A "Guerra das máquinas"

Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)**

Vasco Pulido Valente*
Análise Social, vol. XVII (67-68), 1981-3.º-4. °, 615-678

* Universidade Católica Portuguesa.
** O estudo que a seguir se pode ler foi feito com a colaboração da Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura. A ideia original, a concepção e a definição do método são do autor. A Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura fez a investigação preliminar e escreveu a primeira versão. O autor, depois, reviu a investigação e escreveu a segunda versão e a versão definitiva, que aqui se apresenta (e que contém partes da primeira). Toda a responsabilidade científica é do autor.
O estudo agora publicado está incompleto. Das quatro «classes» de conserveiros de Setúbal trata apenas três: soldadores, «mulheres» e «rapazes». É omisso a respeito dos «trabalhadores», Pensou-se, no entanto, que, mesmo assim, teria algum interesse a sua divulgação parcial.

Porém, as dificuldades dos soldadores nos últimos dez anos da Monarquia não se podem comparar ao que os esperava depois, quando aquilo que já drasticamente lhes reduzira a antiga prosperidade e segurança os pôs também perante a irresistível ameaça de extinção total: a saber, as máquinas de cravar e soldar.

As fábricas de Setúbal sempre tinham tido máquinas e ferramentas mecânicas: geradores de vapor, estufas (que coziam o peixe), caldeiras (que esterilizavam as conservas), tesouras e cortantes (que dividiam a folha-de-flandres), dobradeiras (que davam à tira lateral da lata o format adequado), enformadeiras e fieiras (que lhe marcavam levemente um rebordo), rebordadeiras e o respectivo antepassado, os balances (que lhe completavam o rebordo uma vez soldada), cunhas (que faziam o mesmo aos tampos), engenhos de furar, ventoinhas, corta-bicos e outras.

175 O Trabalho de 11 de Agosto de 1907.
176 Colecção Oficial de Legislação Portuguesa, ano de 1907.
177 Ibid., ano de 1911.
178 O Trabalho de 2 de Outubro de 1910.
179 O Germinal de 24 de Agosto de 1912.

Algumas destas máquinas eram accionadas por vapor ou gás e algumas manualmente, mas o seu número não parou de crescer desde o advento da indústria 180. Os próprios soldadores usavam uma «mesa» especial e um «ferro», atrás descrito, que funcionava a gás.

Todo este equipamento permitira a criação das fábricas e a sua rápida expansão. E foi instalado em Setúbal sem qualquer protesto dos operários. Desde logo, porque correspondia a um desenvolvimento quantitative da produção, e não a uma mudança qualitativa (tecnológica) do processo produtivo. Em segundo lugar, porque em nenhum caso se tratou de introduzir inovações susceptíveis de dispensarem mão-de-obra: cada máquina que vinha, pelo contrário, reclamava mais gente. Por fim, porque até meados da década de 1890, se existiam em Setúbal trabalhadores, não existia com certeza uma classe trabalhadora (ou uma categoria professional de trabalhadores) capaz de definir os seus interesses colectivos e de se opor organizadamente aos patrões.

A questão das máquinas, que esteve no centro das preocupações e lutas operárias em 1901 e, a seguir, de 1911 em diante, não é, portanto, um problema geral da indústria que importe à generalidade dos conserveiros.

É um problema dos soldadores, cuja função e modo de vida as soldadeiras (e as cravadeiras) se destinavam a destruir.

Foi em Abril de 1901 que primeiro se ouviu falar em Setúbal dessa «realidade terrível»181, em que quase ninguém acreditava182. De Espanha chegou uma circular aos capitalistas locais, convidando-os a irem «de visu» observar as fábricas de conservas de Vigo, «as vantagens, perfeição e economia da máquina de soldar sistema Asche» 183.

Aparentemente, as Asche (à altura já não o modelo mais moderno) podiam ser usadas tanto para o «cheio» como para o «vazio» e, ao passo que um bom soldador produzia cerca de 1200 latas em 8 horas, um médio 800 e um fraco 500, elas eram capazes de produzir entre 1000 e 1800, poupando portanto perto de l$000 réis por caixa de 100 latas de 1/4184.

Benefício supremo para os patrões, precisavam apenas, em matéria de operários, de um homem (de certo não qualificado) e dois rapazes, o que permitia evidentemente liquidar, a curto prazo, a militante, a subversiva, a orgulhosa «aristocracia» dos soldadores, que tinha os meios de não se deixar explorer excessivamente e, por isso, tão cara saía.

180 Ver quadro n.° 8.
181 O Trabalho de 11 de Agosto de 1901.
182 Ibid.,  de 11 e 211 de Abril de 1901.
183 Ibid., de 14 de Abril de 1901.

Face à catástrofe, ao princípio ainda se disse que as Asche não constituíam um concorrente de «recear», porque faziam demasiada lata «rota»185. Depressa, porém, se descobriu que acontecia exactamente o inverso: numa carta a O Comércio de Setúbal, um socialista espanhol contou que em 372 caixas (3720 latas) só vira a máquina «dar 3 rotas» 186, que, de resto, haviam sofrido antes «pancadas» visíveis187. E, para confirmar esta eficácia, em Agosto, o próprio Sr. Asche desembarcou em Setúbal, acompanhado por um dos seus clientes de Vigo, o industrial conserveiro Sr. Barreras, e pelo S. Tiger, director da Société Générale Métalurgique, que representava comercialmente a marca no País.

O Sr. Asche e comitiva visitaram as principais fábricas da cidade (Julien, Delory, Chancerelle, Salgado, Alves e Fragoso, etc.) e propagandearam a sua mercadoria o melhor que souberam. 188.

