Os salários

Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)**

Vasco Pulido Valente*
Análise Social, vol. XVII (67-68), 1981-3.º-4. °, 615-678

* Universidade Católica Portuguesa.
** O estudo que a seguir se pode ler foi feito com a colaboração da Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura. A ideia original, a concepção e a definição do método são do autor. A Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura fez a investigação preliminar e escreveu a primeira versão. O autor, depois, reviu a investigação e escreveu a segunda versão e a versão definitiva, que aqui se apresenta (e que contém partes da primeira). Toda a responsabilidade científica é do autor.
O estudo agora publicado está incompleto. Das quatro «classes» de conserveiros de Setúbal trata apenas três: soldadores, «mulheres» e «rapazes». É omisso a respeito dos «trabalhadores», Pensou-se, no entanto, que, mesmo assim, teria algum interesse a sua divulgação parcial.

VII

O problema do horário de trabalho causou constantes querelas entre soldadores e patrões.

O que, em princípio, se não compreende. Porque, por um lado, parece que, ganhando à peça, os soldadores teriam interesse em trabalhar o mais tempo possível. E porque, por outro, podendo quase sempre aumentar o número de operários, os patrões não tinham especial necessidade de prolongar a jornada de trabalho.

Mas, na realidade, as coisas passavam-se de maneira diferente. Repita-se uma vez mais que as conservas eram uma indústria sazonal, sujeita às oscilações periódicas da quantidade e qualidade da matéria-prima. O fornecimento irregular de peixe às fábricas determinava a irregularidade da laboração e impedia que se chegasse a um acordo fácil sobre horários.

Se, nas alturas de escassez, os industriais não impunham um dia longo e, frequentemente, nem sequer abriam as portas sete dias na semana, nas alturas de abundância, a sua vantagem estava em mobilizar o máximo de «braços» quase sem interrupção e, portanto, em não conceder qualquer descanso» e em obrigar os operários a «serões» e «madrugadas».

156 O Germinal de 2 de Fevereiro e 1 de Março de 1908.
157 Ibid., de 15 de Março de 1908.
Ibid., de 26 de Abril de 1908.

Acresce que os pequenos empresários não queriam imobilizar capital em lata «vazia» e que os grandes queriam administrar a respectiva produção de modo a manterem os soldadores à sua mercê. Assim, nas épocas de actividade intensa nunca havia lata «vazia» suficiente e, por isso, além de «fechar» o «cheio», os patrões precisavam também de confeccionar «vazio», o que tornava indispensáveis jornadas de 12, 13 e até 14 horas, meses a fio (normalmente no Verão) 159.

Ou seja, no trabalho diário «suplementar» exigido aos operários em certos períodos se fundavam: a exploração óptima do pescado disponível; a economia de capital em lata «vazia»; e um considerável domínio dos industriais sobre o mercado de emprego. Não se tratava de privilégios de que estes abrissem mansamente a mão.

Porém, como é óbvio, aos soldadores convinha liquidá-los.

Em primeiro lugar, porque o sistema diminuía a sua capacidade de reivindicação.

Em segundo lugar, por a alternância de desocupação ou subemprego (com as consequentes privações) e de esforços brutais provocava um desgaste físico mais rápido160.

Em terceiro lugar, porque os «serões» e as «madrugadas» implicavam que se trabalhasse à luz do gás (muito má), o que era particularmente depauperante 161.

O conflito que daqui resultou não se decidiu até ao fim do período em estudo.

Até 1879 não houve sequer um horário fixo em nenhuma das fábricas.

Os patrões exigiam dos operários o que entendiam, quando entendiam.

«Meses inteiros», dizia A Greve, «se trabalhava sem um único domingo de repouso, gabando-se alguns industriais que o faziam de propósito.»

Mas em Março de 1897, numa assembleia geral da Associação de Classe, esse regime começou a ser contestado. O presidente do Sindicato, Ernesto Augusto Palmeiro, embora ainda admitindo a existência de «serões» e «madrugadas», declarou que o trabalho ao domingo só se justificava «em último caso» e pediu para ele um «bónus» de 50 réis por hora162. No entanto, nem todos os soldadores concordaram.

