Manuel José Neto & Feliciano António da Rocha e Manuel José Neto - excerto SETÚBAL ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA OPERÁRIA 1880-1930, de Maria da Conceição Quintas.
“Foi também um francês quem, em virtude de terem rareado os cardumes de sardinha na costa bretã, veio estabelecer-se em Setúbal em 1880, o que provocou o aparecimento de fábricas congéneres nos centros piscatórios portugueses e espanhóis, apesar de em Vila Real de Santo António se haver montado, já em 1865, uma fábrica de atum em azeite”.
Esta referência, do Professor Ferreira da Costa da Universidade Técnica de Lisboa, esclarece-nos sobre a preferência dos industriais franceses pela cidade de Setúbal, para a instalação das suas fábricas de conservas de sardinha em Portugal, embora não ignore a existência de empresas nacionais que já se dedicavam à conservação do peixe em azeite; e como exemplo cita o caso da conserva de atum, que já havia tempo se fazia no Algarve.
Acrescente-se, contudo, que em Setúbal, já em 1854, iniciou o seu funcionamento uma fábrica de conservas que enlatava peixe utilizando o método Appert. Esta afirmação foi polémica entre os estudiosos do tema, facto que nos levou a tentar saber, junto dos documentos existentes no Arquivo Distrital de Setúbal e através da análise dos escritos do início do século XX, qual a verdade sobre o advento da indústria de conservas de peixe em Portugal e, mais concretamente, na cidade de Setúbal.
Os principais estudos, sobre o processo relacionado com o nascimento e desenvolvimento da indústria conserveira em Portugal, consideraram como primeiro pólo significativo no nosso país a unidade estabelecida pelo industrial de Lorient F. Deloryno ano de 1880 em Setúbal num terreno junto à doca, pertença de Maria Leonor de Jesus Meneses Barreto que lho arrendou através de contrato realizado, no dia 19 de Novembro de 1880, entre o médico Manuel Francisco de Paula Barreto, filho da proprietária e Armand Houé em representação de F. Delory.
Guilherme Faria diz-nos que este industrial veio estabelecer-se em Setúbal “quando já outros fabricantes franceses o haviam precedido em Espanha”, ao definirem-se os aspectos da crise sardinheira francesa, que se prolongou de 1880 a 1888.
A França possuía então 200 fábricas, reduzidas em 1886, por efeito da crise, a 100.
E considera como ponto assente ter sido F. Delory o pioneiro da indústria de conserva de sardinha em Portugal. Mas tal não corresponde à verdade histórica, como nos foi dado verificar.
Ao pesquisar no Fundo Almeida Carvalho, existente no Arquivo Distrital de Setúbal, encontrámos elementos preciosos para o desbloqueio do impasse criado na primeira metade do século XX, quando se tentou localizar, no tempo e no espaço, a primeira empresa que produziu conserva de sardinhas, utilizando o método Appert.
Almeida Carvalho informa-nos que, em 1854, Manuel José Neto, “homem de negócio, trabalhador e empreendedor”, associou-se com Feliciano António da Rocha, também dedicado ao comércio, e ambos estabeleceram em Setúbal, e numa casa na travessa do Postigo da Pedra, nos 3, 5, 5A e 5B, uma fábrica de conservas de sardinha, contida em caixas de lata, sendo o género aplicado ao consumo do país e à exportação para o estrangeiro – América do Sul e África do Norte.
A sociedade, porém, dissolveu-se em fim desse mesmo ano. Manuel José Neto foi então estabelecer uma sua fábrica em uma casa na Rua da Praia, próxima da ponte do Livramento, do lado do norte e quase junto ao esteiro, ou ribeiro, da mesma denominação. Em 1858 foi impressa, na tipografia do Curioso, a tabela de preços dos seus produtos.
“Manuel José Netto, com Fábrica de Conservas Alimentícias na Praia de Setúbal nº5, encarrega-se de qualquer encommenda das mesmas conservas, tanto para o ultramar, como para o continente do Reino, responsabelisando-se pela sua conservação, ainda que seja por longa viagem: em cujo estabelecimento prepara os seguintes peixes pelos preços abaixo marcados, além dos quais fará um abatimento de a por cento conforme à quantidade que lhe for comprada.