Os soldadores pareciam perdidos.

No entanto, se a máquina de soldar se vendeu em Portugal, não foi em Setúbal. A Société Générale Métalurgique comprou uma, provavelmente para demonstração, e a Companhia Nacional de Conservas comprou quatro para a sua fábrica de Sesimbra. 189.

É importante perceber porque é que isto sucedeu. Para começar, note-se que a iniciativa de mecanizar não partiu, como se sabe, dos industriais de Setúbal, partiu do Sr. Asche: o que significa que as pressões para substituir por trabalho morto o trabalho vivo dos soldadores se não tinham ainda tornado irresistíveis.

Apesar da sua incipiente organização, os operários não constituíam, como viriam a constituir, uma ameaça insuportável e continuavam a ser suficientemente baratos e «disciplinados» para dispensar um investimento quase com certeza perigoso para firmas de pouca solidez financeira.

Numa palavra, Setúbal não era Vigo 190. Mas não era também Sesimbra. Ou seja, em Setúbal, às máquinas deparar-se-ia inevitavelmente a violenta oposição dos trabalhadores, desde os próprios interessados até aos outros conserveiros e aos marítimos, e mesmo a hostilidade dos lojistas e pequenos proprietários, que uma severa crise de desemprego levaria sem custo à bancarrota e à miséria, e dos pequenos industriais, cuja capacidade de concorrência (e, portanto, de sobrevivência) sofreria fatalmente uma drástica redução. Isto, aliás, ficou logo claro em Novembro de 1901.

184 O Trabalho de 14 de Abril e 18 de Agosto de 1901; O Comércio de Setúbal de 16 de Agosto de 1901.
185 Ibid., de 14 de Abril de 1901.
186 O Comércio de Setúbal de 16 e 27 de Agosto de 1901.
187 O Trabalho de 11 de Agosto de 1901.
188 O Comércio de Setúbal de 27 de Agosto de 1901.
189 Ibid., da mesma data.
190 As máquinas de soldar foram introduzidas em Vigo por volta de 1900-01.

A Associação de Classe dos Soldadores distribuiu um manifesto em que, com inesperada habilidade política, se sublinhava que o advento das máquinas não deixaria apenas «muita família sem pão», transformaria igualmente «o modo de ser económico de Setúbal», prejudicando «toda a classe trabalhadora, se não todas as classes sociais», pois os seus «efeitos» nelas se iriam «necessariamente reflectir».191.

Além do manifesto, os soldadores enviaram também uma representação ao rei e ao Governo, em que pediam «a proibição da máquina de soldar, o tributá-la de modo a não [se] poder ou não merecer a pena introduzi-la no País, ou […] a sua importação regulamentada», para «obviar» a «funestas» consequências e «amenizar duras circunstâncias»192.

Dias depois, os marítimos, que se declaravam «mais ou menos ligados por laços de parentesco» aos soldadores, requeriam, por sua vez, ao Governo «a regulamentação do trabalho mecânico na indústria das conservas» para evitar «a miséria e a desgraça» de muitos milhares de pessoas «que viviam do trabalho manual»193.

Aos marítimos seguiu-se a Associação Comercial de Setúbal, com argumentos sensivelmente iguais. E o órgão da pequena burguesia local, O Elmano, não hesitou em dizer que, «enquanto na maioria das fábricas» de Espanha e de França a máquina não houvesse deslocado o homem, não existia bom motivo para que a condenação que pesava sobre a cabeça dos soldadores não fosse «desviada»194.

Nestas condições, aceitar as tentadoras propostas do Sr. Asche implicava para os patrões enfrentar a resistência de uma parte substancial da comunidade. E tê-lo-iam sem dúvida feito, como o fizeram depois, se os seus interesses essenciais estivessem já em jogo, como não tardariam a estar. Mas à altura não estavam, o que tornava os custos da operação demasiado altos para os seus presumíveis benefícios. Daí, um temporário recuo.

Em Sesimbra, porém, o problema não se punha, ou não se punha com tanta gravidade. Nem os soldadores, nem o resto dos conserveiros, nem os marítimos eram muitos ou se encontravam bem organizados.

Os dois ou três lojistas da vila e os pequenos proprietários que a abasteciam não formavam um obstáculo sério ou sequer seriam mortalmente afectados por uma crise de desemprego de proporções limitadas. Pequenos industriais quase não havia. As grandes «casas» não precisavam, assim, de vencer uma oposição interclassista para trazer as máquinas. E, se o conseguissem, conseguiam duas vantagens importantes. Por um lado, impediam o crescimento em Sesimbra de uma «aristocracia» de soldadores.

Por outro, como as fábricas de Sesimbra não passavam, em regra, de filiais das de Setúbal, a sua mecanização constituía uma arma estratégica contra os operários de Setúbal, obrigados dali em diante a trabalhar pelo preço e da maneira que os capitalistas entendessem, sob pena de o grosso da produção se transferir para Sesimbra e eles ficarem no desemprego ou num subemprego endémico.

191 O Trabalho de 3 de Novembro de 1901.
192 Ibid., da mesma data.
193 Ibid., de 17 de Novembro de 1901.
194 Ibid., da mesma data.

E, no entanto, embora se não esperassem sarilhos de maior, a Companhia de Conservas mostrou-se suficientemente nervosa quando as suas quatro máquinas chegaram a Sesimbra.

Em primeiro lugar, exigiu uma «força» do Exército (que o Governo pressurosamente lhe deu) «para prevenir quaisquer eventualidades» 195.