Em Abril seguinte, uma resolução, condenando os «serões», as «madrugadas» e a não observância do descanso semanal, passou apenas por maioria, enquanto outra pedindo um horário fixo foi aprovada por unanimidade 163. Era, na verdade, importante, antes de mais nada, definir uma regra, isto é, levar os patrões a reconhecerem que o tempo e a distribuição do trabalho se não encontravam totalmente ao seu arbítrio. A partir disso, depois se negociaria.

No entanto, a representação dos soldadores aos industriais referia-se, naturalmente, a todo o contencioso, geral e particular, do tempo de trabalho 164. E aqueles, quando se reuniram na Associação de Lojistas e Industriais para considerar o assunto 165, tiveram a habilidade de tratar apenas do descanso semanal. A maioria manifestou-se a favor de evitar abrir as fábricas ao domingo e comprometeu-se, caso isso não fosse possível, a fechar, no máximo, antes da 1 da tarde. Firmin Julien, contudo, votou contra, sob o pretexto típico e revelador de que «em qualquer ocasião podia precisar» 166.

159 O Distrito de 20 de Agosto de 1899; A Greve de 22 de Março de 1908,
160  Ou, nos termos de Marx, encarecia a reprodução da força de trabalho. O Distrito de 31 de Outubro de 1897.
161 O Distrito de 24 e 31 de Outubro de 1897.
162 Ibid., de 8 de Março de 1897.
163 Ibid., de 8 de Abril de 1897.
164 Ibid., da mesma data.
165 Estavam presentes os patrões das firmas Santarém Ramos e C.a, J. J. Salgado, Costa e Carvalho, F. Delory, Dandicolle e Gaudin, F. Gama e C.a, Hugo Lipperman e A. Ascensão, X. M. Câncio e C.a, Alves e Fragoso, Cães e Esteves, Firmin Julien.

O resultado desta deliberação acabou por constar do Pacto entre operários e patrões, assinado um mês e meio depois167. O Pacto, porém, era omisso em matéria de horários e, em Outubro do mesmo ano, a Associação de Classe dos Soldadores, através de uma comissão, decidiu propor o seguinte sistema:

em Outubro, Novembro, Fevereiro e Março, entrada às 6.30 da manhã e saída às 5.30 da tarde, ou seja, um total de 11 horas de trabalho;

em Dezembro e Janeiro, entrada às 7 da manhã e saída às 5 da tarde, ou seja um total de 10 horas de trabalho; Abril e Setembro, entrada às 6 da manhã e saída às 6 da tarde, ou seja um total de 12 horas de trabalho;

e, finalmente, em Maio, Junho, Julho e Agosto nunca mais de 11 horas de trabalho «durante o dia solar»168.

É aqui nítida a vontade dos operários de fugirem à luz artificial, bem como a de conservarem, no Verão, algum tempo para actividades privadas (pesca, concertos da casa, etc.) e sociais. Mas é igualmente nítida a sua fácil aceitação de horários extremamente pesados, que por toda a Europa já tinham acabado ou estavam em vias de acabar.

Os industriais, no entanto, rejeitaram as modestas pretensões da Associação de Classe dos Soldadores e as coisas permaneceram como antes, isto é, num regime de puro arbítrio. Pior ainda: provavelmente a título de represália, apesar do Pacto, não passou a haver automaticamente descanso ao domingo, o que deu origem a alguns conflitos de gravidade variável, desde a greve 169 à recusa de produzir lata «vazia» 170.

Até 1900 nada ou pouco mudou. Em 1898, por exemplo, os operários da empresa Firmin Julien trabalharam três meses «consecutivamente, sem perda de um dia», incluindo «muitos domingos» e feriados171. E, em 1899, próprio O Distrito admitiu que a promessa do Pacto «em breve se esquecera» 172. Contudo, os soldadores não deixaram de lutar. Concentraram os seus esforços na questão do descanso semanal (abandonando transitoriamente o problema dos «serões» e «madrugadas») e lentamente conseguiram progressos substanciais.