N.B. Além das conservas em Azeite acima mencionadas se prepararão outras com moura em barris, cujos preços serão muito commodos.” Setubal: Typ. do Curioso, em Palhaes:1858
FONTE: ADS, FAC, pasta 18/1.
“Feliciano António da Rocha estabeleceu a sua fábrica, também na Rua da Praia, mas numa casa, que fazia esquina do lado poente do Largo da Anunciada, tendo frente para este largo e para a mesma Rua da Praia […] A fábrica de Feliciano António da Rocha fechou-se por 1876, em resultado de terem escasseado os lucros e aumentado os prejuízos.
A fábrica de Manuel José Netocontinuou funcionando, com mais ou menos dificuldades e ainda hoje, em 1894 funciona, em uma casa nº 32 de polícia, na Ladeira de S. Sebastião, para onde de há tempo se transferira”. Ainda em 1855, também, segundo Almeida Carvalho, “Manuel José Neto começou fazendo progressos e obtendo bons lucros […], próximo à ponte do Livramento ou do Carmo”.
No entanto, os negócios não eram florescentes. Em 1867, em escritura assinada no notário, Manuel José Neto declara-se devedor de 2 800$000 réis ao negociante de vinhos desta praça, José Inácio Gomes. Este dinheiro, diz, destinar-se-ia ao desenvolvimento da sua “fábrica de conservas alimentícias estabelecida na Rua da Praia desta cidade”.
Mas em 1879, Manuel José Neto arrendou as instalações da fábrica a Joseph Dallot, de nacionalidade francesa, mas residente em Setúbal, para instalação de um teatro.
Verificamos, assim, que Guilherme Faria desconhecia estes documentos quando afirmava ser “frequente ouvir citar vagamente ter sido, na nossa cidade, Manuel José Neto o precursor do fabrico de sardinhas enlatadas em azeite. Julgo [Guilherme Faria] ter tirado o caso a limpo e poder afirmar que a primazia desse fabrico cabe, de facto, ao industrial Delory[…]” , quando os seus contemporâneos mantinham a dúvida, baseados em documentos já então conhecidos.
Era o caso do nº 1181 do Catálogo dos produtos da agricultura e indústria portuguesa mandados à exposição universal de Paris em 1855, onde Feliciano António da Rocha é referido por ter obtido uma menção honrosa pelas suas conservas, como foi anunciado pelo Setubalense de 2 de Dezembro de 1855 (p. 3).
Neste artigo pode ler-se claramente que o prémio obtido por Feliciano Rocha fora atribuído às suas “conservas de peixe em azeite […], baseadas no método Appert, que pela primeira vez se aplica em Portugal”.
Também Vincenzo Floridi refere, em 1968, o prémio conseguido por portugueses em 1855, em exposições nacionais e estrangeiras:
“Setúbal, comunque, non era nuova a questo genere di tentativi, anche se poi essi non avevano avuto alcun seguito: così, nel 1855, all’Esposizione Universal di Parigi erano state premiate le conserve di pesce sott’olio preparate con il processo Appert da F. A. da Rocha, e, dieci anni più tardi, un altro setubalense, certo M. J. Neto, aveva aperto un opificio specializzato nella produzione conserviera di pagelli, dentici e naselli, che venivano esportati principalmente in Brasile […]”
e salienta a importância de Setúbal no evolver do processo conserveiro em Portugal.
Não podemos deixar de referir ainda que o próprio Feliciano A. Rocha torna a receber prémios, como por exemplo uma medalha na classe 3, secção B, na Exposição Universal de Londres, no ano de 1862.
“Anda ligado ao nome de Manuel José Neto o aspecto um tanto pitoresco da cozedura (digamos assim) do peixe, em forno de padaria. Assinale-se porém que muitos industriais portugueses e durante anos usaram este processo, cozendo, ou antes, estufando as sardinhas em pequenos fornos que tinham nas suas fábricas”.