Indústria, Comércio Externo e Intervenção Pública. As Conservas de Peixe no Estado Novo (1927-1972)

Francisco Maia Pereira Bruno Henriques – 2022

SEGUNDA PARTE - Recursos, Organização Industrial e Regulação Económica.

7. A indústria: empresas, concorrência e política económica.

7. A indústria: empresas, concorrência e política económica.

A oferta de sardinha foi o principal factor de competitividade da indústria de conservas, mas o seu sucesso relativo dependeu de outros factores como a estrutura industrial, a incorporação de novas tecnologias e a organização do trabalho. Neste capítulo, como nos anteriores, propomos uma caracterização da indústria de conservas portuguesa em comparação com as suas congéneres europeias. A comparação permite-nos verificar, por exemplo, que a permanência do trabalho manual nas fábricas de conservas não era apenas uma tendência portuguesa, mas também sucedia em Espanha, França e Marrocos, onde o enlatamento da sardinha continuou a ter uma cota relevante na produção de conservas de peixe. Por outro lado, a comparação entre as estruturas de custo nos diferentes países revelam diferenças relacionadas com a dimensão das economias nacionais e o grau de integração da indústria de conservas com outros sectores industriais. Em Portugal, os custos das matérias-primas foram ligeiramente mais elevados do que entre os seus concorrentes europeus, mas este valor foi compensado por uma menor percentagem dos salários no custo de produção. O custo do trabalho é, de resto, um elemento central para compreendermos o dilema entre a mecanização das fábricas de conservas e o trabalho manual como garantia da qualidade das conservas de sardinha.

As mudanças ocorridas na indústria de conservas não podem ser atribuídas apenas à iniciativa empresarial ou aos ajustes feitos sobre a procura dos mercados. A política industrial, que nos anos cinquenta assumiu uma clara vocação de «fomento» de novas indústrias, não teve expressão na indústria de conservas. Todavia, a extensa regulação conhecida como condicionamento industrial, que fora aplicada à indústria de conservas desde os anos vinte, teve um papel relevante na configuração da estrutura industrial e da concorrência interna. Como procuramos argumentar neste exercício, as decisões da regulação industrial revelam a prática de um sistema protecionista mas também algumas opções de especialização produtiva. Sem as restrições oficiais, a indústria de conservas poderia ter tomado outros rumos, nomeadamente na diversificação das espécies e do tipo de produtos.

O capítulo segue a seguinte estrutura: em primeiro lugar, são analisadas as principais tendências da produção e da estrutura industrial. A evolução da produtividade e da estrutura de custos são analisadas em pormenor. Em segundo, discutimos o dilema entre a mecanização da linha de produção e o trabalho manual. Finalmente, analisamos em detalhe a aplicação do condicionamento industrial e os efeitos subsequentes da regulação sobre a estrutura da indústria.

7.1.1. Produção e estrutura industrial.

Na primeira parte da tese sublinhámos a originalidade da indústria transformadora de pescado em Portugal: sardinheira e conserveira por excelência, esteve arredada das tendências de produção e consumo de produtos congelados, da diversificação na utilização de espécies e da criação de subprodutos como as farinhas de peixe. Os números da produção industrial só vêm tornar mais nítida a especialização da indústria portuguesa, bem como o seu forte crescimento no segundo pós-guerra. Entre 1939-1945 e 1960-1964, a produção média anual de conservas cresceu de 40,4 para 75,7 mil toneladas, enquanto a produção de peixe conservado pelo sal desceu de 9,1 e os produtos congelados subiram de 0,5 para 4,7 mil toneladas (Quadro 7.1.). Por outras palavras, o crescimento da indústria transformadora dependeu quase exclusivamente da produção de conservas, que em 1954-59 alcançou os 90% da produção total; a decadência das salmouras foi irreversível e os congelados, apesar de um crescimento expressivo, partiam de uma produção diminuta e não chegaram a superar os 5% do volume total.

Se nos centrarmos no fabrico de conservas, encontramos uma concentração semelhante nas espécies utilizadas: a sardinha ocupa mais de três quartos da produção total entre 1935 e 1964 (Quadro 7.2.). Todavia, ao contrário da indústria transformadora, nota-se uma progressiva diversificação e a produção de conservas de outras espécies cresceu de 16% em 1940-45 para 25% em 1960-65528. Esta diversificação era, no entanto, menor do que aquela que ocorria nos países especializados na produção de conservas de sardinha no segundo pós-guerra. Em França, a irregularidade dos desembarques de sardinha e a concorrência internacional no mercado interno, ainda que amortizada pelo sistema de contingentes, levou a um crescimento sustentado dos ramos «não-sardinheiros» da indústria do segundo pós-guerra. Entre 1937-39 e 1953-54, a produção conserveira cresceu cerca de 40%, mas o perfil de crescimento segundo as espécies foi díspar: nas conservas de sardinha foi praticamente nulo, no atum foi superior a 30% e na cavala e similares superior a 100%529. Em Espanha, a prolongada crise da sardinha estimulou não só o desenvolvimento da produção de conservas de atum, mas também o cultivo de mexilhão em viveiros flutuantes nas rias galegas, importante ramo de crescimento que tornou o país no primeiro produtor mundial de mexilhão em 1970. O cultivo de mexilhão, uma experiência que envolvia custos baixos, permitia a pequenas e médias conserveiras incorporarem os moluscos nas linhas de produção, optimizar a capacidade de produção e reduzir a dependência da sardinha que continuava a sofrer crises periódicas de abastecimento e uma forte oscilação nos preços 530.

528 Este valor é muito mais expressivo no peixe conservado pelo sal, onde o biqueirão salgado alcança posição de relevo. Em 1964, a produção ascende a 4 mil toneladas de salmouras.

529 Avigneau, L’ industrie…, 363.
530 Carmona, org. Las famílias de la conserva…, 498. Esta estratégia foi também seguida pelas maiores empresas e pioneiras no sector, como os Curbera, que no imediato pós-guerra venderam a frota sardinheira e apostaram no cultivo de mexilhão na primeira metade dos anos cinquenta. Ver Xán Carmona, «Los Curbera. Vocación de pioneros» em Las famílias de la conserva…, 41.

Vale a pena analisar a produção de conservas de outras espécies além da sardinha para compreendermos o «monolitismo» da indústria conserveira. Mais uma vez, devemos atender à disponibilidade de recursos naturais e às dinâmicas dos mercados consumidores. No que se refere às espécies de peixe, podemos distinguir dois grupos. O primeiro pertence às conservas de cavala e carapau. A captura destes pequenos pelágicos apresentou importantes flutuações, como a sardinha, mas os mercados externos nunca tiveram a mesma dinâmica atribuída às conservas de sardinha. A produção de carapau e cavala aumentou durante os anos da Segunda Guerra Mundial quando houve um aumento do esforço de pesca das artes de cerco, que incluíam estas espécies; voltou a crescer no final da década de quarenta como compensação à crise de escassez de sardinha; e cresceu no último triénio dos anos cinquenta, quando as conservas de cavala atingiram um máximo de 10,3 mil toneladas (Quadro 7.3). A aposta nas conservas de cavala, cujo preço de venda era superior às conservas de carapau e disputava o consumo de conservas de tunídeos, acentuou-se sempre que as capturas de cavala tiveram um crescimento expressivo em Portugal e a consequente queda dos preços de venda em lota. Note-se, no entanto, que a produção destas espécies foi ainda mais irregular do que a produção de sardinhas531, motivada pela exiguidade dos mercados externos. Com exceção de Itália, os principais países europeus absorviam pequenas quantidades de cavala e carapau. Os mercados de conservas de carapau, em particular, estavam situados fora da Europa. Em 1955, por exemplo, as duas mil toneladas de exportações tiveram como principal destino a África Ocidental Britânica, o Congo Belga, a Jordânia e o Egito, com preços médios de 11, 27 escudos, quando as exportações de sardinha alcançaram o preço médio de 14,55 escudos532. No mesmo ano, as conservas de cavala alcançaram o preço médio de 16,9 escudos. Apesar do elevado poder de compra dos mercados das conservas de cavala – Itália, Suíça e Bélgica – o aumento da procura era mais limitado do que em França, na Alemanha ou nos Estados Unidos.

531 A título de exemplo, as capturas de carapau subiram de 342 para 1026 toneladas, e as capturas de cavala de 1261 para 4266 toneladas em apenas um ano, em 1949. No caso da cavala, o preço de venda na lota desceu a 2,72 escudos por quilo, inferior ao da sardinha, e a produção de conservas de cavala aumentou 900 toneladas, um crescimento de 130% face ao ano anterior. V. Dias, Estudo dos aspectos económico-financeiros…, 52.
532 Moura,1957, 86.

Diferente é a situação das conservas de atum e anchovas, cujos preços médios de exportação eram superiores às conservas de sardinha, estimulados pelo crescimento do consumo em países industrializados, sobretudo nos EUA e em Itália. Todavia, o crescimento destes subsectores da indústria conserveira teve limites criados pela disponibilidade de recursos e a incapacidade de criar iniciativas de capital-intensivo para explorar os stocks de peixe fora da costa portuguesa, sobretudo na pesca de atum. Após a Segunda Guerra Mundial, a produção de conservas de atum em Portugal estabilizou em torno das duas mil toneladas anuais. A progressiva escassez de atum capturado no Algarve foi compensada pelo crescimento da indústria conserveira no arquipélago dos Açores, a partir de 1958. Mas o principal desafio encontrava-se na concorrência internacional: os EUA, o Japão e, na Europa, a Espanha e a França. Se observarmos a distribuição das exportações, o mercado italiano absorvia a grande maioria das exportações de conservas de atum. Tendência similar verifica-se nas exportações de anchovas onde os Estados Unidos absorviam, em 1955, 75% das exportações (Quadro 7.4). Esta distribuição evidencia, sobretudo, uma excessiva especialização num só mercado, tanto nas conservas de atum como nas anchovas, concentração que dificulta a expansão desses dois subsectores da indústria. Por último, note-se que a produção de anchovas, à semelhança das restantes, encontrou novos limites nos anos sessenta com a escassez de biqueirão na costa algarvia. Escassez que não foi compensada pelo aumento significativo das importações.

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Ut elit tellus, luctus nec ullamcorper mattis, pulvinar dapibus leo.

Em suma, as conservas de atum e anchovas representam duas tendências de especialização regional – nos Açores e Algarve, respectivamente – que tiveram dificuldades em criar economias de escala que pudessem acompanhar as novas tendências da procura internacional e substituir o peso relativo das conservas de sardinha. As artes tradicionais da pesca do atum, as flutuações da pesca de biqueirão e a exiguidade dos mercados, em conjunto com a ausência das importações, contribuíram para este perfil da indústria conserveira. Os centros onde a produção industrial mais cresceu até aos anos setenta foram aqueles que mais concentraram a sua produção nas conservas de sardinha.
Uma das consequências da ausência de diversificação produtiva foi a permanência de uma estrutura industrial pulverizada, composta por pequenas empresas com uma modesta capacidade de produção. A estrutura da indústria continuou atomizada: se em 1939 existiam 175 fábricas de conservas em azeite e molhos, em 1965 laboravam ainda 179. A dimensão média das empresas, segundo a sua capacidade de produção medida em milhares de caixas, não teve alterações substanciais. Em 1933 apenas 7,3% das empresas se podiam considerar «grandes», com capacidade superior a 50 mil caixas, face a 64,7 % de «médias» (de 20 a 50 mil caixas) e 27,4% de «pequenas» (até 20 mil caixas). Em 1953 notava-se apenas um ligeiro aumento relativo das empresas «grandes» (13,8%), a manutenção das «médias» (66,7%) e uma redução das «pequenas» (19,4%)533. Um segundo indicador é a distribuição das fábricas segundo o número de operários que nos oferece um retrato sobre a permanência do trabalho intensivo na indústria, que será discutido mais adiante(Quadro 7.5.). Entre 1943 e 1965, as fábricas com 50 a 200 operários continuaram a ser a grande maioria, apesar de o número de fábricas com menos de 50 operários ter aumentado. Em termos gerais, a estrutura da indústria resultava num entrave à introdução de novas tecnologias, diversificação dos produtos e redução dos custos de produção.

