Leal, Santos & C. - A história da fábrica através do seu biscoito : produção, venda, consumo e musealização
A Leal Santos & C. foi fundada em 9 de fevereiro de 1889 em Lisboa, Portugal, como uma sociedade entre Francisco Marques Leal Pancada (sócio comanditário), Moysés Marcondes (sócio comanditário), José Antônio Juca Santos (sócio comandito) e Antônio Marques Leal Pancada (sócio comandito), com capital inicial de duzentos contos de réis.
Segundo a escritura30 da sociedade, a gerência da filial brasileira (Rio Grande) ficaria sob responsabilidade de Antônio e a de Lisboa sob a gerência de José Antônio Juca Santos.
Um dos locais transitados pela família Leal Santos e essencial para a constituição da fábrica, foi Portugal. A relação da fábrica Leal, Santos & C. com o país luso não se restringe ao fato de esta ser a terra natal de Francisco Pancada e de outros sócios. A empresa iniciou na capital da coroa portuguesa em 1889: Lisboa. Nesse caso, a fábrica possui uma característica marcante que merece ser analisada de forma mais aprofundada: ser uma empresa luso-brasileira no final do século XIX.
Analisando a arquitetura da indústria conserveira em Matosinhos, Portugal, Hugo Fernandes (2013) aponta algumas características tanto do surgimento do setor, como do seu desenvolvimento vinculado à arquitetura em Portugal. Fernandes (2013) salienta, a partir das leituras de Hernâni de Barros Bernardo (1952), algumas fases da indústria conserveira portuguesa e estas divergem, principalmente, nas formas de conservação (uso de sal, fumagem e molhos) e no uso de tecnologias. No caso, a Leal, Santos & C. está enquadrada na quarta fase (das seis identificadas por Bernardo) que inicia no XIX e perdura até o XX, utilizando para a confecção das conservas: azeite, óleos ou molhos (FERNANDES, 2013, p.3).
Como também aponta Fernandes (2013), muitas fábricas de conservas de peixe no século XIX não ficavam restritas ao pescado. Produziam também conservas de vários tipos: carnes, legumes e frutas cristalizadas (FERNANDES, 2013). Esse era o caso da Leal, Santos & C. que, apesar de desconhecer o número e variedade específica de produtos fabricados por ela, no Inquérito Industrial de 1890 é apresentada como fábrica de conservas alimentícias de vários tipos. Essa característica perdurou na história da fábrica, inclusive na filial brasileira.
Além da Leal, Santos & C., outras três fábricas de conservas foram encontradas em Lisboa no Inquérito Industrial de 1890, todas localizadas no 4º bairro (zona ocidental – Alcântara): Emílio Luiz Rollet (4º bairro), Companhia Nacional de Conservas (4º bairro) e Companhia de Conservas Lisbonense (4º bairro).
Segundo Renato Pistola, em seu trabalho sobre a industrialização de Alcântara:
[…] as conservas, outra vertente da indústria alimentar, não terão em Alcântara a importância que vieram a ter noutros pontos do País. Existiam, ainda assim, algumas unidades. A mais importante era a Companhia Nacional de Conservas, […] transformavam a matéria-prima que adquiria no mercado nacional, como frutas de todas as qualidades, peixe, carne de porco, vaca, vitela e carneiro, tomates, caça e aves, azeitonas, legumes e hortaliças, azeite e vinagre. Produzia peixe enlatado, frutas em compotas e marmelada, carnes de porco, vaca, vitela e carneiro, tomates em massa e puré, caça e aves, azeitonas, legumes e hortaliças que exportava, essencialmente, para o Brasil, para França, para Inglaterra, para África, e para Espanha (PISTOLA, 2009, p. 61).
Em uma primeira análise verifica-se que no que corresponde ao capital (fixo e circulante) a Companhia Nacional de Conservas é significantemente maior, com capital fixo de 350:000$000 (trezentos e cinquenta contos de réis) frente à Leal Santos & C. com 50:000$000 (cinquenta contos de réis) e a Emílio Rollet com 20:000$00 (vinte contos de réis). Segundo a escritura de abertura da fábrica e da sociedade Leal, Santos & C, o capital inicialmente investido pelos quatro sócios foi de 200:000$000, dividido nas seguintes frações: José António Juca Santos cem contos de reis, António Marques Leal Pancada cinquenta contos de reis e Francisco Marques Leal Pancada e Moysés Marcondes de Sá cada um com 25 contos de réis44.
