Setúbal, um centro fabril

Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)**

Vasco Pulido Valente*
Análise Social, vol. XVII (67-68), 1981-3.º-4. °, 615-678

* Universidade Católica Portuguesa.
** O estudo que a seguir se pode ler foi feito com a colaboração da Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura. A ideia original, a concepção e a definição do método são do autor. A Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura fez a investigação preliminar e escreveu a primeira versão. O autor, depois, reviu a investigação e escreveu a segunda versão e a versão definitiva, que aqui se apresenta (e que contém partes da primeira). Toda a responsabilidade científica é do autor.
O estudo agora publicado está incompleto. Das quatro «classes» de conserveiros de Setúbal trata apenas três: soldadores, «mulheres» e «rapazes». É omisso a respeito dos «trabalhadores», Pensou-se, no entanto, que, mesmo assim, teria algum interesse a sua divulgação parcial.

I

Nos anos de transição do século XIX para o século XX, Setúbal deixou de ser uma comunidade rural e piscatória tradicional e transformou-se num centro fabril. Uma das áreas em que esse processo muito claramente se reflectiu foi, sem dúvida, a população.

De 1864 a 1911 deu-se um surto demográfico em todo o concelho 1 .

Só na década de 1890-1900 se verificou um acréscimo (8085 pessoas) superior ao dos vinte e seis anos precedentes (7692). E, de 1900 a 1911, o número de habitantes subiu 10 378, passando de 37 405 para 47 783, num ganho dramático de 27,7 %. Por outras palavras, em 1911 a população excedia o dobro da de 1864 e a densidade populacional — 31,5 habitantes por quilómetro quadrado em 1864— atingia os 69,9 habitantes por quilómetro quadrado.

A cidade de Setúbal propriamente dita sofreu uma evolução semelhante à do concelho.

Se entre 1864 e 1890 aumentou modestamente 5268 residentes, entre 1890 e 1911 aumentou 12 765, isto é, mais de 142,3%.

E no conjunto dos quarenta e sete anos de 1864 a 1911 expandiu-se na proporção impressionante de 138 %.

A causa principal destas violentas mudanças reside no desenvolvimento económico da cidade (sobretudo na implantação da indústria de conservas e no incremento das actividades dela subsidiárias, como a pesca), não na prosperidade geral do concelho — como o contínuo alargamento da parte da população urbana demonstra. Na verdade, até 1900, esta andou sempre por volta dos 58 %. Mas em 1911 chegava já aos 63 %. A ruptura com o campo tinha começado e dali em diante apenas se agravaria.

Qualquer das três pirâmides etárias que se construíram 2 revela uma população jovem em que as classes dos 0-20 ocupam uma posição dominante.

É uma característica que, embora nítida desde 1890, se reforçou em 1900 e de novo em 1911. Com efeito, a percentagem de habitantes com menos de 20 anos elevou-se gradualmente (41 % em 1890; 43 % em 1900; 45 % em 1911), enquanto a de velhos (mais de 65 anos) recuava de 5 % para 4 %.

Outro traço comum às três pirâmides é a existência de mais indivíduos do sexo masculino do que do sexo feminino. Entre 1890 e 1911, esse saldo cresceu 264,6 %. As classes de idade em que a superioridade masculina mais se acentuava eram as dos 20-25 e dos 50-55 em 1890, dos 20-30 em 1900 e dos 15-30 em 1911: isto é, em geral, aquelas onde se recrutava a mão-de-obra para as conservas.

Se fosse possível construir pirâmides etárias só para Setúbal-cidades, talvez o seu aspecto se modificasse ligeiramente. Devido à influência do fluxo migratório para as fábricas, é de supor que a proporção de jovens e «jovens-adultos» aumentasse, bem como, evidentemente, a de homens 4.

Contudo, apesar das suas óbvias limitações, as pirâmides referentes ao concelho reflectem com certa fidelidade o advento da indústria. A partir de 1900, por exemplo, mostram com suficiente transparência os resultados da súbita subida da mortalidade masculina (depois dos 30 em 1900 e dos 45 em 1911), produto do trabalho brutal dos «moços» e dos soldadores.

Mas como se formou, em vinte e tal anos, uma população já tipicamente «industrial»: jovem, predominantemente masculina e afectada por fortes taxas de mortalidade? As estatísticas oficiais informam sobre a naturalidade (ou lugar de proveniência) dos habitantes da cidade e permitem, por isso, avaliar o peso e os efeitos do movimento migratório.

Desde logo, é importante dizer que a quantidade relativa de indivíduos nascidos e residentes em Setúbal não cessou de diminuir: eram 70% em 1890, 67 % em 1900 e 63 % em 1911.

