O LEGADO DO “INVISÍVEL” UMA INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ANTÓNIO VARELA

Autor: HUGO PHILIPPE HERRENSCHMIDT DA NAZARETH FERNANDES DE CERQUEIRA

Capítulo 6 A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (continuação)

6.3.4. Descrição da fábrica: as várias fases projectuais

A fábrica surge referenciada pela primeira vez no mesmo ano de conclusão do projecto, na revista Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação / Reunidas50, de Julho de 1938. Publicação especializada da época, com imagem na capa referente a uma perspectiva assinada por António Varela, e que consta do conjunto de peças desenhadas que deram entrada na câmara para aprovação do projecto. Transcrevemos o artigo, tendo em conta a sua relevância para vários pontos de interesse deste estudo:

“Publicamos hoje alguns trabalhos de um distinto arquitecto: António Varela. Formado pela Escola de Belas Artes do Porto, pertence à nova geração mas tem-se afirmado como dos mais marcantes e seguros; deve ser dos que mais novos concluíram o seu curso, pois aos 24 anos era já arquitecto. É actualmente professor de Ensino Técnico, na Escola Industrial Machado de Castro e deu a sua valiosa colaboração, em mais de um ensejo ao notável artista Jorge Segurado, designadamente no plano de urbanização da Praia do Cabedelo (…)51. Demos estas páginas a um seu interessante projecto para uma fábrica que a firma Algarve Exportadora Limitada, pretende construir em Matosinhos. Já lá vai o tempo em que na construção de uma fábrica se dispensavam cuidados estéticos; hoje, projectar um estabelecimento fabril é estudar um conjunto que deve também mostrar-se harmonioso. Para mais, o terreno onde está será executada a construção está situado em artéria importante. O arquitecto António Varela tem neste projecto um trabalho de superior inteligência; as gravuras que publicamos elucidam-no suficientemente, mas não queremos deixar de referir o vasto Hangar com cobertura sem apoios intermediários, com a fachada francamente aberta à luz, e com um módulo de construção determinado, de que resultou uma fachada de belo ritmo moderno, a que a altura do entablamento (necessário para evitar poeiras no interior) dá certo ar de grandiosidade. No mais, a atenção do leitor encontrará méritos evidentes, que confirmam o alto conceito já granjeado por este artista.” (A.P.C.E./R, 1938).

50 Cf. A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edficação / Reunidas (A.P.C.E./R), n° 40, 3° série, Julho de 1938.

Fig. 196 AEL, interior da secção de fabrico, vista sobre elevada apartir da administração.

Fig 206 AEL, interior da secção de fabrico, vista sobrelevada a partir da açoteia (foto de 1938). Note-se o sistema de asnas treliçadas em ferro, permitindo o vencimento de um grande vão de 26 metros de envergadura sem apoios intermédios. Á direita: as chaminés dos autoclaves; à esquerda: a fachada para a avenida da República e a retícula janelar de betão armado que integrava o sistema de caxilharia oscilante destinada à ventilação; em cima: a grande clarabóia; ao fundo, as janelas e o acesso da administração.
In Conservas de peixe, periódico, s/nº, 1946 (Arquivo do Gabinete de Arqueologia da C.M. de Matosinhos).

Fig. 198 AEL, interior da secção de fabrico, vista a partir da secção de cheio.

 Fig. 199 AEL, interior da secção de fabrico, vista a partir da secção da administração. Ao fundo e em elevação o monta cargas.

Fig. 197 Capa da publicação “A arquitectura portuguesa e cerâmica e edificação reunidas”, nº 40, Julho de 1938, e perspectiva de António Varela para a primeira versão da fábrica.

 

Aqui são destacados, através de uma breve descrição das soluções adoptadas, os princípios inerentes ao posicionamento de António Varela face às soluções aportadas pelos estudos dos modelos técnico funcionalistas no que respeita à arquitectura industrial. Termos como “o vasto hangar com cobertura sem apoios intermediários”, “fachada francamente aberta à luz”, e “módulo de construção determinado” referem- se directamente a princípios de composição típicos do funcionalismo moderno [fig.196-198-199].

Parece no entanto evidente que terá sido António Varela um dos primeiros arquitectos no panorama nacional a ter posto em prática estes valores modernos no que respeita aos princípios inerentes à arquitectura fabril.

Contudo, este artigo é referente ao projecto e data como sendo anterior à construção (1938). No que respeita a alguns comentários sobre a qualidade do espaço construído em 1939 a resultantes do projecto de António Varela, referira-se ainda o artigo da revista Conservas (1941), no qual se pode igualmente comprovar o valor da novidade desta fábrica no seu meio e na sua época, e alguns comentários no que respeitava o seu funcionamento:

“Registámos anteriormente nestas colunas várias notas representativas do Progresso da nossa indústria ao referirmo-nos às novas instalações das firmas Lagos, Ferreira & C.a  L.da e Lopes da Cruz & C.a  L.da, em Vila do Conde , e a Brandão a C.a  L.da, em Matosinhos, esta última transformando a sua antiga fábrica da Avenida Serpa Pinto a dando-lhe exteriormente aspecto digno do seu nome. Hoje cabe a vez de nos referirmos à Algarve Exportador L.da, exclusivamente […]. As fotografias que ilustram estas notas darão melhor ideia do que quanto nós pudéssemos dizer com respeito à excelente tendência que vimos observando nos industriais, ou seja o de dedicar todos os cuidados à higiene das suas instalações.” (Conservas, 1941)52 .