Em segundo lugar, «na perspectiva de […] [um] conflito» com os soldadores locais, «arranjou as coisas» para usar contra eles os seus soldadores de Setúbal, «desenvolvendo» por um tempo o «trabalho» destes 196, de maneira a poder dispensar o trabalho dos outros (e a derrotá-los pela fome), caso se atrevessem a reagir contra os sofrimentos que lhes preparavam.

As máquinas foram instaladas em paz, embora as precauções tomadas indiquem que o não foram num ambiente pacífico. Seis meses mais tarde, e dois meses após o gerente da Companhia Nacional de Conservas ter oficialmente informado os operários de que a maioria seria despedida quando elas começassem a funcionar, a fábrica ardeu. Parece que por causa de uma explosão de gasolina. Não se sabe provocada por quê, nem por quem.

Nos anos seguintes correram intermitentemente boatos em Setúbal da instalação nesta ou naquela empresa de máquinas de soldar 197, que revelavam a persistência dos medos acordados em 1901. Mas, em contrapartida, criou-se também sobre o assunto uma certa complacência.

Em 1909, O Trabalho explicava que, afinal, «na indústria de conservas, o fabrico mecânico não tinha provado grande coisa, originando maior consumo de azeite e dando uma percentagem elevadíssima de lata rota, apesar de [exigir] uma folha mais cara», e que, além disso, se não mantinha «em bom estado o peixe fechado mecanicamente»198.

Pouco depois, porém, a firma Pierre Chancerelle adquiria na Bélgica uma máquina dita de «cunhar», ou soldar «vazio», perante a passividade dos operários, cujo domínio sobre o mercado de emprego ficava assim profundamente ameaçado 199.

No princípio de 1910, o Sr. Chancerelle já tinha «várias» desse tipo a produzir e travavam-se as primeiras lutas contra despedimentos maciços. 200.

Resolveu, então, a Associação de Classe dos Soldadores mandar um emissário a Vigo, para se informar sobre a realidade e o verdadeiro comportamento das máquinas de «cheio» e «vazio». E as notícias que o emissário trouxe não podiam ser piores: como se verificara em 1901, elas existiam, de facto, e o seu trabalho era perfeito. 201.

Em Abril de 1911, a fábrica Brandão Gomes e C.a seguiu o exemplo da Chancerelle e, passados meses, chegou a vez (pelo menos) da Delory e da Garrec. 202.

Em Outubro de 1911, as conservas de Setúbal estavadecididamente a caminho de uma transformação radical.

195 O Trabalho de 3 de Janeiro de 1901.
196 Ibid., da mesma data.
197 Ibid., de 23 de Junho de 1907; O Germinal de 30 de Maio de 1909.
198 Ibid., de 23 de Maio de 1909.
199 Ibid., de 23 de Maio de 1909 e 20 de Março de 1910.
200 Ibid., de 20 de Março de 1910.
201 O Germinal da mesma data.
202 O Trabalho de 23 de Abril, 8 de Outubro e 26 de Novembro de 1911

Antes de descrever a campanha dos soldadores que efemeramente a adiou, convém, no entanto, examinar o que mudara de 1901 para 1911 na relação de forças entre patrões e operários.

A partir de 1903-04, o desenvolvimento e a mecanização da indústria estrangeira tinham tornado praticamente impossível a concorrência eficaz da indústria baseada em Portugal.

Os Franceses (sobretudo em Nantes) e os Espanhóis (sobretudo em Vigo) faziam uma mercadoria melhor e quase tão barata.

Sem surpresa, a única vantagem dos capitalistas de Setúbal (bem como a sua única maneira de evitar a falência) depressa veio a residir nos baixos salários que pagavam, os mesmos desde 1891. Porém, à medida que diminuía a competitividade externa das empresas, crescia a capacidade reivindicativa dos soldadores (e dos moços).

Os anos de 1905, 1907 e 1908 foram, por isso, anos de luta interna, com lock-outs e greves que duraram longos meses e acabaram invariavelmente em meias vitórias, meias derrotas, porque nem os patrões conseguiam ganhar, nem os soldadores podiam perder.

Mas, como é natural, estes confrontos esgotaram os operários, que não recebiam um tostão quando não trabalhavam.

E em 1909 e 1910 estabeleceu- se uma paz estagnada e inquieta, aproveitada pelos fabricantes para instalar as primeiras máquinas. Ao contrário do que sucedera em 1901, a sua situação era agora perto de desesperada: ou submetiam os soldadores, ou mecanizavam; tarde ou cedo a imobilidade não deixaria de os arrastar para condições progressivamente piores. Achavam-se assim dispostos a correr os riscos que em 1901 lhes haviam parecido incomportáveis e a notória fraqueza dos soldadores aconselhava-os a agir com rapidez contra qualquer oposição.

Uma circunstância externa acelerou entretanto o processo.

Em 5 de Outubro de 1910 proclamou-se a República em Lisboa. Por um lado, como de costume nestes períodos, o poder de Estado sofreu um completo colapso. Por outro, a revolução abalou a solidez da hierarquia social. A fuga do rei, dos ministros, das altas personagens da Monarquia e o acesso ao Governo dos homens que lhes falavam nos comícios, os apoiavam na imprensa e os defendiam nos tribunais fizeram nascer compreensíveis esperanças nos trabalhadores e fizeram-nos igualmente perder a deferência que, apesar de tudo, usavam para com os patrões.

O 5 de Outubro desencadeou uma onda de greves sem precedentes em Setúbal, como no País. E a República ou não reagiu, ou reagiu com demasiada violência (em Março de 1911, por exemplo), exibindo a sua essencial insegurança e debilidade 203. Entre os conserveiros houve, pela primeira vez, greves gerais de moços e mulheres, que se arrastaram semanas sem fim e provocaram a intervenção do Exército. Os soldadores não se mexeram, nem sequer por solidariedade com os moços e as mulheres.

