Memórias do Ginjal - Elisabete Gonçalves

TÍTULO: Memórias do Ginjal

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AUTOR: Elizabete Gonçalves (coordenadora)

DATA EDIÇÃO: 2000

EDITORA: Centro de Arqueologia de Almada

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DESCRIÇÃO:  “Memórias do Ginjal” acaba por ser o aspecto mais visivel do projecto “Ginjalma”, desenvolvido desde 1994 pelo Centro de Arqueologia de Almada, com o objectivo de caracterizar o espaço do Cais de Ginjal, em Cacilhas, nos campos histórico, antropológico e social.
Esta obra editada em 2000 pelo Centro de Arqueologia de Almada foi coordenada por Elizabete Gonçalves e retrata toda a zona ribeirinha, graças ao testemunho de vários cacilhenses com ligações afectivas e profissionais ao Ginjal.

O texto que aqui reproduzimos refere-se às fábricas de conservas.

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As Fábricas de Conserva

Atraídas pela facilidade de acesso fluvial, instalaram-se no Ginjal algumas fábricas de conservas. Em 1906, há registo da fábrica de conservas, a A. Leão e Cª. que preparava frutas, aves, caça, peixe, marisco, doces, hortaliças e legumes. (37)

(37) Boletim de Trabalho Industrial 1906 nº2

Em 1939 registam-se outras duas unidades conserveiras no cais, a Gonzalez & Nascimento e a La Paloma. (38)

(38) COSTA Avelino Poole da (1946) Inquérito às Indústrias de Vazio das Fábricas de Peixe e à Indústria de Latoaria Mecânica. 

A primeira, de menor dimensão, era mais propriamente um local de estiva onde se preparava o biqueirão, peixe a que ainda hoje se chama anchova. Transportado em buques e traineiras, aqui era salgado em tanques de cimento abertos no chão, onde tinha de permanecer pelo menos seis meses, após o que era vendido para as fábricas da região.

Nas entrevistas efectuadas encontram-se ainda referencias à estiva do Mota e à fábrica do Moreira – “antes houve uma fábrica de conservas de alimentos de um galego chamado Moreira. Eu lembro-me quando era miúdo, o meu pai às vezes trazia uns alimentos para casa que ele lhe dava. (…) Era ervilhas, carnes, tudo o que é bom, em lata. (A.M.C.).

Esta poderia tratar-se da Sociedade Mercantil Luzo-Brazileira, Limitada, já que Moreira era o apelido de um dos sócios que assinou o novo pacto social da empresa em 1921. O registo em notário assinala então que “ a sociedade tem a sua sede e domicilio na sua fábrica situada no logar do Ginjal, Concelho de Almada (…) tendo por objecto o fabrico de conservas, e o comércio respectivo, podendo dedicar-se a todo o demais comércio e indústria que lhe convenha e delibere explorar, excluindo o bancário” . (39)

(39) Gazeta de Almada 18/09/1921 pp2-3

Mas a unidade que, neste campo, mais marca o quotidiano do Ginjal é, sem margem para dúvidas, a La Paloma – “Junto à fábrica La Paloma, o buque, que viera da Ribeira de Lisboa, descarregava sardinha. As varinas, de canastra à cabeça, mão na ilharga, andavam cá e lá no transporte do peixe. (40)

(40) Correia, Romeu 1989 – Cais do Ginjal. Lisboa. Editorial Notícias p.29

La Paloma produzia conservas de peixe e empregava muitas mulheres de Almada, a tempo inteiro ou sazonalmente. A sua contratação começou por ser feita no Algarve ou por transferência de outra fábrica que o mesmo proprietário detinha em Peniche. Daí as penicheiras, referidas por Romeu Correia (livro Tritão) – “ Mãe e filha vieram de Peniche e viviam ali num barracão, paredes meias com a fábrica, talvez uma dezena de operárias, encamadas naquele exíguo pardieiro, como sardinhas em lata”. (41)

(41) Correia, Romeu 1989 – Cais do Ginjal. Lisboa. Editorial Notícias p.29

“Eram mulheres já feitas àquele trabalho, à industria de conservas. E depois, como não tinham casa, a fábrica mesmo alugou aquele casario e fez quartos. Era um casarão grande e ele fez quartos para aquelas mulheres que traziam filhos (…). Quem não trazia filhos também tinha direito aos seus quartos, porque eu lembro-me quando era miúda a minha mãe foi para lá e aquilo (…) era uma tarimba ao comprimento da casa toda (…), cada qual tinha o seu colchão e à noite dormíamos todos em cima daquela tarimba (…) (E.C.)