Contudo, é preciso não esquecer as idiossincrasias da indústria de conservas relacionadas com a perecibilidade das matérias-primas. Com um abastecimento irregular de pescado e a ausência de câmaras frigoríficas no interior das fábricas, as conserveiras tinham uma laboração sazonal e intermitente que criava uma subutilização permanente da capacidade instalada. A mecanização das fábricas permitia ter uma reserva de capacidade para os dias de maior abundância de pescado, que tinha de ser transformado de forma imediata, mas a irregularidade da laboração dificultava a amortização dos investimentos e forçava a inutilização dos equipamentos534. De acordo com Francisco Pereira de Moura, as fábricas de conservas em azeite e molhos utilizaram apenas 42% da sua capacidade entre 1933 e 1952, com três quartos das fábricas menos de metade da sua capacidade535 As alternativas a este problema foram não só um maior recurso ao trabalho intensivo, mas também a deslocalização das fábricas de conservas para os centros de pesca com desembarques mais abundantes e regulares de sardinha. As estratégias de grandes empresas como a Ramirez e a Algarve Exportador, entre outras, passaram pela abertura de novas fábricas a norte da região de Lisboa, em Peniche e sobretudo Matosinhos, à medida que os desembarques de sardinha em Setúbal e no Algarve eram cada vez mais irregulares. A distribuição das fábricas de conservas de azeite e molhos atesta esta transformação geográfica que permitiu manter a competitividade internacional da indústria (Quadro 7.6.). A progressiva concentração da indústria em Matosinhos, que em 1965 albergava um terço das fábricas do país, permitiu o desenvolvimento de economias de escala com as sinergias criadas entre as pequenas empresas, a mobilidade das operárias conserveiras e a prestação de serviços especializados como as serralharias mecânicas. A indústria da pesca correspondeu à procura das conserveiras e os preços da sardinha mantiveram-se abaixo da média nacional. Esta formação de um cluster da indústria de conservas foi facilitada pelas decisões tomadas no âmbito do condicionamento industrial.

533 Dias, Estudo dos aspectos económico-financeiros…, 69.

534 Newell, The Rationality of Mechanization…, 642.
535 Moura, Estudo sobre a indústria de conservas…, 74.

O facto de a indústria se encontrar pulverizada foi percebido pelos conserveiros e agentes políticos coevos. A primeira metade dos anos cinquenta, com o recrudescimento da concorrência internacional e a liberalização do comércio externo, tornaram clara a necessidade de embaratecer os custos de produção, zelar pela qualidade dos produtos e criar sistemas de comercialização mais robustos536. EM 1958, depois de divulgado o II Plano de Fomento, o principal desiderato dos investimentos públicos na indústria de conservas era a reorganização industrial do sector através da comparticipação de processos de fusão e extinção voluntária de empresas ineficientes537. Contudo, esta característica da indústria portuguesa não deve ser exagerada, sobretudo em comparação com as concorrentes internacionais. No final dos anos sessenta, em Marrocos, a produção média anual por fábrica situava-se nas 36 mil caixas, enquanto em Portugal era de 30 mil caixas538. Mas talvez o aspecto mais relevante seja que, apesar da cristalização da estrutura industrial, houve consideráveis aumentos de produtividade na indústria conserveira portuguesa no segundo pós-guerra.

536 V. «Os problemas da concentração fabril na indústria conserveira», Conservas de Peixe, nº (1955).

537 «O 2ª Plano de Fomento e a indústria de conservas de peixe», Conservas de Peixe, nº 146 (1958), 7-8.
538 Domingo, L’industrie marocaine…, 312.

7.1.2. Evolução da produtividade: medidas e tendências.

A produtividade é um elemento central para se compreender a evolução da indústria portuguesa e o seu contributo para a convergência da economia portuguesa com os países mais industrializados. São os ganhos de produtividade permanentes, e não temporários, que servem de base ao aumento dos rendimentos reais das empresas. Em Portugal, no segundo pós-guerra, houve um generalizado crescimento da produtividade no sector secundário durante 1951 e 1973 e, em particular, na indústria transformadora, onde se incluem as conservas de peixe539. A evolução positiva pode ter resultado da conjugação de políticas industrialistas, a abertura da economia portuguesa e uma conjuntura favorável no comércio internacional, mas também pelo efeito que a emigração teve no mercado de trabalho540. Para completar esta análise, há uma falta de estudos de microanálise, dedicados a uma indústria em concreto, que possam trazer uma nova profundidade analítica sobre a evolução da produtividade do «capital» e do «trabalho» e identificar se os ganhos de produtividade foram o produto de melhorias na organização técnica da produção ou da introdução de novas tecnologias. A análise de síntese, sendo fundamental, coloca ainda problemas metodológicos, como o facto de a produtividade anterior aos anos setenta do século XX ser contabilizada com base no número de trabalhadores no activo e não a partir da duração do trabalho 541.

O estudo da produtividade da indústria de conservas coloca desafios heurísticos e metodológicos relevantes, bem como dificuldades em estabelecer comparações com as indústrias congéneres internacionais. A fragmentação estatística sobre os tempos de trabalho e o número de operários no activo, bem como a descrição dos equipamentos industriais, colocam desafios de interpretação e escolha dos indicadores mais fiáveis para traçar a tendência geral da evolução da produtividade. No entanto, para o período entre 1943 e 1970, é possível definir um quadro de evolução com base nas taxas médias de crescimento anual. É importante, todavia, fazer uma distinção prévia: não obstante a introdução de novas tecnologias e uma nova organização do trabalho, a indústria de conservas continuou dependente de um abastecimento irregular de matérias-primas e de uma crónica subutilização dos seus equipamentos. Esta circunstância teve uma influência permanente na apreciação do problema da produtividade.

As taxas de crescimento anual apresentam flutuações muito pronunciadas que decorrem, precisamente, da irregularidade e sazonalidade da laboração industrial que dependia da abundância dos recursos naturais (Quadro 7.7). Importa, por isso, encontrar as tendências longas que podem ser divididas em três períodos. O primeiro período, entre 1943 e 1952 , com uma taxa de crescimento médio anual de -0,1% no «capital» e 3,7% no «trabalho», traduz uma etapa de acumulação de capital físico no imediato pós-guerra que induziu ganhos de produtividade no trabalho, embora a oferta de sardinha e a dinâmica da procura externa não permitissem uma maior utilização da capacidade instalada. Com uma produção decrescente a partir de 1947, em contraste com a multiplicação de novas máquinas nas fábricas de conservas obtidas com os lucros do comércio durante a guerra, a evolução da produtividade do capital assumiu uma tendência negativa.

Pelo contrário, no segundo período, entre 1953 e 1959, deu-se uma evolução muito positiva das taxas de crescimento da produtividade do «trabalho» e do «capital». Nestes anos continuou a existir uma crescente acumulação de capital físico, mas mais moderada do que no imediato pós-guerra, e tanto a oferta de sardinha como a procura externa tornaram o trabalho na indústria mais regular. Com uma maior regularidade do trabalho e utilização da capacidade instalada, é plausível que se tenham introduzido melhorias na organização técnica da produção que provocaram ganhos de produtividade. Como pano de fundo neste período esteve a conjuntura favorável do comércio internacional, sobretudo com a liberalização das trocas nos principais mercados europeus e a crise da indústria marroquina.

Finalmente, entre 1960 e 1965 a indústria revela ainda importantes taxas de crescimento da produtividade: 4,8% no «capital» e 1,7% no «trabalho». Este crescimento coincide com a inovação tecnológica no «capital», sobretudo com a difusão de novas cravadeiras de maior capacidade e velocidade no processo de cravação, e ainda por um elevado número de operários que desempenham um trabalho manual na indústria, num período em que a produção e exportação de conservas atinge máximos históricos. Este fenómeno explica que o número total de trabalhadores ainda estivesse em crescimento entre 1963 e 1966.

539 V. Álvaro Aguiar e Manuel M. F. Martins, «A indústria» em História Económica de Portugal, org. Pedro Lains e Álvaro Ferreira Silva (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005), v. III, 185-187. Em comparação com outros países, o crescimento da produtividade da indústria portuguesa foi menos acentuado. Para uma análise comparada a partir do caso britânico, v. Stepehen Broadberry, The productivity race : British manufacturing in international perspective, 1850-1990 (Cambridge : Cambridge University Press, 1997).
540 Aguiar e Martins, A indústria…, 216 e ss. Não iremos desenvolver aqui o debate sobre as causas do aumento da produtividade total dos factores e o crescimento económico neste período. V. Luciano Amaral, Convergência e crescimento económico em Portugal no Pós-Guerra». Análise Social, nº 148 (1998): 741-776. Para uma síntese recente, v. Manuel Mira Godinho, «Mudança estrutural e evolução da produtividade na economia portuguesa: uma perspetiva de longo prazo» em Economia e História – Estudos em homenagem a José Maria Brandão de Brito, org. Alice Cunha, Cristina Rodrigues e Ivo Veiga (Lisboa: Colibri, 2019), 135-154.
541 Aguiar e Martins, A indústria…, 186/187.

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Ut elit tellus, luctus nec ullamcorper mattis, pulvinar dapibus leo.

Após este quadro geral, importa caracterizar com algum detalhe as transformações em cada um dos factores produtivos. Para o «trabalho» devemos ter em conta duas variáveis: o número de operários permanentes e temporários e o número de dias de trabalho. Entre as duas variáveis existe, no longo prazo, uma relação inversamente proporcional: enquanto o número de operários se reduziu de forma paulatina e regular, aumentou a média anual de dias de trabalho por cada operário (Quadro 7.8). A descida do número de operários é notória logo no imediato pós-guerra, quando o decréscimo da produção e a renovação do equipamento industrial pressionaram a redução dos custos do trabalho. Todavia, o perfil de trabalho-intensivo nunca deixou de estar presente. O aumento do número médio de deias de trabalho revela, por sua vez, a maior regularidade na laboração da indústria, o que terá permitido maiores ganhos de eficiência. Com efeito, o crescimento da produtividade por operário no activo é muito expressivo: se em 1950 um operário produziu 1,9 toneladas, em 1957 produziu 3,5 e em 1965 4,6 toneladas (Quadro 7.8). Além de uma maior mecanização da linha de produção, cada operário trabalhou em média mais dias por ano: de 157 dias, em 1954, para 261 em 1964542. A evolução da produtividade por dia de trabalho é, por isso, menos expressiva: em 1950 produziram-se 221 toneladas, valor que ascendeu a 302 em 1957 e a 332 toneladas em 1964.

Medir a produtividade do segundo factor, o «capital», coloca novos problemas. Neste exercício optámos por calcular a produtividade do «capital» sobre o total das máquinas utilizadas durante o fabrico do «cheio», que inclui as cravadeiras e os autoclaves de cozedura do peixe e esterilização das conservas. Esta opção parece-nos mais ajustada do que calcular a produtividade a partir de outros elementos como a potência instalada, o número de fábricas ou os equipamentos utilizados no fabrico das latas 543. Na linha de produção das conservas, as cravadeiras eram as máquinas com maior potencial para criar ganhos de produtividade permanentes e, no período em análise, não houve mudanças tecnológicas que substituíssem o processo de cravação ou introduzissem relevantes aumentos de produtividade noutras fases da laboração. Como vimos, no primeiro quartel do século XX a introdução das cravadeiras suscitou conflitos sociais, em particular em Setúbal, onde a ação organizada dos soldadores se opôs à introdução de máquinas nas fábricas. Mas o processo de mecanização era, a uma escala internacional, inexorável. Em 1940, existiam já 726 cravadeiras nas fábricas portuguesas, número que não parou de crescer até aos anos sessenta. Por outro lado, para acompanhar o aumento da capacidade instalada houve a necessidade de instalar um maior número de autoclaves. Os autoclaves – também conhecidos como cofres – eram alimentados por uma caldeira a vapor e serviam para duas operações fundamentais, a cozedura do peixe e a esterilização das latas de conservas. A cozedura do peixe, a cravação das latas e a esterilização eram as únicas fases da produção totalmente mecanizadas 544.

A questão central é saber em que medida o aumento da produção se deveu à acumulação de capital físico ou aos ganhos de produtividade permanentes – um debate a que se dedicou a história económica que estuda o processo de crescimento económico no segundo pós-guerra. A acumulação de capital físico foi constante, entre 1940 e 1962, o que significa que em pouco mais de duas décadas houve uma intensa mecanização na produção de conservas (Quadro 7.10). A subida que se verifica no imediato pós-guerra, entre 1945 e 1953, é deveras interessante. A introdução de novas máquinas deve-se não só ao investimento dos lucros obtidos pelas empresas durante a guerra mas também a um relaxamento das medidas restritivas adoptadas pelo condicionamento industrial nos anos trinta. A partir de 1948, os pareceres do Instituto Português das Conservas de Peixe passaram a autorizar o aumento da capacidade instalada, em parte justificado pela pressão exercida pelos industriais para a revogação das medidas anteriores545. Um dos argumentos mais comuns utilizado pelos conserveiros era o recrudescimento da concorrência internacional depois da recuperação das economias europeias que obrigaria as empresas a reduzir os tempos de fabrico e os custos de produção. Todavia, neste período, as capturas de sardinha não colaboraram e a produção industrial desceu a partir de 1945; as novas máquinas instaladas provocaram, paradoxalmente, uma quebra de produtividade do capital e só em 1954 se recuperou o volume de produção por cravadeira em actividade no ano de 1940 (Quadro 7.11).

