As mulheres
Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)**
Vasco Pulido Valente*
Análise Social, vol. XVII (67-68), 1981-3.º-4. °, 615-678
** O estudo que a seguir se pode ler foi feito com a colaboração da Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura. A ideia original, a concepção e a definição do método são do autor. A Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura fez a investigação preliminar e escreveu a primeira versão. O autor, depois, reviu a investigação e escreveu a segunda versão e a versão definitiva, que aqui se apresenta (e que contém partes da primeira). Toda a responsabilidade científica é do autor.
O estudo agora publicado está incompleto. Das quatro «classes» de conserveiros de Setúbal trata apenas três: soldadores, «mulheres» e «rapazes». É omisso a respeito dos «trabalhadores», Pensou-se, no entanto, que, mesmo assim, teria algum interesse a sua divulgação parcial.
X
As mulheres (ditas mulheres das fábricas) eram, com os rapazes, os operários menos qualificados da indústria.
O seu trabalho, como parcialmente se poderá depreender da secção sobre o processo de fabrico e determinava com típica brutalidade o Regulamento de 1911, que foram abrigadas a aceitar, consistia em «cortar, engrelhar e enlatar o peixe; [empurrar] os carros; levar as latas com peixe para os pios; tirar peixe para os soldadores da máquina; [ajudar] no armazém na escolha da lata; encaixar, pôr etiquetas, empapelar latas, pôr chaves, lavar grelhas, dar peixe em volta das mesas, fritar peixe; e, finalmente, todo o trabalho que o uso e o costume tinham estabelecido [como pertencendo-lhes]» 267.
Mas, depois desta vasta e ambígua enumeração, os patrões reservavam-se ainda (em 1911) «o direito de mandar fazer qualquer destes serviços por homens ou rapazes, quando assim lhes parecesse conveniente » 268.
Que significava essa prudência pouco vulgar? A resposta exige uma explicação prévia.
Acontece que as mulheres desempenhavam uma função produtiva de limites por natureza indefinidos: cabiam-lhes tendencialmente quaisquer tarefas que, pela sua complexidade, não coubessem a outros, ou seja, aquelas que não implicavam «especialização» alguma.
Só que as fronteiras entre o trabalho «especializado» e o trabalho «não especializado» não permaneciam imóveis, variavam com a relação de forças de «classe» (entre capitalistas e operários) e a consequente estrutura técnica da indústria. O pouco poder dos soldadores organizados levou os industriais a substituí-los por máquinas, total ou parcialmente. E o mesmo sucedeu mais tarde com os trabalhadores.
O papel das mulheres aumentava, como é óbvio, a cada passo dado no sentido de liquidar as categorias profissionais «aristocráticas» ou «semiaristocráticas». Para alimentar as «cravadeiras» e os aparelhos de soldagem bastava um par de «braços». Sem cabeça.
Não se tratou aqui, porém, de uma evolução regular ou de uma mudança simples e brusca. A capacidade de negociação dos soldadores e trabalhadores não resultava exclusiva e automaticamente da sua posição privilegiada nas formas de fabrico dominantes. Resultava também, embora não em última instância, da disciplina e implantação dos sindicatos, das suas tradições de luta, do apoio da comunidade. E, por isso, os patrões, à medida que os destruíam enquanto espécies operárias, para atenuar o impacte da operação, atribuíam-lhes «serviços» antes executados por mão-de-obra menos qualificada.
266 O Independente de 23 de Dezembro de 1909
267 O Mundo de 13 de Março de 1911.
268 Ibid., de 15 de Março de 1911.
Sabe-se, por exemplo, como, em 1913, os soldadores reclamaram (mas não obtiveram) tarefas dos trabalhadores e os trabalhadores das mulheres 269.
Deste modo, a função produtiva das mulheres cresceu, com avanços e recuos (que o Regulamento de 1911 sensatamente previa), na proporção da força dos capitalistas para eliminar os «homens» (criadores de tumultos e sarilhos) das conservas, a benefício de trabalho morto.
O fim da história é conhecido. Por volta de 1930-40, apenas existiam mulheres na indústria, isto é, «braços» eminentemente trocáveis por «braços», baratos e, sobretudo, submissos.
As mulheres eram operárias e, convém lembrá-lo, eram mulheres. Sofriam, assim, não de uma, mas de duas inferioridades sociais.
Transparece claramente da evidência disponível que, em muitos aspectos, os trabalhadores homens não as consideravam camaradas de parte inteira.