Prossegue o artigo, com uma alusão a uma visita ao interior da fábrica:

“Na nossa rápida visita impressionou-nos em primeiro lugar o asseio que presidia em todas as secções. A nave destinada ao enlatamento é grande, elegante, airosa, cheia de luz. O solo é de mosaico e o conjunto formado pelos cofres de coser e de esterilizar, com as suas chaminés de corte vistoso, dá o aspecto agradável de um salão dos velhos tempos senhoriais. A distribuição do azeite é teoricamente perfeita e tem, precisamente, a novidade do aperfeiçoamento. Destaca-se uma soberba «açoteia» para utilizar na secagem da sardinha e servida por um ascensor que prova os bons desejos da «Algarve Exportador Lda.» em servir os seus clientes da América do Norte. Reflectem também desejos ferventes de harmonizar com os tempos, os departamentos destinados a vestiários a refeitórios, onde a simplicidade se conjuga com o bom gosto, assim como o que se destina a banhos de chuveiro, onde nada falta para o bom serviço dos operários. O mármore e o mosaico são, não somente belos materiais, mas também dos mais fáceis de limpar, e o mosaico e o mármore são empregados nesta fábrica em todas as dependências em que o trabalho diário obriga a uma limpeza permanente (…).” (Ibid.).

Após uma série de congratulações pelo evento à firma AEL, “pelos seus brios a pela contribuição que presta ao desenvolvimento da indústria portuguesa de conservas” (ibid.), segue-se um último parágrafo dedicado a António Varela:

 “Não podemos deixar de nos referirmos ao arquitecto Dr. António Varela [sic], da Escola de Belas Antes do Porto, autor da primorosa obra, espírito juvenil com brilho próprio e um elemento novo digno de ser consultado quando houver que tratar-se de futuras instalações ou mesmo modificações das actuais, porquanto a austeridade de linhas e o delicado detalhe interior revelam o artista que sabe engalanar sem perder de vista as necessidades práticas, que cria beleza sem prejudicar o útil. Oferecemos-lhe os nossos sinceros parabéns com o pressentimento de que não será esta a última vez que Conservas lhe rende o tributo de carinhosa admiração, ainda que pese a sua reconhecida modéstia.” (Ibid.).

Note-se que a revista Conservas terá dado como certas futuras intervenções de António Varela, o que se veio a comprovar mais tarde. De facto, embora pese significativamente o projecto inicial de António Varela de 1938, a fábrica foi objecto de ampliações e remodelações ao longo do tempo.

52 Conservas, n° 68, Agosto de 1941.

Com excepção de pequenas intervenções diversas realizadas posteriormente, existem outros dois momentos construtivos bastante importantes para a compreensão do conjunto. O primeiro, datado de 1941, refere-se à construção de armazéns de estiva, da autoria de António Varela; o segundo, datado de 1946, refere-se a uma ampliação do edifício do pátio para mais um piso situado por cima do andar térreo, mas aparentemente já sem intervenção de António Varela, pois o projecto consta como sendo da autoria do arquitecto Agostinho Ferreira de Almeida.

Pode, deste modo, concluir-se existirem três momentos construtivos, intervalados por espaços de tempo relativamente curtos.
Primeira fase: projecto da fábrica de conservas da Algarve Exportador Limitada, autor: António Jorge Rodrigues Varela (1938);
segunda fase: projecto de armazéns de estiva a construir nos terrenos da fábrica em anexo, autor: António Jorge Rodrigues Varela (1941);
terceira fase: projecto de ampliação e remodelações do edifício do pátio; autor: Agostinho Ferreira de Almeida (1946).

Da primeira à segunda fase vão dois anos de intervalo. Já da segunda à terceira vão cinco.

As duas primeiras são as mais importantes e significativas. A primeira, por razões óbvias, abrange a maior parte do edificado, e consiste na fábrica propriamente dita; a segunda, porque marca a última intervenção de António Varela, revestindo-se por isso da maior importância para se poder seguir as suas variações no espaço e no tempo, face ao seu modo de projectar, na mesma obra; já a terceira, da autoria de Agostinho Ferreira de Almeida, veio adulterar, em certa medida, o traçado original do conjunto idealizado por António Varela, como se poderá confirmar 53. Observe-se então, sequencialmente, cada um destes três momentos construtivos.

Fig. 200 António Varela, desenho perspectivado da AEL,1938 [pormenor sobre a entrada da administração]. Note‐se a primeira versão do frontão da secção de fabrico.


Fig. 201 AEL, vista da entrada de gaveto da administra..o[s.d., anos 40]. Note‐sea alteração da altura do frontão da secção de fabrico em relação ao projecto de 1938.

6.3.4.1. Primeira fase: projecto da fábrica de conservas Algarve Exportador Limitada 54

Transcrevemos uma parte da introdução da memória descritiva do projecto elaborada por Varela e referida pelo próprio como Do Terreno e do Partido da Composição:

“O terreno adquirido pela firma Algarve Exportador Limitada, para instalação da sua fábrica, na vila de Matozinhos, tem a forma trapezoidal, e contorna-se a Nascente, com a rua Dr. Alves da Veiga, formam os arruamentos uma pequena praça circular, o que motiva, naquele cruzamento o corte do ângulo, por um arco de circunferência.” (A.C.M.M., 1938)55 Como se pode comprovar pelas suas palavras, este cruzamento irá desde logo revestir-se da maior importância no conjunto global do projecto, pois é a partir deste desenho da praça que se estabelece o espaço pare a administração, sendo esta uma das analogias apontadas por José Manuel Fernandes quando refere a sua “rica diversidade de ângulos [fazendo lembrar] a Casa da Moeda” (Fernandes, 1993, p.121) [fig.105- 110].

Convém considerar que o motivo gerador desta forma de gaveto foi a praça (espaço «causal»), tendo dado origem à superfície côncava da fachada (espaço «consequente» e forma «subtractiva») [fig.200-201]. Esta solução não parece contrariar a homogeneidade do projecto. É a resolução de um espaço edificado consequente do «vazio» causal da praça, e em analogia directa com a solução adoptada por Jorge Segurado para a resolução do gaveto entre a rua João Crisóstomo e a rua da Estefânia no edifício da Casa da Moeda em Lisboa, projectada uns anos antes [fig.105]56.