542 Durante os dois meses de defeso, os operários permanentes continuavam a desempenhar trabalhos de manutenção, fabrico de «vazio» (latas e caixas) e outros. Além disso, era permitido o fabrico de conservas de outras espécies, já que o defeso só incidia sobre as conservas de sardinha. A contabilização dos dias de trabalho dos operários permanentes matiza, assim, o perfil de uma indústria que continuava a ser sazonal e com uma interrupção obrigatória nos dois últimos meses de inverno.

543 Esta medida não inclui os equipamentos das latoarias dedicadas ao fabrico das latas, também conhecidas como secções ou oficinas de «vazio». Por diversas razões: em primeiro lugar, nem todas as fábricas fabricavam as latas de conservas e um número considerável encomendava o «vazio» a latoarias independentes. Por outro lado, ainda que os ganhos de produtividade nas oficinas de «vazio» pudessem ter impacto na redução do custo da produção das empresas, era uma atividade autónoma em relação ao fabrico do «cheio». A produção de latas devia antecipar-se em relação ao início da safra. Desde os anos trinta, muitas empresas mantiveram as oficinas de latoaria em funcionamento durante o período de defeso para criar stocks de latas e cumprir com as cláusulas dos contratos coletivos de trabalho que exigiam trabalho permanente aos operários masculinos.
544 Todavia, e segundo alguns processos de condicionamento industrial, ainda era possível encontrar nas fábricas de conservas, nos anos cinquenta, caldeiras de cozedura de peixe a “fogo directo”, bem como a soldadura manual das latas.
545 V. subcapítulo seguinte.

Com efeito, o crescimento do número de cravadeiras encerra um paradoxo. Como vimos anteriormente, a indústria tinha um problema de excesso de capacidade instalada e apenas 25% das empresas tinha utilizado mais de metade da sua capacidade entre 1933 e 1952. Contudo, o número de cravadeiras e autoclaves continuou a aumentar; em relação aos últimos, a superfície de aquecimento dos autoclaves mais do que quintuplicou entre 1942 e 1965, de 986 para 5052 metros cúbicos (Quadro 7.12). No início dos anos sessenta, a desaceleração no crescimento das taxas de produtividade do «capital» durante os anos de maior expansão da produção de conservas demonstram novamente o problema de excesso da capacidade instalada, problema que se agravaria na segunda metade dos anos sessenta. É sobre este cenário – múltiplas fábricas com cada vez maior número de maquinismos – que se multiplicam os apelos à concentração industrial e à necessidade de reduzir os custos de produção.

O ciclo de acumulação de capital físico deve ter em conta diversos aspectos. Em primeiro lugar, continuava a existir um elevado número de fábricas e, ao mesmo tempo, um crescimento no volume dos desembarques diários de pescado, o que obrigava as empresas a acelerarem o tempo de produção para que o peixe, altamente perecível, não se deteriorasse. Um maior número de autoclaves permitia alargar a fase de cozedura do pescado e a utilização de um maior número de cravadeiras reduzia os tempos de fecho das latas e libertava trabalhadoras para a operação de enlatamento. A intensificação da produção diária exigiu uma renovação do equipamento industrial mas não esbateu a sazonalidade da indústria que, por isso, continuou a enfrentar problemas de excesso de capacidade. Em segundo lugar, é preciso notar que tanto os autoclaves como as cravadeiras eram produzidos em Portugal e por empresas portuguesas, sobretudo em Matosinhos546. Apesar de as máquinas poderem ser mais caras do que se fossem importadas, o selo da «produção nacional» serviu de argumento recorrente nos pedidos das empresas para ser autorizado nos processos de condicionamento industrial. Em terceiro lugar, a mudança tecnológica, em particular nas cravadeiras, também teve um importante desenvolvimento. Entre 1942 e 1954 é já evidente o declínio das cravadeiras de primeira geração, manuais e semi-automáticas – Reinerts, Matador, Lubeck – criadas no início do século XX. As cravadeiras que tiveram uma maior expansão eram semi-automáticas ou automáticas, como as Lubin de 8 lunetas e as Sudry B.C 12 e 14. Já na primeira metade dos anos sessenta, parece consumar-se a instalação de cravadeiras automáticas duplas, sobretudo as Lubin, que tinham uma capacidade de produção superior às Sudry simples de cerca de 50%. Finalmente, importa notar que este desenvolvimento tecnológico terá encontrado limites de expansão na oferta de pescado à indústria. Apesar do forte aumento da produção, esta ficou aquém da acumulação de equipamento industrial preconizado pelas múltiplas empresas do sector.

Quando comparamos a indústria portuguesa com as congéneres internacionais, o desenvolvimento tecnológico teve duas fases diferentes. Na primeira metade do século XX a indústria portuguesa acompanhou a evolução tecnológica no sector, mas não o fez com a mesma intensidade após a Segunda Guerra Mundial. No início dos anos trinta, a maioria das fábricas portuguesas dispunham de cravadeiras semi-automáticas que eram manipuladas na sua maioria por mulheres, tal como sucedia em Espanha, França e na Noruega 547. No final dos anos quarenta difundem-se novas tecnologias que implicam uma mudança na organização técnica do trabalho. A introdução dos fornos de ar quente para a cozedura do peixe, bem como os canais de evisceração e salmoura que reduziam os tempos de laboração e o transporte da matéria-prima no interior da fábrica, tiveram ampla difusão em Espanha e França548. A introdução de linhas de fabrico contínuas, introduzida pela conserveira galega Massó, foi adoptada em Portugal apenas por algumas grandes empresas como a Adão Polónia e a Feu Hermanos. Como veremos, a tímida difusão de novas tecnologias no segundo pós-guerra não se deve apenas a uma ausência de iniciativa empresarial; a regulação industrial funcionou como barreira a novos investimentos que pudessem pôr em causa a ocupação intensiva de operários nas fábricas.
Em suma, a evolução da produtividade do «trabalho» e do «capital» correram em paralelo, mas as suas variações têm diferentes causas relacionadas com a capacidade de transferência de tecnologias, a organização técnica do trabalho e a concorrência de outros sectores industriais no emprego do trabalho feminino. O recurso ao trabalho manual intensivo não impediu a acumulação de capital físico e uma crescente mecanização das operações a jusante do enlatamento da sardinha. Mas, por outro lado, a mecanização teve os seus limites e foi restringida a etapas concretas da linha de produção como a cozedura do peixe, a cravação e esterilização das latas.

Neste ponto devemos não podemos olvidar que, sendo a indústria especializada na transformação da sardinha, a mecanização das operações de evisceração, lavagem e enlatamento seria mais difícil e poderia comprometer a qualidade dos produtos549. Mas a manutenção do trabalho intensivo foi também o resultado das políticas económicas vigentes que favoreceram o modelo empresarial. O dilema entre a mecanização e o trabalho manual na indústria de conservas merece um comentário detalhado.

546 Ver Arnaldo Rodrigues Pereira, Vulcano: Serralharia mecânica (Matosinhos: [s.n.], 1936).
547 Jorg Hviding, The The Race for the Seaming Machine (Stavanger: Norsk Hermetikkmuseum, 1994), 15-30 e Jesús Giráldez e Luísa Muñoz, «Making cans for the fish canning industry: an experience in Galicia (1880-1936)», Deutsches Schiffahrtsarchiv, nº 30 (2007),362.
548 Avigneau, L’ industrie…, 485-490.

549 A propósito desta questão, v. Moura, Estudo sobre a indústria de conservas…, 58: «Embora uma mecanização conveniente possa contribuir para a elevação da produtividade da indústria, a um facto, porém, tem de atender-se: às diferenças existentes entre a sardinha portuguesa e as espécies ictiológicas industrializadas noutros países, as quais determinam certas limitações quanto à Clupea Pilchardus. O respeito por essas limitações parece ser indispensável à manutenção da boa qualidade do produto. Por outro lado, a qualidade e a apresentação das nossas conservas encontram-se num nível muito superior às das americanas ou das norueguesas, o que se deve, também, à mecanização atingida por estas.».

7.1.3. Mecanização e trabalho manual.

Em 1936, o IPCP publicou um álbum com duas dezenas de fotografias a ilustrarem a linha de produção das conservas de sardinha550. Depois de compradas na lota, as sardinhas entravam na fábrica em canastras, carregadas por homens, que as despejavam em cima das mesas. As mulheres retiravam a cabeça e as vísceras do peixe, salpicavam as sardinhas com sal e colocavam-nas em moura nos tanques com água e sal. Depois, colocavam as sardinhas em grelhas de ferro e estanho que eram agrupadas em «carros» e transportadas para os autoclaves, onde eram cozidas a vapor. Após a cozedura, as grelhas com sardinhas eram colocadas nas mesas de enlatamento e, num processo exclusivamente manual, as mulheres distribuíam o peixe nas latas de acordo com os formatos. Os molhos, azeite, óleos ou tomate, eram colocados manualmente ou com o auxílio de «azeitadeiras». Depois de encherem as latas, as mulheres colocavam os tampos sobre as latas antes de avançarem para as máquinas onde seriam cravadas. À saída das cravadeiras, as latas eram finalmente encaminhadas para os autoclaves de esterilização onde, através do aquecimento, as bactérias do peixe eram eliminadas e as conservas ganhavam uma grande durabilidade. Por último, as latas eram lavadas, secas e verificadas pelas «visitadoras da lata»; colocadas em caixas de madeira e armazenadas antes de saírem da fábrica com destino aos mercados externos. A qualidade dos lotes de conservas era duplamente verificada: no laboratório do IPCP, com o envio de amostras; e no porto de embarque, com um fiscal do IPCP.

A cadeia de produção acima descrita não era apenas seguida na indústria portuguesa. Correspondia, em geral, ao modelo de preparação das conservas «ao estilo de Nantes» difundido no último quartel de Oitocentos em Setúbal e também na Galiza 551. Neste processo, a transformação do peixe em conservas requeria a utilização de grandes espaços abertos para a circulação das matérias-primas e um uso intensivo do trabalho nas tarefas de limpeza e enlatamento do pescado. Dada a fragilidade do pescado, em especial da sardinha, as tarefas deveriam ser desempenhadas com a maior rapidez possível para não comprometer a qualidade das conservas. Contudo, a mecanização da linha de produção foi moderada e limitada a algumas fases cruciais do processo. Numa perspectiva de longo prazo, a introdução dos autoclaves a vapor, nas últimas décadas do século XIX, e a difusão das cravadeiras no início do século XX foram as principais mudanças tecnológicas552. A sazonalidade da laboração e a irregularidade do abastecimento de pescado foram um obstáculo a uma maior mecanização. Mas a mecanização era, em si, um factor de competitividade indispensável para produzir em massa, reduzir os tempos de fabrico e os custos de produção. Durante o período em análise, a indústria de conservas debateu-se com um verdadeiro dilema: a necessidade de mecanizar a indústria mas, ao mesmo tempo, manter o trabalho manual intensivo como condição para preservar a qualidade das conservas.

No Canadá, a análise de Dianne Newell sobre a mecanização da indústria de conservas de salmão demonstrou que a persistência do trabalho manual era uma escolha racional e adequada das empresas 553. O salmão, à semelhança da sardinha e do arenque, apresentava diferentes tamanhos e características morfológicas que dificultavam a utilização generalizada de máquinas, em particular as máquinas de descabeço do peixe (butchering machines) responsáveis pelos aumentos de produtividade no final do século XIX 554. Por outro lado, as latas confecionadas por cada empresa tinham diversos formatos, o que dificultava a mecanização de operações como a cravação, e o enlatamento manual conferia um aspecto às conservas que dificilmente poderia ser substituído pela ação mecânica. A contratação sazonal de trabalhadores assalariados, pagos ao dia ou à semana, concedia a vantagem às empresas de não possuírem custos adicionais durante a fase de paralisação da indústria. Esta prática foi comum às indústrias conserveiras norte-americanas que empregaram em larga escala trabalhadoras femininas imigrantes recém-chegadas ao país 555.

550 IPCP, 1936.
551 Luísa Muñoz, «Los mercados de trabajo en las industrias marítimas de Galicia. Una perspectiva histórica. 1870-1936», Tese de doutoramento (Barcelona, Universidad Autónoma de Barcelona, 2003), 92; e Avigneau, L’industrie de conserves…, 490-493.