Desde logo, os soldadores e os moços não hesitavam em torná-las por «alvo de desconsiderações e abusos» constantes270. Um deles, por exemplo, foi despedido em 1903 por andar a exibir na fábrica um desenho pouco «honesto» e desafiar várias «raparigas» para «fins menos morais»271.
Acresce a isso que, se os insultos, grosserias e avanços de natureza sexual davam origem a conflitos públicos perturbadores da disciplina produtiva, os patrões reagiam normalmente despedindo as mulheres, e não os homens, mais difíceis de substituir 272.
Pior ainda, como notava O Germinal, a «classe operária masculina» «nada se preocupava» com a situação da «feminina». A sua imprensa, é certo, não cessava de lamentar, entre compadecida e paternal, a triste sorte das «desgraçadas»273, «pobres»274, «indefesas» mulheres275. Porém, mesmo achando-as particularmente «depauperadas e andrajosas»276, raramente se decidia a defendê-las.
Depois de 1910, os moços desencadearam com elas várias greves comuns, que partiam e assentavam na sua comum ausência de qualificação profissional. A «aristocracia» dos soldadores, no entanto, a única verdadeiramente poderosa, sempre pronta a entreajudar-se e, com frequência, a ajudar os moços, se eram as mulheres que estavam em causa, assistia invariavelmente impávida às piores formas de exploração, a despedimentos, a prepotências, a agressões.
Conhece-se apenas um caso em que, por excepção, os soldadores entraram em greve, entre outras razões, porque um mestre maltratava as mulheres277. E, em 1911, durante a grande luta destas por aumento de salários, os soldadores permaneceram «neutros», fechando as latas que os patrões conseguiam encher, sob pretexto de que
discordavam da «oportunidade» da reivindicação 278.
269 O Trabalho de 12 de Janeiro de 1913.
270 Ibid., de 20 de Setembro de 1901. Outro exemplo: em 31 de Janeiro de 1909, O Germinal publicava a seguinte notícia: «Uma operária da Fábrica de
Conservas S.to António escreve-nos queixando-se de que foi agredida brutalmente por um empregado daquela casa.»
271 Ibid., de 29 de Março de 1903.
272 O Germinal de 19 de Dezembro de 1910.
273 O Trabalho de 1 de Dezembro de 1912.
274 Ibid., de 17 de Novembro de 1912.
275 O Germinal de 4 de Abril de 1909.
276 Ibid., de 3 de Dezembro de 1910.
277 O Trabalho de 10 de Agosto de 1902.
278 Ibid., de 26 de Fevereiro e 9 de Abril de 1911. Mas nem todas as categorias dos operários os imitaram. Os carroceiros, por exemplo, fizeram um «boicote» de solidariedade: O Germinal de 25 de Fevereiro de 1911.
Mas, se os homens podiam negar, e por regra negavam, a sua solidariedade às operárias, o contrário nunca acontecia. Em primeiro lugar, porque a sua autoridade sobre elas não cessava à porta das fábricas. Não raro, os soldadores ou os moços deliberavam, em assembleia geral dos seus sindicatos, «retirar» as respectivas mulheres do trabalho em apoio de movimentos que só lhes diziam respeito a eles 279. E o facto de ameaçarem os eventuais renitentes com expulsão e ostracismo mostra que a vontade própria das interessadas se considerava negligenciável280. O princípio do seu total e exclusivo poder sobre as mulheres não se discutia, e mesmo um patrão que se atreveu a infringi-lo, exigindo aos maridos que algumas se não empregassem numa empresa rival, foi imediatamente obrigado a recuar 281.
Contudo, poucas vezes os homens se viam coagidos a exercer as suas prerrogativas. Como estava na lógica das coisas, se os homens, e sobretudo os soldadores, pela sua superioridade sexual e profissional, podiam não se sentir camaradas das operárias, elas sentiam-se com certeza camaradas deles.
«Somos filhas, mulheres e companheiras» dos marítimos e dos trabalhadores das conservas, proclamavam orgulhosamente em 1912, «a nossa causa é […] a deles.» 282
E, assim, sempre lhes tinham espontaneamente oferecido o seu apoio nas pequenas lutas 283 e nas batalhas duras e prolongadas, como a greve-lock-out de 1905 284; só que sem retribuição, como quem cumpre um dever que não merece e de que se não espera reconhecimento. Que os homens, aliás, se guardavam de dar. Apenas a partir de 1912-14, quando a crise dos soldadores se revelou irremediável e as operárias emergiram cada vez mais nitidamente como a categoria principal da indústria, a sua velha dedicação começou a ser hesitantemente retribuída. É que, para lá do sentimento, a razão da solidariedade residia na força e, nessa altura, a força das mulheres tornara-se já indispensável aos homens 285.