54 Autoria de António Varela; data de aprovação camarária: 9 de Abril de 1938.

55 Algarve Exportador Limitada,  memória descritiva de António Varela, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1938.

Convém assinalar que a entrada principal (n° 216 da avenida da República, endereço oficial da fábrica) que dá acesso directo à administração, se encontra virada para o antigo edifício da Câmara Municipal de Matosinhos na rua Brito Capelo. Isto poderá comprovar uma intenção propositada em situar o centro de estatuto da empresa face ao centro do poder local 57.

Esta postura que se revela ao observador pode ser reconhecida noutros exemplos, na disposição dos corpos administrativos das outras grandes fábricas da mesma época, como a Pinhais, a Ramires, a Lopes, Coelho Dias a C.a (demolida), a unidade da Júdice Fialho (idem), ou a Brandão Gomes (idem), o que confirma uma necessidade constante por parte dos grandes pólos geradores de riqueza de se localizarem estrategicamente face ao poder e reclamando notoriedade para si mesmos.

É bastante evidente, para quem se predispuser a observar, como este gaveto junto à praça se traduz num espaço de memória do lugar e de toda a cidade. Hoje em dia, apesar de nos encontrarmos perante uma ruína, é ainda notável pela presença que imprime no olhar de quem passa, encontrando-se bem patente na memória colectiva da população mais idosa, que a recorda com o saudosismo de um passado próspero e «glorioso»58. A tudo isto não terá sido alheia toda a atenção que António Varela colocou na sua resolução:

 “(…) No partido da composição, pretendemos conciliar, a valorização da Praça Circular, dar a cada um dos arruamentos, fachadas de harmonia com a importância dos mesmos, quer sob o ponto de vista estético, quer sob o ponto de vista da importância da circulação, sem que por essa razão deixasse  de ser cumprido rigorosamente o programa que nos foi fornecido, o racional aproveitamento do terreno, e a distribuição da luz julgada conveniente para cada uma das secções que constituem o todo da fábrica. E assim, projectamos a Secção de Gerência confinando com a Praça Circular numa constituição de um só pavimento, com a cobertura horizontal, e com o desenvolvimento da fachada em seguimento da circunferência concêntrica da Rotunda conseguindo arranjo gracioso e praticamente, um aumento do raio da mesma Rotunda [a praça Passos Manuel] o que dará a esta o aspecto sempre agradável de desafogo.” (Id. ibid.).

56 V. supra, 4.2.

57 Gesto por si só simbólico, dado o edifício da antiga câmara se encontrar alguns quarteirões acima, fora do eixo visual e somente observado em planta, mas reflexo de uma postura de afirmação típica, à época, dos consórcios privados…

58 “Era a maior e a mais bela de todas”: no que respeita a memória local sobre a A.E.L. e outras antigas fábricas de Matosinhos, foi este o traço mais comum que reunimos em depoimentos por entre a população local, onde se incluem numerosas ex-operárias e «gentes do mar» que recordam a fábrica com saudade e afecto. Sobre o imaginário dos espaços de memória matosinhenses, veja-se ainda as figuras 174-212.

Observa-se, pela ênfase concedida, todo o cuidado essencial que o autor quis dar a esta parte do projecto, no sentido de querer conjugar o projectado com o existente. Não se sabe, porém, se a escolha desta parte do terreno para o posicionamento da administração terá sido de António Varela ou se terá partido da vontade de Agostinho Fernandes.

Parece, no entanto, afigurar-se invariavelmente como o posicionamento estratégico ideal, tanto pelas razões citadas, como por confluência de opiniões, se tivermos em conta o bom entendimento entre António Varela e o seu cliente, (que para além de sócio-gerente, também fora seu patrono)59.

Por outro lado evidencia-se a preocupação do autor em “dar a cada um dos arruamentos, fachadas de harmonia com a importância dos mesmos”. A observação do lugar confirma a memória descritiva: existe de facto uma hierarquia própria, que serve tanto os aspectos funcionais da fábrica como a sua relativa correspondência à importância dos eixos. Já observámos como procedeu em relação à praça da avenida da República; veja-se em relação ao resto:

“Ao longo da Avenida da República, com eixo longitudinal no sentido Nascente/Poente projectamos a secção de fabrico num vasto Hangar com cobertura sem apoios intermediários, com a fachada francamente aberta à luz do norte, e com um módulo de construção determinado do que resultou uma fachada, de ritmo harmonioso e a que a altura do entablamento (necessário para evitar poeiras no interior) dá certo ar de grandiosidade.” (Id. ibid.). 

Para além de se encontrar esta frase no original, retomada pelo artigo da Arquitectura Portuguesa, é possível constatar desde logo que, a respeito da hierarquia dos espaços e dos eixos, Varela não deixa margem para dúvidas: é o eixo da avenida da República, no seguimento da praça, que orienta e estabelece a hierarquia dos espaços projectados. Isto demonstra a continuação da mesma linha de raciocínio do autor, antes manifestada em relação à praça. Para mais, a procura de uma qualidade lumínica mais «neutra» aliada à ventilação da secção de fabrico («a luz de norte») parece revelar a sensibilidade do «arquitecto-funcionalista» mas também do «pintor-esteta».

Continua António Varela:

 “Ao longo da rua Dr. Alves da Veiga projectamos o armazém, chamado de cheio num edifício de proporções mais modestas mas a que também um módulo de construção, a relação entre os cheios e as aberturas, a altura total, e a elevação da parte destinada à habitação do encarregado juntamente com a empena do Hangar da secção de Fabrico que lhe serve de fundo dão motivo de sã harmonia e sério aspecto.” (Id. ibid.).

É notória a preocupação do autor em colocar em evidência a harmonia das partes com o todo: através do equilíbrio dos cheios com os vazios, do jogo de volumetria entre os diferentes módulos, enfatizando o aspecto cenográfico entre a “parte destinada à habitação do encarregado” e a “empena do Hangar da Secção de Fabrico”, jogando como pano de fundo. Esta empena era realçada em termos cenográficos pela colocação de um poste de bandeira, o que lhe acentuava a imponência frente à praça e ao lugar que ocupava.