No entanto, não restavam dúvidas que, na atmosfera política prevalecente, a sua posição reivindicativa se fortalecera. Se era verdade que atravessavam uma crise de impotência e desorientação, era também verdade que as suas tradições, a sua coesão e a sua velha militância não anunciavam nada de bom para os capitalistas, que já não contavam com uma ordem estável, com autoridades inteiramente colaborantes e com um Exército disciplinado,

capaz de reprimir dentro de uma certa «moderação». Tratava-se, por isso, para os patrões, de eliminar os seus principais inimigos da estrutura produtiva, para melhor explorarem o trabalho «suado» e sem qualificação dos moços e das mulheres. Iam longe os tempos «normais» de 1901.

203 Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo: a Revolução de 1910, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1977, cap. v, parte 2.

Perante o ataque dos capitalistas, em Outubro de 1911 os soldadores prepararam-se para resistir. Mas não sozinhos. Começaram, assim, por nomear uma comissão especial para tratar do assunto das máquinas, que convocou para as suas reuniões os próprios industriais. Todas as associações de interesses económicos da cidade, todas as associações profissionais e todas as associações de classe. À reunião inaugural compareceram trinta industriais e das associações apenas faltaram os representantes da Liga Comercial e das Associações de Classe dos Caixeiros, Cocheiros, Carroceiros e Condutores de Sal 204.

O objectivo de convidar os patrões consistia em tentar estabelecer uma aliança com os donos das pequenas oficinas para apresentar a mecanização como uma estratégia que só convinha aos «grandes fabricantes, na sua maior parte estrangeiros» 205; o que, aliás, como acima se notou, era indiscutível. O objectivo de convidar as associações de interesses económicos e os grupos profissionais não operários consistia em alistar no bom combate os lojistas, caixeiros, empregados de escritório e funcionários públicos que constituíam a espinha dorsal do Partido Republicano «histórico» 206. Quanto aos sindicatos propriamente ditos, o seu auxílio não estava em causa, como se viu quando, na semana seguinte, se declararam obrigados a colaborar na luta «moral c materialmente» até «ao máximo sacrifício» 207.

Organizadas as coisas em Setúbal, os soldadores voltaram-se para as outras comunidades conserveiras. A 22 de Outubro expediram delegados para o Algarve (Vila Real de Santo António, Lagos, Olhão e Portimão) 208 e para o Norte (Aveiro, Ovar, Paramos, Espinho, Estarreja, Matosinhos, Foz, etc); e contactaram mesmo os seus escassos camaradas em terras tão isoladas do movimento operário como Cascais, Sines e Sesimbra 209.

Sempre entusiasticamente recebidos, conseguiram «calorosas adesões» de Vila Real a Matosinhos. Em breve, O Trabalho podia proclamar, sem qualquer exagero, que a «classe» dos soldadores se achava «firmemente resoluta» em Portugal inteiro 210: tão resoluta que até correram boatos de que os soldadores do Algarve tinham destruído várias máquinas 211.

Não por acaso, O Germinal preocupava-se em sublinhar a «profunda solidariedade» existente «entre os trabalhadores do Algarve e os de Setúbal» 212.

O próximo passo consistiu na entrega colectiva às comissões administrativas dos conselhos em que havia conserveiros de uma representação ao Governo, exigindo que as latas produzidas e fechadas mecanicamente pagassem um imposto de 5 réis e se suprimisse o aprendizado por lei 213.

Em Setúbal, 900 soldadores abandonaram as fábricas para irem à manifestação e o presidente em exercício da comissão administrativa, Ezequiel Rodrigues, afirmou «estar absolutamente ao [seu] lado» 214.

204 O Trabalho de 8 de Outubro de 1911.
205 Ibid., de 22 de Outubro de 1911.
206 Mas a Liga Comercial e a Associação de Classe dos Caixeiros não participaram na campanha.
207 O Trabalho de 15 e 22 de Outubro de 1911.
208 Ibid., de 15 de Outubro de 1911; O Germinal de 4 de Novembro de 1911; O Trabalho de 5 de Novembro de 1911.
209 Ibid., de 15 de Outubro de 1911; O Germinal de 4 de Novembro de 1911; O Trabalho de 5 de Novembro de 1911; O Mundo de 21 de Novembro de 1911.
210 Ibid., de 5 de Novembro de 1911.
211 A República de 21 de Outubro de 1911.
212 O Germinal de 28 de Novembro de 1911.
213  A República de 5 de Novembro de 1911; O Mundo de 15 de Novembro de 1911.
214 O Trabalho de 12 de Novembro de 1911.

A campanha seguiu com uma série de comícios por todo o país, que culminaram no campo do Bonfim, num comício gigante a que assistiram o próprio Ezequiel Rodrigues, dirigentes das Associações de Classe de Soldadores do Norte e do Sul e representantes do movimento sindical. Nele se falou uma linguagem particularmente dura. Mesmo o presidente da comissão

administrativa de Setúbal se sentiu na obrigação de proclamar que «justo era» que os operários fossem «atendidos», que «justo era que os seus esforços fossem coroados de êxito» e que «a função suprema do Estado» consistia em garantir que a introdução da máquina se operasse «suavemente, sem grave choque dos importantes e diversos interesses […] ligado à indústria» e «sem sacrifício dos inúmeros braços» que nela se ocupavam 215.

