O Legado do Invisível de Hugo Nazareth Fernandes
O Legado do Invisível de Hugo Nazareth Fernandes
Autor: HUGO PHILIPPE HERRENSCHMIDT DA NAZARETH FERNANDES DE CERQUEIRA
6.3.1. A Algarve Exportador Limitada: caracterização e estratégia de implementação urbana e territorial
Tendo em conta o anteriormente mencionado, desde a abordagem histórica e tipológica das antigas conserveiras à concepção de uma novo modelo industrial com a fábrica de Matosinhos da A.E.L., seria necessário, para poder permitir uma boa compreensão do significado desta fábrica, enquadrar a empresa no seu espaço e no seu tempo próprio [fig.180], na conjuntura que antecedeu o momento desta última edificação. Esta conjuntura encontra-se intimamente ligada ao percurso do fundador da empresa: o industrial/coleccionador e patrono de António Varela: Agostinho Fernandes 37.
37 Agostinho Fernandes, empresário industrial e mecenas das artes (1896-1973), nasceu na Mexilhoeira Grande (Algarve), oriundo de uma família humilde cujo único filho viu sobreviver a uma elevada mortalidade infantil. Vai para Lisboa em 1900, aos catorze anos e com a antiga quarta classe, começando por empregar-se nos Armazéns do Grandela como paquete. Um pouco mais tarde entra para uma empresa inglesa de exportação de esteios (tipo de escoras) de pinho para a Grã-Bretanha, local onde as suas qualidades anunciadas despertam a atenção de Harold Edwin Oakley, o proprietário, que vendo as possibilidades e o potencial do seu empregado, decide-se a pagar-lhe o prosseguimento dos estudos. Este aprende vários idiomas ao mesmo tempo que trabalha, tendo chegado a tirar o curso de contabilidade. Facto notório numa época impregnada de um certo colonialismo saxónico reinante, terá ido substituir um contabilista inglês na Archer, assumindo funções de ajudante de gerência. Depois de ter passado por uma empresa portuária de máquinas, associou-se, de seguida a outros portugueses, entre os quais se destacam os irmãos Álvaro e Mário de Sousa, constituindo a Portuguese Corporation, uma empresa com muitos associados que detinha o monopólio da importação do carvão de Inglaterra, para além de cereais de várias origens [refira-se que os irmãos Sousa comprariam mais tarde o Banco Fonsecas, Santos e Viana, que tomaria mais tarde o nome de Banco Fonsecas e Burnay actualmente integrando o Banco Português do Investimento], e para cuja sociedade convidaram Agostinho Fernandes, tendo este declinado a proposta devido às suas «firmes convicções» de industrial.
A Algarve Exportador Limitada é fundada em 1920 por vários associados, entre os quais o próprio Agostinho Fernandes, nessa altura com trinta e quatro anos de idade e com estatuto de sócio maioritário. Inicialmente é uma empresa especializada na importação de material destinado à indústria de conservas, nomeadamente da folha de Flandres, matéria prima de base destinada ao embalamento da conserva de peixe em lata. Compra-se um cerco (uma embarcação pesqueira de tonelagem superior à traineira), mas o negócio revela-se desastroso. Agostinho Fernandes negoceia então o resto das outras acções da firma, e, adquirindo o total, compra a fábrica conserveira «Canelas» em Lagos, que se torna a fábrica n° 1 da Algarve Exportador Limitada. É já com sólida reputação como industrial do meio que o seu único proprietário e gerente, beneficiando de bons contactos estrangeiros, estabelece para a A.E.L uma parceria exclusiva de exportação para a Casa «Vimer», uma empresa alemã importadora de produtos conserveiros. Durante os anos de 1920 passa à exportação por venda directa, com representantes a agentes por todo o continente, viajando pela Europa e Médio-Oriente, tendo sido criados escritórios próprios em Bordéus, servindo a França e a Holanda, e em Londres, servindo grande parte dos países anglo-saxónicos, incluindo os Estados Unidos, ainda antes da Segunda Guerra Mundial.
Noutro quadrante, embora não menos importante, convém ainda referir que Agostinho Fernandes foi igualmente sócio-fundador da Contemporânea, da Portugália Editora e do Museu Malhoa, nas Caldas da Rainha (da autoria de Paulino Montês), entre outras múltiplas actividades, e patrono de alguns artistas, poetas e escritores da geração moderna, entre os quais convém apenas sumariamente destacar, a título do presente estudo, José de Almada Negreiros e António Varela. Veja-se a este respeito AMARO, Luis, Agostinho Fernandes, as Portugálias, pp-11-40, e CASTRO, Laura, Agostinho Fernandes (1886-1972) – Apontamentos para uma cronologia, pp.-103-135, in SANTOS, José da Cruz [coord.], Agostinho Fernandes – um industrial inovador, um coleccionador de arte, um homem de cultura – fotobiografia, Portugália Editora S.A., Lisboa, 2000.