 “(…)Finalmente confinando com a rua João Chagas, lado do trapézio com ângulos diferentes de 90° instalámos os serviços de abastecimento da fábrica, em edifícios de proporções adequadas às suas funções com as respectivas zonas mortas (de serviço) independentes da rua, limitadas por um muro de vedação que define o alinhamento. A racional distribuição destes serviços engendrou uma fachada movimentada em dentes de serra, a que a vedação de cada uma das zonas dá unidade. O efeito sempre desagradável, da solução vulgar com sutamentos, foi evitado com este arranjo (…).” (id., ibid.).

Note-se que esta «racional distribuição» da fachada movimentada em «dentes de serra» é uma solução tipicamente funcionalista e moderna, apontada por Ernst Neufert, na sua obra Architect’s data60 (1936), no que se refere à relação da fábrica moderna com os seus acessos. Colaborador de Gropius na Bauhaus e iminente teórico do funcionalismo moderno, Neufert comenta que as circulações ocupam muito espaço devido aos raios mínimos das curvas, referindo que “os terrenos mais convenientes são os de via oblíqua” (Neufert, 1996, p.280) e “não sendo assim, convém adoptar a disposição oblíqua para os edifícios” (id. ibid.) [fig.202].

Fig. 202 esquema de acessibilidades de Ernst Neufert [Architect’s data, 1936].

Fig. 203 AEL, acessos da [secção de vazio e pátio: oescalonamento dos módulos facilita a acessibilidade rodoviária [pormenor da planta geral].

Fig. 204 AEL, secção de gerência, com vista sobre a secção de fabrico.

Fig. 205

AEL: organização do espaço interno da fábrica segundo o projecto original de António Varela (Arquivo da CM Matosinhos – esquematização do autor ): verifica-se em planta a funcionalidade do sistema em cadeia que progride de forma linear, e de modo semelhante ao esquema apresentado no Quadro 1 (I: Secção de Vazio; II: Secção de Fabrico; III: Secção de Cheio) : a numeração representada corresponde à numeração da memória descritiva de António Varela: (1) gerência e acesso à habitação do encarregado; (2) secção de fabrico; (3) armazém de cheio; (4) armazém de vazio e depósito de sal; (5) entrada de serviço; (6) garagem; (7) depósito de água em elevação; (8) creche, vestiário, refeitórios e balneários; (9) habitação do encarregado; (10) galeria na secção de fabrico. Em termos funcionais, é ainda possível observar a localização do núcleo constituído pela casa das caldeiras/motor/autoclaves, depósito de guano,chaminé, casa do azeite, oficina, garagem, pátio e armazém para instituto (fiscalização).

 60 NEUFERT, Ernst, Arte de projectar em arquitectura, Ed. Gustavo Gili do Brasil, São Paulo, 11ª ed., 1996, p.280 [Architect’s data, segundo a versão original alemã Bauentwurfslehre, 1936].

É possível estabelecer uma comparação entre o modelo de Neufert, e a articulação dos módulos dos armazéns de vazio da fábrica da A.E.L. [fig.203]. Estas soluções formais decorriam de uma preocupação eminentemente funcional no processo de concepção do espaço, sendo, nessa época, inovadoras em Portugal. António Varela finda a introdução à memória descritiva considerando que face à sua obrigação como autor do projecto terão os desenhos que o constituem a faculdade de fornecer todas as indicações necessárias para que fique “dada a ideia exacta da obrigação” (A.C.M.M., 1938) à qual se propôs:

“(…) ao termos o honroso encargo, de elaborar o projecto da Fábrica que a firma Algarve Exportador Limitada pretende construir na vila de Matosinhos e que foi a de projectarmos uma construção digna da importância da indústria de conservas, do valor comercial da firma Algarve Exportador Limitada, e que contribui para valorizar ainda mais o valioso centro industrial onde vai ser realizada.” (Id., ibid.).

Prossegue a memória descritiva relativamente ao funcionamento da fábrica, e clarifica-se numa análise paralela à planta geral, que se optou por numerar, com vista à sua correlação sequencial [fig.205].

No que diz respeito à secção administrativa, e segundo a memória descritiva de Varela, evidencia-se a necessidade de centralizar este espaço como «charneira», articulando duas «frentes» simultaneamente: o espaço de fabrico e o espaço exterior.

 “A gerência localizada na parte do terreno que confina com a rotunda, tem o acesso pela mesma rotunda, e compõe-se de uma sala para exposições de mercadoria, uma sala de receber, vestiários, instalações sanitárias e escritórios com o respectivo expediente. Do escritório comunica-se directamente com a secção de fabrico e com o armazém de cheio. O acesso à habitação do encarregado, independente de qualquer dependência da fábrica faz-se também pela rotunda, no diedro formado pela parede norte do armazém de cheio e a parede nascente da secção gerência” (Id. ibid.).

Saliente-se que deste espaço do escritório a vista panorâmica sobre a secção de fabrico é total, o que permitia uma vigilância constante sobre o processo de fabrico e os trabalhadores [fig.204]. Este modo de conceber o espaço traduz, simbolicamente, uma certa lógica de hegemonia do patronato, um pouco à imagem da Casa da Moeda de Segurado, com os seus «pontos de observação» sobre os operários, mas também à semelhança de outras indústrias onde a necessidade de vigília era uma constante.
A secção de fabrico da A.E.L. [fig.206-208-209] constituía-se em si mesmo como o espaço principal de todo o conjunto, sendo o «coração» da fábrica. O seu funcionamento obedecia ao sistema de produção em série e em cadeia, ou seja:

Recebia, a poente, a lata vazia vinda da secção de vazio [fig.205; I.], e o peixe já salgado; na secção de fabrico [fig.205; II.], onde se procedia em primeiro lugar ao descabeço e à limpeza do peixe, donde de seguida se lavava e se cozia, passando-se ao seu enlatamento, nas latas recebidas da secção de vazio, sendo a operação efectuada nas várias bancadas pelas operárias; de seguida passava para a secção de azeitamento, onde o processo mecânico era executado pelas máquinas «azeitadeiras». A lata era, então, fechada nas «cravadeiras», seguindo para a esterilização efectuada nos autoclaves, e daí finalmente para a secção de cheio, situada a nascente [fig.205; III.].

