O Algarve oriental. As vilas, o campo e o mar, Vol.2

CAP. II -Conservas com base na salga

Carminda Cavaco

CAP. II -CONSERVAS COM BASE NA SALGA

A expansão da nova indústria de conservas de peixe não anulou a antiga, baseada na salga (elementar ou através de salmouras), que no caso das espécies gordas passara a ser geralmente seguida da prensagem para eliminação do “azeite” (à moda catalã), assegurando-se assim maior duração e melhor qualidade as conservas.

Tal actividade beneficiou da abundância de peixe e de sal, da rapidez da preparação e da persistência da procura nos antigos mercados mediterrâneos. A segunda metade do século XIX caracterizou-se, pois, também, pelo grande desenvolvimento da indústria de salga, correlativamente com o da pesca. Nos finais do século, segundo o inquérito Industrial de 1890, contavam-se 6 armazéns de salga em Faro, 23 em Olhão, 8 em Tavira e 17 em Vila Real. As duas guerras mundiais incentivaram temporariamente a de sardinha e biqueirão, pela escassez e alto preço do azeite e da folha-de-flandres e pela expansão da procura – e consequente valorização – de todos os produtos alimentares. Entretanto, algumas mutações tendem a afirmar-se definitivamente no sector, de que as mais significativas são o desaparecimento do fabrico de atum salgado e de muxamas e a espectacular expansão da filetagem de biqueirão. No Sotavento, o grande centro da indústria de salga de pequenos pelágicos, designadamente de sardinha, foi sempre Olhão, mas, no que concerne o atum e o biqueirão, Vila Real conquistou uma excepcional posição, não só a escala sub-regional mas a de todo o Algarve e do país.

Desaparecimento das salgas de atum e decadência das de sardinha

A salga do atum foi outrora importante em Tavira e Vila Real, centros onde tinham lugar as principais Iotas do peixe fresco. Na temporada da pesca, as águas do Gilão, junto da cidade, e as do Guadiana, em frente da vila, ficavam tintas com o sangue do atum aí trabalhado enquanto alguns sectores da Ribeira e da Avenida eram ocupados pelos “estendidos” dos muxameiros. Os principais mercados da produção regional situavam-se ainda na segunda metade do século XIX, quando surgiram as conservas em azeite, à beira do Mediterrâneo, nomeadamente em Espanha, Itália e Grécia. A concorrência nas lotas desencadeada pelos industriais orientados para estas fez reduzir desde logo a actividade de salga e limitou-a quase só ao peixe de revés, considerado de pior qualidade e por isso sempre menos valorizado: os seus preços rondavam 1/4 dos alcançados pelo atum de direito e, embora tenham também aumentado pelo impacto da nova concorrência, mantiveram-se a níveis inferiores (243). A salga justificou, contudo, até à primeira guerra, a vinda sazonal de salgadores malteses e de muxameiros de Ayamonte para Vila Real.

Os dados estatísticos de que dispomos não nos permitem apreciar o alcance da concorrência da indústria de conserva em azeite. A evolução do número de salgas de Vila Real sugere, todavia, este declínio: 17 em 1890 mas somente 6 em 1917, embora a conjuntura lhes fosse então favorável. As exportações de 1907 e 1914, citadas respectivamente por F. X. d’Athaíde Oliveira (244) e por T. Cabreira (245), indicam apenas a continuação dos mercados: 569 toneladas de atum fresco e com sal para Espanha, através da alfandega de Vila Real, em 1907; e 1010 de peixe de Portugal para Espanha e 30 para Itália, em 1914.

O grande desenvolvimento da indústria de conservas em azeite no primeiro quartel do século XX e a pobreza das capturas nas armações de atum acentuaram a procura, pelos respectivos industriais, nas lotas de revés. Na de Vila Real adquiriram 55 p.100 do número de peixes em 1932, tendo cabido a maior empresa 37,5 p.100. A salga do atum reduzia-se assim, cada vez mais, a matéria-prima de qualidade inferior, o que eliminou muitas empresas de salga independentes das fábricas de conservas em azeite, apesar da continuidade da aceitação das muxamas algarvias nos mercados espanhóis, em especial no tempo das ceifas e vindimas, nos anos de escassa concorrência do bacalhau e de pescas pobres nas armações espanholas e de Marrocos.

Nos anos trinta tinham já desaparecido os salgadores malteses mas alguns espanhóis continuavam a deslocar-se sazonalmente a Vila Real, para salgar os subprodutos (barriga, pedacinhos, espinhetas, cabeças, etc.). O fechar do mercado espanhol durante a guerra civil, a perda geral da qualidade das conservas de atum em azeite nos mercados mundiais, a participação de novos industriais de Olhão e Portimão e a acentuada escassez da pesca regional contribuíram para o abandono total da salga, salvo no que respeita aos subprodutos mais pobres. Nos tradicionais centros de preparação deste peixe, designadamente em Vila Real, o atum salgado e as muxamas desapareceram também da ementa popular e do próprio mercado.