Em segundo lugar, há que notar que foram outras regiões do País, e não os restantes concelhos do distrito de Lisboa5, que forneceram o maior contingente de imigrantes. A percentagem de pessoas originárias do distrito de Lisboa, que estava nos 10% em 1890, desceu para 9% em 1900 e para 7% em 1911.

2 Para a população do concelho.
3 Não se encontram dados sobre a estrutura etária da população da cidade.
4 Em 1864, para 100 fêmeas havia 96 varões na cidade de Setúbal; e, em 1878, 100 para 99 (Anuário Estatístico de Portugal de 1884, p. 17).
5 No período em estudo, Setúbal ainda não era capital de distrito, mas só sede, um concelho integrado no distrito de Lisboa.

Porém, a parte dos verdadeiros forâneos, sempre mais alta, evoluiu em sentido contrário: 16% em 1890; 22% em 1900; 27% em 1911. As fábricas atraíam gente de Portugal inteiro, do enorme exército de desempregados e subempregados, que fugiam da miséria dos campos ou simplesmente dos bairros pobres de Lisboa e do Porto.

Quanto aos estrangeiros (sobretudo espanhóis e franceses), o seu número máximo em 1890 (391) ficou quase estacionário entre 1900 e 1911 (respectivamente 287 e 316). Mesmo assim, no entanto, ultrapassava em muito o «normal» numa pequena cidade de província e explica-se apenas por a indústria de conservas pertencer principalmente a capitalistas franceses, que importavam de Nantes e do Sul da Espanha os seus homens de confiança.

Notou-se atrás que, a partir de 1887-90, Setúbal se tornara um pólo de atracção para milhares de trabalhadores, urbanos e rurais, do País inteiro. Assim, era 1890, 16% da população de Setúbal não nascera no distrito; em 1900, 22%, e em 1911, 27%. Não existe maneira de calcular a proporção de forâneos entre os conserveiros. Mas o Inquérito às Associações de Classe de 1909 fornece algumas indicações úteis.

Segundo a Associação de Classe dos Moços, os imigrantes da categoria eram portugueses na totalidade, sendo uma minoria proveniente de centros industriais (Lisboa, Porto, Almada, Olhão ou Vila Real de Santo António) e a grande maioria de freguesias do «hinterland» agrícola.

Porém, segundo a Associação de Classe dos Soldadores, havia estrangeiros (por regra, franceses) na profissão e os emigrantes saíam invariavelmente de centros industriais.

As razões disto não custam a compreender. Para as tarefas não qualificadas dos moços, os excedentes demográficos do campo constituíam um reservatório barato e inesgotável. O ofício de soldador, porém, exigia já uma mão-de-obra habituada à dureza e disciplina da fábrica e «socializada» na civilização «moderna» das cidades .

Analisada a população em geral, trata-se agora de conhecer a população activa 6. Comecemos por algumas taxas globais:

Como se vê, em 1890, os activos representavam 47 % do total de habitantes, mas nas duas décadas seguintes apenas 43 %. As razões desta quebra estão talvez no rejuvenescimento do grupo, numa menor taxa de ocupação das mulheres e das crianças quando mudavam do campo para a cidade e, problematicamente, num ténue movimento dos homens das áreas rurais para Lisboa e para o Brasil, que o crescente papel dos velhos no trabalho, mais 20% entre 1890 e 1911, também parece indicar.

Mas tornemos a imagem mais precisa, decompondo o quadro por sectores de actividade:

6 Não se incluíram na população activa os empregados domésticos.

Um exame mais pormenorizado da distribuição ocupacional da população do concelho confirma isso para além de qualquer dúvida:

Como se vê, em 1890, os activos representavam 47 % do total de habitantes, mas nas duas décadas seguintes apenas 43 %. As razões desta quebra estão talvez no rejuvenescimento do grupo, numa menor taxa de ocupação das mulheres e das crianças quando mudavam do campo para a cidade e, problematicamente, num ténue movimento dos homens das áreas rurais para Lisboa e para o Brasil, que o crescente papel dos velhos no trabalho, mais 20% entre 1890 e 1911, também parece indicar.

Mas tornemos a imagem mais precisa, decompondo o quadro por sectores de actividade:

 

6 Não se incluíram na população activa os empregados domésticos.

Um exame mais pormenorizado da distribuição ocupacional da população do concelho confirma isso para além de qualquer dúvida:

Como sempre com as estatísticas oficiais portuguesas, estes números são assaz duvidosos. No entanto, algumas conclusões se podem tentativamente tirar. Se usarmos a divisão clássica de C. Clark, em sectores primário, secundário e terciário, teremos:

Numa primeira fase, o secundário expande-se (16 %) e, como é habitual, o terciário, artificialmente empolado, diminui a benefício da agricultura (o pessoal doméstico Antigo Regime, por exemplo, desce em dez anos de 4 % para 2,2 %). Numa segunda fase, o terciário estabiliza-se (entre 1900 e 1911 baixa somente 0,2 %) e o secundário continua a crescer (39 % de 1900 a 1911) à custa do primário, que se reduz 12,9 %.