As mulheres não tinham, em rigor, horário de trabalho. Como a sua principal tarefa era preparar o peixe antes que apodrecesse, o número de horas que passavam nas fábricas variava directamente com as quantidades de sardinha ou cavala que os patrões entendiam comprar ou, mais simplesmente, que apareciam no mercado. Pior ainda: como os barcos das armações e dos cercos não traziam o peixe com regularidade, em qualquer altura do dia ou da noite286 as mulheres podiam ser chamadas às bancas por uma «sineta» ou pelos «encarregados» do industrial.
Acontecia, assim, que, para além de sofrerem a agressão de uma vida estruturalmente «sem regra»287, as operárias se viam com frequência sujeitas a «jornadas de 20 horas» 28S ou, como na empresa Câncio, a períodos de trabalho «sem interrupção» de 8 e 10 horas 289.
279 O Germinal de 22 de Junho de 1912; O Trabalho de 23 de Junho de 1912.
280 Ibid., da mesma data; O Trabalho de 23 de Junho de 1912.
281 O Trabalho de 16 de Julho de 1911.
282 Ibid., de 23 de Junho de 1912.
283 Ibid., de 20 de Setembro de 1901 e de 15 de Junho e 19 de Outubro de 1902.
284 Ibid., de 16 de Abril de 1905.
285 O que, de resto, se anunciava desde o dobrar do século. Em 26 de Janeiro de 1902, O Trabalho escrevia: «(…] [as mulheres] é que poderiam com pequeno sacrifício salvar aqueles que sofrem como elas (os soldadores), não permitindo que as máquinas sejam introduzidas nas fábricas.»
286 Embora a esmagadora maioria dos fabricantes convocassem as mulheres à noite, é provável que houvesse algumas excepções. Por exemplo, as operárias da fábrica Delory, por volta de 1910, trabalhavam só de dia.
281 O Trabalho de 16 de Abril de 1905.
Isto convinha aos capitalistas por duas razões.
A primeira —e menos importante — estava em que o sistema os deixava organizar a produção com maior flexibilidade e, presume-se, rendimento.
A segunda — e razão essencial — era a de que a ausência de normas fixas obliterava a distinção entre horas «ordinárias» e «extraordinárias» e, desse modo, lhes permitia apropriar um considerável volume de trabalho não pago, ou seja, de todo aquele que excedia as práticas correntes ou se fazia à noite 290.
Para as mulheres não existiam «serões» e «madrugadas» enquanto «tempos especiais» objecto de especial remuneração.
E, apesar de trinta anos de incessantes protestos e reclamações, nunca elas conseguiam impor aos industriais um genuíno horário de trabalho.
Compreende-se porquê. Em condições de endémico subemprego e sob a ameaça constante da inesgotável reserva de mão-de-obra rural, pronta a acorrer à cidade por qualquer preço, não havia maneira de usar a sua única arma eficaz, a greve.
A fraqueza contratual das operárias levou mesmo a que os patrões não cumprissem a legislação que as favorecia, perante a inteira benevolência e cumplicidade dos representantes do Estado.
Na verdade, um Decreto de 14 de Abril de 1891 e o seu subsequente Regulamento de 16 de Março de 1893 equiparavam as mulheres até 21 anos aos menores de 16 do sexo masculino e proibiam-lhes mais de 10 horas de trabalho por dia, mais de 6 de trabalho nocturno e mais de 5 de trabalho consecutivo291. Mas foram geral, militante e publicamente ignorados, apesar de se aplicarem a quase dois terços das operárias das conservas.
Em 1903, por exemplo, passados dez anos sobre a sua publicação, o director da circunscrição industrial a que pertencia Setúbal declarava (em flagrante violação da lei) que não via «inconveniente [no] trabalho nocturno moderado para menores [e, portanto, mulheres] nas fábricas de conservas», e justificava esta extraordinária opinião com o argumento, igualmente extraordinário, de que a «falta de braços» o impunha e de que, sem ele, os «estabelecimentos» sofreriam graves «prejuízos»292.
Dez anos depois, em 1912 e em plena República «democrática», ainda uma comissão de operárias se deslocava inutilmente a Lisboa a rogar ao Sr. Ministro do Fomento se dignasse mandar executar a legislação em vigor desde 1893 293.