552 O’ Bannon, Patrick. «Waves of change: Mechanization in the Pacific Coast Canned-Salmon Industry, 1864-1924». Technology and Culture, nº 28 (1987): 558-576.
553 Newell, The Rationality of Mechanization…, 652-654.
554 Duncan Stacey, Sockeye and Tinplate: Technological Change in the Fraser River Canning Industry, 1871-1912 (Victoria: [S.n.], 1982), 19-25. 555 V. Newell, The Rationality of Mechanization…, 644. Sobre a indústria norte-americana, v. Chris Friday, Organizing Asian-American Labor : the Pacific Coast Canned-Salmon Industry, 1870-1942. (Philadelphia : Temple University Press, 2010), e Vicki Ruiz, Cannery Women, Cannery Lives: Mexican Women, Unionization, and the California Food Processing Industry, 1930-1950 (Albuquerque: N.M., 1987).

A mecanização da indústria de conservas de sardinha ficou, assim, reservada às etapas finais do processamento e à cozedura do peixe nos autoclaves. Em meados dos anos cinquenta, os estudos sobre a produtividade do trabalho na indústria francesa colocavam ainda dúvidas sobre a possibilidade de uma maior mecanização no transporte das mercadorias – através de balancés e tapetes rolantes – permitir ganhos de produtividade556. Apesar de as mudanças tecnológicas serem tímidas, elas existiram e concentraram-se na substituição do processo manual de encerramento das latas por soldadura. Esta mudança implicou, sobretudo, a substituição de trabalhadores qualificados, os soldadores, por máquinas, as cravadeiras, que podiam ser manipuladas por trabalhadores menos qualificados e que desconheciam os processos de soldadura. Este processo histórico não foi obtido sem um crescimento da conflituosidade laboral, acentuada pela capacidade de organização dos interesses dos soldadores e a defesa intransigente da exclusividade do trabalho masculino nas operações de confecção e encerramento das latas557. Martin Brown e Peter Philipps mostraram como, na indústria de conservas norte-americana, a oferta de trabalho era coordenada por uma estrutura oligopolística de associações de trabalhadores que concentravam os trabalhadores qualificados e pressionavam os conserveiros a manter os salários altos. Contudo, esta relação aumentou a procura dos conserveiros pela criação de novas máquinas que, depois de terem sido inventadas e instalaas nas fábricas, vieram enfraquecer as organizações que julgavam que o trabalho manual seria insubstituível558. Após a Primeira Guerra Mundial, na indústria de conservas de sardinha e similares, a mecanização do encerramento das latas tornou-se um processo inexorável. Em 1928, as novas cravadeiras francesas Lubin, com cerca de três centenas já instaladas em França, Espanha e Portugal, eram apresentadas no mercado norueguês com as vantagens de poderem ser operadas sem a presença de um trabalhador masculino qualificado e a mudança de peças para novos formatos de latas poder ser feita em poucos minutos por não especialistas559. Esta mudança paulatina implicou uma redução drástica no trabalho masculino, que carecia de uma aprendizagem formal e de controlos no acesso à profissão, e num maior recrutamento de trabalho feminino. Em comparação com o trabalho masculino, o trabalho feminino mostrava-se mais flexível e com uma maior adaptação à sazonalidade porque detinha uma menor representação organizada dos interesses.

A par do desenvolvimento tecnológico, a indústria de conservas testemunhou um processo de segmentação laboral. O controlo dos custos do trabalho, num sector que recorria intensivamente ao uso da mão-de-obra, seria mais um elemento crucial da competitividade internacional, em conjunto com o preço do pescado. Luísa Muñoz Abeledo apontou para a segmentação do mercado de trabalho nas indústrias marítimas como um fenómeno transnacional que também afectou Portugal560. Às mulheres era reservada a transformação do pescado desde o «descabeço» e enlatamento até à cravação das latas, enquanto os homens desempenhavam tarefas de «responsabilidade» ou maior esforço físico com o transporte de peixe para a fábrica, a manutenção das caldeiras a vapor e a colocação das caixas de conservas nos cais de embarque para a exportação. A segmentação caracterizava-se por uma clara divisão de tarefas e, sobretudo, pela separação entre condições de remuneração. Um primeiro segmento, ocupado por homens, obtinha um trabalho estável, com uma remuneração superior e garantias como o descanso dominical; o segundo segmento, ocupado por mulheres, era maioritariamente composto por trabalhadoras temporárias, pagas ao dia ou à semana, sem garantias de continuidade e com uma remuneração significativamente menor.

Em Portugal, as estatísticas oficiais de 1950 confirmam a segmentação do mercado de trabalho na indústria de conservas. Em primeiro lugar, a grande maioria dos trabalhadores eram mulheres (77,4 %) e praticamente todas maiores de idade. Em segundo, o trabalho masculino representa apenas 22,6% do total mas ocupa 50,5% dos trabalhadores permanentes. Esta posição relativa dos homens deve-se ao facto de mais de 90% dos homens serem trabalhadores permanentes enquanto, no caso das mulheres, apenas um terço eram trabalhadoras permanentes. O trabalho temporário era quase exclusivamente desempenhado por mulheres (98,9%). Finalmente, os salários médios diários, em preços correntes, exibem uma grande disparidade salarial: em relação aos homens, as mulheres ganharam apenas 57,3% da sua remuneração, em 1950, e 58,3% em 1955.

556 Avigneau, L’ industrie des conserves…, 485-488.
557 Ver, para o caso de Setúbal, Vasco Pulido Valente, «Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)», Análise Social, XVII (1981): 615-678.
558 Brown, Martin, e Peter Philips. «Craft labor and Mechanization in Nineteenth-Century American Canning». Journal of Economic History, nº 46 (1986), 749.
559 Hviding, The Race for the Seaming Machine (Stavanger: Norsk Hermetikkmuseum, 1994), 24.

560 Luísa Muñoz situa a segmentação do mercado laboral numa perspectiva de longa duração, desde um período pré-industrial em que as mulheres já se dedicavam à transformação do pescado e os homens à pesca. Refere também a projeção da organização doméstica no espaço industrial. V. «Actividad femenina en industrias pesqueras de España y Portugal (1870-1930)», Historia contemporânea, nº 44 (2012), 54 e ss.

Com efeito, não podemos entender esta segmentação do trabalho apenas como uma expressão da tradição longa de organização das comunidades marítimas e uma projeção das relações de poder do espaço doméstico para a organização industrial. Por iniciativa do Estado, a segmentação do trabalho foi institucionalizada, nomeadamente a partir dos contratos colectivos de trabalho que estabeleciam as diferenças salariais descritas para 1950. Ao mesmo tempo, foram criados os mecanismos para não impedir o inexorável avanço da mecanização, como as indemnizações aos soldadores que abandonassem a actividade. A institucionalização das relações industriais durante o Estado Novo teria um inevitável impacto na estrutura de custos das empresas conserveiras, conferindo aos custos de trabalho uma percentagem relativa inferior a outros custos, especialmente quando é comparada com outros países.

7.4. A estrutura de custos

A análise sobre os custos de produção da indústria portuguesa, em comparação com as suas congéneres, ajuda-nos a esclarecer duas questões. Em primeiro lugar, os custos das matérias-primas e do trabalho conferem vantagens relativas e são elementos de competitividade externa de cada país. Xoán Carmona demonstrou como, entre finais do século XIX e meados dos anos vinte do século XX, o preço mais baixo da sardinha em Portugal e Espanha em relação a França contribuiu para o domínio dos países ibéricos nas exportações de conservas de sardinha 561. As variações no custo da sardinha, em resultado da sua abundância ou escassez, tinham um impacto muito relevante na estrutura de custos. Na empresa galega Curbera, por exemplo, o pescado ocupou 12,5% do custo em 1905, ano de abundância, e 41,2% em 1910, em plena crise sardinheira 562. O acesso a outros bens importados, como a folha de flandres e os azeites refinados, que os países ibéricos não produziam no final de Oitocentos, foi compensado com a isenção de direitos alfandegários nos dois países 563. Em segundo lugar, importa referir que a estrutura de custos não dependia apenas dos recursos disponíveis ou dos efeitos da política económica sobre o comércio externo, mas também da iniciativa empresarial na integração vertical da produção e criação de produtos intermédios. Contudo, a escassez de arquivos empresariais dificulta a tarefa de compreender se as empresas que procuraram produzir os bens intermédios obtiveram preços mais favoráveis do que aqueles praticados nos mercados internacionais por via das importações.

No período entre as duas guerras é particularmente difícil encontrar informações sobre a estrutura de custos das empresas 564. Os dados disponíveis permitem-nos apenas traçar um quadro geral para os anos seguintes à Grande Depressão (Quadro 7.14). Neste sentido, o peixe continuava a ser a principal rúbrica nas despesas da indústria em todos os países, com variações acentuadas que se deviam mais à flutuação dos recursos marinhos do que à capacidade das empresas ampliarem a produção e reduzirem os custos de aquisição de matérias-primas. Em segundo lugar, a folha de flandres, utilizada para a confecção de embalagens, teve um protagonismo inusitado nas estruturas de custo –no caso de Portugal e nos EUA, é mesmo a principal rúbrica das despesas. O problema do encarecimento da folha de flandres, num contexto de recuo do comércio internacional, deu alento aos projetos autárquicos de começar a produzir folha de flandres em Portugal e reduzir a dependência externa565. Finalmente, são também já visíveis algumas diferenças no peso do custo do trabalho: na Noruega, onde a indústria de conservas teve uma mecanização precoce, ganhos de produtividade e salários mais altos, o peso na estrutura de custos alcançou os 25%. Em Portugal, mesmo nos anos sessenta, o custo do trabalho não chegou a alcançar este valor. O peso que ocupava no início do Estado Novo, em torno dos 10 a 15%, irá manter-se durante as décadas seguintes até 1967 (Quadro 7.16).

561 Carmona, Recursos, organización y tecnologia…, 136.
562 Idem, 137.
563 Sobre a evolução do drawback (importação de direitos para produtos que seriam reexportados) dos azeites utilizados na indústria de conservas desde 1881, v. Decreto nº 17:735, 10.12.1929.
564 António Pinto Barbosa destacava, em 1941, a dificuldade em proceder a um estudo comparativo dos custos das empresas conserveiras pela falta de organização de serviços de contabilidade.V. Sobre a indústria de conservas…, 160.

565 Charles Lepierre, Estudo da folha de flandres (ferro estanhado) usada na indústria de conservas de peixe (Lisboa: [S.n.], 1939).

Após a Segunda Guerra Mundial, voltam a estar presentes alguns elementos centrais do início do século. A liberalização do comércio europeu, lenta e gradual, reinstaurou os factores clássicos da competitividade externa: os preços das matérias-primas, sobretudo o pescado, e o custo do trabalho. Mais uma vez, os dados parcelares permitem-nos apenas uma comparação entre a estrutura de custos em Portugal e França e ainda os custos de duas empresas em Portimão e Setúbal, a Feu Hermanos e a Empresa Exportadora Lusitânia (Quadro 7.15). Com a expansão da actividade pesqueira, tanto a uma escala nacional como internacional, a rubrica da despesa do pescado tendeu a diminuir. Este continuava, no entanto, sujeito a crises de escassez que não eram compensadas com importações. Em Portimão, por exemplo, a percentagem do pescado nos custos subiu de 27,6% em 1947 para 40% em 1948 e, em 1951, foi de apenas 20,8%. Já na segunda metade de cinquenta, em Setúbal, a Empresa Exportadora Lusitânia teve, entre 1956 e 1959, 24,9% do custo de fabrico na aquisição de pescado. Por outro lado, é interessante notar que o peso relativo do custo das embalagens era mais elevado em Portugal do que em França. O peso relativo dos custos do trabalho também apresenta diferenças. Em França, este valor tinha subido de 16,7% em 1939 para 23,6% em 1955. Em Portugal, os valores adiantados pelo IPCP parecem pouco verosímeis566, mas os dados sobre as empresas oferecem um retrato fiável. Tendencialmente, os custos do trabalho foram mais baixos do que em França, mas com apreciáveis variações regionais. Em Setúbal, o conjunto de operários masculinos não só conseguiu manter um estatuto salarial mais elevado do que nos restantes centros industriais do país, como a concorrência de outras actividades industriais, sobretudo ligadas à indústria química e construção naval, começou a pressionar a subida de salários. Devido a estas circunstâncias exógenas, a percentagem dos custos do trabalho em Setúbal foi mais elevada do que em Portimão e no conjunto dos centros industriais portugueses, aproximando-se do peso relativo na indústria francesa.