Sublinhe-se, para terminar, que, pelas rubricas ocupacionais, se vê que as áreas que se desenvolveram significativamente de 1900 para 1911 — indústria, pesca, transportes, comércio — estavam todas ligadas ao advento das conservas. Em 1911, 60 % da população do concelho, e mais, claro está, da cidade, dependia da boa fortuna das fábricas.

A redução dos trabalhadores agrícolas a favor dos operários industriais, entre 1890 e 1911, é já aqui patente. Convém, no entanto, aproximar ainda mais a análise, definindo três classes etárias: até aos 20 anos, dos 20 aos 59 e dos 60 em diante:

Não são necessárias longas explicações. A agricultura perdeu uma porção significativa dos activos masculinos entre os 20 e os 59 anos (de 43 % em 1890, estes caíram para 28 % em 1911), enquanto os homens do mesmo grupo etário subiam de 16% para 23 % na população do concelho.

Por seu lado, a percentagem de mulheres empregadas nos campos aumentou de 4 % para 15 %, como também, embora bastante menos, a percentagem de operárias (de 5 % para 6 %, com uma quebra em 1900, consequência de uma crise das conservas).

Numa palavra, o processo de industrialização de Setúbal provocou um forte afluxo migratório, que, por sua vez, determinou um surto demográfico de grandes dimensões, o rejuvenescimento da comunidade e taxas de actividades ascendentes na indústria, para os dois sexos, e descendentes na agricultura, para o sexo masculino.

Em 1911, o divórcio do passado rural estava consumado.

De qualquer modo, entre 1880 e 1911, o número de operários do ramo cresceu continuamente. Embora incompleto, o quadro seguinte é ilustrativo.

Se se subtraírem ao total de 1911 os 278 trabalhadores «diversos» (carregadores, carroceiros, etc), que as contagens de 1890 e 1905 não consideram, verifica-se que, nos vinte e um anos de 1890 a 1911, a mão-de-obra empregue na indústria aumentou 302,6 %, isto é, 14,4 % ao ano; que nos quinze anos de 1890 a 1905 aumentou 226,8 %, isto é, 15,1 % ao ano; e que nos seis anos de 1905 a 1911 aumentou 33,3 %, isto é, 2,2 % ao ano. Ou seja, todo o período em estudo foi um período de ininterrupta expansão, com uma clara, e muito forte, quebra de ritmo a partir da crise de 1901-5, que provavelmente a revolução republicana de 1910 veio acentuar.

Por categorias operárias, entre 1890 e 1911, o número de mulheres subiu de 279,5%, isto é, 13,3;% por ano, e o de soldadores, moços e rapazes (que o Inquérito de 1890 não distingue) 329,6%, isto é, 15,6 % por ano.

Contudo, entre 1900 e 1911, o número de mulheres subiu só 9,1 % (1,5 % por ano) e o de soldadores 15,2 % (2,5 % por ano), enquanto o de moços subia 26,5 % (4,4 % por ano)) e o de rapazes 252 % (42 % por ano). O que pouco significa no que respeita à quantidade de mulheres, por natureza instável e complicada de calcular, mas indica que a mão-de-obra masculina não qualificada, barata e particularmente indefesa perante os patrões, foi alargada mais depressa do que a «aristocracia» coesa e militante dos soldadores. O peso destes no total dos operários homens diminuiu assim de 64,2 % em 1905 para 50,4 % em 1911. Como também, embora menos, o dos moços, que eram 27,1 % em 1905 e 24,1 % em 1911. Os rapazes, em contrapartida, passaram de 10% em 1905 para 24,9% em 1911.

No conjunto, porém, os «braços», utilizados a título eventual e facilmente substituíveis, de mulheres, moços e rapazes constituíam, na indústria, a grande maioria (73,2% em 1905 e 74,9% em 1911) e puderam ser multiplicados sem perigo para alimentar as máquinas de «cravar», que começaram a aparecer por volta de 1905.

Quanto aos soldadores, terríveis anarquistas e ameaça para a ordem, representavam apenas cerca de um quarto da força de trabalho e, mesmo contando com os desempregados perenes, nunca excederam, senão marginalmente, um milhar.

Como é costume, e patente pelas fontes citadas, a evidência de que dispomos e de que aqui nos servimos não merece excessiva confiança.