E apenas em meados de Novembro desse ano as mulheres se sentiram suficientemente fortes 294 (ou suficientemente desesperadas) para reivindicar a fixação de um tempo «ordinário» de trabalho, exigindo um suplemento de 10 réis por cada hora nocturna (isto é, posterior às 7 da tarde) 295.
288 O Trabalho de 24 de Novembro de 1901.
289 Ibid., da mesma data.
290 E as mulheres não o ignoravam: O Germinal de 3 de Janeiro de 1912.
291 Rui Enes Ulrich, op. cit., pp. 47-55.
292 O Trabalho de 12 de Abril de 1903. Ver ainda A Greve de 7 de Junho de 1908.
293 O Germinal de 3 de Janeiro de 1912; O Século de 11 de Janeiro de 1912.Ver A Greve de 6 de Abril de 1908, que atribui o não cumprimento dos decretos de 1891-93 «à decadência em que o movimento operário caíra, ao estacionamento
das […] associações sindicais e ao desmantelamento de algumas delas».
294 Talvez por causa da fraqueza do Estado republicano e do novo vigor do movimento sindical.
295 O Germinal de 23 de Novembro de 1912.
Meia dúzia de patrões cederam 296, mas treze mantiveram-se intransigentes e, como dizia um comentador indignado, alegando a «penúria da indústria», rejeitaram o «misérrimo pedido das operárias» 297.
Houve ainda uma fruste tentativa de greve e, depois, as coisas voltaram ao ponto de partida, restabelecendo-se em todas as fábricas o sistema tradicional 298.
Como não tinham horário, as mulheres não tinham, evidentemente, direito a um dia de descanso semanal. É escusado insistir no assunto: só vale a pena notar que para elas o descanso se não distinguia do desemprego (por escassez de peixe, crises de subprodução, etc).
Mais uma vez, também nesta área os patrões nem sequer observaram, ou foram obrigados a observar, a lei do País. Quando, em 1907, João Franco decretou o descanso semanal obrigatório, em Setúbal, os industriais de conservas não o «outorgaram» às operárias e continuaram imperturbavelmente a convocá-las para as bancas, mesmo aos domingos 299.
Em 1911, a República reiterou a determinação de Franco, que ninguém se dava ao excessivo incómodo de respeitar. Com fracos resultados, porém.
Em Março, os patrões impunham às mulheres um «regulamento» onde se mandava que elas «comparecessem nas fábricas aos domingos e feriados quando houvesse trabalho»; «o descanso semanal de 24 horas consecutivas» seria cumprido, claro, mas «de harmonia com a índole especial da indústria» 300. O alcance desta cordata qualificação logo se tornou claro.
Em Abril, os patrões requereram à comissão administrativa da Câmara que, «atenta» a referida «índole» das conservas, os autorizasse a substituir o «encerramento aos domingos» pelo «descanso por turnos»301. Aparentemente insignificante, a alteração era, na prática, essencial. Se as autoridades e as associações operárias podiam sem esforço verificar o «encerramento ao domingo», o «descanso por turnos», complicado e diferente de caso
para caso e semana para semana, escapava a qualquer controlo, Aceitá-lo, como a comissão administrativa da Câmara se apressou a fazer, equivalia a entregar as mulheres ao arbítrio dos capitalistas. Ou seja, a manter as condições anteriores de ocupação contínua, com intervalos de desemprego.
Sobre as suas vantagens intrínsecas, o facto de as mulheres não terem horário beneficiava ainda os patrões de outra meritória maneira: oferecia-lhes a oportunidade de roubar trabalho às operárias, «roubando-lhes» tempo.
Por dois processos principais.
Primeiro, só lhes pagando o período da actividade efectiva. Em geral, assim que o capitalista comprava o peixe na lota, chamava as mulheres à fábrica. E, na fábrica, elas, em geral, esperavam (com frequência uma, duas e até três horas) que o peixe chegasse (de carroça) e fosse descarregado.
Essa espera, muitas vezes de noite, os industriais não consideravam trabalho e, consequentemente, não contavam para efeitos de salário.
Mas havia mais. Se o peixe não vinha escorchado e salmonado das mãos dos pescadores, as próprias mulheres eram obrigadas a prepará-lo e a esperar depois que ele salgasse nas moiras, antes de o engrelharem 302. Para os patrões, também esta interrupção forçada não constituía trabalho ou merecia, evidentemente, qualquer remuneração.