Na realidade, entre 1953 e 1970 dispomos de dados suficientes, a partir das estatísticas oficiais portuguesas, para reconstruir a estrutura de custos da indústria de conservas de peixe (Quadro 7.16) 567. Já não se trata de auscultar a competitividade externa da indústria mas compreender em que medida houve uma integração das actividades a montante da indústria transformadora. Num primeiro plano continuavam as despesas com o peixe, o que nos oferece duas interpretações distintas. Por um lado, a maioria das conserveiras não integrou a actividade da pesca e, por isso, não controlava os preços da sardinha, apesar dos sucessivos apelos para a realização de acordos intersectoriais com armadores e industriais. O recrudescimento da rubrica do «peixe» no final dos anos sessenta indica a crise de escassez de sardinha, a subida dos preços nas lotas e a concorrência com o consumo público. Por outro lado, o peixe manteve um peso relativo elevado porque deu-se uma regularização do abastecimento dos outros principais inputs: a folha de flandres e o azeite. No caso da folha, é notável a redução dos preços das importações após a resolução do conflito da Coreia, em 1953, e o aumento da produção global 568 . 

Esta retoma coincidiu com o abandono do projecto autárquico da Companhia Portuguesa de Siderurgia produzir folha de flandres em Portugal; o projecto de instalação da indústria do aço, com o apoio da ajuda Marshall e dos planos de Fomento, dirigiu-se em definitivo para a produção dos altos-fornos 569. No que diz respeito aos «condimentos», que inclui os molhos e em especial os azeites refinados, a estabilização do peso relativo na estrutura de custos tem duas causas. Em primeiro lugar, a produção de azeite nacional seguiu um padrão de crescimento até à entrada nos anos sessenta; nos períodos em que as colheitas recuaram e os preços tendiam a aumentar, o IPCP interveio directamente no mercado como agente comprador de azeite refinado à Junta Nacional de Azeite, que era posteriormente vendido e distribuído às empresas conserveiras. Todavia, a partir de meados dos anos sessenta, a tendência de produção nacional inicia um longo período de declínio. Em causa estão múltiplos factores: a diversificação do consumo de gorduras animais e vegetais no mercado interno, que leva a uma maior importação de margarinas e outros substitutos do azeite; a emigração e a saída dos campos, com a consequente subida dos custos do trabalho, num sector pouco mecanizado que continuava a depender do trabalho manual 570. No início dos anos setenta, a recomendação feita ao sector da indústria das conservas será a substituição dos azeites refinados pelos óleos de soja. Essa hipótese comprometia, porém, a tradição de conservas de ardinha em azeite portuguesas dominante no mercado externo. O encarecimento dos molhos no final da década de sessenta só não se reflectiu com maior nitidez na estrutura de custos porque os restantes elementos sofreram pressões semelhantes, ou até mais graves.

567 As estatísticas oficiais não incluem as despesas de exercício e os encargos anuais das empresas. Pode, por isso, haver sobrevalorização. Ver quanto pesavam estas despesas nos custos de fabrico das empresas Feu e Lusitânia.
568 “A evolução da indústria e a aplicação da folha-de-flandres nos últimos 20 anos”, Conservas de Peixe (1956).
569 V. ANTT, Conselho Económico. Espanha houve integração da produção de folha e latas com a Carnaud Galicia. Ver Las famílias…, p. 411.

570 V. Freire, Changing the Olive…, 205-207.

A estrutura de custos revelada pelas estatísticas oficiais confirma a estabilização dos custos dos principais inputs das conservas durante o segundo pós-guerra, mas não exibe as pressões a que a indústria esteve submetida a partir de 1966. A subida do preço do peixe e o aumento do custo do trabalho foram os traços mais salientes deste período e constituíam precisamente os elementos que justificavam a maior competitividade internacional da indústria. As causas profundas da etapa de decadência da indústria são discutidas no epílogo deste trabalho.

7.2. Indústria e regulação: o Condicionamento Industrial (CI).

O papel da regulação económica no desenvolvimento da indústria tem sido amplamente discutido pelos historiadores e economistas. Em geral, entende-se que a regulação cria barreiras de entrada e atua como uma força contrária ao livre exercício da concorrência. No entanto, as práticas regulatórias necessitam de um nível de concordância suficientemente amplo para serem aceites entre os grupos de interesse regulados. Na interpretação de Stigler, o desempenho da regulação por organismos oficiais em nome da defesa do interesse público tende a ser «capturado» pelos interesses dos grupos regulados 571. Esta interpretação pressupõe que o processo de regulação não é absolutamente arbitrário ou impermeável a influências pessoais na tomada das decisões. Estes problemas colocam-se com especial acuidade no estudo do condicionamento industrial em Portugal. A memória do condicionamento industrial tende a exibir o mecanismo regulatório como uma força opressora sobre a livre iniciativa dos empresários. Ainda que esta visão fosse em parte desconstruída pelos historiadores que mostraram a participação dos empresários nos processos de decisão, ela continua vigente na caracterização da política económica do Estado Novo 572. Em 1974, o decreto que abolia formalmente o condicionamento industrial referia que chegava ao fim «o processo de decisão casuística e discricionária que sempre caracterizou a intervenção do Governo no processo de industrialização do País»573. Referia também que a história do condicionamento industrial, em particular dos seus processos, seria «um auxiliar de primeira ordem para a análise da sociedade portuguesa nas últimas dezenas de anos» 574.

O condicionamento industrial (doravante CI) consistia no processo administrativo a que era sujeito o pedido de criação, modificação ou transferência de unidades industriais no país. A criação do CI está relacionada com a construção do novo estado autoritário na primeira metade dos anos trinta. Durante a crise internacional e com diversos sectores da indústria em contração, a criação de uma nova moldura regulatória respondia aos clamores protecionistas de sectores ligados à exportação e ao mercado interno. Em 1931, a primeira lei do CI definia-o como um mecanismo transitório destinado a resolver o «excesso ou a ausência» de concorrência industrial, os problemas da distribuição geográfica e a falta de bases técnicas e financeiras das empresas industriais575. Em 1937, uma nova lei tornava o mecanismo regulatório permanente e com incidência sobre os principais sectores da indústria portuguesa . A maioria dos investimentos no sector secundário passaram a depender de uma prévia autorização do Estado – desde a abertura de uma nova fábrica até à substituição de uma máquina ou, nalguns casos, as alterações no pacto social das empresas576. O processo de decisão sobre o investimento, centralizado na Direcção-Geral da Indústria, envolvia uma série de agentes num demorado processo de consulta: empresas, organismos corporativos e de coordenação económica e a decisão final emitida por despacho ministerial criados para cada actividade económica. Em consequência, o CI ganharia uma dimensão estrutural que incidiu sobre cerca de 50% do emprego e 60% das empresas do sector secundário. Após a Segunda Guerra Mundial, entre 1948 e 1965, mais de metade dos pedidos para novas indústrias foram recusados, enquanto 80% das modificações de unidades existentes foram autorizadas 577.

Num trabalho seminal sobre este tema, Brandão de Brito estabeleceu a relação entre a teoria da economia do corporativismo, a nova ordem constitucional do Estado Novo e a criação do CI578. As diferentes correntes do corporativismo propunham a superação da crise do capitalismo liberal através de ideias de cooperação económica e de uma economia «autodirigida» pelos agentes privados que resolveria os problemas da excessiva concorrência sobre os preços e a qualidade dos produtos colocados nos mercados. No entanto, a apropriação das ideias corporativas no quadro institucional – mormente na Constituição de 1933, no Estatuto do Trabalho Nacional e na criação da rede de organismos corporativos – resultou na criação de uma série de organizações

571 Para uma elaboração da teoria económica da regulação, ver o artigo de George J. Stigler, «The theory of economic regulation», The Bell Journal of Economics and Management Science, 2: 1 (1971), 3-21; e Sam Peltzman, «Stigler’s Theory of Economic Regulation after fifty years », Working paper SSRN, 2021.
572 Os estudos fundamentais sobre o condicionamento industrial pertencem a José Maria Brandão de Brito, Industrialização portuguesa no pós-guerra (1948-1965). O Condicionamento Industrial (Lisboa, Dom Quixote, 1989) e João Confraria, Condicionamento Industrial: Uma Análise Económica. Lisboa: Direção- Geral da Indústria, 1992. Para o caso espanhol, em tudo similar ao português, v. Luís Pires, Regulación industrial y atraso económico en la dictadura de Franco (Madrid: Universidad Rey Juan Carlos, 2003).
573 Diário do Governo , Decreto-Lei nº 533/74, 10.10.1974.
574 Idem.

575 Diário do Governo, Decreto nº 19:354, 14 de Fevereiro de 1931.
576 Diário do Governo, Lei nº 1956, 17.05.1937; e Ruy Ulrich, Parecer sobre a proposta de lei nº 172, Diário das Sessões, nº 118, 18 de Fevereiro de 1937.
577Brito, Industrialização portuguesa…, 273.
578 Brito. Industrialização portuguesa…, 39 e ss.
579 Idem, 141/142.
580 Pires, Regulación económica… De resto, pode considerar-se que o CI não terminou com o Estado Novo, ou que é verificável também em regimes democráticos que protegem estrategicamente os investimentos em alguns sectores industriais – ver João Confraria, “Condicionamento Industrial”, em Dicionário de História de Portugal, org. António Barreto e Maria Filomena Mónica (Lisboa, Figueirinhas, 1999), v. 8, 393.
581 Além dos trabalhos já citados, v. João A. Loureiro, Economia e Sociedade. A indústria no após-guerra, anos 50 e 60 (Lisboa: Cosmos, 1991), 139-244; Maria Filomena Mónica, Os Grandes Patrões da Indústria Portuguesa (Lisboa: Dom Quixote, 1990); Henry Makler, A Elite industrial portuguesa (Lisboa: Centro de Economia e Finanças, 1969); e Manuel Lisboa, A indústria portuguesa e seus dirigentes (Lisboa: Educa, 2002), e «Trabalho caseiro e familiar autónomo: uma contribuição para a compreensão da política industrial do Estado Novo», Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 34 (1992), 283-298.
582 Brito, Industrialização portuguesa…, 134 e ss.

que reforçou a autoridade pública e reduziu a autonomia da iniciativa privada. Neste contexto, o CI seria o instrumento por excelência de uma política industrial vigilante e interventiva, com a imposição de uma autorização administrativa sobre a vida das empresas e das fábricas que, pela sua abrangência e impacto, teria sido «genuinamente português » e sem paralelo noutros regimes coevos579. Investigações mais recentes salientaram, porém, a existência de um mecanismo semelhante na Espanha franquista580. A par da discussão historiográfica, persiste uma memória pública do CI como exemplo de ineficiência e abuso da regulação autoritária, perante a qual os industriais se representam como vítimas. Os homens da indústria entrevistados por cientistas sociais, sobretudo nos anos oitenta e noventa, demarcaram-se do CI, condenando-o como um travão à modernização das suas indústrias, mas confessando, ao mesmo tempo, as habilidades para iludir e beneficiar do sistema581. Esta memória, como veremos, confronta-se com as provas empíricas no estudo de caso sobre a indústria de conservas. As percentagens de autorizações no CI sugerem que houve um protecionismo eficaz contra as novas entradas na indústria mas, por outro lado, contrariam a ideia que o CI foi um obstáculo à modificação das fábricas e empresas, tendo em conta o elevado número de pedidos autorizados.

A análise historiográfica do CI decorreu numa lógica de compreensão dos mecanismos de funcionamento da autoridade do Estado. Brandão de Brito defendeu a tese que o CI se tornou num «agente de corporativização» da indústria, absorvendo as ideias de cooperação entre os produtores que estariam destinadas ao funcionamento dos organismos corporativos582. Esta ideia central, deduzida da análise dos processos de decisão burocrática, não foi prosseguida – com exceção das indústrias transformadoras de cerveja e frutas583 – em estudos sectoriais que permitam aprofundar os impactos do CI na indústria portuguesa.

Neste subcapítulo, a pergunta que se coloca é a seguinte: foi a estrutura burocrática do CI que travou a modernização da indústria de conservas ou foram as empresas, acomodadas a um regime protecionista, que adiaram as estratégias de inovação, diversificação e concentração industrial, cuja ausência se sentiu no final dos anos sessenta? Perante esta questão, afiguram-se duas hipóteses centrais. A primeira é que, para compreendermos o verdadeiro impacto do CI, devemos analisar a sua evolução diacrónica e caracterizar as decisões sobre os investimentos no quadro institucional mais alargado criado pelo Estado Novo. Em segundo lugar, é importante questionarmos a discricionariedade com que o processo de decisão tem sido descrito; na realidade, os processos de CI parecem exibir uma negociação entre empresas, organismos corporativos e a administração pública que importa conhecer melhor.