A Algarve Exportador Lda. já possuía, antes da construção da fábrica de Matosinhos, outras fábricas localizadas estrategicamente nos principais centros portuários e conserveiros do país. A empresa foi progressivamente estabelecendo unidades fabris ou representações da firma pelos portos pesqueiros nacionais de maior relevância, através de dois sistemas: quer por compra e aquisição de fábricas que existiam anteriormente e procedendo a obras de remodelação, quer por aquisição dos terrenos estratégicos, com vista à elaboração de raiz de uma nova unidade fabril. Este modo de intervenção da empresa era característico das empresas de maior envergadura e foi determinante, numa época anterior à criação dos Planos Directores Municipais, para a organização e a caracterização urbana das principais cidades portuárias do país.
Para além de especialização na produção de conservas de peixe, esta empresa possuía frotas pesqueiras em vários portos [fig.181], funcionando ao mesmo tempo como armadora, o que era prática corrente dos grandes consórcios conserveiros nacionais, como era o caso também da Feu Y Hermanos, da Júdice Fialho, da Vasco da Gama ou ainda da Sebastião Ramires. Surgiam, por vezes, situações em que estas frotas eram afectas a um determinado porto pesqueiro, descarregando o pescado na lota sob coordenação de uma representação de vendas da empresa no mesmo local.
Deste modo, as frotas serviam para assegurar a venda do pescado nas lotas de cada porto, independentemente de sua empresa possuir – ou não –, uma unidade local. Era este o caso, por exemplo, da frota da A.E.L. de Portimão, que embora aí não possuísse nenhuma fábrica, negociava o pescado na lota, ou alugava a sua logística a outros consórcios 38.
Em 1939, a Algarve Exportador Limitada atingia um total de seis fábricas de conservas de peixe [fig.182] com características de unidades autónomas, distribuídas pelo centro, sul e norte do território nacional: Lisboa, Lagos [fig.184], Setúbal, Peniche [fig.183], Nazaré, e por fim Matosinhos, na procura de uma hegemonia do território nacional.
Tendo em conta a divisão dos centros conserveiros do território entre a Região Centro, a Região Norte e a Região Sul, é possível evidenciar a disposição estratégica da empresa, somente igualável em número, logística e dimensão aos outros grandes consórcios da época (Júdice Fialho, Feu y Hermanos, Lopes Coelho Dias e C.ª, Ramires): no caso da AEL, as unidades de Lisboa, Lagos, Peniche e Nazaré foram remodelações de fábricas anteriores, enquanto que nos casos de Setúbal e Matosinhos foram projectos de raiz, encontrando-se todas, actualmente, bastante degradadas ou em estados de ruína mais um menos avançados 39.
38 Por vezes, também se criavam sistemas de dependência entre os vários armadores e conserveiros, em convergência de interesses de negócio: no caso de Portimão, por exemplo, era prática corrente ver as embarcações da A.E.L. em doca seca nos seus estaleiros junto à fábrica Feu y Hermanos, no rio Arade, junto ao Convento de São Francisco. Já no caso de Lagos, Setúbal e Peniche, a empresa A.E.L. possuía frota e fábricas funcionando em conjunto. Também no caso de Matosinhos, a produção desta fábrica era assegurada por uma frota própria, de modo que o ritmo de actividade não era prejudicado nem dependia das numerosas flutuações da compra de pescado na lota a terceiros, como sucedia às empresas que não possuíam frota própria. Surgiam, assim, em cada grande porto pesqueiro da época, três situações distintas, não só no caso da AEL em particular, mas no quando geral dos grandes consórcios da indústria conserveira da época: 1) uma unidade fabril que comprava o pescado na lota a terceiros; 2) uma frota que vendia o pescado a terceiros; 3) uma ou várias unidades fabris da mesma empresa apoiadas directamente pela frota da mesma empresa e no mesmo local.
39 A segunda fábrica, de Lisboa, foi demolida em 1940, aquando das obras de aterro portuário pela Associação dos Portos de Lisboa. Refira-se ainda que, para além da fábrica de Matosinhos, a maior parte destas fábricas se encontram actualmente ou em ruína, ou em avançado estado de degradação; são estas:
Matosinhos (em estado de ruína);
Nazaré (desactivada);
Peniche (desactivada);
Lisboa (demolida);
Setúbal (adaptada como local de estacionamento fechado);
Lagos (demolida, embora com uma recente manutenção e subsequente aproveitamento do muro de delimitação da propriedade).
Se excluirmos a fábrica de Matosinhos, as cinco primeiras fábricas da empresa incluem-se na primeira fase da arquitectura conserveira. Estas são significativas, tanto pelas suas características formais e organização do espaço, assim como pelo seu sistema construtivo, de soluções anteriores à segunda geração, que se inicia no final dos Anos Trinta e se acentua nos anos Quarenta, na qual a fábrica de Matosinhos, da autoria de António Varela, surge como um modelo exemplar da aplicação dos princípios do funcionalismo moderno.
Fig.180 Lázaro Lozano, ilustração publicitária para a Algarve Exportador Limitada, 1926.