A salga de pequenos pelágicos teve evolução quase semelhante a do atum, com excepção da de biqueirão. No decurso do século XIX os seus grandes mercados situavam-se, de igual modo, nos países mediterrâneos, designadamente em Espanha, e o principal centro de laboração do Sotavento foi, desde a sua criação, Vila Real de Santo António.

A proibição de saída de peixe fresco ou a simples elevação dos correspondentes direitos atraía à vila pombalina alguns empresários espanhóis, que subiam os preços e consequentemente estimulavam o afluxo das capturas de quase todo o Algarve, mesmo do Barlavento, onde aqueles se mantinham sensivelmente mais baixos (50 a 80 p.100, nos fins do século XIX). Tal afluxo permitia, na viragem do século, o abastecimento de numerosas unidades fabris de salga, nalguns casos iniciativas de italianos e gregos, e associadas a de atum, e noutros integradas nas de conservas em molhos.

Depressa, porém, a indústria de salga de Vila Real foi ultrapassada pela de Olhão. Vários factores possibilitaram o seu desenvolvimento, de que destacamos a sua importância tradicional, que se deveu mais a quantidade do que a qualidade, a posição portuária, em relação com áreas marítimas de pesca de sardinha afamadas, e as capturas das armações e cercos, mesmo durante a temporada do atum. Interessou imigrantes do Sul de Itália e da Sicília (246), mas nada nos lembra a presença local de gregos, ao contrário de Vila Real.

O movimento da alfandega desta vila, em 1907, exemplifica o sentido da resultante do comércio de pequenos pelágicos industriais entre o Algarve e a Espanha, nos princípios do século (247): saíram 1.735t de sardinha fresca e com sal e 67 de peixe não especificado mas entraram somente 159 de peixe salgado e 0,9 de sardinha prensada. Outros mercados foram sendo entretanto conquistados. E 1914, Portugal exportou (248) 6.916 t de sardinha fresca e salgada, das quais 3.213 para Espanha, 1.503 para Itália, 824 para a Grécia e 670 para França: os salgadores do Sotavento algarvio, próximos dos mercados mediterrâneos, participaram largamente nestas exportações, embora sujeitando-se a concorrência de Espanha(249). Esta é contudo artificial, já que importava de Portugal largas quantidades de peixe fresco e salgado – em 1912 contaram-se, respectivamente, 6.305 t e 1.207 t (em barris), contra 675 t e 227 t negociadas em sentido inverso(250). A parte assegurada pelo Sotavento seguia por caminho-de-ferro (antes da primeira guerra Olhão fornecia algumas centenas de toneladas, embarcadas na sua estação ou em Faro) e por barco, pelo Guadiana.

As salgas de sardinha e biqueirão desenvolveram-se durante a guerra. Tanto em Olhão como em Vila Real assistiu-se a multiplicação do seu número: as novas iniciativas provieram de comerciantes, soldadores, marítimos, camponeses, pedreiros e militares e de empresários conserveiros; estas situam-se no mesmo centro (empresários de Olhão) ou noutros centros, como foi o caso dos de Vila Real, que muitas vezes elegeram Olhão, mas a procura de terrenos para a instalação de salgas foi no entanto também considerável em Vila Real.

O dinamismo destas salgas (3 dezenas em Olhão) prolongou-se pelo após-guerra, enquanto o governo italiano levantou fortes barreiras alfandegarias às importações de peixe salgado e conservado de proveniência espanhola, em resposta a igual medida do governo deste país, e pela elevação (a 25 p.100), em 1920, dos impostos portugueses de exportação de peixe fresco, com efeitos sensíveis nas relações com Espanha. Mas foi depois comprometido pela escassez da pesca de sardinha (a partir de 1926) e pelas dificuldades de pagamento dos negociantes importadores durante a grande crise. Os anos trinta marcaram, pois, definitivamente, a industria tradicional de salga, onde se registam acumulações de défices, que foram agravadas pela pequenez do mercado nacional, pela concorrência neste do bacalhau seco e do peixe fresco e salpicado, e pela extinção do mercado espanhol, cada vez mais satisfeito pela produção nacional. Embora a segunda guerra tenha valorizado de nova todas as conservas, as salgas de sardinha, biqueirão e cavala depressa se ressentiram das dificuldades de exportação para a Itália, a que se seguiu a concorrência vitoriosa de outros produtos alimentares nos diferentes mercados.