Um dos aspectos essenciais é desviar a atenção da estrutura burocrática para a vida quotidiana das empresas. Todavia, esta opção depara-se com problemas de ordem teórica e heurística. Por um lado, se tomarmos como referencial a análise de Alfred Chandler sobre a empresa moderna – caracterizada pelo crescimento e a formação de hierarquias de gestão, a integração vertical e horizontal de bens e serviços e a gestão profissionalizada – vemo-nos limitados no enquadramento da maioria das empresas industriais no sector das conservas. Basta referir, como exemplo, que as sociedades anónimas, modelo de expansão das grandes empresas estudado por Chandler, estavam proibidas na indústria conserveira desde 1932 e foram, de facto, quase inexistentes584. Um outro óbice para a formação da grande empresa era a sazonalidade da indústria da pesca e a dificuldade em introduzir os processos de produção contínua que ditaram o aparecimento de grandes indústrias no sector das conservas alimentares nos EUA585. Contudo, estas circunstâncias não supuseram um eclipse do empresário, como se o CI anulasse as suas capacidades de mudança, imaginação e previsão do futuro. Devemos, sobretudo, encarar a ação empresarial em condições históricas e sociais específicas586, marcadas pela interação da iniciativa privada com a estrutura burocrática do Estado, a partir de regras formais e estratégias informais para alcançarem os seus objectivos individuais.

O segundo problema tem a ver com as fontes documentais disponíveis. Para inverter a análise do CI, partindo da actuação das empresas para inquirir o carácter centralizador do processo, é necessário explorar novas fontes documentais. O arquivo público do CI, à guarda do Ministério da Economia, manteve nos últimos anos um paradeiro desconhecido que impediu a consulta dos processos originais. Os escassos arquivos empresariais da indústria de conservas não dispõem de informação sobre o CI. Porém, em compensação, o arquivo histórico do IPCP contém cerca de 6 mil processos do CI agrupados por cada unidade industrial. Cada um dos documentos inclui, habitualmente, todas as fases do processo, desde a entrada do requerimento inicial da empresa até à publicação do despacho ministerial de autorização ou recusa do investimento pedido. Acessoriamente, a imprensa publicada nos centros conserveiros, o arquivo municipal de Olhão e as publicações oficiais do Estado, com destaque para o Boletim da Direcção Geral da Indústria, permitem-nos traçar um quadro desenvolvido sobre as tendências e os principais resultados do CI na indústria de conservas.

583 Filipe Silva, «”A nacionalização que se deseja”. Notas para uma breve história da indústria cervejeira nacional: do Estado Novo às nacionalizações revolucionárias». Tese de mestrado, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2012, e Leonardo Pires, Estado, cultura de mercado…, 127-152. .
584 Alfred Chandler, «Estados Unidos da América. O berço do capitalismo de gestão» em Hierarquias de gestão. Perspectivas comparadas sobre o desenvolvimento da moderna empresa industrial, org. Alfred Chandler e Herman Daems (Oeiras, Celta, 1994). Não quer isto dizer, certamente, que as análises de tipo chandleriano não se possam aplicar ao estudo do crescimento das empresas conserveiras. Para um excelente exemplo, ver Xan Carmona Badía, org. De Las famílias de la conserva.
585 V. Alfred Chandler, The visible hand (Cambridge : Harvard University Press, 1977), 289 e ss.

7.2.1. A indústria de conservas de peixe: um caso exemplar.

Existem pelo menos três razões para considerarmos que a aplicação do CI à indústria de conservas foi exemplar e serve, no seu conjunto, para ilustrar os sucessos e fracassos da política industrial em apreço587. Em primeiro lugar, as preocupações públicas sobre o sector remontam ao final dos anos vinte quando a crise da sardinha expôs o excesso da capacidade instalada e a dificuldade de as pequenas empresas resistirem à escassez do pescado e à revalorização do escudo que lhes encarecia as exportações. Em 1928, a comissão saída do Congresso de Pescas e Conservas de Setúbal impôs, pela primeira vez, a proibição de constituição de novas empresas de conservas de peixe. Mas foi a segunda crise, já sob os efeitos da Grande Depressão, que colocaria a regulação da indústria de conservas num primeiro plano. Apesar de em 1931 as conservas se terem tornado no principal produto das exportações, com uma cota de 25%, os preços de exportação caíram 38,5% entre 1930 e 1933. No relatório publicado por Salazar em 1931, a principal causa apontada para a desvalorização das conservas era a excessiva concorrência entre os industriais. Em Julho de 1932, em conjunto com o decreto de criação do Consórcio Português de Conservas de Sardinha, foi publicado um extenso regulamento de condicionamento da indústria de conservas que superava, em muito, a lei geral de 1931. O facto de a aplicação do CI se tornar tão abrangente deveu-se ao ascendente de Salazar que se ocupara pessoalmente dos problemas da indústria588.
Em segundo lugar, a importância do CI neste sector decorre da sua longevidade. Com efeito, se considerarmos o decreto de 1928 como o primeiro diploma a instaurar o CI na indústria de conservas, verificamos que este esteve em vigor durante mais de quarenta e cinco anos, até 1974. Contudo, a política regulatória não foi exercida sempre com as mesmas regras e tendeu, ao longo do tempo, a reduzir o seu âmbito de actuação. As reformas internas do CI foram motivadas quer pela oposição dos industriais conserveiros, quer pelas próprias reformas da política industrial. Todavia, é importante notar que até 1974 as empresas continuaram a necessitar de autorização prévia das autoridades para decidir os mais importantes investimentos. Entre estes incluíam-se a abertura, compra ou venda de novas fábricas, bem como o lançamento de novas linhas de produção – e em particular a instalação de estruturas de conservação de peixe pelo frio.

Finalmente, a centralidade do CI na indústria de conservas é testemunhada pelo conteúdo «totalizante» do decreto 21623, publicado em Agosto de 1932. Em 1931, o decreto fundador do CI impunha a necessidade de autorização prévia a um conjunto de onze indústrias dos pedidos de instalação ou reabertura de novos estabelecimentos, a montagem ou substituição das máquinas que criassem um aumento da capacidade de produção, e a transferência, arrendamento ou locação das licenças de exploração, bem como a alienação dos estabelecimentos a favor de indivíduos ou empresas estrangeiras589. Um ano mais tarde, o decreto-lei que regulou o condicionamento da indústria de conservas era mais detalhado e começava por reconhecer que a legislação anterior, de 1928, se tinha prestado a equívocos sobre as possibilidades de alienação parcial ou total dos bens, bem como as cedências de capital e a reabertura de fábricas paralisadas durante um período superior a dois anos590. Assim, estabelecia liminarmente que não era permitido o estabelecimento de novas fábricas e só excepcionalmente se poderia constituir novas empresas, arrendamentos, transferências de títulos de capital social e modificações nas fábricas existentes591. As empresas já constituídas como sociedades anónimas deviam transformar as ações em nominativas e, enquanto não procedessem ao seu registo, não poderiam distribuir os juros ou rendimentos obtidos pelas referidas ações 592.

É ainda importante notar que a constituição do Instituto Português das Conservas de Peixe, em 1936, antes da publicação da nova lei do CI, em 1937, fez com que o organismo de coordenação económica ocupasse um lugar precedente nos processos de decisão sobre o CI. Neste sentido, continuava a ser imprescindível a autorização prévia do Ministro do Comércio e Indústria para todas as modificações previstas no diploma de 1932, mas o Instituto deveria ser «obrigatoriamente ouvido pelas instâncias competentes em todos os assuntos que dissessem respeito ao condicionamento da indústria de conservas de peixe»593. Na prática, além de serem explicitadas as restrições que só excepcionalmente poderiam ser levantadas, a criação do IPCP implicava um endurecimento das medidas sobre os infractores e um controlo mais estrito sobre a evolução das empresas – auxiliado, é certo, pelo detalhado cadastro industrial de cada empresa e cada fábrica. Assim, por exemplo, a venda sem autorização de uma fábrica implicava a extinção da unidade industrial, que não poderia voltar a laborar (art. 19º); era reforçada a proibição de constituir ou transformar empresas em sociedades anónimas (art. 21º); e o Instituto podia encerrar fábricas que não cumprissem as condições exigidas, e ser responsável pela sua venda em hasta pública, sobre a qual cobraria uma comissão (ats. 30º e 31º).Um dos aspectos mais interessantes e que justifica, em parte, a falta de iniciativa privada na criação da indústria de subprodutos, era a reserva feita por lei à organização corporativa para ser responsável pelo lançamento dessas indústrias. Os industriais só podiam requerer a exploração de indústrias de óleos e farinhas de peixe se os Grémios de industriais não tivessem ainda formado uma empresa «idónea» para esse efeito, constituída por uma sociedade de cotas que reunisse mais de metade dos industriais e da capacidade de produção do centro conserveiro (art. 33º).

Como veremos, não só a aplicação da lei esteve longe de ser cumprida como, desde os anos trinta, os industriais não se coibiram de criticar o CI e propor diversas reformas. Por outro lado, as decisões tomadas sobre os investimentos na indústria conserveira não respondem apenas a uma apreciação técnica das propostas, mas a um nível mais alargado de compromissos sociais e económicos estabelecidos pelo regime autoritário. Em todo o caso, o quadro legal presume a existência de uma intensa actividade regulatória que se traduziu num elevado número de pedidos de instalação e modificação das empresas e das fábricas.

586 Num artigo importante para a história empresarial, Joseph Schumpeter destacava a necessidade de se compreender todas as condições sociais que influenciam a capacidade empresarial. Ver «Teoria Económica e história empresarial » em Ensaios. Empresários, inovação, ciclos de negócio e evolução do capitalismo (Oeiras: Celta, 1996), 233-249.
587 Era essa também a opinião de Ferreira do Amaral, diretor-geral da Indústria, entrevistado por José M. Brandão de Brito. V. Industrialização portuguesa…, 114, nota 106.

588 Diário de Governo, Decreto 15:581, 15.06.1928.
589 Diário do Governo, Decreto 19:354, 14.2.1931.
590 Diário do Governo, Decreto 21623, 27.08.1932; ver introdução do decreto. Note-se que, devido à sazonalidade da indústria e à irregularidade da matéria-prima, as fábricas tinham uma produção intermitente e podiam estar mais de uma temporada paralisadas.
591 Idem, art. 1º.
592 Idem, arts. 2º e 3º.
593 Diário do Governo, Decreto 26:777, 10.07.1936; ver capítulo «Função do Instituto na organização da indústria e do comércio de conservas de peixe».

7.2.2. As principais tendências.

A análise quantitativa sobre o número de pedidos de instalação feitos pelas empresas conserveiras é o ponto de partida para compreendermos o impacto do CI. Todos os requerimentos das empresas eram publicitados no Boletim da Direcção Geral da Indústria (BGI) – mais tarde, Boletim da Direcção Geral dos Serviços Industriais (BDGSI) – e sujeitos à apresentação de reclamações pelos industriais já instalados594. A decisão final era publicada por despacho ministerial, que podia ser favorável ou desfavorável. A evolução dos pedidos entre 1937 e 1964 exibe uma tendência de redução progressiva dos requerimentos e dos despachos ministeriais (Quadro 7.18). Com efeito, em 1937/38 o número de pedidos foi elevado, com 293 requerimentos e 356 despachos ministeriais, bastante acima da média das restantes indústrias595. É preciso, no entanto, ter em conta duas circunstâncias: aparentemente, diversas empresas procuraram, em 1937 e 1938, legalizar as máquinas e secções de fabrico já instaladas nas suas fábricas. Parece ser o caso de pelo menos quatro empresas – a Sociedade de Conservas Belo Monte, a União Industrial, João C. Gargalo e a Feu Hermanos – que apresentaram, individualmente, cerca de uma dezena de pedidos. Por outro lado, a aplicação do CI neste período é plena, o que implicava a autorização prévia de quase todos os movimentos na indústria – incluindo os mais simples, como a instalação de uma bomba de água ou de uma máquina de lavar latas, por exemplo, ou a cessão de um número reduzido de cotas entre sócios da mesma empresa.

