O LEGADO DO “INVISÍVEL” UMA INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ANTÓNIO VARELA

Autor: HUGO PHILIPPE HERRENSCHMIDT DA NAZARETH FERNANDES DE CERQUEIRA

Capítulo 6 A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (continuação)

6.3.3. Contextualização urbana

6.3.3.1. Origens do desenvolvimento urbano de Matosinhos

O concelho de Matosinhos, tal como se estabelece actualmente, é de constituição recente, e remonta a um processo de reorganização territorial que apenas se iniciou no lento despertar para o desenvolvimento industrial correspondente ao último quartel do Século XIX. 43

“Com a aproximação do final do século surgem grandes transformações na economia e na sociedade do concelho. O início da construção do porto de Leixões, inicialmente projectado apenas para porto de abrigo, e o aparecimento das primeiras fábricas, nomeadamente de duas grandes fábricas de conservas, desempenharam um papel um papel de destaque nesse conjunto de profundas transformações. A agricultura e a pesca, ocupações dominantes até então, começam a ser substituídas pelas actividades do sector secundário e, timidamente, do sector dos serviços.” (Cordeiro, 1989, p.11).

Neste contexto o crescimento populacional e o desenvolvimento urbanístico, particularmente, da freguesia de Matosinhos, provoca profundas alterações à paisagem tradicional predominantemente agrícola, com a implantação sucessiva de inúmeras instalações industriais, possivelmente – segundo apontam algumas fontes –, com um plano de urbanização previamente elaborado pela Companhia Edificadora 44. Seja como for, é certo que a definição da estrutura urbana que em grande parte se conservou até à actualidade deve-se ao plano da autoria de Licínio Guimarães e que remonta a 1880, onde surgem já demarcados os principais arruamentos que mais tarde se viriam a configurar45 [fig.188]. Neste documento é possível observar a peculiar inflexão entre a malha antiga a norte e o traçado ortogonal a sul, onde se destaca a implantação do Hipódromo de Matosinhos, (posteriormente demolido).

É a partir deste  momento que o velho centro histórico começa a perder importância e a Rua de Brito Capelo se torna o centro da vila de Matosinhos, no seu prolongamento para sul 46.

43 “Até ao final do século Matosinhos vai ser alvo de uma reorganização territorial: em 1871, a freguesia de Labruge, é de novo integrada no conselho de Vila do Conde; a abertura da estrada da Circunvalação, em 1895, tem como consequência a integração das freguesias de Nevogilde, Aldoar e Ramalde nos limites territoriais do Porto. Em 1909, a designação de «conselho de Bouças» carecia de sentido face ao não desenvolvimento daquele lugar comparativamente ao de Matosinhos. Por esse motivo, a Câmara Municipal enviou uma representação ao governo solicitando uma alteração ao nome do conselho, o qual se passou a designar por «conselho de Matosinhos», a partir de 6 de Maio daquele ano.” In CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.8.

44 Cf. Idem, ibidem, p.11.

45 Cf. Idem, ibidem, p.11.

Fig. 188 Planta Projecção Horizontal de parte da Vila de Matosinhos, compreendida entre a praia dos banhos e o forte do Queijo, da autoria de Licínio Guimarães, década de 1880. Note—se a inflexão para sul do eixo da rua de Brito Capelo e a sobreposição da nova malha ortogonal sobre os terrenos do antigo hipódromo a norte.

É nesta vasta área plana que daí em diante, e já na viragem do século, numerosas empresas conserveiras e de salga viriam a requerer alvarás nos terrenos do Hipódromo de Matosinhos e do «elegante e burguesíssimo Jockey-Club47» localizado no areal do Prado. Neste contexto de «Belle Époque», Matosinhos e principalmente Leça da Palmeira começavam a perder progressivamente o seu carácter de estâncias de repouso e lazer da burguesia portuense que até aí então desempenharam, sendo que a própria relação funcional entre as duas – ou seja, a predominância do papel de centro turístico e balnear que garantia maior importância a Leça –, começa a alterar-se significativamente em favor do desenvolvimento industrial de Matosinhos, acelerado pela construção do porto de Leixões que se inicia em 1884.

