A produção

Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)**

Vasco Pulido Valente*
Análise Social, vol. XVII (67-68), 1981-3.º-4. °, 615-678

* Universidade Católica Portuguesa.
** O estudo que a seguir se pode ler foi feito com a colaboração da Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura. A ideia original, a concepção e a definição do método são do autor. A Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura fez a investigação preliminar e escreveu a primeira versão. O autor, depois, reviu a investigação e escreveu a segunda versão e a versão definitiva, que aqui se apresenta (e que contém partes da primeira). Toda a responsabilidade científica é do autor.
O estudo agora publicado está incompleto. Das quatro «classes» de conserveiros de Setúbal trata apenas três: soldadores, «mulheres» e «rapazes». É omisso a respeito dos «trabalhadores», Pensou-se, no entanto, que, mesmo assim, teria algum interesse a sua divulgação parcial.

IV

Voltemos, porém, atrás, ao momento em que as latas, já com peixe, chegavam às mãos dos soldadores.

Sentados dos dois lados de uma mesa em forma de goteira, estes começavam por colocar os fundos nas latas e só quando tinham preparado um número suficiente delas pegavam no ferro de soldar ou carocha. Como se soldava o fundo, e não a tampa, a parte superior do peixe, a que o comprador dava com certeza mais atenção, não corria o risco de ficar esfolada.

As latas à décolage soldavam-se por fora e abriam-se com chave, por arrancamento da tampa; as latas à bande soldavam-se por dentro e abriam-se, também com chave, por arrancamento de uma tira, previamente vincada, abaixo do rebordo superior do corpo.

Depois de fechadas, as latas passavam a uma caldeira de água a ferver, onde se fazia a esterilização. Quando arrefeciam, as mulheres esfregavam- -nas com serradura de madeira (que a seguir se queimava nas praias) para remover possíveis vestígios de gordura, separavam as rotas e encaixotavam as restantes a 100 por caixote.

Até partirem para o seu destino, as conservas guardavam-se em barracões térreos junto às fábricas.

Em cada fábrica (excepto em algumas das mais pequenas) existiam várias oficinas e cada oficina era dirigida por um encarregado ou mestre. Nas oficinas de mulheres havia às vezes uma mestra.

O patrão ou o gerente (normalmente o patrão) decidiam o que produzir e em que quantidades.

Os encarregados organizavam e fiscalizavam a produção.

Na indústria de conservas ocupavam-se quatro categorias de operários: os soldadores, os trabalhadores ou moços, os rapazes e as mulheres.

Até 1913, os únicos operários especializados, os soldadores, encarregavam-se apenas da soldagem, em vazio (fabrico da lata) ou em cheio. Mas em 1913 reivindicaram também para si a tarefa de pôr etiquetas, rótulos, e chaves, que antes cabia aos trabalhadores. (13)

 13 O Trabalho de 15 de Janeiro de 1913.

Os trabalhadores ou moços traziam a folha-de-flandres do armazém para a oficina, ajudavam os soldadores, tratavam, conforme os casos, da cozedura ou da fritura e eram   pela esterilização.

Os rapazes, quase sempre muito poucos, pertenciam, de acordo com as suas funções, a dois grupos diferentes: a maioria preparava a folha-de-flandres para a confecção da lata e limpava as latas prontas; os outros assistiam os soldadores, sobretudo na obra de vazio e movendo a ventoinha.

Por fim, as mulheres escorchavam e salmonavam, lavavam o peixe e faziam o engrelhamento, descabeçavam e enlatavam, tiravam os restos de óleo às latas cheias e esterilizadas e encaixotavam-nas.

Soldadores, moços, rapazes e mulheres constituíam o pessoal básico da indústria. Porém, os fabricantes recorriam ainda, a título eventual, a carregadores, carroceiros, latoeiros, carpinteiros e ferreiros, para serviços de manutenção ou transporte.

Das quatro categorias de conserveiros, só os soldadores (e mesmo assim imperfeitamente) e alguns (raros) moços gozavam de um estatuto próximo do de trabalhador permanente.

O resto dos moços, as mulheres e os rapazes formavam uma massa flutuante de trabalhadores temporários e adventícios.

Das quatro categorias de operários conserveiros, os soldadores eram os únicos «qualificados». O seu trabalho consistia ou no fabrico de latas destinadas a receber o peixe, «soldar em vazio», ou, quando estas já tinham peixe dentro, na soldagem do fundo, «soldar em cheio».

No trabalho «em vazio» recebiam as partes da lata, mecanicamente cortadas e estampadas com a imagem e os dizeres da marca, e uniam-nas, deixando  de fora apenas o fundo. No trabalho «em cheio» colocavam e fechavam o fundo.

A primeira operação exigia precauções extraordinárias, porque, se a lata não ficava bem estanque, «lata rota», o responsável pagava uma multa. Tanto no «cheio» como no «vazio», as dificuldades cresciam com a pequenez da lata. No «vazio», porque o ajustamento das peças se tornava naturalmente mais precário. No «cheio», porque nos formatos reduzidos se punha e arrumava pior o pior peixe — e os riscos de o azeite transbordar na soldagem final aumentavam.