297 Ibid., de 17 de Novembro de 1912.
298 Ibid., de 17 de Novembro de 1912 e de 12 de Janeiro de 1913.
269 O Germinal de 8 de Setembro de 1907; O Trabalho de 22 de Setembro de 1907; O Germinal de 24 de Novembro de 1907. Aliás, contra a sua própria deliberação(?), em assembleia geral do Sindicato.
300 O Mundo de 15 de Março de 1911.
301 O Trabalho de 30 de Abril de 1911.
Apesar de infindáveis protestos e de duas greves, nunca as operárias conseguiram pôr termo a semelhantes práticas.
O Regulamento de 1911, por exemplo, persistia em declarar, com tranquila brutalidade: «[…] as [mulheres] começam a vencer desde a ordem dada pelo industrial ou encarregado para começar o trabalho, terminando quando os mesmos derem ordem para largar. Não será contado o tempo de espera, […] de dia ou de noite.» 3as
O segundo método de roubar trabalho «roubando» tempo, se possível, ultrapassava o primeiro em crueza e violência. Consistia ele, pura e simplesmente, em enganar as mulheres, quase sempre analfabetas, sobre o número de horas que na realidade tinham passado «à banca» (isto é, não incluindo a espera inicial e a provável paragem para o peixe salgar).
Com esse específico propósito, os patrões não punham relógio de parede nas fábricas 304. E, se o punham, não o punham em locais de fácil acesso ou atrasavam-no e adiantavam-no sistematicamente segundo as suas conveniências 305.
No fim do século XIX, princípio do século XX, o relógio individual era um produto de luxo fora do alcance da maioria dos operários e que, de qualquer maneira, se usava ao domingo com as melhores roupas, mas não se usava no trabalho. É mesmo duvidoso que muitas mulheres fossem capazes de «ler» as horas. E assim se abria um considerável campo de manobra aos industriais, que eles diligentemente aproveitavam.
As mulheres lutaram anos e anos contra esta forma de exploração, mais comum e intensa do que poderá supor-se. Em 1909, por exemplo, quando já ia longe o pior período de inexperiência, desorganização e fraqueza operária, ainda uma empresa chamada Liberal (de Alves e C.a) se recusava altivamente a colocar um relógio na oficina306.
E só em 1911 o Regulamento aceitou, em princípio, que «em todas as fábricas haveria um relógio em lugar bem visível» 307. Mas não se conhece o resto da história: e os patrões tendiam a esquecer-se das suas promessas quando ninguém lhas lembrava.
Resta acrescentar uma observação. Os pagamentos faziam-se habitualmente ao sábado308. E, como se disse, o que as mulheres recebiam variava de semana para semana, conforme a escassez ou a abundância de peixe e o ritmo de produção. Precisavam, desse modo, de saber quanto tinham trabalhado em cada dia e qual era a soma final das parcelas. Ora, o que a um burguês educado de 1911 parece elementar, para as operárias constituía uma operação complexa. Não apenas por serem analfabetas, como por regra sucedia, mas porque, entrando e saindo da fábrica a horas irregulares, sem relógio, cansadas e a caminho de outras tarefas, quase nunca conseguiam, ou as deixavam, apurar o seu tempo exacto de trabalho.
302 O Trabalho de 16 de Abril de 1905.
303 O Mundo de 15 de Março de 1911.
304 O Trabalho de 2 de Maio de 1909; O Mundo de 15 de Março de 1911.
305 Ibid., de 21′ de Julho de 1907 e de 26 de Janeiro de 1908.
306 Ibid., de 2 de Maio de 1909.
307 O Mundo de 15 de Março de 1911.
308 Ibid., da mesma data.
Confiavam, portanto, nos patrões. E os patrões, é claro, não hesitavam em enganá-las.
Como não servia de nada protestar (não existia na matéria autoridade superior aos industriais) e o protesto implicava até o risco de despedimento, o único remédio consistia em prevenir. Para que as suas contas coincidissem com mais frequência com as dos patrões, as mulheres reivindicaram, desde cerca de 1900, um cartão individual em que se registassem, «oficial» e diariamente, as horas de trabalho.
Em 1911, após anos de luta, o Regulamento concedeu-lhes benevolentemente o carta 309. De novo, porém, não há maneira de estabelecer o que se passou depois.
