ao menor descuido ou pressão.

Pouco depois resolve abandonar este processo de resultados pouco satisfatórios e exercita-se na gravura sobre chapa de cobre que era, previamente, coberta com um verniz de gravador”.

Do cobre passou à gravação em estanho, processo que também não se mostrou profícuo, dada a ineficácia da acção do ácido utilizado sobre aquele metal e ainda o dispêndio que representava o excessivo gasto na pedra-pomes necessária ao trabalho.

Num dado momento lembrou-se que vira em Solenhofen, na Baviera, junto ao rio Isar, umas pedras bastante claras que talvez pudessem substituir a pedra-pomes. Eram uns fragmentos de pedras de Kehlheim, muito brancas, sem relevos, planas e extremamente calcárias. A sua brancura natural, a face lisa e brilhante que adquiriam ao polir as chapas com que trabalhava, sugeriu-lhe a possibilidade de poder usá-las nas suas experiências de desenho e gravura.

Algum tempo depois, estas pedras substituíram as chapas de metal, até aí utilizadas, transformando-se Senefelder no inventor da “arte litográfica” que, posteriormente, substituiu “os sistemas de reprodução que, antes da sua descoberta, só era possível graças à gravura em metal ou em madeira”.

Senefelder compôs um verniz de gravador tendo a cera, o sabão e a aguarrás como base; estendia esta composição sobre a pedra polida como se ela fosse uma chapa de cobre; depois gravava, dando-lhe logo após um banho de água-forte, em seguida tirava as provas numa velha prensa, utilizando para tal, uma tinta com certa mistura de óleo de linhaça, negro de Francforte (negro-de-resina) e uma pequena parte de creme de Tartárea. Por fim limpava-a cuidadosamente com água alcalinada pela potassa e por reduzida quantidade de sal de cozinha (de 1791 a 1796).

Como os resultados ainda não o satisfizessem desenvolveu várias experiências até que, em 1796, ao escrever por acaso, numa das pedras já polidas, um apontamento, utilizando o verniz que tinha inventado, decidiu saber o que sucederia àqueles apontamentos sob a acção activa do ácido e sob o tampão enegrecido pela tinta de imprensa.

Estavam finalmente definidos os princípios fundamentais da arte da litografia que viria a ser experimentada para aplicação efectiva, por Gleissner que, conjuntamente com Senefelder, desenvolveu o novo método na impressão de músicas. Mas o grande inventor morreu como sempre vivera, pobremente num quarto de pensão, no ano de 1834, com 62 anos .

Entre 1806 e 1808 a litografia atravessou a fronteira alemã e penetrou em França, tendo chegado a Portugal, sob a égide de Luiz da Silva Mouzinho de Albuquerque que, em França, por mera curiosidade, estudara o processo.

Em 1822, este estadista enviou uma prensa, algumas pedras litográficas e diversos apetrechos necessários ao trabalho litográfico, ao cuidado do pintor e desenhador Domingos António de Sequeira, mandando às Cortes uma proposta para a introdução desta “arte” em Portugal.

Finalmente, em ofício enviado das Cortes a Filipe Ferreira Araújo e Castro, em 25 de Junho de 1825, este era informado da aprovação da proposta do Governo sobre o assunto. Daí à sua aplicação na indústria foi um simples passo.

Setúbal recebeu a nova técnica treze anos após a entrada dos franceses nesta cidade para dinamizarem a indústria de conservas de peixe, especialmente de sardinha.

Foi, portanto, no ano de 1893 que António José Baptista adquiriu uma prensa litográfica, que instalou num armazéns situado na R. Alexandre Herculano. Esta oficina litográfica manteve-se nas mãos do seu fundador até 1895, altura em que a vendeu, por sete contos de réis, a cinco indivíduos e duas firmas de Setúbal, ligados maioritariamente ao mundo conserveiro.

Estes constituíram a Litografia Setubalense S.A.R.L., com o objectivo de explorar a indústria da “folha acharoada” e de todos os mais artigos consumidos pelas fábricas de conservas de peixe. Em 1904 a Société Générale Métallurgique – firma francesa, com sede em Nantes e sucursal em Lisboa – mostrou interesse em investir na indústria litográfica local. Após contacto com a direcção da Litografia Setubalense foi acordado o trespasse por 28 000$000 réis a António José Baptista que arrendou as instalações por 19 anos e 250$000 réis de renda anual.

Mas, em 1905, António José Baptista abriu a Litografia Aliança, associado a seu filho Rafael que assumira a direcção técnica da oficina, instalada no mesmo local da anterior, pois os arrendatários haviam desistido da mesma.

As instalações foram remodeladas e, em 1919, Luiz José Baptista assinou um contrato de arrendamento destas instalações à Sociedade Litográfica Portuguesa, fundada em Lisboa a 17 de Abril do mesmo ano.