594 Os processos entre 1932 e 1937 não foram publicitados no citado boletim mas existem, para a indústria de conservas, processos arquivados com datas anteriores a 1937. Por outro lado, a partir de 1964 os processos de CI da indústria de conservas foram agrupados com os processos de outras indústrias alimentares, o que torna impossível distinguir o número de processos. Reforçamos, no entanto, que o CI esteve vigente na indústria conserveira até 1974.
595 V. BDGI, 1937. Na realidade, não existem análise sectoriais de outros ramos da indústria transformadora que nos permitam fazer uma comparação a longo prazo. A exceção é o ramo da hortifruticultura, estudado por Leonardo Pires: neste ramo, entre 1938 e 1939, os pedidos anuais são inferiores a quinze, mas têm um crescimento exponencial durante a guerra, alcançando em 1942 os 70 pedidos de instalação. V. Pires, Estado, cultura de mercado…, 129.

Em Julho de 1941 deu-se o primeiro recuo na prática do CI. A indústria de conservas, à semelhança de outras indústrias, passou a estar isenta das obrigações do CI no que se referia a instalações de energia e força motriz, a instalação de pequenas máquinas – que não alteravam a capacidade instalada – , a transmissão ou cessão de quotas entre sócios da mesma empresa e a modificação da razão social, sempre que não houvesse alteração de sócios596. Esta isenção provocou um efeito paradoxal porque a redução do número de requerimentos e despachos contrasta com o aumento da concorrência durante os anos da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, a proibição de entrada de novas empresas na indústria de conservas em azeite e molhos decretada em 1932 já funcionava, nos anos da guerra, como elemento dissuasor de novos requerimentos que seriam, à partida, reprovados. Nos anos da Guerra é notável uma subida exponencial dos pedidos de entrada na indústria de conservas de peixe pelo sal, cujos custos de entrada e fabrico seriam mais reduzidos do que a indústria em molhos e permitiriam aproveitar a euforia de guerra. A reação do CI, instada pelo IPCP, foi, no entanto, liminar: em 1946, o conjunto de processos que ficara sem resposta foi recusado em bloco. No dia 8 de Maio, por despacho ministerial, foram negados 120 pedidos para instalação de fábricas de conservas de peixe pelo sal; 10 para a instalação de novas filetagens; 6 para instalação de fumagens ou secagens de peixe e 12 pedidos de instalação, ampliação ou transferência de salgas em fábricas de conservas já existentes 597.

Esta primeira tendência permite-nos compreender uma das principais características do CI: a barreira à entrada de novos agentes na indústria. A proibição de entrada de novas empresas na indústria de conservas em molhos, decretada em 1932, funcionou como um dissuasor para a apresentação de novos pedidos durante o conflito mundial, mas não evitou a «euforia» da indústria da salga que só foi travada pela ação discricionária do CI. O facto de as decisões administrativas não estarem determinadas por um conjunto de regras claras e apriorísticas – que poderia resultar numa aceitação dos requerimentos se estas fossem cumpridas – era o que distinguia o CI de um modelo de regulação convencional e liberal598. As transformações no CI ocorreram, no entanto, por pressão dos próprios industriais logo nos anos trinta. Em Setúbal, os conserveiros queixaram-se da morosidade dos processos e das multas sofridas por instalarem máquinas antes de publicada a autorização599. Já durante a Guerra, em 1942, no Conselho Geral do IPCP, os industriais de diversos centros temiam que as obrigações do CI iriam prejudicar a competitividade externa da indústria frente ao rápido crescimento da indústria marroquina600. Em 1948, depois de uma intensa polémica na imprensa, foi revista a proibição de instalação de novas cravadeiras e cofres de esterilização, passíveis de aumentar a capacidade instalada das fábricas601. De resto, desde meados dos anos trinta, as críticas ao CI foram controladas pela censura, na medida em que punham diretamente em causa a autoridade do Estado e, em particular, a capacidade de produzir uma avaliação técnica equilibrada sobre as inovações tecnológicas e a concorrência interna602. Em 1950, o raio de ação do CI sofreu um novo ajuste, com a isenção da maioria dos atos de transferência de capital nas empresas conserveiras. Contudo, os aspetos centrais do desenvolvimento da indústria – a abertura e transferência de fábricas e a introdução de novas tecnologias e linhas de produção – continuaram a ser alvo da regulação industrial até 1974.

A partir de 1950, é possível traçar um quadro mais preciso sobre o impacto do CI na estrutura industrial. No quadro 7.19 identificamos o número de pedidos autorizados e recusados, bem como o tipo de pedidos – «novos» ou «alterações» – e as taxas de aprovação de cada um deles. A primeira ideia a destacar é que, em regra geral, mais de 75% dos requerimentos feitos à administração pública foram autorizados. A partir de 1959, essa percentagem ocupa a quase totalidade dos casos. Estes dados confirmam a tendência geral que o CI, apesar da sua natureza restritiva, não constituiu um entrave à modificação das fábricas e das empresas instaladas. Mas esta afirmação tem duas nuances: em primeiro, como veremos, muitos dos pedidos autorizados eram acompanhados de condições específicas, como a descrição dos modelos de máquinas a instalar ou as restrições à sua utilização, condições que resultaram num efetivo condicionamento da atividade empresarial; em segundo lugar, como demonstra o quadro, a elevada percentagem de autorizações concentra-se nos pedidos de «alterações» às fábricas e empresas e não nos «novos» pedidos. O número de pedidos de novas instalações, além de ser bem menor do que as «alterações», tiveram uma taxa de aprovação substancialmente mais reduzida. Em 1953, 1956 e 1962, não foi superior a 25%. E, em 1964, a percentagem elevada de novas fábricas e empresas autorizadas deve-se à expansão da indústria de conservas de atum no arquipélago dos Açores, fileira que estava isenta do condicionamento praticado pelo IPCP 603.

596 Diário do Governo, Decreto 31:403, 18.7.1941. Entre as máquinas isentas do CI contavam-se, por exemplo, os filtros de azeite e as máquinas de meter borracha, lavar grelhas e azeitar. Os processos de transferência de títulos de capital continuaram a ser alvo de processos de «condicionamento interno» no IPCP, como testemunha o arquivo do organismo de coordenação económica.
597 Por lei, as fábricas de conservas em azeite e molhos podiam produzir conservas pelo sal, mas os industriais que possuíam um alvará de produção de conservas pelo sal não podiam produzir conservas em azeite e molhos. A possibilidade de os conserveiros produzirem salgas servia vários propósitos: por um lado, permitia aproveitar o pescado que não tinha as condições necessárias para o fabrico de conservas; por outro, permitia a ocupação dos trabalhadores permanentes que estavam obrigados, pelos contratos coletivos de trabalho, a trabalhar pelo menos dois dias por semana ao longo de todo o ano. Acresce que, na região do Algarve, as salgas tiveram uma importância inusitada devido à transformação e exportação do biqueirão salgado.
598 V. Pires, La regulación económica…, 4..

599 “Condicionamento Industrial”, A Indústria, 31.03.1938.
600Arquivo DGRM, IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (4ª sessão ordinária, 19 a 30 de Abril de 1942).
601 Caetano Feu Marchena, «Condicionamento Industrial. Capacidade de produção», Conservas de Peixe, nº 4 (1946), 11/12; e António Feu, «Um passo em frente», Conservas de Peixe, nº 33 (1949), 33-41.
602 Em relação à censura, ver ANTT, Ministério do Comércio e Indústria, Caixa 23, pt. 9.
603 Ver Diário do Governo, decreto 26:777, 10.07.1936.

Estes dados parecem contrariar a tendência geral que o CI foi um obstáculo ao investimento na indústria. Para a grande maioria das empresas, o CI tornou-se num expediente necessário, imprescindível por lei quando desejavam introduzir e substituir máquinas, ou alterar a estrutura da empresa, sempre que esses movimentos não implicassem uma transformação radical. A aprovação das alterações estava, em princípio, assegurada, apesar do longo escrutínio a que era submetido cada requerimento. O cenário mudava, porém, quando as empresas desejavam introduzir novas linhas de produção ou construir novas fábricas. Nestes casos, como demonstram os processos selecionados, foram esgrimidos uma série de argumentos para travar a expansão da iniciativa privada: a ausência de pesca e de trabalhadores disponíveis no centro industrial, ou a falta de experiência do requerente, estiveram entre os mais comuns.

O CI exibe ainda outras três características relevantes: as reclamações, os pedidos de transferências e o efeito dissuasor das restrições legais. Em primeiro lugar, é notável o escasso número de reclamações apresentado pelos industriais conserveiros, inferior, todos os anos, a 10% do total dos requerimentos. As reclamações eram, em teoria, o principal instrumento de proteção dos industriais já instalados que podiam alegar as consequências negativas que teria a entrada de novos agentes sobre a concorrência interna e externa. Em certos casos, como na indústria baleeira do arquipélago dos Açores, as reclamações foram uma prática constante, determinada pela necessidade de as empresas assumirem o controlo sobre o acesso aos recursos marinhos num território exíguo604. Ora, esse não era o caso da indústria de conservas de sardinha e outros pelágicos. A maioria dos pedidos eram relativos a pequenas alterações nas fábricas que os concorrentes não contestavam; e, no contexto do acesso mais ou menos livre aos recursos, as reclamações dos industriais conserveiros sobre a instalação de novas fábricas perderia a coerência se, no futuro, os reclamantes também necessitassem de deslocalizar as suas fábricas para zonas de pesca mais abundantes. Havia, no entanto, mais uma razão: tanto a norte como a sul, os industriais parecem ter confiado ao organismo corporativo em que estavam enquadrados, os Grémios de industriais, a tarefa de emitir pareceres que incluíam argumentos protecionistas como a escassez de matéria-prima ou de trabalhadores.

604 Discutimos este caso em Henriques, A Baleação e o Estado Novo…, 97-117.

Nos casos de pedidos de transferência de fábricas entre diferentes centros industriais, é importante recordar as idiossincrasias da indústria. O peso do pescado na estrutura de custos e a dificuldade de manter a sua qualidade durante o transporte obrigou as empresas a tomarem a estratégia de deslocalizar as fábricas para os centros onde a pesca era mais abundante. A regulação industrial não foi indiferente a esta exigência e, regra geral, consentiu as transferências das fábricas de conservas dos locais de escassez para os locais de abundância. Este fenómeno sentiu-se em dois momentos distintos: a deslocalização de fábricas do Algarve e de Setúbal para o centro de Matosinhos, entre 1937 e 1950, e a deslocalização das empresas de fabrico de conservas de atum do Algarve para o arquipélago dos Açores, na primeira metade de sessenta.

Mas talvez o aspecto mais essencial, ainda que «invisível», seja o efeito dissuasor criado pelo CI – não pelas decisões tomadas sobre os investimentos dos agentes já instalados, mas pelas restrições legais que pairavam sobre o sector desde 1932. A evolução de pedidos de novas entradas na indústria durante os anos cinquenta e sessenta é deveras paradoxal: enquanto a produção e exportação de conservas registava as maiores taxas anuais de crescimento, o número de pedidos de novas entradas desceu, tornando-se quase nulo em meados de sessenta. Este fenómeno indica que a indústria de conservas de peixe, sobretudo no segundo pós-guerra, esteve protegida contra o interesse de novos agentes entrarem na indústria, vindos de outros ramos industriais e comerciais. Esta tendência nacional, de que o mecanismo regulatório é responsável, faz a indústria conserveira portuguesa divergir do fenómeno global de inclusão da transformação dos produtos do mar em grandes empresas nacionais ou multinacionais605. A percepção da existência de um clima dissuasor será melhor observada na análise qualitativa dos processos de condicionamento.

 

7.2.3 A regulação e o universo empresarial.

No seu modelo de construção de uma teoria económica, Schumpeter chamou a atenção para o papel das empresas e, em particular, a ação dos empresários na transformação das condições oferecidas pelas instituições, os mercados e os recursos disponíveis. A atenção sobre a actuação do empresário, ainda que fosse mais tarde transferida para a análise sobre o crescimento da estrutura organizacional de grandes empresas, permaneceu como uma área de estudo profícua606. Nas décadas centrais do século XX em Portugal, como em Espanha, o CI criou um ambiente institucional próprio sobre a ação empresarial. O enquadramento «cultural» ou a historicização da actividade industrial neste período obriga a compreender as complexas interações tecidas entre os agentes económicos privados e a regulação desempenhada por organismos da administração pública. Sobre as empresas pendiam duas tendências gerais: a primeira, de acordo com a legislação publicada nos anos trinta, era uma certa tendência para a cristalização industrial ditada pela proibição, salvo casos considerados excepcionais, de abrir novas fábricas ou introduzir novas tecnologias. Em segundo, as autorizações concedidas preservavam uma margem discricionária e centralizada na Direção-Geral da Indústria ainda que, na indústria de conservas, o processo de decisão parece ter sido negociado com diversos intervenientes.