Sobre fazerem um trabalho extenuante, sujo e mal pago, e sofrerem uma exploração particularmente intensa, mesmo para o Portugal desses anos, as mulheres estavam sujeitas dentro das fábricas a formas de opressão que, em geral, poupavam os homens. Não se tratava já das quase universais proibições de conversar, cantar ou assobiar; a «disciplina» industrial estendia-se, no seu caso, também à impossibilidade de deixarem as «bancas» ou «mesas» para irem à retrete e até para beberem água, que, de resto, habitualmente os patrões se recusavam a fornecer-lhes 310.
Como as suas horas eram irregulares, muitas vezes não lhes concediam qualquer intervalo para comer e descansar. E os mais breves atrasos em responder ao toque da «sineta» (ou sirene) ou à convocação vocal do encarregado costumavam ser punidos com despedimento imediato: ou, melhor, com a contratação de outra operária de entre o número invariavelmente excessivo daquelas que se apresentavam ou se podiam rapidamente mobilizar.
Acresce que a inferior condição social feminina permitia, ao contrário do que acontecia com os soldadores e os moços, que esta disciplina fosse imposta por métodos expeditivos. Os mestres (e mesmo as mestras), que nunca se atreveriam a levantar a mão para um homem, não hesitavam em «oferecer pancada» às mulheres 311 e, de quando em quando, em passar das ameaças aos actos.
As queixas contra agressões e «maus tratos» físicos não cessaram durante todo o período em análise 312.
Como não cessaram as queixas contra as iniciativas sexuais dos encarregados, uma espécie específica de humilhação.
Em 1902, por exemplo, O Trabalho acusava o encarregado da casa Séréjé de se mostrar «em demasia galanteador», «abusando da sua posição»313.
E, pouco depois, o da casa Chancerelle tentava violar uma operária de 12 anos 314.
As mulheres tinham dificuldade em resistir a semelhantes ataques.
Como se sabe, desempenhavam nas fábricas diversas tarefas de peso e dureza diferentes e, nas palavras do Regulamento de 1911, o «direito» de distribuir por elas o «serviço» pertencia «em exclusivo» aos industriais e aos seus representantes815.
309 O Mundo de 15 de Março de 1911.
310 O Trabalho de 2 de Maio de 1909 e de 3 de Novembro de 1901.
311 Ibid., de 27 de Julho de 1902. Perguntava O Mundo em 16 de Outubro de 1904: «Porque não trata o mestre os soldadores do mesmo modo que trata as operárias?» E respondia: «É porque aqueles são homens e talvez não se sujeitassem ao que sofrem as pobres mulheres.»
312 O Mundo de 16 de Outubro de 1904; O Germinal de 12 de Abril de 1906.
313 O Trabalho de 5 de Janeiro de 1902. Ver também O Germinal de 16 de Outubro de 1904 sobre um mestre que fazia «as ameaças as mais injustificadas» e usava «a linguagem a mais indecorosa».
314 Ibid., da mesma data
Se decidissem, portanto, rejeitar clara e taxativamente as indesejadas atenções dos mestres, mesmo que por sorte as não despedissem ou pusessem na «lista negra», arriscavam-se a receber sempre as piores tarefas 316.
Estas perseguições (e os consequentes «favoritismos» com aquelas que cediam à pressão) foram comuns à indústria inteira, de Olhão a Matosinhos, e talvez não hajam desaparecido antes da relativa «prosperidade» posterior à segunda guerra mundial.
O paternalismo das relações entre homens e mulheres, dominante na sociedade em geral, permeava igualmente as relações de patrões e operárias.
As operárias tendiam, por exemplo, a presumir que os patrões ignoravam os «abusos» de que elas eram «vítimas» e, ocasionalmente, chegavam até a apelar para eles com êxito. Assim, os encarregados, responsáveis directos, mas dependentes, ficavam com a parte substancial do odioso da política patronal e os patrões conseguiam aparecer como figuras relativamente benignas, em cujas costas se passava a pior das injúrias, pancadas e chantagens sexuais 317.
Para alimentar uma tão conveniente imagem de si próprios, estes últimos costumavam, aliás, ao contrário do que faziam com os moços ou com os soldadores, dar às mulheres gratificações e bónus 318. Porém, essas liberdades, que supostamente punham a «boca doce» às visadas, tinham uma séria contrapartida: os fabricantes esforçavam-se por controlá-las política e ideologicamente como nem sequer lhes ocorria tentar com os homens. Ou lhes descontavam, com propósitos educativos, «um tostão» na «jorna» a título de contribuição para «uma missa por alma» de um benemérito local319; ou as coagiam a assinar «um papel religioso», tornando-as «inconscientemente judas da causa do trabalho» 820; ou as forçavam a comprar folhetos de propaganda clerical, «irritantes e inábeis »821. Mas constantemente lhes exigiam uma conformidade explícita e activa à ortodoxia burguesa.