A partir de 1901-2, uma fábrica aberta ao domingo tornou-se motivo de escândalo. Não era raro O Trabalho publicar notícias denunciatórias do estilo de: «Ao que corre, no domingo passado, alguns soldadores de uma casa conhecida trabalharam até às 2 horas da tarde.»173

Em 1903, também os «serões» e as «madrugadas» se podiam considerar abolidos na maior parte das casas e o desrespeito das regras consuetudinariamente estabelecidas encontrava uma firme oposição174. O que não quer dizier que em certos estabelecimentos, e nas alturas em que a Associação de Classe estava fraca e/ou desunida, se não fizessem 6 a 8 horas extraordinárias sobre as 10 «normais».

166 O Distrito de 18 de Abril de 1897.
167 Ibid., de 30 de Maio de 1897.
168 Ibid., de 24 de Outubro de 1897.
169 Ibid., de 14 de Outubro de 1897.
170 Ibid., de 24 de Outubro de 1897.
171 Ibid., de 2 de Março de 1898.
172 Ibid., de 17 de Agosto de 1899.
173 O Trabalho de 2 de Fevereiro de 1902.
174 Ibid., de 15 de Março de 1903.

E só em Agosto de 1907 o «contrato» ou «regulamento» determinou um horário fixo aceite por patrões e operários. Dispunha ele que o dia começasse: em Maio, Junho, Julho e Agosto, às 6 da manhã; em Março, Abril, Setembro e Outubro, às 6.30; em Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro, às 7.30. E que acabasse sempre ao pôr do Sol. Havia, em geral, uma hora de intervalo para o almoço e outra para o jantar, excepto em Maio, Junho, Julho e Agosto, em que o jantar durava duas horas.

Mais significativamente: o artigo 10 do «contrato», de maneira expressa e taxativa, desobrigava os soldadores da prestação de qualquer trabalho «suplementar», fora das regras «convencionadas», mesmo por «exigências de serviço»175.

A vitória dos operários com o «contrato» de 1907 não consistiu apenas em obter dos industriais o reconhecimento de uma norma, que limitava a sua anterior discrição, e no termo «oficial» dos «serões» e «madrugadas», mas igualmente na cuidadosa demarcação dos tempos reservados para as refeições, que os capitalistas, como é óbvio, tendiam a reduzir, se não a quase totalmente eliminar. Não se tratou, porém, de uma vitória súbita.

As práticas que o «contrato» completou e consagrou tinham sido lenta e gradualmente instauradas por um combate de mais de dez anos.

Quanto ao descanso semanal, um decreto de João Franco desse Agosto de 1907 tornou-o obrigatório para algumas categorias de assalariados, entre eles os soldadores176 e, em 1911, o Governo Provisório da República alargou e reiterou a regra 177.

Contudo, a questão dos domingos e dos «serões» e «madrugadas» não se decidiu definitivamente até 1913. Apesar do «contrato» e dos decretos, aqueles continuaram a depender, embora muito menos, do poder conjuntural dos soldadores organizados. Os pequenos patrões, sobretudo, nunca deixaram de tentar suprimir as «24 horas seguidas de descanso» que a lei mandava e de alargar o dia de trabalho. E foi com frequência preciso resistir-lhes.

Em 1910, por exemplo, várias oficinas começaram «sub-repticiamente» a abrir ao domingo178; e, ainda em 1912, na fábrica A Brasileira, o capitalista impôs que os operários assumissem o compromisso «especial» de admitir «serões» e «madrugadas» quando «necessário » 179

175 O Trabalho de 11 de Agosto de 1907.
176 Colecção Oficial de Legislação Portuguesa, ano de 1907.
177 Ibid., ano de 1911.
178 O Trabalho de 2 de Outubro de 1910.
179 O Germinal de 24 de Agosto de 1912.

Scroll to Top