O modelo industrial também chegaria à vila piscatória através de uma nova tecnologia de pesca, a das “armações à Valenciana”, com modelos organizacionais e ritmos de trabalho típicos das empresas industriais, empregando uma mão-de-obra assalariada, pouco qualificada e paga num sistema misto de salário fixo e de uma percentagem no produto bruto da pesca, a que se somavam ainda, como pagamentos adicionais: as “rodadas”, pagas aos homens que transportavam o peixe nas barcas para os locais de venda, e o “maquino”, ou porção de peixe para alimentação do pescador. A maioria das armações à Valenciana armava apenas durante metade do ano, nos meses mais livres de vendavais; algumas, no entanto, pescavam todo o ano, beneficiando dum maior esforço de pesca em troco da elevada probabilidade de sofrer danos devido aos temporais. Estas armações à Valenciana davam sequência às antigas armações redondas, sendo ambos aparelhos de pesca fixos, localizados muito próximo da costa, encaminhando os cardumes para uma armadilha, da qual o peixe era depois recolhido pelos pescadores. Apesar das semelhanças, as armações à Valenciana são mais complexas e mais eficientes na captura dos cardumes. Outra grande diferença entre ambas era a do modelo empresarial que lhes estava associado. As velhas armações regiam-se pelo modelo do pré-liberal, sendo a pesca exercida por armadores-mandadores, que podiam ser co-proprietários de uma mesma armação, para a qual contribuíam com componentes parciais da mesma (redes); estes proprietários ou co-proprietários das armações redondas eram também eles pescadores, participantes activos na faina da pesca: tratava-se de um modelo com raízes nas corporações medievais. Já as armações valencianas desenvolviam-se num modelo claramente capitalista, promovidas por sociedades por quotas ou anónimas, de investidores muitas vezes absentistas. O trabalho nas armações, sendo embora trabalho piscatório, distancia-se do modelo do pescador ou da companha de pesca que se deslocam em barcos para pesqueiros mais ou menos longínquos. Cada companha de uma armação à Valenciana (cerca de 40 pessoas), vivia permanentemente no arraial ou no calhau da armação 11, dormindo e tomando as refeições ali, devendo participar duas vezes ao dia no levantamento do peixe aprisionado nas redes, que se situavam muito próximo, junto à costa. Era um trabalho que exigia poucas qualificações, constando de trabalho braçal de transporte de materiais e levantamento das redes. A “liberdade” de estabelecimento de empresa, introduzida pelo liberalismo, também se traduziu, na ocupação intensiva da costa sesimbrense, chegando a existir 23 destas armações concessionadas a empresas de Sesimbra – enquanto que as armações redondas conhecidas não tinham ultrapassado o número de sete, que era quantas existiam em 1849.
6 O Jornal de Sesimbra nº 5 de 10 de Dezembro de 1899; nesta data decidem contactar, em Setúbal, o accionista Leon Delpeut, de quem obtêm promessa de receber trabalho, segundo o jornal A Federação de 17 de Dezembro de 1899.
7 Numerosas referências em quase toda a imprensa de Lisboa, durante os dias subsequentes.
8 Jornal A Vanguarda de 11 Junho 1907.
9 Jornal A Vanguarda de 15 de Março de 1908.
10 Jornal A Vanguarda de 27 de Março de 1909
O súbito crescimento das armações valencianas ocupava pescadores sesimbrenses, mas também atraiu a Sesimbra muitos trabalhadores de fora da Vila – camponeses da freguesia rural que ocupavam parte do ano nesta actividade, mas igualmente de fora do concelho: “malteses” e “adventícios”, através de migrações internas muito semelhantes às que caracterizavam alguns trabalhos agrícolas, como as ceifas do trigo ou as mondas do arroz, por exemplo.
11 O “arraial” consistia numa zona mista de edifícios e pátio que servia de dormitório e de armazém para os apetrechos e embarcações, e localizavam-se ou na vila de Sesimbra, ou no Portinho da Arrábida; o “calhau” consistia de instalações para os mesmos fins, mas de natureza mais precária, alcandoradas nas encostas rochosas, na proximidade das respectivas armações.