Dias antes, o ministro do Fomento, Estêvão de Vasconcelos (segundo A República, um homem «muito devotado às questões sociais»)216, recebera, a pedido de António Maria da Silva, deputado pelo Algarve, uma delegação de soldadores e tinha prometido satisfazer as respectivas «reclamações»217. A 15 de Outubro, com efeito, uma portaria mandava

que se constituísse uma comissão composta por sete patrões (entre os quais os notórios João António Júdice Fialho, do Algarve, e João Carlos Henriques, de Setúbal) e sete soldadores218. Durante cerca de um mês, esta comissão reuniu num gabinete do Ministério do Fomento, em Lisboa (o que para os operários representava uma pesada despesa) 219, e, eventualmente, acabou por se pôr de acordo, ou, melhor, como mais tarde disse João Carlos Henriques, os patrões acabaram por «convencer» os soldadores a aceitar a máquina, em nome do «desenvolvimento da indústria » 220.

Só que, quando os negociadores das duas partes se foram apresentar às respectivas «classes», encontraram todos um ambiente de decidida hostilidade. Na assembleia dos capitalistas, os pequenos fabricantes combateram violentamente os grandes, dando origem a «incidentes». E nem sequer sossegaram pelo facto de o Sr. Luz Clara ter lamentado a «desunião» dos patrões; ou de o Sr. Alves Fragoso ter tomado a simpática iniciativa de uma moção que «garantia» o seu «futuro», estabelecendo que, se se vissem «obrigados a abandonar […] a indústria», lhes seria arranjada maneira de «trabalharem como operários» 221.

Quanto à reacção do outro lado, a massa dos soldadores rejeitou liminar e taxativamente (e com óbvia indignação) as «bases» de entendimento combinadas pela comissão mista, que incluíam, a troco de concessões menores (um certo gradualismo na instalação das máquinas), o compromisso de não fazer greve e a admissão implícita de despedimentos «definitivos», isto é, da expulsão de centenas de trabalhadores da indústria222.

Ainda as reuniões da comissão mista estavam em curso e já se dizia em Setúbal que os pontos fundamentais do acordo não eram aceitáveis 223.

215 A República de 18 de Novembro de 1911.
216 Ibid., de 15 de Novembro de 1911.
217 O Mundo de 14 de Novembro de 1911; O Trabalho de 19 de Novembro de 1911.
218 A República de 15 de Novembro de 1911.
219 O Mundo de 30 de Novembro de 1911.
220 A República de 18 de Janeiro de 1913.
221 Ibid., de 16 de Dezembro de 1911.
222 O Trabalho de 28 de Janeiro de 1912.

Por várias razões, e porque violavam «as leis do País, querendo tirar aos soldadores direitos que elas lhes conferiam» 224. Sucessivas assembleias gerais da Associação de Classe e consultas aos operários do Algarve confirmaram esta posição, mandando os delegados sindicais regressar à mesa das negociações 225. Mas os industriais recusaram-se a discutir as vantagens que tinham conseguido e, assim, em fins de Janeiro de 1912, os soldadores de Setúbal votaram por unanimidade uma moção que suspendia a tentativa de encontrar um terreno comum com os capitalistas e pela qual eles «guardavam para melhor [altura] o adoptar o procedimento que se lhes afigurasse mais razoável», se o Governo «não estabelecesse a tributação sobre a lata fabricada mecanicamente», como lhe fora pedido 226.

E, com este aviso, a batalha acabou, sem uma vitória clara dos patrões, nem uma nítida derrota dos operários. O Governo, naturalmente, deu-se por satisfeito com o seu pequeno gesto de boa vontade e não decretou qualquer «tributação» sobre a lata produzida pelas máquinas.

Em vão os soldadores argumentaram que ela tornava as conservas «nocivas à saúde» pelo «emprego de ([borracha]»(?)227; que «prejudicava o sabor da sardinha»; e que permitia o uso de peixe «em tal estado, que não se poderia trabalhar com ele pelo processo manual» 228.

Os industriais negavam que isto fosse verdade e contra-atacaram, afirmando que na soldagem à mão não havia nenhum obstáculo a que se «concertassem e apresentassem como boas» latas com «o conteúdo estragado», prática que costumava provocar «bastantes envenenamentos», ao passo que «era impossível concertar, sem que saltasse à vista, a lata cravada à máquina»229.

Ao longo de 1912, o statu quo manteve-se com alguns incidentes de fronteira. Os patrões não compraram novas máquinas, mas puderam explorar as que já tinham. Embora não sem sobressaltos e limites.

Em Junho, por exemplo, o Sr. Delpeut (da Garrec), perante um «movimento de ódio às máquinas», sentiu-se obrigado a explicar num manifesto à cidade «os motivos por que as adquirira» 230.

Em Setembro e Outubro, a firma Brandão, Gomes e C.a, além de uma greve, sofreu um boicote dos pescadores, que decidiram não lhe vender, entregar ou deixar entregar

peixe 231. E, em Dezembro, o Sr. Chancerelle, que pretendia entrar em conversações com a Associação de Classe dos Soldadores para reduzir o pessoal, foi rapidamente desiludido 232.

224 O Trabalho de 31 de Dezembro de 1911.
225 Ibid., de 31 de Dezembro de 1911 e de 14 de Janeiro de 1912.
226 Ibid., de 28 de Janeiro de 1912.
227 Ibid,, de 3 de Dezembro de 1911.
228 Ibid., de 26 de Novembro de 1911.
229 Ibid., da mesma data.
230 O Século de 16 de Julho de 1912.
231 Ibid., de 10 de Setembro de 1912.
232  O Germinal de 19 de Dezembro de 1912.