E, se, por acaso, as mulheres resolviam reivindicar fosse o que fosse, tratavam-nas, sempre que possível, como filhas recalcitrantes, isto é, batendo-lhes.
Ainda em 1910, com a República igualitária proclamada em Lisboa, alguns industriais se sentiram suficientemente seguros para mandar «criaturas brutas» (os mestres) sovar operárias grevistas, quando estas lhes vinham pedir aumento de salário. Com crianças e mulheres não usavam de desnecessárias contemplações.
Os jornais operários descreviam invariavelmente o trabalho das mulheres como «extenuante» (o adjectivo mais vulgar) 322, «desumano e violento» 323 e garantiam que ele se «realizava» em condições «péssimas» 824 e pouco higiénicas 825.
315 O Mundo de 15 de Março de 1911.
316 O Germinal de 16 de Outubro de 1904.
317 O Trabalho de 3 de Novembro de 1901 e de 5 de Janeiro de 1902; O Mundo de 16 de Outubro de 1904.
318 Ibid., de 10 de Abril de 1904.
319 Ibid., da mesma data.
320 Ibid., da mesma data.
321 O Germinal de 4 de Abril de 1909.
322 Ibid.-, de 2 de Maio de 1909; O Trabalho de 17 de Novembro de 1912.
323 O Trabalho de 16 de Abril de 1905.
324 Ibid., de 2 de Maio de 1909.
325 Ibid., de 21 de Julho de 1907.
Na verdade, as operárias trabalhavam sempre de pé, às «bancas» ou «mesas», no meio dos restos inaproveitáveis do peixe e de um cheiro inevitavelmente nauseabundo.
Além dos «traumatismos, golpes, cortes de dedos, […] picadas [de] espinhas» e respectivas infecções, que afectavam todos os conserveiros326, as mulheres sofriam de males particulares.
Tinham de suportar longas horas sem se sentarem para comer ou descansar, não só em circunstâncias normais, como quando estavam grávidas ou convalescentes de parto.
Há um caso registado de uma síncope de uma operária grávida327. Mas deve ter havido muitos mais que não se registaram. Não podendo prescindir dos seus curtos salários, as mulheres corriam qualquer risco para sobreviver. É certo que o decreto de 1891 proibia a sua admissão ao serviço nas primeiras quatro semanas depois do parto328. Porém, nem a miséria deixava as interessadas invocá-lo, nem os patrões, evidentemente, se lembravam dele.
Como não se lembravam dos outros artigos da lei que determinavam que nas fábricas com mais de 50 operárias houvesse uma creche e que as mães fossem autorizadas a amamentar os filhos, às horas e pelas formas oficialmente previstas 329.
Em Setúbal, onde muitas empresas empregavam 100 e 50 operárias, não só não existiam creches, mas nem mesmo as mulheres podiam exercer o seu direito de interromper o «serviço» para amamentar as crianças, que ou ficavam em casa à guarda dos irmãos ou avós, ou, em certos casos, em cestos à própria porta das oficinas.
O trabalho das operárias não se limitava a ser brutal e pago com uma «bagatela» 330, a disromper a vida doméstica e familiar, a «arruinar a saúde» 331; arruinava também, e talvez sobretudo, a saúde dos respectivos filhos.
Numa única coisa as fontes são unânimes: as mulheres eram o pessoal (adulto, ou presumivelmente adulto) «mais mal retribuído das fábricas» 332.
Recebiam uma «bagatela» 333, salários de «miséria» 334, salários «ridículos» 335. Mas a partir daí começa a ser muito difícil saber quanto ganhavam.
Desde logo, o preço da hora variava de acordo com três factores: a idade, a qualificação e, a partir de 1912-13, o grau de mecanização da empresa.
Em primeiro lugar, como dizia o Regulamento de 1911, «as operárias que, pela sua falta de prática ou pouca idade, não pudessem fazer todos os serviços que lhes competiam» trabalhavam, não à «tabela», mas por uma remuneração especial «convencionada entre o industrial e elas» 336.
Em segundo lugar, também nas palavras do Regulamento, «as operárias especialistas [sic] [utilizadas] na escolha da lata, nos pios e na fritura do peixe» —isto é, aquelas, «escolhidas» pelo patrão ou pelo «encarregado», que depois de 1910 principiaram a substituir e a expulsar os homens — tinham um suplemento de 5 réis por hora 337.