A instalação da primeira fábrica de conservas em Sesimbra – certamente atraída pela abundância e qualidade da sardinha que aqui se pescava – contribuiu para o aumento do número de armações à Valenciana, mas também o movimento inverso se verificou, com a maior abundância de sardinha a atrair novas fábricas. A primeira grande greve dos pescadores das armações valencianas dá-se em Novembro de 1896. Apesar de já estar constituída em Sesimbra a Associação de Classe dos pescadores das armações, a greve declarada em 19 de Novembro de 1896 teve uma natureza espontânea: a companha de uma armação declarou em greve de solidariedade para com três companheiros despedidos, e até à sua readmissão. Esta acção, porém, não estava desligada da propaganda operária socialista: os três pescadores foram despedidos pelo mandador Manuel Rodrigues do Giro, da Sociedade de Pescarias Lisbonense, por terem começado a levantar “problemas”, ou seja, a pronunciar-se activamente sobre os direitos que assistiam à classe. 12 Outros conflitos laborais dos pescadores de Sesimbra ocorreram em 3 de Fevereiro de 1897 (manifestação de mil pescadores em Lisboa, contra o encerramento da Associação Marítima. 13 ), Março de 1897 (greve dos pescadores das armações Lagosteira, Greta e Ilhéu dos Alhos .14), 11 de Abril 1900 (confronto, na praia de Sesimbra, entre pescadores em greve e um destacamento de Infantaria 11 de Setúbal, em protecção de fura-greves; o destacamento dispara sobre os pescadores, provocando três mortos. 15), Março de 1912 (greve da armação Agulha em 23 de Março, e da Cova em 30 de Março16), Abril de 1912 (a armação Cozinhadouro junta-se à greve da Agulha e da Cova 17), Junho de 1912 (greve das armações de Sesimbra.18), em Julho de 1912 (pescadores das armações de Sesimbra recusam a matrícula. 19) e Dezembro de 1913 (companha da armação Moeda em greve.20).
12 Jornais A Vanguarda, O Paíz e o Século , de 24 a 27 de Novembro de 1896
13 Jornais A Vanguarda, O Paíz e o Século, de 4 e 5 de Fevereiro de 1897
14 Jornal A Vanguarda de 7 de Março de 1897.
15 Numerosas referências em quase toda a imprensa de Lisboa, durante os dias subsequentes.
16 Jornal O Socialista de 26 de Maio de 1912.
17 O Jornal O Socialista de 26 de Maio de 1912, diz ter a greve ficado «solucionada com honra para a classe marítima”. No mesmo jornal, na edição de 11 de Setembro de 1912, são apresentadas as contas da «manutenção dos grevistas» das três armações, através de um fundo especial da Associação Marítima: «Esta greve, que em nada afectou os fundos associativos, foi mantida única e exclusivamente pela solidariedade de todos os companheiros das outras armações, porquanto cada companha concorreu diariamente com um caixote e cinco quinhões de peixe do que pertencia à mesma companha. (…) Rendeu 4:783$370 o peixe vendido dos caixotes e quinhões (…) para pagamento às companhas em greve despendeu-se a importância de 3:517$480. Convém notar que o número de grevistas socorridos semanalmente pela Associação Marítima era aproximadamente de 90, visto alguns arranjarem, quando as circunstancias o permitiam, outros misteres. Da mesma verba há a deduzir a importância de 30$300 por 4 funerais de companheiros, o subsídio de 20$000 para os companheiros grevistas da fábrica Delpeut, de Setúbal, e a importância de 20$000 para benefício do material tipográfico do jornal operário «A República Social», o que perfaz a importância de 70$300 que, junta à importância gasta com a greve, perfaz o total de 3:587$780. Ficou, portanto, um saldo positivo de 1:195$590.»
18 Jornal O Socialista de 9 de Junho de 1912, que diz que a greve «continua insolúvel pela teimosia dos armadores Loureiro e Carlos Correia».
19 Jornal O Socialista de 9 de Julho de 1912, que diz que os armadores «entenderam que não deviam acatar as condições do acordo ultimamente estabelecido.»
20 Jornal O Socialista de 9 de Março de 1913 – num artigo do dirigente socialista Mário Nogueira, lê-se: «Há já 3 meses que a companha da armação Moeda se encontra em greve, em virtude do seu proprietário ter despedido uns camaradas (…) O proprietário tentou contratar uma nova companha na Costa da Caparica, o que não levou a efeito, por os camaradas daquela localidade se recusarem a atraiçoar os seus companheiros (…) Procurou então contratar trabalhadores do campo, no que não só praticou uma ilegalidade, como também jogava a vida daqueles homens por estes não serem da profissão (…) Não conseguiu contratar ninguém.»
Sinais da vitalidade deste movimento associativo são a integração de uma delegação de Sesimbra no cortejo do 1º de Maio de 1897, em Lisboa, e a primeira comemoração do 1º de Maio em Sesimbra, no ano de 1899, onde participaram diversas individualidades do PS, bem como a participação de uma Sesimbrense, Olinda da Conceição, na fundação da entidade pioneira do associativismo feminino em Portugal, a Federação Socialista do Sexo Feminino, constituída em Junho de 1897. Sob a direcção da propagandista Margarida Marques, e com base no Grémio Socialista dos Anjos, esta Federação englobava, na realidade, muito poucas associações, e não é claro que tenha durando muito tempo. Em todo o caso, afirma-se como organização pioneira do movimento feminista em Portugal. Olinda da Conceição foi efusivamente acolhida pelas socialistas lisboetas: foram-na receber à chegada, de barco, a Lisboa, e foi muito ovacionada na ocasião da sua apresentação na cerimónia oficial, tendo sido convidada para a respectiva mesa.
João Augusto Aldeia