Os industriais, porém, também não ficaram quietos. O seu objectivo era, como seria de esperar, dividir a oposição. Coube ao Sr. Delpeut abrir fogo, proibindo as mulheres que trabalhavam na sua empresa de pertencer à respectiva associação de classe. Não que tivesse, como se apressou a esclarecer, qualquer coisa contra o princípio associativo. De maneira nenhuma: não se importava nada que o seu pessoal se associasse, desde que o fizesse «com o pessoal das outras fábricas com máquinas». 233

Ou seja, o Sr. Delpeut queria isolar os operários das fábricas com máquinas do resto dos conserveiros, para diminuir a resistência aos despedimentos e os apoios dos eventuais despedidos. «Receia o Sr. Delpeut que as [mulheres] se ponham alguma vez ao lado dos soldadores?», perguntavam estas com segura pontaria. E declaravam no mesmo fôlego «cumprir o seu dever», resistindo, como resistiram, a semelhantes manobras, apesar da oferta (do suborno) de salários mais altos e seis meses de greve 234.

No entanto, a ofensiva do Sr. Delpeut não veio sozinha. Semanas depois de ter sido desencadeada anunciou-se em triunfo que os soldadores das fábricas com máquinas iam constituir uma associação de classe própria, para defesa dos seus particulares interesses, e estavam já «elaborando um projecto de estatutos» 235. A este segundo golpe, complementar do primeiro e com certeza inspirado e pago pelos patrões, os soldadores responderam com acções «reservadas»236 (isto é, secretas), mas que se devem haver revelado eficazes, porque dali em diante não se tornou a falar no assunto.

De que misteriosa arma se tratava? Sem dúvida da pressão da comunidade operária. Como os trabalhadores não perdiam uma ocasião de sublinhar, estavam unidos por «laços de parentesco», por uma experiência social comum e pela exploração que todos sofriam; e essa solidariedade era tanto mais forte quanto Setúbal era uma cidade pequena em que as pessoas, por regra, se conheciam e quase nada ignoravam da vida umas das outras. A comunidade exercia, portanto, uma vigilância e um poder sobre cada um dos seus membros a que não se escapava com facilidade.

Os «traidores», isto é, aqueles cujo comportamento se considerava contra os interesses e a moral do grupo, sujeitavam-se a severas sanções, que podiam ir do «ostracismo» a «correctivos» corporais e a que ninguém se arriscava de ânimo leve. Não admira, assim, que os patrões não fossem capazes de dividir os conserveiros (mulheres ou soldadores) a

propósito de uma questão tão grave e de tão essencial importância para a segurança colectiva como a mecanização da indústria. Os seus esforços esbarraram sempre com a coesa muralha da resistência operária.

Isto mesmo os capitalistas publicamente reconheceram no início de 1913. A um inquérito d’O Século responderam, sem excepção, que os operários haviam conseguido impedir que as máquinas viessem e que só por causa deles as máquinas não vinham 237. E não o diziam simplesmente para convencer o Governo à repressão: acreditavam no que diziam, como os seus actos demonstram.

Em Outubro de 1913, por exemplo, um industrial que resolveu insistir em comprar «cravadeiras» começou por abordar a direcção da Associação de Classe dos Soldadores para saber em que circunstâncias, se algumas, lhe seria permitido fazê-lo 238.

Em Novembro, também um fabricante francês «consultou» os soldadores sobre as condições em que deixariam funcionar as «cravadeiras» que já tinha montado em Setúbal 239.

233 O Trabalho de 23 de Junho de 1912.
234 Ibid., da mesma data.
235 O Século de 19 de Agosto de 1912.
236 O Germinal de 24 de Agosto de 1912.
237 O Século de 18 e 22 de Janeiro e 3 de Fevereiro de 1913.
238 O Trabalho de 28 de Setembro de 1913.
239 Ibid., de 9 de Novembro de 1913.

Apenas o Sr. Casimiro Santana, um conhecido adepto da intransigência e da catequese, achou por bem forçar as coisas, dispensando qualquer consulta aos operários. Os operários, porém, depressa o meteram na ordem pela greve e o obrigaram a ficar «com o pessoal anterior», adiando «para depois […] o estudo da [forma]» em que estariam dispostos a «admitir» (sic) mudanças 240.

Contudo, a vitória dos soldadores foi, em última análise, uma batalha de retaguarda; não destinada a perpetuamente preservar o trabalho manual, mas a preservá-lo durante o tempo necessário à redução (ilusória) do número de profissionais da categoria e a atenuar os efeitos do seu desaparecimento.

Pouco a pouco, de facto, as máquinas ganharam terreno e os homens entraram numa interminável e desesperada agonia, que durou pelo menos trinta anos.

De 1939 a 1945, a segunda guerra mundial, voltando a multiplicar as minúsculas oficinas anteriores a 1910, ainda lhes trouxe uma breve prosperidade de empréstimo. A seguir, o fim chegou. Falou-se em agonia. É o termo exacto. Os soldadores pagaram um preço muito alto para salvar os seus empregos ameaçados. Porque as fábricas de conservas podiam sobreviver de duas maneiras: ou com salários baixos ou com máquinas. E, por isso, recusar umas implicava aceitar os outros. O que inevitavelmente sucedeu. A partir de 1909, os soldadores, até essa altura os operários mais militantes do País, quase não fizeram greves e as raras que fizeram não passaram de movimentos de defesa contra despedimentos. Enquanto, com o advento da República, as mulheres e os moços se levantavam pela primeira vez pedindo aumentos e/ou a redução das horas de trabalho, eles resignavam-se à contínua deterioração do seu poder de compra, sem sequer se juntarem ou oferecerem o seu auxílio aos camaradas em luta. Pelo contrário: contemporizavam, cediam, convidavam os capitalistas, através da Associação de Classe, a discutir com eles a «crise» das conservas 241. E, rendição suprema, em Abril de 1913 assinavam um pacto pelo qual se comprometiam, em nome do desenvolvimento da indústria e praticamente de graça, a desistir por um ano de todas as suas «reclamações» presentes ou futuras 242.