46 Cf. SÉREN, Maria do Carmo, Mitologias da pesca e pescadores de Matosinhos, in Uma cidade assim, Câmara Municipal de Matosinhos, [catálogo], Matosinhos, 1996, p.35.

47 Segundo referência de José Lopes Cordeiro. Aqui se construiriam os armazéns de vinho da Companhia Vinícola Portuguesa em 1899, ocupando uma área de 11.000 metros quadrados. Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.16.

Pela mesma via, as linhas de caminho de ferro, em articulação com as ligações às novas fábricas, a construção de novas estradas, assim como o surgimento dos transportes públicos estabelecendo uma ligação regular com a cidade do Porto e outros centros urbanos, contribuíram para o crescimento urbano, predominantemente para sul. A estrada de  circunvalação, inaugurada em 1895, substitui o tradicional trajecto através da estrada da Azenha de Cima, assim como as pontes de madeira (1882), ligando a Rua Nova do Arnado (Leça) ao Juncal de Baixo (Rua Roberto Ivens, Matosinhos), e da ponte metálica (1887), permitindo a sua utilização pelos recém-chegados transportes públicos. 48

Segundo José Lopes Cordeiro, o desenvolvimento industrial de Matosinhos, ocorrido a partir dos finais de oitocentos, possui três características essenciais: ter-se desenvolvido muito tardiamente; apresentar uma distribuição irregular, sofrendo a influência da proximidade de um grande centro urbano (a cidade do Porto); e evidenciar muito precocemente um sector dominante, o da conservação e conserva de peixe, “o que se justificava pela abundância da matéria-prima nele utilizada e pela facilidade existente de exportação do produto acabado” (id., ibid., 1989, p.20).

Contudo, o atraso verificado no arranque industrial do conselho resulta em grande parte do próprio atraso que o país neste domínio apresentava. No entanto, a partir do momento em que se inicia a instalação das primeiras fábricas, verifica-se que este processo se desenvolve num ritmo bastante acelerado, “constituindo algumas dessas fábricas, pelo significado da sua produção e pelas suas instalações, empresas de primeiro plano na vida económica nacional” (id., ibid., p.20)49.

48 Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, pp.13-14. Refira-se que estas pontes foram demolidas no primeiro quartel do século XX, aquando da construção da Doca nº1 do porto de Leixões.

49 “As fábricas de conservas Lopes, Coelho Dias (1899), Brandão Gomes (1900), filial da de Espinho, constituíam sem dúvida duas das mais importantes unidades industriais portuguesas daquele sector, facilmente testemunhado pela capacidade, qualidade e diversidade da sua produção, organização empresarial e apetrechamento tecnológico, e ainda, pela sumptuosidade das suas instalações fabris.” Idem, ibidem, 1989, p.20).

Em suma, Matosinhos constitui-se, à viragem do século, como o quarto porto piscatório do país, tendo passado para a liderança nacional a partir da década de 1930. É também nesta década que Salazar permite a abertura de um porto comercial “mantendo reservas sobre o seu excessivo tamanho” (Séren, 1996, p.27) e que se irá edificar um bairro de pescadores, no quadro das acções urbanísticas do Estado Novo.

É ainda possível considerar que a estas duas fases de desenvolvimento económico muito se devem as duas fases de expansão do sector conserveiro, e parecem corresponder, de igual modo, às duas grandes fases de expansão urbanística da cidade de Matosinhos, centradas na primeira metade do Século XX: a primeira, que se inicia em finais de oitocentos e se prolonga nas primeiras décadas de novecentos, e a segunda, na substantiva proliferação de unidades fabris durante a década de Trinta

Pertence justamente a esta segunda fase a Fábrica da Algarve Exportador de António Varela, reconhecendo-se este como o «período áureo» da história da indústria conserveira, não só em Matosinhos, como em todo o país.

6.3.3.2. Contextualização urbana da Fábrica da Algarve Exportador Limitada

O terreno comprado pela firma AEL inclui-se num quarteirão triangular no centro de Matosinhos, afigurando-se claramente como um momento de rotação na malha ortogonal projectada [fig.190]. Deve-se este facto a uma inflexão resultante da articulação entre a área urbana mais antiga de Matosinhos, situada a norte, com o desenho urbano da zona industrial para sul 36, de acordo com o planeamento de finais de oitocentos [fig.188], consequente da crescente industrialização do sector conserveiro.