Um exemplo: em 1911, o Boletim da Associação do Comércio e Indústria punha o número de mulheres em 1708. Ora, em 1912, a Associação de Classe das Mulheres tinha 3000 membros 7.

Mas a validade das tendências gerais estabelecidas não fica, por isso, posta em questão. Lembre-se que, em certo sentido, mulheres, moços e rapazes não eram «profissionais».

7. O Trabalho de 1 de Julho de 1912.

Pertenciam a uma vasta e flutuante reserva de mão-de-obra de que os capitalistas aproveitavam, conforme as suas necessidades de momento, fracções variáveis e nem sempre coincidentes. Para a comunidade e para os sindicatos operários (embora não para as estatísticas industriais) era mulher, moço ou rapaz quem nessa capacidade tinha trabalhado ou queria voltar a trabalhar nas fábricas de conservas, frequentemente (excepto para parte dos moços) no intervalo de outras ocupações. Não era com certeza quem efectivamente o fazia e/ou assim exclusivamente ganhava a sua vida.

Só com os soldadores (e guardadas algumas reservas) a situação mudava. Porém, e como é de resto lógico, as informações sobre eles existentes são compatíveis entre si e, em geral, exactas.

Dito isto, convém acrescentar que ao desequilíbrio a favor da mão-de-obra não qualificada se juntava invariavelmente o desequilíbrio a favor da mão-de-obra feminina e infantil.

As mulheres formavam o maior grupo operário da indústria: 53% em 1890, 57% em 1905 e 47% em 1911.

E a sua participação não declinou antes dos últimos anos da década de 1910, quando foi reduzida a benefício dos rapazes, ainda mais «económicos » e fracos do que elas.

No que se refere à idade, os limites inferiores das várias categorias de conserveiros não obedeciam a uma regra uniforme.

A idade dos rapazes oscilava entre os 8 e os 17 anos;

e os moços e mulheres iam para as fábricas desde os 10-12 anos.

De novo, porém, os soldadores se distinguiam, não se encontrando aprendizes com menos de 14-15 anos.

Quanto aos limites superiores, dependiam apenas da morte e da doença, sendo talvez mais baixos nos soldadores e mais altos nas mulheres e nos moços.

Infelizmente, não existem dados que nos permitam apurar a estrutura etária de cada grupo de trabalhadores e a respectiva evolução entre 1890 e 1913.

Segundo o Inquérito de 1890, dos 385 operários homens (o que inclui soldadores, moços, rapazes e aprendizes), 20,7 % tinham menos de 16 anos. Como também 31 % das mulheres, das quais 28 % estavam entre os 12 e os 16 e 3 % entre os 7 e os 12. Mas, depois de 1890, a primeira evidência sobre a matéria data de 1917. Sucede, no entanto, que o Boletim do Trabalho Industrial* (que a publicou) separa apenas maiores e menores. Quanto «aos homens, a situação não parece haver-se alterado: 80 % de maiores e 20 % de menores. Todavia, a acreditar no Boletim do Trabalho Industrial, a parte do trabalho infantil feminino baixaria substancialmente para cerca de 10,9 %, o que é um manifesto exagero.

Entre 1890 e 1917, como dissemos, nada se sabe. Só os Censos de 1890, 1900 e 19109 se ocupam da distribuição por idades de toda a população industrial de Setúbal. Apesar disso, excepto num caso10, as tendências gerais concordam com o pouco que se conhece das conservas:

o Censo de 1890, por exemplo, põe a proporção de operários menores em 19,7 % (20,7 % no Inquérito citado acima) e a de mulheres em 34,8 % (31 % no Inquérito).

Admitindo, portanto, uma semelhança fundamental entre os dois universos (o que não é completamente absurdo se pensarmos que, até 1913, os conserveiros representaram sempre entre metade e dois terços da gente ocupada na indústria local), podemos chegar a três conclusões importantes.

Por um lado, que a percentagem global de trabalho infantil nas conservas entre 1890 e 1913 permaneceu bastante estável à volta dos 22 %-24 %, com uma ligeira inclinação para subir de 1890 a 1900 e, a seguir, para descer.

Por outro lado, que, embora alta, essa percentagem ficava ainda muito aquém da que se verificava em sectores como os têxteis ou a cortiça.

E, por fim, que a quantidade relativa de mulheres menores (entre 30 % e 40 %) excedeu constantemente a dos homens (nunca distante dos 20 %).

8 Boletim do Trabalho Industrial, n.° 116, suplemento.
9 Censos da População de 1890, 1900, 1910.
10  O número do Boletim do Trabalho Industrial  é de 10,9% de mulheres para 1917

 

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