Enquanto os outros operários conserveiros, fossem eles «rapazes», «trabalhadores» ou «mulheres», tinham funções vastas e variáveis com a fábrica e a ocasião, os soldadores só soldavam: ou seja, a sua tarefa estava perfeitamente demarcada. De tal maneira que o Pacto de 1897 e o «contrato» colectivo de 1908 incluíam uma cláusula em que eles expressamente aceitavam ocupar-se da «conservação e limpeza» do seu «lugar na oficina», «em cima e debaixo da mesa»14.

14 O Distrito de 30 de Maio de 1897.

Também no Inquérito de 1909 se acentuavam com rigor (em itálico no texto) os rígidos limites das suas atribuições. E, se os patrões as infringiam, desencadeavam automaticamente conflitos de alguma gravidade. Em 1903, por exemplo, os soldadores de uma pequena empresa recusaram-se a transportar a obra acabada «para um sótão muito alto e afastado», «alegando que não eram moços de fretes» 15.

 15 O Trabalho de 11 de Outubro de 1903.

As ferramentas dos soldadores pertenciam-lhes: em 1904, o «ferro de soldar» (que funcionava a gás da Companhia ou, em casos raros, a gás dito «pobre» nelas produzido), as «borrachas», o «cachimbo», ou «ocarina», e as «limas» 16.

 16 Duas fábricas francesas distribuíram toda a ferramenta, menos as limas.

A esmagadora maioria das empresas nem sequer davam os aventais de lona que protegiam de possíveis pingos de solda, ou as toalhas indispensáveis no trabalho «em cheio», por causa do azeite que inevitavelmente escorria para as mãos.

A «casa» limitava-se a fornecer a solda e a «mesa de soldar», com o seu torniquete, as suas condutas de gás e oxigénio e a ventoinha, accionada manualmente e que conservava o depósito de oxigénio a uma temperatura de segurança. Pelo contrato colectivo de 1907, que aqui decerto consagrava uma prática enraizada, os soldadores comprometiam-se, contudo, a «restituir em bom estado ao industrial os utensílios e matérias-primas que lhes fossem confiados», responsabilizando-se taxativamente pelo «emprego abusivo» deles, sua «destruição» ou «deterioração», excepto, evidentemente, aquela «devida ao uso normal»17.

17  O Trabalho de 11 de Agosto de 1907; O Germinal de 5 de Maio de 1908.

Até ao princípio do século, cada soldador dispunha de um ajudante, «rapaz» ou «moço», que ele próprio pagava (à volta de 120 réis por dia)18.

18  O Distrito de 26 de Março de 1899.

Entre vários serviços menos importantes, os «moços» tratavam da ventoinha e levavam as latas prontas da oficina para o armazém ou qualquer outro local de armazenagem19.

19  Ibid, de 6 de Junho de 1897.

Mas, quando a posição reivindicativa dos soldadores se fortaleceu, a partir de 1897, estes descobriram de repente que os «moços» «nenhum» auxílio lhes «prestavam» 20.

20 A Folha de Setúbal de 30 de Setembro de 1900.

Resolveram, portanto, desembaraçar-se do «encargo» e, apesar da persistente oposição, conseguiram passá-los aos patrões 21.

21  O Distrito de 26 de Março de 1899.

A luta, no entanto, foi longa. Iniciada em 1899, ainda em Dezembro de 1904 O Germinal anunciava que os soldadores da fábrica Câncio haviam imposto a dispensa dos ajudantes pela greve ou ameaça dela e acrescentava: «[…] é caso para os felicitar. » 22

 22 O Germinal de 18 de Dezembro de 1904.

Ao contrário dos restantes operários conserveiros, os soldadores precisavam, para acederem à profissão, de um período de aprendizagem, que, em geral, se dividia em duas fases: uma fase de mera instrução e uma longa fase de prática.

Durante a instrução, que durava cerca de dois meses, os aprendizes nada recebiam. Contudo, mesmo depois, por mais um, dois ou três

23  O Trabalho de 20 de Outubro de 1901; O Germinal de 11 de Outubro de 1908

Como é evidente, os patrões exploravam este trabalho barato e frequentemente já tão «sólido e perfeito» quanto era de desejar24.

24 O Germinal de 11 de Outubro de 1908.

Desde logo, obrigavam os aprendizes a horários de excepção: em 1904, O Elmano falava de uma fábrica em que o dia era de treze horas, com uma hora para o almoço e uma para o jantar 25.

25 O Elmano de 5 de Novembro de 1904; O Trabalho de 20 de Outubro de 1901

Sobre isso, se os deixavam, os industriais costumavam também empregar uma quantidade de aprendizes muito maior do que justificaria uma eventual expansão da produção ou explicava a necessidade de renovar a mão-de-obra: a «casa» Firmin Julien chegou a contar 28 em aproximadamente 100 operários.

Por fim, acontecia muitas vezes que, no momento de fazer os aprendizes oficiais, os patrões os despediam, contratando outros, com quem repetiam a manobra. A perspectiva ou promessa de promoção servia principalmente de «engodo» para incitar os aprendizes a ritmos de trabalho intensos 26.

26 O Trabalho de 27 de Outubro de 1901.

Em última análise, no entanto, nada a garantia, a não ser o interesse dos empresários em expandirem artificialmente o número de soldadores e, assim, como se dizia, «arruinarem a arte»27 ou «a classe»28.

27 Ibid., de 27 de Outubro de 1901
28 Ibid., de 16 de Maio de 1909.
Scroll to Top