E, finalmente, por volta de 1912-13, muitas das fábricas mais mecanizadas decidiram aumentar as suas mulheres para as separar da luta que os soldadores travavam contra a sua obsolescência tecnológica 338.
326 Inquérito Industrial de 1909.
327 O Trabalho de 18 de Setembro de 1904.
328 Rui Enes Ulrich, op. cit, p. 70; O Trabalho de 18 de Setembro de 1904.
329 Id., op. cit., p. 70; A Greve de 21 de Março de 1908.
330 O Trabalho de 16 de Abril de 1905.
331 Ibid., de 26 de Janeiro de 1902.
332 Ibid., de 16 de Abril de 1905.
333 Ibid., da mesma data.
334 O Germinal de 2 de Maio de 1909.
335 oTrabalho de 20 de Setembro de 1901.
336 O Mundo de 15 de Março de 1911.
Além disto, sucedia igualmente que as operárias não trabalhavam o ano inteiro como os soldadores (no «cheio» e no «vazio») e, em certa medida, mesmo os moços; eram chamadas só quando havia peixe. Atravessavam, assim, longos períodos de desemprego, a que se seguiam fases de actividade intensa, embora irregular; e é, portanto, impossível saber (nem elas o conseguiam) quanto, ao fim e ao cabo, ganhavam em média por dia.
Sabe-se, porém, com bastante aproximação, o que ganhavam por hora.
E, postulando, assaz arbitrariamente, que o seu tempo total de ocupação não mudou entre 1890 e 1913, existem os elementos necessários para determinar em linhas gerais a evolução dos salários nominais e reais.
Até 1901, o preço da hora «não ia além de 30 réis»339 (o que significa que com frequência ficava consideravelmente abaixo). Em 1905, o Boletim do Trabalho Industrial punha-o entre 20 e 40 réis, mas notava que, para a maioria das mulheres, ele oscilava entre os 30 e os 35 réis.
De 1905 a 1908, os salários subiram ligeiramente e, em 1909, quase todas as operárias adultas (dos 16 anos em diante) trabalhavam a 40 réis por hora.
Porém, precisamente nessa altura desencadeou-se um movimento de sentido inverso. Em Maio de 1909 dão-se as primeiras lutas contra patrões que querem regressar aos 35 réis 340.
E, em Novembro de 1910, a favor da grande esperança da República, as mulheres reivindicam já a antiga tabela de 40 réis por hora diurna (acrescentando a exigência nova de 50 réis por hora nocturna) 341.
Perdem, no entanto, as grandes greves de 1910 e 1911. Por isso, em 1912, as remunerações gerais (dia e noite) continuaram aos níveis de 1909 (isto é, entre 35 e 40 réis, sendo 35 a regra) e neles se mantiveram, depois de outra séria derrota, em 1913-14 342. Excepto, claro, para as operárias das fábricas mais mecanizadas, que, por razões atrás referidas, chegaram, em alguns casos, aos 50 e 55 réis 343.
Isto quanto aos salários nominais. E quanto aos reais? Se atribuirmos a base 100 aos salários nominais de 1901 e também à média dos preços dos géneros alimentares essenciais, teremos:
337 O Mundo de 15 de Março de 1911.
338 O Trabalho de 23 de Junho de 1912.
339 Ibid., de 20 de Setembro de 1901.
340 Ibid., de 2 de Maio de 1909; O Germinal de 2 de Maio de 1909.
341 A República de 26 de Novembro de 1910; O Trabalho de 27 de Novembro de 1910 e de 12 de Novembro de 1911.
342 O Trabalho de 17 de Novembro de 1912; O Germinal de 23 de Novembro de 1912.
343 Ibid., de 23 de Junho de 1912.
Por aqui se vê que o «poder de compra» das mulheres se deteriorou um pouco entre 1890 e 1901, aumentou substancialmente entre 1901 e 1909 e sofreu uma queda brusca e radical de 1909 para 1913.
O que, em substância, não difere do que sucedeu aos soldadores e outras categorias operárias, das conservas ou não.
A República explodiu no País ao mesmo tempo que uma recessão económica profunda, que, de resto, só conseguiu expandir e agravar. O problema das mulheres é que não dispunham de muito espaço para recuar. Para elas, a crise significava simplesmente uma intolerável exploração e uma quase absoluta miséria.