A atitude «oficial» dos soldadores perante a máquina nunca foi puramente negativa e destruidora. Em lado algum, nos comunicados ou representações da Associação de Classe, a máquina aparece associada ao «mal»; ou a sua introdução se considera uma simples ofensiva dos capitalistas; ou surgem ameaças contra os patrões que a compraram ou pensam comprá-la; ou se promete violência contra a própria máquina, para a inutilizar.

Sem dúvida se confessa, como atrás se disse, que os soldadores sofreram um terrível abalo ao saberem que ela existia, sobretudo, porque «espíritos sistematicamente incrédulos tinham dormido sob a doce ilusão de ser impossível soldar latas mecanicamente» 243. Mas, apesar disso, logo se reconhece a «necessidade» de admitir —e era o mais difícil— que não havia trabalho «tão perfeito no seu conjunto» como o da máquina 244.

240 O Trabalho de 5 de Outubro de 1913.
241 Ibid,, de 20 de Novembro de 1910.
242 O Século de 20 de Abril de 1913.
243 O Trabalho de 3 de Novembro de 1901.
244 Ibid., da mesma data

A Associação de Classe não recua mesmo perante a apologia. «Representa a máquina», escrevia-se no Manifesto de 1901, «logicamente, uma manifestação de progresso de ordem superior [e] grandes são os serviços que a humanidade tem tirado da sua aplicação a diversas indústrias.» 245 E a exposição de apoio aos soldadores que a Associação de Classe dos Marítimos enviou pela mesma altura ao rei também sublinhava:

 «Não é, Senhor, contra as máquinas que nos levantamos, seria isso pueril. As máquinas simbolizam a remodelação industrial de amanhã, tendendo a poupar o braço do homem, e não devem ser amaldiçoadas por aqueles que no trabalho, inda que mal lhes garanta uma parca alimentação, consomem hoje as suas forças.» 246

Durante a crise de 1911, cuja gravidade se conhece, a posição manteve-se. Os dirigentes sindicais defenderam-se expressamente de estarem «animados» por um «intuito antiprogressivo»247. E, numa mensagem ao Governo, explicavam em pormenor, revelando a sua familiaridade com as teses marxistas:

«Não exigem os operários que [se aniquilem] as máquinas», que constituem «instrumentos do progresso» e «a base para uma futura reorganização do trabalho, dentro de um regime social mais justo, que não poderá ter […] forma prática, senão a colectivização das ferramentas e outros utensílios», indispensáveis «à produção»248.

Numa palavra, a Associação de Classe dava invariavelmente à máquina um valor positivo: a máquina «poupava o braço» e, sabe-se já, segundo O Capital, preparava o futuro sem classes nem exploração. Na aparência, portanto, os soldadores nada tinham de comum com o espírito que erradamente costuma atribuir-se aos machine-breakers do capitão Ludd.

A sua compreensão do processo do «desenvolvimento» tecnológico era, à primeira vista, impecavelmente «moderna»: não queriam pará-lo, queriam pô-lo ao seu serviço.

Mais ainda: com toda a coerência externa, tanto em 1901 como em 1911, a própria política da Associação de Classe se dirigiu apenas a dominar o «progresso» (não a detê-lo) através de medidas temporárias e legais, que se queriam decretadas e implementadas pelo Governo.

Surpreendentemente, em 1901 justificava-se já esta estratégia com uma condenação informada e coerente do liberalismo económico, feita em nome do Estado-Previdência. No Antigo Regime —diz-se— existiam «instituições destinadas a proteger e a regulamentar o trabalho». O «tufão revolucionário de 1789» «derrubou-as», sem as substituir. Naturalmente, não havia maneira de as ressuscitar em 1901, «por incompatíveis com o meio industrial moderno». No entanto — acrescentava-se —, «é certo que a liberdade de indústria, como a de comércio, devem ser comprimidas dentro do [âmbito] do interesse do maior número». Cabe, pois, ao Estado «olhar com previdência as questões do trabalho» e «da indústria» com o objectivo de promover o «desenvolvimento» e «evitar perturbações súbitas e dolorosas» aos operários 249. E, em concreto, cabe ao Governo do dia «pôr de banda os princípios de uma mal entendida liberdade teórica»250, para garantir a estes últimos, não só o emprego, mas também uma relativa estabilidade profissional.

245 O Distrito de 10 de Novembro de 1901.
246 O Trabalho de 17 de Novembro de 1901.
247 Ibid., de 12 de Novembro de 1911.
248 Ibid., de 5 de .Novembro de 1911.
249 Ibid., de 17 de Novembro de 1901.
250 Ibid., da mesma data.

Uma das razões por que os soldadores rejeitaram o sindicalismo revolucionário, que era «apolítico», e se inclinaram para a participação eleitoral e o reformismo do Partido Socialista (sobretudo depois de 1910), residiu precisamente na sua essencial dependência do Estado. Na verdade, em última análise, só o Estado estava em posição de demorar e condicionar a introdução da máquina, salvando o seu privilegiado estatuto.