No que tange aos operários das respectivas fábricas, percebe-se que o total de funcionários (ambos os sexos) é significantemente menor no caso da Leal Santos, com um total de 36. A Companhia Nacional de Conservas que possui o capital mais elevado, apresenta 62 operários e a fábrica de Emílio Rollet com o número mais relevante de 160 operários.
Entretanto, apesar da grande diferença entre a Leal Santos e a empresa de Emílio Rollet em número de operários, é preciso destacar que os 160 desta última equivalem a apenas 7,7% (aproximadamente) do que possuía a Fábrica Lisbonense de Tabacos, em Santa Apolónia, com 2067 operários, sendo esta a fábrica com maior número no Inquérito Industrial (ALCÂNTARA, 2016).
O quadro da Leal Santos é relativamente equilibrado no que tange à distribuição de sexos, correspondendo o sexo feminino a 52,7% e o masculino 47,2% – incluindo operários de 12 a 16 anos e maiores do que 16. Certo equilíbrio também ocorre na Companhia Nacional de conservas, dos 62 operários 59,6% são do sexo masculino e 40,4% do feminino. Esse já não é o cenário encontrado no caso da empresa de Rollet, onde as operárias correspondem a 87,5% do quadro total, frente aos 12, 5% do sexo masculino. Outro caso interessante é que se na Leal Santos & C e na Companhia Nacional o cargo de mestre e contramestre era exclusivo no sexo masculino, na firma Rollet o número é igual nos dois sexos, tendo um homem (setor de solda) e uma mulher (preparação de sardinha) ocupando o cargo de mestre e contramestre.
Ainda sobre os operários do setor de conservas, a Leal Santos & C. não apresenta divisão de função no quadro do Inquérito Industrial, aparecendo apenas o operário identificado apenas como “trabalhador”. Nas outras duas empresas há uma setorização maior do trabalho, a Emílio Rollet conta com soldador, preparador de sardinha e recortador de folha, e a Companhia Nacional de Conservas com o trabalho de funileiro e trabalhador. Em face dessa diferença, suponho que, tendo a Emílio Rollet um maior número de operários (160), a empresa consiga ter funcionários mais distribuídos dentro de suas funções, exercendo atividades mais específicas dentro da empresa. Já a Companhia Nacional com os 62 funcionários, os divide em dois: funileiro e trabalhador. O caso da Leal, Santos & C. com 36 operários no total, possuía, provavelmente, trabalhadores que exerciam diversas funções dentro da fábrica, sem uma distribuição oficial de setor ou função como as demais.
Dos trinta e seis operários da Leal Santos, apenas três eram estrangeiros, sendo quase todos os trabalhadores portugueses. E dos 17 operários masculinos (todos maiores de 16 anos), 10 foram identificados como “sabem ler”, e das 19 operárias (sendo duas com idade de 12 a 16 anos) apenas 5 sabiam ler, e todas eram maiores de 16 anos. Sobre a nacionalidade dos operários das outras fábricas, os dados não estão completos, dificultando uma comparação mais completa sobre esse aspecto. O levantamento do Inquérito Industrial ainda apresenta outros dados, relativos à presença da tecnologia das indústrias portuguesas, demonstrando a quantidade e tipo de maquinário existente em cada uma das fábricas abordadas. Entretanto, a Leal, Santos & C. não é citada em nenhuma dessas tabelas, já a Emílio Rollet e a Companhia Nacional de Conservas aparecem contendo alguns exemplares de máquinas a vapor e a gás, tendo a Rollet uma máquina a gás, e a Companhia Nacional, duas máquinas a vapor.
Pressuponho que a ausência da Leal Santos nessa tabela ocorra em decorrência de um dos casos: formulário não preenchido nesse quesito, ou, a mais provável, a ausência de maquinário na fábrica.