Desde então as salgas de sardinha limitam-se quase só ao peixe de qualidade inferior, mantendo-se excepcional e não com a tendência a substituição, no fabrico de anchovas, do biqueirão por sardinha, que se verificou nos primeiros anos setenta, perante a grande escassez daquele e a alta valorização dos filetes. Todavia, a evolução do número de unidades fabris e de operários (fig. 109) indica a persistência do ramo, nomeadamente em Vila Real, onde nos anos sessenta surgiram novas unidades. Esta persistência reflecte o interesse pela salga de biqueirão, sustentado par importantes clientes directos: as filetagens e, sobretudo, as fábricas de molhos. Alias, Vila Real polarizara modernamente, pelas grandes pescas de biqueirão que convergiam a sua Iota, a actividade de salga de alguns negociantes de peixe de Olhão, cujo negócio se estende a todo o país: e o caso, por exemplo, da Sociedade Pombalina de Salgas. Além disso, a estrutura dimensional (número de operários e capital circulante) deste ramo caracterizava-se em Olhão pelo grande número de empresas quase familiares, particularmente sensíveis a crise de falta de matéria-prima e ao envelhecimento dos empresários.

O quadro LX traduz a estrutura e a evolução do ramo nos últimos vinte anos.

2-Grande surto das filetagens de biqueirão

A salga de biqueirão e o fabrico de filetes anchovados não são actividades novas no Sotavento. A primeira é, por certo, tão antiga como a de sardinha, mas o biqueirão salgado ou em salmoura era um artigo pouco apreciado (“parecem palitos, muito secos e sem sabor”, dizia-se em Itália, no início da primeira guerra, a propósito da produção de Parodi), pelo que a maior parte foi desviada, no século XX, para o fabrico de filetes e de pasta. Na fábrica Santa Maria filetava-se biqueirão, segundo o método espanhol, desde a primeira guerra, tendo as mestras feito a sua aprendizagem no Norte de Espanha. No comércio mundial, onde os E.U.A. tem figurado como principal comprador de filetes, imperou a oferta espanhola até à guerra civil, a qual foi aproveitada pelos fabricantes portugueses para conquista de parte da sua clientela. Nos anos cinquenta, quando as grandes traineiras de Vila Real e Olhão passam a pescar intensamente biqueirão nas águas marroquinas, a produção de filetes activa-se. O preço do peixe ultrapassa desde então o da sardinha, pela procura dos industriais conserveiros (mesmo quando trabalham atum, pois é salgado em latas grandes e filetado apenas no Inverno), dos das filetagens e dos simples salgadores, que o revendem salgado as empresas anteriores, do Sotavento, do restante Algarve e da costa ocidental. Sendo pois a Iota de Vila Real o grande mercado do biqueirão, a ela convergem muitos compradores de Olhao, que abastecem este centre e expedem, por camião, quantidades vultosas para os do Barlavento, nomeadamente para Portimão. Mas tal intercambio não impediu que Vila Real tivesse sido, durante um quarto de século, o principal centro de filetagem e aquele onde foi menor o desemprego do operariado conserveiro nos períodos do defeso invernal da pesca da sardinha.

Salienta-se o pequeno número de filetagens de Vila Real, por o fabrico de anchovas ter sido quase monopolizado pelas empresas de conservas em molhos, e a recente redução do seu operariado, em resposta a extinção da salga doutros peixes, que quase sempre associaram, e a escassez de matéria-prima. Os mesmos factores agiram em Olhão e levaram muitos pequenos empresários, sem esperança de melhores dias, a aceitarem o convite oficial ao abandono da sua actividade. Tal reação, não verificada em Vila Real, pode explicar-se por as filetagens de Olhão serem empresarialmente independentes da indústria de molhos, enquanto naquela vila 3 pertencem a industriais conserveiros, com certa resistência a crise, e uma outra a um salgador e negociante de peixe, que compensa os défices do primeiro ramo com os lucros do último.

A escassez dos cardumes de biqueirão na costa algarvia e do sudoeste espanhol e a proibição efectiva da actividade das traineiras do Sotavento nas águas marroquinas (até 12 milhas da costa) afectou, sem dúvida, profundamente, a economia local e regional, pois uma parte da matéria-prima era trabalhada pelas operárias doutros centros fabris. As dificuldades foram apenas modestamente contornadas: os empresários da Sotalgarve formaram, em 1969, uma sociedade com outros de Ayamonte, no sentido de laborarem o biqueirão espanhol, abundante e mais barato, numa filetagem localizada naquele centro, para onde faziam deslocar diariamente um grupo de operárias de Vila Real, com menores exigências salariais do que as espanholas; outros industriais apoiaram a importação de biqueirão (controlada pelo I.P.C.P. e pelo Grémio dos industriais de Conservas) salgado (de Espanha) e congelado (da Itália e da Califórnia). A insuficiência de tais medidas traduziu-se, nos últimas anos, em notável escassez da produção, em parte substituída no mercado interno e no mercado francês por filetes (estendidos e com alcaparras) de outras variedades de peixe, nomeadamente de peixe agulhão, cuja pesca foi abundante na costa nortenha. Assiste-se deste modo a extinção duma actividade característica do Sotavento algarvio, trinta anos depois de haver desaparecido a do fabrico de muxamas, que assegurava individualidade industrial a Vila Real, e de sardinhas salgadas e estivadas, bastante concentrada em Olhão e sem importância comparável nos outros centros conserveiros do Barlavento.

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