Fig. 207 AEL, automatização do sistema em série, aspecto do produto final [foto de 1977]

Fig. 208 AEL, interior da secção de fabrico, vista sobreelevada a partir da açoteia [foto de 1977 – uma das últimas imagens da fábrica em laboração].

Fig. 209– AEL, interior da secção de fabrico, vista sobre elevada a partir da açoteia (fotografia do autor 1999)

A organização da secção de fabrico da AEL de Matosinhos foi – deste período e não só –, aquela em que melhor se aperfeiçoaram as qualidades do espaço funcional no sector conserveiro, estruturando-se de forma clara e simples, de modo a optimizar o sistema de fabrico em cadeia e em série, e resultou do esforço de pesquisa de Varela face a um programa bastante vasto e complexo. Segundo as suas palavras:

“Esta secção localizada ao longo do lado norte do terreno compôe-se de um vasto Hangar destinado ao arrumo dos apetrechos e maquinaria necessários ao fabrico das conservas de peixe. Todas as dependências complementares desta secção – nichos para os cofres de cozimenta, esterilização, casa do azeite, casa do motor, casa das caldeiras, depósito de guano, e instalações sanitárias para serviço do pessoal, ficam adossadas à parede sul do Hangar, em comunicação directa com este e são servidas por um vasto páteo que corre no sentido nascente poente do terreno e separa todas as secções de fabrico da parte destinada à vida dos operários fora das horas de trabalho – creche, vestiários, refeitórios e balneários (…).”(Id. ibid.).

Aqui se demonstra o cuidado de Varela na «parte humana», no zelo que teve em separar o espaço de fabrico do espaço de apoio à vida dos operários fora do horário laboral., sendo que o pátio é o espaço que separa estes dois momentos (trabalho/descanso),que sempre existiram na vida das fábricas. Volumétricamente, também é interessante compreender que este «vazio» é importante como momento de «silêncio» na articulação das partes da composição, entre a fábrica («labor-interior») e o pátio («lazerexterior »).

O armazém de cheio [fig. 210] dividia-se em dois espaços distintos: por um lado o armazém propriamente dito, onde se verificava manualmente o vácuo da lata numa operação manual efectuada pelas apelidadas «verificadeiras»61, e por outro, um espaço necessário à fiscalização, que procedia a vistorias periódicas do produto acabado, servindo de escoamento do produto pela rua Roberto Ivens situada a nascente:

“Este armazém localizado no lado nascente do terreno é dividido em duas partes, por uma parede que corre transversalmente, destinando-se uma, à mercadoria para o instituto, outra, para a mercadoria da fábrica. O seu acesso com o exterior é feito por dois portões com dimensões que permitem a passagem das camionetas. O armazém para o instituto comunica interiormente com o da fábrica, e este directamente com a secção de fabrico.” (Id. ibid.).

61 Apelidam-se de «verificadeiras» as operárias com a função de verificar o vácuo no interior das latas, antes do embalamento no armazém de cheio, fazendo-se este processo batendo manualmente umas nas outras, distinguindo deste modo, e pela sonoridade, o correcto fecho da lata.

62 Recorde-se que se designa por «secção de vazio» a área destinada ao fabrico das latas de conserva.

No que respeita ao armazém de vazio62 [fig.211-213-214-218-219], é importante considerar – para além da sua descrição funcional e interna, patente na memória descritiva de Varela –, a sua relevância como parte expressiva do exterior. Em relação a este (e ao depósito de sal, incluído nesta área), prossegue a memória descritiva:

“Este armazém localizado no ângulo do terreno formado pelos alinhamentos dos lados norte e poente comunica interiormente com a secção de fabrico, e com o exterior por intermédio de um cais próprio separado da rua por um muro de vedação. O depósito de sal, situado no prolongamento do armazém de vazio tem como este para serviço de abastecimento um cais próprio igualmente separado da rua por um muro de vedação, e comunica interiormente com a secção de fabrico”. (Id. ibid.).

61 Apelidam-se de «verificadeiras» as operárias com a função de verificar o vácuo no interior das latas, antes do embalamento no armazém de cheio, fazendo-se este processo batendo manualmente umas nas outras, distinguindo deste modo, e pela sonoridade, o correcto fecho da lata.

62 Recorde-se que se designa por «secção de vazio» a área destinada ao fabrico das latas de conserva.

Fig. 210 AEL, armazém de cheio, com saída para a rua Roberto Ivens. Por cima: a habitação do encarregado [foto de 1999].

Fig. 211 AEL, “torre” de vigia e entrada da secção de vazio[s.d.]. Ao fundo: as chaminés e o depósito de água. em elevação.

Fig. 212 Álvaro Siza Vieira, desenho, caneta sobre papel, [s.d.]

Fig. 213 AEL, “torre de vigia” e secção de vazio [foto de 1999].

António Varela não menciona o acesso vertical à açoteia por uma escada que acompanha a forma cilíndrica integrada na torre. Mas este topo poente da fábrica, denominado localmente pela população de «torre» ou «o torreão da Algarve Exportador», ficou indelevelmente no imaginário colectivo da cidade [fig.212]. Assumia efectivamente as funções de uma torre de vigia, visto encontrar-se marcadamente virada para a doca e para o mar, e permitia observar a movimentação portuária, avistar o regresso das embarcações pesqueiras e accionar a sirene que convocava ao trabalho.