O quarteirão é delimitado a norte pela avenida da República, a nascente pela rua Roberto Ivens (à data do projecto com o nome de rua Dr. Alves da Veiga), e a poente pela rua Heróis de França (à data do projecto com o nome de rua João Chagas) [fig.192-195].

No entanto a principal artéria era – e ainda continua a ser –, a avenida da República, importante eixo do traçado urbano de Matosinhos, conjuntamente com a praça Passos Manuel. Esta avenida foi projectada desde os limites da cidade a nascente, em direcção à cidade do Porto, e para poente, desembocando junto à praia de Matosinhos e ao porto de pesca a sul da doca de Leixões [fig. 190-191], sendo esta percorrida pela grande fachada correspondente à secção de fabrico da A.E.L. [fig.189- 193].

No entanto a principal artéria era – e ainda continua a ser –, a avenida da República, importante eixo do traçado urbano de Matosinhos, conjuntamente com a praça Passos Manuel. Esta avenida foi projectada desde os limites da cidade a nascente, em direcção à cidade do Porto, e para poente, desembocando junto à praia de Matosinhos e ao porto de pesca a sul da doca de Leixões [fig. 190-191], sendo esta percorrida pela grande fachada correspondente à secção de fabrico da A.E.L. [fig.189- 193].

A praça Passos Manuel, intercalada na avenida, serve de eixo de distribuição entre o seu lado nascente, em direcção à cidade do Porto e seu lado poente, diminuindo de cota em direcção ao mar, até à praia de Matosinhos e ao porto de pesca (zona sul do porto de Leixões) [fig. 190- 191].

Esta praça serve de culminar sul da avenida Serpa Pinto, pertencente à malha mais antiga e que nasce na doca n°1 do Porto de Leixões. Serve igualmente de eixo de distribuição entre a zona norte da Rua Roberto Ivens, desde a Doca n°1 do porto de Leixões, rematando mais a sul na Praça Cidade do Salvador, em direcção à cidade do Porto, pela Foz ou pela Estrada de Circunvalação inaugurada em 1895. Como se pode comprovar pela planta de 1937 [fig.190], evidencia-se a estratégica localização desta nova unidade da AEL, implantada no centro urbano de Matosinhos, entre o porto de pesca e a malha que se desenvolveu mais tarde para o interior.

Esta localização estratégica é reforçada pela sua organização volumérica junto à praça, à qual António Varela parece ter dedicado especial atenção [fig.186-189-194], pois parece evidente que se tenha apoiado no desenho urbano preexistente para a génese do projecto, o que se comprova pelo testemunho escrito do próprio (v. infra, 6.3.4.).

Fig. 190 Localização da fábrica: planta com sinalização das conserveiras e das fábricas de conservas pelo sal de Matosinhos em 1937 (dois anos antes da construçãoo da AEL) note‐se a inflexão da malha urbana entre zona antiga [a norte] e a zona industrial [a sul]; o lote de implantação da AEL encontra‐se assinalado a cheio; a doca de pesca do porto de Leixões encontra-se poente.

Fig. 189 Fábrica n.6 da AEL, vista para sudoeste sobre a pra.a Passos Manuel, com o cruzamento da avenida da República com a rua Roberto Ivens. Ao fundo, o mar e o porto.

Fig. 191 fotografia área de 1996, onde se pode observar o enquadramento da fábrica em torno da praia Passos Manuel e no sentido do eixo da avenida da Rep.blica, em direcção doca de pesca do porto de Leixões.

Fig. 192– vista aérea para norte do quarteir.o formado pela AEL [1938] e a conserveira Rainha do Sado [1941]. Ao centro, a Praça Passos Manuel no eixo da Avenida da República; a poente, a praia de Matosinhos.

Fig. 193 Fachada da secção fabrico da AEL, em continuidade com o eixo da avenida da República.

Fig. 194 AEL, vista da Praça Passos Manuel; em primeiro plano, a administração e a habitação do encarregado no piso superior.

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