Nunca eles por si mesmos conseguiriam fazê-lo, sem e contra o Estado, por maiores que fossem a sua coesão e desespero. Convinha-lhes, assim, que o movimento operário se orientasse para a luta política legal, de maneira a adquirir a curto prazo a capacidade de influenciar as decisões do Governo. «Aristocratas» ou não, a ameaça de obsolescência tecnológica não conduziu os soldadores à vanguarda e direcção das tendências maximalistas.

Conduziu-os sim, e precisamente porque de uma «aristocracia» se tratava, ao compromisso e negociação com as forças que dominavam o Estado. Perante as máquinas, os soldadores representaram às autoridades locais; apelaram para o Governo, aceitando explicitamente a sua legitimidade; não projectaram, pura e simplesmente, liquidar Governo e regime, em nome do milénio, como aqueles que nada tinham a perder.

No entanto, por baixo da linguagem letrada, polida e conciliadora com que os delegados da Associação de Classe falavam aos representantes do Estado e da sua política ostensiva existia uma outra realidade mais «natural» e «verdadeira»: a «hostilidade», o ódio, o profundo «horror» à máquina da esmagadora maioria dos soldadores 251. E, de quando em quando, ela surge à luz do dia, rompendo o discurso «razoável» e a prática «sensata» que os dirigentes sindicais conseguiam normalmente impor à massa dos trabalhadores e até a si mesmos.

É com ela que se choca o acordo estabelecido na comissão mista de 1911. É esse o «espírito»252 que se exprime num panfleto anónimo distribuído em Setúbal, em que se acusa devastadora e indiscriminadamente a máquina de «arruinar o operário, levar à miséria muitos lares, […] matar o consumidor, definhar o comerciante, atacar na sua fonte os alimentos vitais do desenvolvimento das localidades [e] cercear as receitas dos municípios e do Estado», ou seja, em geral, de destruir o equilíbrio do statu quo25â. É esse também o «espírito» que inspira um soldador a explicar no comício do Bonfim que a «guerra» às latas produzidas à mão (a que, segundo ele, falsamente se atribuíam «milhares de defeitos») se devia «ao grande reclame [feito pelos] autores das [cravadeiras] ao seu artigo, como na praça pública charlatães de diversas proveniências impingiam os seus elixires» 254.

Numa palavra, a evidência mostra que, apesar da ideologia explícita da Associação de Classe, o operário comum detestava compreensivelmente a máquina, sem atenuantes nem qualificações.

E, como a detestava, não aderia também de alma e coração aos pacíficos métodos de luta utilizados pelo Sindicato. Logo em 1901, um manifesto à população da cidade (talvez originado na própria Associação de Classe) declarava que os soldadores bem sabiam que «o pedir ao Estado era uma manifestação platónica»255

251 O Século de 18 de Janeiro de 1913.
252 Ibid., da mesma data.
253 O Mundo de 12 de Novembro de 1911.
254 Ibid., de 13 de Novembro de 1911.
255 O Trabalho de 3 de Novembro de 1901

Violência que, de resto, mereceu imediatamente as severas censuras da imprensa socialista, que a considerou «inútil» 256.

Mais tarde, em 1911, o próprio Fernandes Costa, presidente da Associação de Classe dos Soldadores e membro da comissão mista, não hesitou em esclarecer que «pouco confiava [no auxílio do] Estado, porque, como muito bem dizia Karl Marx, a emancipação dos trabalhadores havia de ser obra dos mesmos trabalhadores»; e em lembrar, a título de prova, que, no exacto sítio em que discursava (o campo do Bonfim), ilustres vultos da República tinham outrora vezes sem conta prometido «melhoramentos» à classe operária 257.

Fernandes Costa era um dirigente experimentado e responsável. O militante médio não usava de tanta delicadeza. Falando depois, um deles seriamente preveniu que, «no dia em que lhes faltasse o pão», os soldadores se «vingariam». Não «cuidassem os industriais que, [pelo] facto de [porem] as fábricas no seguro», escapariam às «justas iras» dos trabalhadores: as fábricas estavam seguras, «mas não [estavam] as vidas»258.

Claro que estas posições radicais provocavam críticas indignadas.

Em 1901, por exemplo, aconselhando uma política de «realismo», um jornalista moderado admitia que pedir a protecção do Governo não passava decerto de «pedir». Só que, acrescentava ele, o «resto» se reduzia igualmente a «basófias tolas», que não podiam deixar de levar ou à futilidade ou ao suicídio 259.

E em 1911 voltaram, como é óbvio, a ouvir-se as vozes da prudência e do compromisso. Não convém, no entanto, criar a ideia de que existia uma irremediável incompatibilidade entre as duas estratégias. No fundo, elas não se excluíam, complementavam-se.

Devia sem dúvida representar a opinião dominante entre os operários aquele soldador que propôs no Bonfim que se «esgotassem» primeiro «todos os meios legais para evitar o embate da introdução brusca da máquina», mas sublinhou a seguir que, se isso não desse resultado, «achava legítimos a violência e os meios extremos»260.

A não ser assim, não se compreende a relutância dos patrões em prosseguir o processo de mecanização, quando, no princípio de 1912, ficou claro que o Estado não iria intervir no assunto. Se o não fizeram, se se contentaram com alguns protestos «desanimados» contra o «pessoal» trabalhador que aparentemente impedia o «progresso» da indústria261, foi porque estavam conscientes de que a intervenção do Estado não era a única arma dos soldadores, nem portanto a única coisa que tinham a temer.

256 O Trabalho de 3 de Novembro de 1901.
257 A República de 18 de Novembro de 1911; A Greve da mesma data.
258 A Greve da mesma data.
259 O Trabalho de 10 de Novembro de 1911.
360 O Mundo de 13 de Novembro de 1911.
261 O Século de 18 de Janeiro de 1913.

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