Essa última hipótese também pode ser considerada ao pensar que o tamanho da Leal, Santos & C. nesse período era relativamente pequeno em termos de importância fabril e de produção. Esse fato pode ser constatado no quesito 7 do Inquérito Industrial, tabela nomeada “Produção no ano de 1889 e mercados de consumo”, dados presentes na Tabela 2:
A quantidade de latas de conservas produzidas em 1889 pela Leal Santos é bem menor do que as outras duas fábricas, apenas a produção de Caça e aves da Companhia Nacional de Conservas tem um número menor de produção do que o geral da Leal, Santos & C.
Entretanto, cabe salientar que apesar do número de 25 mil conservas em 1889, levando em consideração que a fábrica é fundada em fevereiro do mesmo ano, o valor arrecadado em réis é bem similar ao das demais empresas, e exportando para Brasil, África, Inglaterra e Argentina. Tais dados levam a crer que, primeiramente, é possível que o valor das conservas seja bem superior do que as das outras empresas ou, ainda, que esse valor total de lucro pode ter incluído a fábrica brasileira, que já estava funcionando a essa altura.
A escassez de informações relativas aos dados coletados e dispostos no Inquérito Industrial, bem como a ausência de outros dados sobre a Leal Santos & C. em Portugal, dificulta a conclusão de algumas “pontas soltas” da pesquisa. O que percebo, a partir das fontes pesquisadas e dados encontrados – ou a ausência deles –, é que o espaço ocupado pela fábrica nesse período era relativamente de baixa relevância em Portugal. Para essa hipótese penso em algumas questões que me deparei no decorrer da investigação em diversos arquivos históricos portugueses e nas bibliografias sobre o tema. É possível que o grande foco da Leal, Santos & C. nesse período fosse a instalação e prosperidade da sua filial no Brasil, pois tanto em termos documentais quanto de referência na própria imprensa local (mesmo em âmbito nacional), a fábrica brasileira é constantemente referenciada nos jornais, conforme será abordado no próximo capítulo, em como há uma maior quantidade de propaganda dos seus produtos.
Outro aspecto passível de interpretação é que se por um lado a Leal, Santos & C. participou de inúmeras exposições industriais no Brasil e no exterior, representando a indústria brasileira, sua prosperidade e progresso, sendo premiada em várias das suas participações; nas exposições industriais do final do XIX em Portugal, não há nenhum
registro de sua participação, como é o caso da Exposição Industrial Portuguesa de 1893.
A exposição pode ser compreendida, dentro do que já foi aqui apresentado pela fala de Amado Mendes (1999), como uma das políticas de incentivo ao setor industrial do período da Regeneração portuguesa. A exposição aconteceu no Mosteiro dos Jerônimos e era também parte do projeto do Museu Industrial e Comercial de Lisboa, iniciativa de Joaquim Tello. O evento foi marcante para o período industrial de Lisboa, e seu catálogo está disponível para
pesquisa no arquivo do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. A Leal, Santos & C. não aparece na lista de participantes, mas também não encontrei a Companhia Nacional de Conservas e nem a Emílio Rollet. O setor conserveiro estava, naquele momento, representado na exposição pela Companhia de Conservas Lisbonense, referenciado na primeira tabela do Inquérito Industrial de 1890, por Costa & Carvalho de Setúbal, Manuel Pereira Gomes de Lisboa, Gonçalves e Carvalho de Elvas e Lino & C. de Lisboa.
Nesse caso, apesar de algumas questões ainda estarem em aberto e não ter sido possível concluir o processo de instalação e fechamento da matriz lusitana da Leal, Santos &
C., ou a relação entre matriz e filial durante esse período, o confronto dos cenários português e brasileiro com relação a Leal, Santos & C., aponta para novas indagações que, espero, incentivem outras pesquisas no âmbito industrial ou da trajetória da Leal Santos. A própria ausência de bibliografia sobre a presença da fábrica, e a ausência da Leal Santos em outros inquéritos e documentos do período que abordem a indústria, serve também como indicativo para a sua pequena influência no cenário industrial português do período.