Em 1920 foi criada a Nova Litografia Sado, Lda. que viria a instalar-se no Bairro Salgado, paredes meias com uma das zonas residenciais da burguesia setubalense ligada à indústria conserveira. Pela primeira vez se abandonava o Bairro Baptista como localização privilegiada pela indústria litográfica setubalense.

A Sociedade Litográfica Portuguesa foi posteriormente (1933) reestruturada, após falência da empresa Aires da Costa & Ca, de que eram sócios António Vieira, Henrique Vieira, Padre Tobias em representação do seminário de Évora, Banco Melo e Sousa e Agustine Reis. Estes elementos eram também sócios da Nova Litografia Sado S.A.R.Lda .

O equipamento industrial da Sociedade Litográfica Portuguesa era, ainda nos anos 1930, composto por uma máquina rotativa que “tirava” 100 caixas de 112 folhas cada em 8 horas, duas máquinas planas a imprimirem à média de 50 caixas em 8 horas e 2 máquinas planas a envernizarem a folha já impressa nas três máquinas referidas. Ainda havia uma máquina plana que imprimia folha F.C.B.Y..

Nos “transportes” era tudo manual. As prensas de tirar provas e até a de passar “transportes” eram puxadas por uma manivela. Só mais tarde é que lhes foi adaptado um motor eléctrico com gerador da empresa, uma vez que a electricidade só foi inaugurada em Setúbal no ano de 1930. Era um trabalho árduo mas que exigia muita técnica e arte.

A crise mundial de 1929/30, que afectou o mercado europeu, levou à falência algumas fábricas de conservas de peixe existentes em Setúbal, processo inserido no contexto industrial português, conforme nos referia Alberto Vale na entrevista que nos concedeu. Este facto prejudicou a indústria litográfica, sendo os seus operários altamente penalizados, como menciona Manuel Marques no seu escrito.

Os trabalhos litográficos desenrolavam-se do seguinte modo:

a pedra a utilizar era conduzida para a secção de “granir pedras e chapas” onde era bem limpa, para ficar com “um pouco de poro” para conservar a humidade; dali seguia para a secção de desenho onde o “desenhador” debuxava com tinta litográfica, que possuía uma composição gordurosa, própria para as operações seguintes. Então o “desenho era preparado” com um produto composto de goma arábica e ácido nítrico que “queimava” a base onde se delineara o modelo a litografar, dando-lhe relevo. Seguidamente o “transportador” tirava as provas em papel cromo que era picado numa cartolina para fazer o transporte e passar para a chapa (em zinco ou alumínio) que ia para a máquina de impressão. Esta era composta por três cilindros: um continha a chapa de “transporte” e platina, outro com “cautchú”, e um terceiro a que se chamava cilindro de registo que pegava na “folha-de-flandres”, dava a volta e imprimia o desenho.

Estas placas já impressas seguiam para as fábricas de “vazio” (Astória, Mecânica Setubalense, Cooperadora e Sol, entre outras), onde as “latas” eram cortadas e soldadas (ou cravadas) para serem utilizadas nas fábricas de conservas. As tintas usadas nos “transportes” eram o “preto de transporte” e o “preto de escrita”, enquanto que as usadas na impressão eram “a base amarelo, branco, encarnado, azul e preto”.

O grupo de trabalhadores especializados era composto por gravadores, desenhadores, transportadores, impressores, marginadores, aparadores, estufeiros e outros, cuja aprendizagem era feita na própria oficina, onde os rapazes podiam entrar a partir dos doze anos.

Apenas os gravadores e desenhadores faziam os seus cursos fora das empresas, embora muitos deles cursassem a especialidade na própria oficina onde mestres como Júlio Alves (falecido em 1930), Simonetti e João Santana ensinavam os novos artistas.

A litografia era uma oficina quase exclusivamente de homens, pois as poucas mulheres que ali trabalhavam estavam ligadas a labores desqualificados e mal remunerados (mesmo quando exerciam as mesmas funções dos homens, à excepção de desenhador).

As pedras litográficas produzidas em Setúbal, ao longo de cerca de 100 anos, que nos foi dado observar, são de uma beleza deslumbrante e fruto de prodigiosa imaginação, pois fornecem uma imagem de marketing ainda pouco normal na época a que se reportam. A utilização de figuras femininas, misturadas com outras de cariz mitológico, regional ou histórico, inseridas num contexto cromático aliciante, visavam estimular o apetite dos consumidores menos impelidos para as conservas enlatadas. Nestes imaginativos desenhos, concebidos pelos litógrafos setubalenses, não era esquecida a representação humorística destinada aos mais sisudos, como poderemos inferir das gravuras apresentadas. As próprias marcas das conservas a enlatar mantinham estas componentes consideradas mais capazes de atrair as atenções e, consequentemente, os compradores.

A técnica da litografia era também aplicada na impressão dos papéis que envolviam as conservas enlatadas em “lata branca”. O desenrolar das actividades era o mesmo, diferindo apenas no material sobre o qual era impresso o desenho: a “folha-de-flandres” ou a folha de papel.

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