Do ponto de vista do desenho urbano, este elemento «resolve» o gaveto entre a avenida da República e a rua Heróis de França, enquanto que ao nível da fachada remata a horizontalidade da secção de vazio com o seu movimento dinâmico e vertical.

Embora não seja mencionada por Varela, que se remete ao seu silêncio para além das justificações funcionais, esta também é uma situação original e bastante invulgar na arquitectura conserveira, revestindo-se não apenas de um carácter funcional, mas também como um exercício metafórico e simbólico: a torre de vigia, vista do exterior, parece assumir-se no mais puro formalismo modernista, na sugestão do «espírito da máquina», além de dar a ideia de uma «fortaleza impenetrável» [fig.211-213], enquanto que interiormente marca os limites do percurso interno através da verticalidade, com uma «ascensão» em direcção à luz e ao céu [fig.218-219].

Podendo evidenciar-se como «momento poético», em tom de «promenade architecturale», a sua forma em «quilha» é uma marca típica do apelidado «estilo boat» [fig.215-216], que Varela, à imagem de outros arquitectos modernistas, à época muito acalentava. Aqui a metáfora poderá submeter-se à analogia directa da proa de um navio, como representação icónica e arquetípica do léxico do modernismo «heróico». Há que ter em conta os exemplos de utilização da forma cilíndrica como expressão da estética dos anos 20-30 em torno do mítica industrial, bastante presente nas primeiras obras dos precursores modernistas, como no caso de Mendelsohn ou Le Corbusier, assim como em algumas ilustrações visionárias de Chernikov [fig.98-217] ou Sant’Elia [fig.99]. Este elemento da composição de Varela recorda também algumas analogias morfológicas de Le Corbusier, em Vers une Architecture.

António Varela tinha conhecimento de algumas obras dos arquitectos modernistas estrangeiros, contudo sabe-se que a informação chegada a Portugal sobre as evoluções dos «modernismos», nos anos Trinta, apesar de mais abundante do que na década anterior, não era suficiente, para fazer amadurecer um verdadeiro carácter doutrinário, tal como o considera Nuno Portas 64. Seria talvez mais a proximidade da dinâmica gerada em torno da «primeira geração moderna» e a sua parceria com Jorge Segurado, a ter influenciado o imaginário de António Varela na produção de «imagens» da modernidade. Aqui as analogias serão mais directas, revelando o recurso à forma da «quilha», como no caso do  mercado de Coimbra, da Mirante ou da Casa de São Francisco, ou ainda noutros projectos com Segurado. 65

Fig. 215-.‐216 Labayen e Aizpurua, Clubhouse, San Sebastian,Espanha, 1929. Planta e fotografia.

Fig. 217 Yakov Chernikov, die arkhitekturnye fantasil, 63.

Fig. 215-.‐216 Labayen e Aizpurua, Clubhouse, San Sebastian,Espanha, 1929. Planta e fotografia.

Fig. 214 António Varela, acesso do armazém de vazio [desenho corte longitudinal – pormenor ]

No que respeita a entrada de serviço dos operários, a garagem e a localização do depósito de água em elevação, prossegue Varela:

 “Esta entrada foi localizada quasi no extremo sul do lado poente do terreno e no eixo do muro de vedação do páteo, por ela se faz a entrada do pessoal e todo o abastecimento da secção de fabrico e dos seus indispensáveis anexos (…)”(Id. ibid.) [fig.219].

À semelhança da hierarquia de acessos da Casa da Moeda, aqui também estes têm uma clara separação, opondo a entrada da administração à entrada dos operários, e estes maioritariamente, por uma questão de tradição neste tipo de indústria, divididos por sexos segundo as suas funções: neste caso a entrada dos homens fazia-se pelo portão da secção de vazio [fig.220] (para o trabalho de soldadura da folha de flandres), e a das mulheres pelo pátio e daí para o interior da secção de fabrico e demais serviços [fig.221].

Fig. 218 AEL, laje em consola na“torre de vigia” [foto de 1999].

Fig. 219 AEL, escada de acesso à “torre de vigia” na secção de vazio [foto de 1999]

Fig. 220 AEL, entrada de serviço dos soldadores pela rua Heróis de França [actualmente murada] [foto de 1999].
 


Fig. 221 AEL, secção de fabrico: entrada de serviço pelo pátio [foto de 1999]. Note‐se as pilastras octogonais e os óculos.

Fig. 222 AEL, garagem no fundo do pátio [foto de 1999

No caso da garagem [fig.222], localizada ao fundo do pátio, foi estabelecida “em alpendre encostado à parede poente do armazém de cheio, e ocupa transversalmente toda a sua largura” (Id. ibid.) [fig.223- 224]. Convém assinalar que este espaço foi mais tarde dividido em dois, sendo sido em parte fechado e utilizado como nova creche, quando a primeira foi demolida, com vista à comunicação da fábrica com os armazéns de estiva da segunda fase (1941). Quanto ao depósito de água em altura, foi localizado “no ângulo formado pelos lados do terreno poente a sul, neste ângulo projectou-se um alpendre destinado a possíveis serviços futuros que não possam ser feitos a céu aberto.”66 (Id. ibid.) [fig.225].

65  V. supra, 4.3.3. e 5.2.

66 Embora António Varela tenha assinalado o espaço onde este elemento se iria localizar, não se sabe se terá sido implantado no seu local original, ou se foi construído directamente no espaço que ainda ocupa actualmente (a uns escassos metros a sul, já nos terrenos da ampliação), ocupando lateralmente um canto gerado pelo encosto do corpo do armazém de 1941, do lado da rua Heróis de França.