Fig.181 Aspecto de parte da frota pesqueira da empresa Algarve Exportador Limitada, sediada no porto de Leixões, [s.d.].
Fig.182 ilustração publicitária da Algarve Exportador Limitada para o mercado francófono, [s.d.]. Note‐se a indicação das seis unidades conserveiras da empresa: Lisboa; Setúbal; Lagos; Peniche; Nazareth e Matosinhos.
Note-se ainda a referência às principais marcas de conservas produzidas pra EAL:
NICE; NICETTE; CINE; FLORA; CORAL e TRIADE
Fig.183 Fábrica de Peniche da Algarve Exportador Limitada (Anos Vinte), com remodelações posteriores de António Varela nos anos 40 (foto de 1999)..
Fig.184 António Varela, planta de remodelação da fábrica da Algarve Exportador Limitada de Lagos, 1942
6.3.2. Enquadramento histórico do projecto
Em 1938 a Algarve Exportador Limitada beneficiava de uma larga fatia no mercado de exportação nacional. No que respeita à implantação da unidade de Matosinhos, não é estranho o facto desta cidade, importante centro conserveiro beneficiando da proximidade do porto de Leixões, o segundo porto do país, ter adquirido, em 1937, o estatuto de primeiro centro conserveiro do país40. A data do projecto para a unidade de Matosinhos da AEL, da autoria de António Varela, remonta a princípios de 1938 [fig.185-187], tendo sido aprovado em sessão de câmara a 9 de Abril do mesmo ano. Para avaliar da justeza de tal momento por parte da empresa, será preciso compreender que esta terá feito uma jogada de antecipação: a empresa tinha perfeito conhecimento da falta de peixe que se fazia sentir com bastante frequência no centro e no sul nos últimos anos, com uma migração dos bancos de sardinha cada vez mais para norte. Tais factos podem ser comprovados através de um artigo publicado em Agosto de 1941 numa publicação especializada do sector conserveiro, a Conservas, e intitulado Como progride a Indústria Conserveira do Norte.41
40 Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, “A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial”, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.48.
41 “Esta importante firma [a A.E.L.] já possue outras fábricas em Lisboa, Setúbal, Lagos, Peniche e Nazareth, mas a sua organização, uma das mais completes de Portugal, ressentia-se da falta de pesca de que sofreu o centro e Sul do país nos últimos anos e entenderam os seus dignos administradores que a solução prática estava em instalar-se também no Norte, sendo Matosinhos o lugar agraciado com a instalação da nova fábrica.” In Conservas, n° 68, Agosto de 1941.
Tal como se pode comprovar pelo tom do artigo, parece evidente que a firma terá actuado de forma estratégica. Convém mencionar a este respeito:
a) o tempo de planificação da empresa segundo uma estratégia preestabelecida para decidir uma implantação na região norte;
b) a aprovação do projecto numa região da juridição do Grémio dos Industriais de Conserves de Peixe do Norte, região essa que rivalizava economicamente com o centro e o sul, ao qual a Algarve Exportador Limitada era naturalmente identificada 42;
c) o tempo da mesma aprovação, respectivas autorizações e licenças diversas para ser posto em prática o plano preestabelecido, até serem activados os mecanismos de um processo de tal envergadura junto das autoridades autárquicas;
d) o tempo de encomenda de um projecto desta dimensão e o tempo necessário à sua elaboração por parte do projectista (neste caso, tratando-se de António Varela);
e) o tempo de emissão dos diversos alvarás para poder dar início à obra.
42 Será preciso acrescentar que Agostinho Fernandes assumia na época funções de Presidente do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro.
Em suma, formalizando toda um processo legal perante diversas entidades, a acção da firma Algarve Exportador Limitada enquadra-se na progressiva hegemonia da região norte, tendo procedido António Varela à elaboração do projecto de base em 1937. Deste modo, e com vista à compreensão do espaço urbano caracterizado pelo quarteirão composto pela Fábrica da Algarve Exportador Limitada / Rainha do Sado [fig.186], conviria ainda referir alguns dados importantes sobre a evolução histórica da expansão urbana de Matosinhos.
Fig.185 António Varela, perspectiva da AEL a partir da entrada de gaveto junto à praia Passos Manuel, 1938.
Fig. 187 – António Varela, Fábrica nº6 da AEL, perspectiva, 1938, in A Arquitectura Portuguesa e Cerâmicas e Edificação / Reunidas, nº 40 (Julho de 1938).
Fig. 186 – Quarteirão da Fábrica nº6 da AEL / Rainha do Sado, Matosinhos. Vista para sul, no cruzamento da Avenida da República com a Rua Heróis de França
O Legado do Invisível de Hugo Nazareth Fernandes
O Legado do “Invisível” 1 – A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL
O Legado do “Invisível” 2 – A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (continuação)
O Legado do “Invisível” 3 – A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (continuação)
O Legado do “Invisível” 4 – A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (continuação)
O Legado do “Invisível” 5 – A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (continuação)
O Legado do “Invisível” 6 – A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (continuação)
O LEGADO DO “INVISÍVEL” 7 – A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL (final)
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