A fábrica exportava conservas para a Alemanha, país que durante a IIª Grande Guerra conseguiu furar o bloqueio aliado fornecendo ferro, aço e produtos químicos em troca do abastecimento de, por exemplo volfrâmio e conservas. Daí que aumentasse o trabalho no Ginjal, onde as operárias associavam essa carga suplementar ao abastecimento das tropas. O sistema de fabrico incluía até as suas próprias latas: “vinha uma fragata e trazia fardos de folha (…) já com os desenhos por onde haviam de cortar, com o tampo, com as tiras” (E.C.). O peixe vinha de Lisboa ou directamente de Peniche, em traineiras que as varinas descarregavam enquanto as mulheres de Almada eram chamadas: “apitavam UHHHH… e as mulheres que não tinham emprego iam todas para lá trabalhar” (A.M.C.). Contudo, o emprego na fábrica não dispensava a procura de outras ocupações nos armazéns e oficinas do cais, uma vez que esta lhe proporcionava apenas trabalho sazonal – “ Na época da sardinha, quando ela começa, nós tínhamos por ano dois ou três meses do “defeso” (…). Os barcos não iam ao mar. Agora vão sempre, mas dantes não iam, porque na época que o peixe estava para desovar o peixe tinha que se fazer. Era aquele tempo todo, e então os barcos pouco iam ao mar ou nada” (E.C.).

As operárias estavam alinhadas junto de balcões para onde despejavam o peixe. “Depois estava uma mulher a pôr sal por cima do peixe, pois havia peixe que escorregava (…). Então a gente descabeçava para os cestos… era giro. Depois dali ia para os tanques, descabeçado com a tripa de fora (…). A sardinha fica completamente inteira, só sai a cabeça. Mas aquilo é vira, vira…aquilo não é estar a olhar para a sardinha para a cortar, aquilo a ente ganha uma prática”. Já nas mãos dos homens, o peixe era colocado em salmoura por um período de tempo que dependia do seu tamanho. Daí “ o peixe era engrelhado (…) e ia para os cofres (…). Dentro do “cofre” havia um ramo de louro, um ramo grande, muito grande mesmo, e o carro entrava e os homens fechavam aquelas portas, com aquelas molas de torcer naqueles parafusos grossos e apertavam. Ali aquilo tinha um relógio e o homem da caldeira, que era quem trabalhava com isso, regulava o tempo do peixe para ser cozido a vapor” (E.C.). O peixe subia depois do piso superior para ser enlatado, mas voltava para o banho em azeite – “Punha-se na palma da mão, depois metíamos ali dentro e vinha a lata toda cheia de azeite. A gente punha ali e está outra a puxar para arrumar em pilhas, fica tudo em pilhas. A gente chega a ter azeite nos peitos, a roupa toda encharcada em azeite (…). Fica ali umas horas a escorrer o azeite para infiltrar no peixe. Depois disso vai para a cravadeira, está um homem a cravar” (E.C.) Por fim as “visitadeiras” fiscalizam a lata, que se tiver ar tem de ser cheia de novo.

Aprendizes limpam e encaixotam as latas que se seguem, conforme os lotes, para venda nacional ou exportação. EM 1947, por exemplo, são exportados mensalmente dos centros produtores de Lisboa e Setúbal cerca de 5000 000kg de peixe em conserva para destinos muito diversos na Europa, América e África, o que reflecte uma época de grande dinamismo da indústria conserveira em Portugal (42).

42 Conservas de Peixe, revista mensal. Ano II, nº19, Outubro de 1947, p. 13.

Os restos do peixe também não se perdiam e eram aproveitados na fábrica – “o peixe cru, as cabeças, as tripas do peixe, iam para uma prensa e aquilo era tudo muito espremido. Depois tinha um depósito no chão, feito mesmo no chão, para onde o óleo corria. Eles aproveitavam aquele óleo, aquele sangue era separado do óleo, tá a perceber, aproveitavam o óleo e o sangue ia fora” (E.C.). O óleo era usado para fabricar sabão numa oficina própria enquanto o resto, o “guano”, era utilizado na agricultura – “vinham carroças buscar o guano (…) para pôr na terra. Hoje põem adubos, naquela altura iam lá quando o guano estivesse seco (…) o tal peixe já seco”; “E então vinha gente da Costa da Caparica com aquelas carroças, carrocinhas , buscar isso… Era um cheiro, um cheiro que não queira saber! (…) O burro não tinha força para puxar a carroça, às vezes a carroça tombava… eh pá, era aquela porcaria daquele peixe todo ali, depois ficávamos ali com um cheiro em casa! Então de inverno! (…) Às vezes era assim uma “saraivada” de 30 ou 40 burros. Pareciam um comboio” (A.R. e J.R.)

Elisabete Gonçalves «Coordenadora» – Memórias do Ginjal – Centro de Arqueologia de Almada – Almada – 2000

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