No que respeita a creche, os vestiários, os refeitórios e os balneários [fig.222-223], refere António Varela:

“Estas instalações situadas no lado sul do terreno, compõem-se: A creche; de uma vasta sala, com a entrada recatada e separada do pátio por um muro de vedação, baixo e em alegrete, os vestiários refeitórios; de dois grupos, um para homens, outro para mulheres, análogos mas de dimensões diferentes, proporcionada ao número de operários de cada sexo. As construções projectadas para estes serviços são de aspecto simples, mas alegre, como convém, e o seu arranjo interior será feito de molde a permitir a sua utilização quotidiana, com ordem e perfeito estado de asseio.
A iluminação e ventilação são asseguradas pelas grandes superfícies envidraçadas e pelo vasto pátio que as separa das outras secções da fábrica” (Id. ibid.).

Registamos, segundo o testemunho de antigos operários, que este espaço do pátio com os seus serviços de apoio (creche, vestiários, refeitórios e balneários) era um local que servia exemplarmente as suas funções, onde foi possível, mais tarde, com a ampliação para um piso superior, instalar uma enfermaria, permitindo o apoio para cuidados e assistência médica privada [fig.225].

Referimos anteriormente que o pátio é o espaço que separa estes dois momentos que sempre existiram nas fábricas: o tempo de trabalho e o tempo de descanso: podemos observar que este pátio possui uma escala mais «humana», o que parece contribuir para o seu carácter mais privado, por oposição à frente da Avenida da República, explicitamente monumental e em «diálogo» permanente com o exterior.

Por comparação, convém referir que não era possível atingir esta qualidade do «privado» nos grandes pátios das conserveiras mais antigas, esses «enormes planos de batalha» 67 onde a necessidade de circulação e de todo o funcionamento da fábrica era prioritário. Neste caso o espaço não é desvirtuado por funções de trabalho, parecendo antes funcionar como “contraponto” à secção de fabrico.

No que diz respeito à habitação do encarregado 68 [fig.226-227], esta situava-se sobre o lado norte do armazém de cheio, e compunha-se, na realidade, de duas partes distintas: uma destinada ao encarregado da fábrica e outra privativa da administração:

“[…] A primeira é formada pelo hall de saída da escada, sala de jantar, cozinha, três quartos e instalações sanitárias; a segunda, por uma pequena sala de refeições, um amplo quarto, e respectiva instalação sanitária. Esta parte da habitação tem comunicação com o terraço da cobertura da secção gerência”. (Id. ibid.).

Fig. 223 António Varela, creche [planta geral, 1938, pormenor].

Fig. 224 AEL, pátio com acesso pela rua Heróis de França [actualmente murado] e entrada de serviço da secção de fabrico [foto de 1999].

Fig. 225 António Varela, módulo de apoio destinado a creche, vestiário, refeitórios e balneários; ao lado, o depósito de água [desenho perspectivado, 1938, pormenor].

Fig. 226 António Varela, AEL, habitação do encarregado e aposentos da administração, com terraço por cim da secção de gerência [desenho perspectivado, 1938, pormenor]. 

Fig. 227 António Varela,, AEL, habitação do encarregado e aposentos da administração, com terraço por cim da secção de gerência : a sala de refeições estabelece a comunicação entre as duas áreas [planta de cobertura, desenho n.3, 1938, pormenor].

Por fim, António Varela ainda menciona uma galeria «em elevação» na secção de fabrico [fig.228]: “Esta galeria prevista no projecto destina-se a uma possível instalação do vazio, que de futuro se poderá tornar uma necessidade, não fazendo portanto parte da construção inicial”69 (Id. ibid.).

Convém referir que esta galeria nunca chegou a ser construída, como se pode verificar pela observação das paredes da ruína, que não aparentam nenhum tipo de fixação 70.

67 V. nota 28 do presente capítulo. 
68 Trata-se, de facto, do gerente da fábrica.
69 Este elemento é visível no alçado norte da secção de fabrico, assim como no desenho n°7 do processo de licenciamento.
70 O mesmo também nos foi confirmado por antigos funcionários da fábrica ao afirmarem desconhecer tal situação.

Fig. 228 António Varela, a galeria periférica por cima da secção de fabrico [não executado] [corte transversal, desenho n.7, 1938, pormenor

Pela observação do desenho n°7 [fig.228], assim como do desenho n°8, relativos, respectivamente, ao corte transversal e ao corte longitudinal da secção de fabrico, verifica-se que esta galeria tenha sido projectada para poder percorrer toda a secção de fabrico pela periferia e em altura, por duas frentes distintas: por um lado a sul, pela parede que faz a ligação com as instalações de apoio à secção de fabrico (casa do azeite, casa das máquinas, etc,) e por outro, a norte, correndo toda a grande fachada envidraçada junto à avenida da República. No entanto, poderá existir uma razão para a galeria nunca ter sido construída:

Tendo em conta a descrição de António Varela, esta galeria “não fazendo parte da construção inicial”, estaria destinada a uma possível ampliação da secção de vazio, ou seja, da parte destinada ao fabrico de latas de conserva. Foi possível apurar, no entanto, segundo alguns exfuncionários da fábrica, que toda a secção de vazio foi transferida, por volta de finais dos Anos Sessenta, para o armazém nascente, devido às ampliações da fábrica em 1941. Neste sentido, e considerando que estes armazéns (da segunda fase) foram construídos imediatamente três anos após a inauguração da fábrica (a primeira fase), é possível concluir que nunca terá sido necessária a ampliação da secção de vazio para uma galeria num segundo andar, por cima da secção de fabrico, tal como Varela previra.

6.3.4.2. Segunda fase: projecto dos armazéns de ampliação da fábrica. 71

Este edifício destinava-se ao armazenamento e estiva de produto para exportação, devendo-se a sua construção a um aumento exponencial da produção da empresa, face à encomenda massiva no contexto bélico da Segunda Guerra Mundial. Não foi possível apurar se o terreno correspondente à edificação dos armazéns já pertencia à firma Algarve Exportador Limitada ou se foi comprado depois da aquisição do terreno inicial no qual a firma construiu a unidade fabril, três anos antes, pois a nada disto se refere o processo camarário. No entanto, segundo o que se pode concluir pelas datas de entrada dos relativos processos na autarquia, consta o registo de uma aprovação relativa à construção da fábrica de conservas de peixe da firma Rainha do Sado [fig.230], datada de Janeiro de 1941, situada mais a sul, no extremo triangular do quarteirão. Deste modo, conclui-se que o espaço «sobrante» entre o lote da Rainha do Sado e o lote da AEL foi aquele onde se edificou o armazém de ampliação desta mesma, por António Varela.

Os usos destes armazéns variaram com o tempo. António Varela não especifica claramente as diferentes funções dos seus três espaços diferentes, a não ser o central, destinado à estiva:

“O terreno tem a forma trapezoidal (trapézio rectângulo) e os seus eixos medem: o transversal 15.60 m. e o longitudinal 61.00 m., o lado menor das ângulos de 90° confina com a rua Dr. Alves da Veiga e o lado menor dos ângulos diferentes de 90° com a rua João Chagas, os lados paralelos ao eixo longitudinal são definidos por construções já existentes […]”.(Id. ibid.).

Estas «construções já existentes» são, a norte, a própria AEL, de 1938-39, do próprio Varela, e a sul, a Rainha do Sado, edificada no princípio de 1941. Por outro lado, António Varela também sublinha a necessidade de continuação do desenho de fachadas, em harmonia com o seu projecto anterior:

“De harmonia com o programas estabelecido a para conseguirmos uma ligação correcta com o existente, situamos as construções como se segue:
a) um armazém, com acesso pela rua Dr. Alves da Veiga e cuja fachada abrange todo o alinhamento, com a profundidade de 21.00 m.
b) uma construção destinada à estiva com as dimensões de 11.00 x21.00 m. Esta construção é servida por um páteo com a largura de 4.00 m. e com o comprimento de 11.00 m.
c) Um armazém com as dimensões de 21.00 x 15.60 m. cuja fachada fica recuada da rua João Chagas, entrepondo-se-lhes um páteo de forma trapezoidal que ficará em comunicação directa com o da fábrica existente.
A vedação que confina com a rua João Chagas segue no enfiamento da existente e é de traçado igual.” (A.C.M.M., 1941) 72 .

Veremos na última parte deste capítulo 73 a importância da métrica destes módulos no traçado geral de António Varela e de que forma estes se articulam em continuidade com o primeiro traçado geral do projecto, datado de 1938. Por enquanto, e seguindo a observação dos vários momentos construtivos da A.E.L., referimos ainda a última intervenção na fábrica.

Fig. 231 AEL, armazéns de ampliação da AEL, 1941, alçado sul [foto de 1999].

Fig. 230 A fábrica de conservas Rainha do Sado, 1941, confinante com os armazéns da AEL [foto de 1999].

Fig. 232 AEL, ampliação do edifício de apoio, 1946 (foto de 1999)

6.3.4.3. Terceira fase: projecto de ampliação do edifício de apoio ao pessoal da fábrica. 74

Pese embora o facto de esta fase não ser da autoria de António Varela, consideramos de importância a sua referência no sentido de se compreender a quebra operada ao nível da métrica e da composição, como consequência do aumento da volumetria [fig.232], em altura, que se operou no módulo original de António Varela, e destinado ao apoio ao pessoal da  fábrica. Da memória descritiva do arquitecto  Agostinho Ferreira de Almeida consta o seguinte: “a parte a edificar destina-se à creche, vestiário, consultório, sala de espera e W. C., para o pessoal da fábrica. A construção projectada fica instalada no primeiro andar (2° pavimento) de parte do edifício existente, sendo estes ligados por uma escada de acesso.” (A.C.M.M., 1946) 75

72 Algarve Exportador Limitada – armazéns a construir em Matozinhos, memória descritiva de António Varela, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1941.
73 V. infra, 6.4.2.4.4.
74 Autoria de Agostinho Ferreira de Almeida; data de aprovação camarária: 29 de Junho de 1946.

Esta terceira e derradeira intervenção destinou-se a uma nova localização da creche, do vestiário, assim como da criação de um consultório médico com sala de espera e instalações sanitárias próprias.

Compreende-se a necessidade deste aumento devido à produção massiva da fábrica durante a década de Quarenta. O conjunto de serviços foi organizado num módulo acrescentado por cima do edifício de apoio original projectado por António Varela, (a primeira fase de 1938), constituindo-se em altura um edifício que anteriormente era apenas térreo.

O piso superior liga-se ao inferior por uma escada de acesso de dois lanços (actualmente em estado de ruína), que foi criada a partir da subdivisão do espaço de refeitório do piso térreo. Para além de se elevar por cima do existente, este novo módulo confina na sua parede a sul com a parede dos armazéns de ampliação de Varela (a segunda fase projectual, de 1941).

Refira-se que este apoio médico, que veio completar os serviços de apoio ao pessoal da fábrica, foi bastante indicado por antigos operários da fábrica como sendo dos mais eficientes de todas as conserveiras da mesma época. Esta forma de assistência social privada terá sido, porventura, o derradeiro e decisivo passo para a fábrica se tornar uma referência do meio, o que se pôde concluir tanto pelos relatos da imprensa especializada da época, como pelos testemunhos de vários ex-operários e familiares de Agostinho Fernandes.

Já no que respeita ao aspecto formal desta última fase, Agostinho Ferreira de Almeida não seguiu a métrica de Varela, tendo-lhe imprimido  uma caracterização própria, tendo resultado desta intervenção uma descontinuidade que, embora pontual face ao vasto projecto de Varela, é suficiente para desarmonizar o conjunto espacial do pátio: não só na métrica dos vãos, mas também desequilibrando a articulação volumétrica entre este edifício com os módulos da secção de fabrico e dos armazéns de 1941.

75 Algarve Exportador Limitada – projecto de ampliação do edifício de apoio ao pessoal da fábrica, memória descritiva de Agostinho Ferreira de Almeida, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1946.

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