Estas características não supõem o eclipse total dos empresários. Contrariando a visão expressa pelo conjunto de memórias dos industriais, é de admitir que muitos empresários foram a favor do CI pela proteção que lhes era concedida, ou pelo menos a ele não se opuseram. Por outro lado, os industriais preservaram um considerável espaço de manobra para contornar as regras formais, iludir o sistema e avançar com as suas estratégias de diversificação e expansão. Em suma: o CI afectava a liberdade das empresas e a ação dos empresários em diferentes domínios, mas não anulava a sua existência.

Perante a ausência de arquivos de antigas empresas conserveiras, é o arquivo histórico do IPCP que nos permite explorar as estratégias empresariais da indústria de conservas. Recorde-se que todos os requerimentos apresentados ao CI careciam de uma memória justificativa e descritiva que resulta, muitas vezes, na identificação da história da fábrica ou empresa a que o processo diz respeito. A consulta dos processos e a recolha de informação estatística permitem descobrir uma dinâmica escondida do sector que se opõe à ideia de cristalização industrial.

Um dos primeiros sintomas dessa dinâmica é o registo de movimento de capitais, prática obrigatória na indústria de conservas desde 1932. Assim, por exemplo, na temporada de 1943-44, depois de as transmissões de cotas entre sócios da mesma empresa terem já sido declaradas isentas do CI, existiram ainda 37 pedidos de transferência de títulos de capitais. Desses pedidos, vários diziam respeito ao arrendamento de fábricas, uma forma de contornar a proibição oficial de abertura de novas fábricas e entrada de novos empresários607. À margem do processo legal, desenvolvia-se um mercado de compra e venda de alvarás de pequenas unidades industriais – a maioria dos alvarás emitidos nos anos vinte, período de grande expansão no número de fábricas – em ruína ou já desaparecidas, mas cujo valor aumentava por significar uma oportunidade para a entrada de novos empresários. Mesmo nas safras de 1947-48 e 1950, quando a crise de recursos pairava sobre a indústria, existiram ainda 22 e 19 movimentos de capitais que requeriam a autorização prévia do CI, sobretudo relacionados com o aumento de capital das empresas608. Por outro lado, as estatísticas oficiais demonstram um processo de forte capitalização das empresas durante a guerra (Quadro 7.20). Entre 1939 e 1951, o capital social médio das empresas mais do que triplicou, enquanto o número de empresas subiu apenas de 129 para 147. Ao verificarmos a data de fundação das empresas em exercício em 1951, notamos que cerca de um terço tinham sido fundadas recentemente, entre 1940 e 1950 609

605 Reid, The fish supply chain…27-30.|
606 Para um balanço e prospectiva da investigação na área da «Business History» e a acção dos empresários nos processos de crescimento económico, v. Geoffrey Jones e R. Daniel Wadhwani. «Entrepreneurship and Business History: Renewing the Research Agenda». HBS Working paper, 7-007, 2006.

607 Ver, por exemplo, o arrendamento de Alberto Soares Ribeiro a José Vicente Nunes de uma fábrica filetagem de peixe pelo prazo de 5 anos; e de Francisco Alves & Filhos, em Olhão – BDGI, nº 346, 26.04.1944, 501.
608 Os pedidos de aumento de capital exigiam, como veremos, que os novos sócios provassem ser de nacionalidade portuguesa. V. os casos da Companhia Portuguesa de Congelação e de António Jacinto Ferreira Lda, em Olhão, em BDGI nº 342, 29.03.1944, 408.
609 Novas empresas que dizem respeito, em muitos casos, à transformação de empresas anteriores devido à entrada de novos investidores. Em relação a 1939, o número de empresas constituídas entre 1920-29 teve uma redução de 21,4% e as constituídas entre 1930 e 1939 de 27%. Das 50 novas empresas, 37 tinham sido criadas entre 1940 e 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. V. Estatística das Sociedades, INE, 1939 e 1951.

Uma segunda forma de abordarmos a dinâmica empresarial no sector da transformação do pescado é observar em pormenor o desenvolvimento do CI aplicado à empresa Companhia Portuguesa de Congelação, constituída em 1934, uma das poucas sociedades anónimas existentes no sector. Nesta empresa, as cedências e aquisições de ações necessitavam de autorização prévia do Instituto Português das Conservas de Peixe. Entre 1934 e 1974, existiram mais de 101 pedidos de transferência de títulos de capital, 6 de construção de novas instalações e 10 designados como «outros». Se observarmos a evolução diacrónica, verificamos que foi nos períodos de maior valorização das exportações – durante a Segunda Guerra Mundial e nas décadas de cinquenta e sessenta – que houve um maior número de pedidos. Finalmente, no que diz respeito às autorizações, a totalidade de pedidos de compra, venda e cedência de ações foram aceites. O CI não funcionou, pelo menos diretamente, como um obstáculo à capitalização da empresa. Já os escassos três pedidos que foram negados à empresa diziam respeito às tentativas de diversificar a produção com a instalação de secções de fábricas de conservas em azeite e molhos, salmoura ou filetagem de peixe. Estes pedidos foram tendencialmente negados, obrigado a Companhia Portuguesa de Congelação a manter um perfil especializado na produção de peixe congelado para exportação.

Em terceiro lugar, o impacto do CI nas empresas pode ser interpretado a partir da longa duração que nos permite ver o conjunto de pedidos e autorizações concedidas a cada empresa. A partir do arquivo do IPCP selecionámos sete fábricas pertencentes a centros industriais do sul, centro e norte do país (Quadro 7.22). Esta seleção, além de procurar uma representatividade de todo o território continental português, contém processos de longa duração que nalguns casos ultrapassam as três décadas. No caso da empresa Établissements Delory, procuramos ainda compreender se o facto de ser uma empresa estrangeira, instalada em Portugal desde finais de Oitocentos, poderia ter um tratamento diferenciado no âmbito da regulação industrial. Não foi possível confirmar esta hipótese. Contudo, como veremos, o CI constituiu uma poderosa barreira ao investimento estrangeiro e à transferência de novas técnicas de organização do trabalho, em particular durante a Segunda Guerra Mundial.

Os casos selecionados confirmam a tendência geral já esboçada no quadro 7.18. De um total de 117 processos, a grande maioria – 106 – terminaram com a autorização concedida por despacho ministerial. Todavia, as autorizações eram frequentemente acompanhadas de condições específicas para a instalação, condições que decorriam da apreciação técnica dos processos ou dos pareceres da organização corporativa e do organismo da coordenação económica. Da mesma forma, as empresas procuravam, nas memórias descritivas dos processos, antecipar as críticas ou fragilidades processuais que podiam prejudicar os seus pedidos. Note-se que tanto os pedidos das empresas como as autorizações concedidas revelam um nacionalismo económico prevalecente, relacionado com a proteção à indústria nacional e à substituição de importações de máquinas, e ainda uma proteção generalizada ao emprego em prejuízo da inovação tecnológica. Por exemplo, em 1935, o pedido da Conservas Unitas, Lda. para instalar uma máquina de limpar latas era acompanhado do argumento que o desempenho da máquina não substituía, nem podia ser substituído, pelo trabalho humano 610. No que toca à instalação de novas máquinas nas fábricas, incluindo as cravadeiras, os pedidos são frequentemente acompanhados da descrição das máquinas a instalar como sendo de «fabrico nacional», o que não só reduzia os encargos das importações como estimulava a produção doméstica 611.

Por outro lado, os processos selecionados permitem-nos observar, ainda que de forma breve, as estratégias de crescimento das empresas e a composição do seu capital social. O traço mais saliente é a presença dominante de empresas de carácter familiar. Se é certo que este tipo de empresas foi tradicionalmente observado como propenso a um certo conservadorismo na acção industrial, por oposição à grande empresa capitalista, é hoje comum reconhecer que as empresas familiares foram também focos de inovação, com estruturas flexíveis e a manutenção de relações tradicionais e fiéis com os mercados que compram os seus produtos 612. Neste exercício não iremos discutir em detalhe o desenvolvimento das estruturas empresariais. Devemos, no entanto, constatar a existência de uma importante diversidade dentro das empresas familiares. Num primeiro plano surge, por exemplo, a Pinhais, com duas fábricas em Matosinhos, que manteve sempre uma estrutura familiar, apesar de sucessivas transferências de títulos de capital, sobretudo em 1940 613. No extremo oposto encontramos algumas das maiores empresas do sector, como a Algarve Exportador e a Ramirez que, apesar das estratégias expansionistas, mantiveram também a estrutura familiar no capital social das empresas 614. Num terceiro plano estão as empresas que, apesar de não terem uma estrutura familiar, correspondem á associação de membros da mesma comunidade num projecto industrial comum. É o caso da Fábrica de conservas da Murtosa, que veremos adiante. No caso da Conservas Unitas, constituída em 1945, a nova empresa resultou da transformação de uma organização familiar de J. Ledo e Silva, Lda. em resultado da entrada de um novo investidor, Américo do Nascimento, responsável por um aumento de capital para 1000 contos 615.

Se a natureza das empresas conserveiras é diversificada, apesar da prevalência da empresa familiar, também são diversas as tentativas de expansão e diversificação da produção industrial. Ao tornar obrigatória a publicitação de todos os investimentos, o CI permite-nos perscrutar as diferentes formas que as empresas adoptaram para se expandirem. Naquelas que decidiram abrir novas fábricas nos centros onde a pesca da sardinha era mais regular, a principal estratégia foi o pedido de transferência de uma fábrica, ou de uma secção de produção, para a nova localidade. Regra geral, o CI foi conivente com estes pedidos, autorizando a progressiva concentração de empresas algarvias e setubalenses no centro de Matosinhos 616. Todavia, existiam outras formas de expansão. Em Peniche, a entrada da empresa Ramirez fez-se através da compra de uma fábrica de conservas de peixe à Sociedade de Conservas de Peniche, Lda, que deixara de laborar em 1958 617. O mesmo sucede com a empresa José António Ritta que, para abrir uma nova fábrica em Vila Real de Santo António, beneficiou de um alvará inicialmente concedido para exercer a indústria em Lagos e que foi sucessivamente transaccionado até ficar na posse do industrial 618. Podemos, enfim, confirmar que, apesar da proibição formal de abertura e venda de fábricas de conservas, os industriais beneficiaram de um sistema flexível com base na aquisição de alvarás de fábricas antigas e nos pedidos de transferência para os centros industriais mais desejados.

Conseguiram, por esta via, contornar a rigidez da regulação industrial e concretizar algumas das estratégias expansionistas.
Por último, não podemos deixar de notar que a prática do CI, não obstante o elevado número de pedidos autorizados, constituía uma barreira à inovação tecnológica e diversificação dos produtos, processos que caracterizam o crescimento das empresas. Um dos problemas subjacentes ao processo regulatório era a morosidade da tomada de decisão, mesmo sobre os pedidos mais simples. A duração dos 117 processos analisados indica uma média de 3 a 8 meses que decorre entre a entrada do pedido e a data do despacho ministerial 619. A dificuldade em obter uma autorização constituía, em si, um elemento dissuasor do investimento e podia forçar o industrial a instalar uma máquina antes de o pedido ser autorizado 620. No entanto, é nos pedidos recusados que vemos mais nitidamente como o CI afectou a liberdade das empresas. Nas empresas Algarve Exportador, Comur e Pinhais, os pedidos recusados dizem respeito à instalação de novas secções de produção industrial como as conservas pelo sal e as pastas de peixe621. Nas empresas Sociedade Comercial das Conservas de Peniche e José António Ritta, não foram autorizados processos de reabertura de fábricas. No caso da Sociedade Comercial das Conservas de Peniche, o pedido para «desdobramento» da fábrica foi recusado segundo o parecer do Instituto Português das Conservas de Peixe, o organismo de coordenação económica que tinha uma intervenção decisiva nos processos de CI 622.


O retrato geral traçado nos parágrafos anteriores permite-nos afirmar que as empresas dependiam em grande medida das decisões tomadas pela regulação industrial. Os processos de diversificação industrial e alteração da estrutura do capital social necessitavam de uma autorização administrativa que, por sua vez, envolvia a intervenção de múltiplos atores, incluindo a organização corporativa e o organismo de coordenação económica. Todavia, antes de observarmos o processo de decisão, importa salientar que as decisões da regulação industrial eram tomadas dentro de um enquadramento institucional mais vasto que abrangia o conjunto da organização social e económica do regime. O CI surge, assim, como um entre vários elementos da política económica que afectam os investimentos na indústria. Para compreender este enquadramento, analisemos em detalhe quatro problemas: a mecanização da indústria e o excesso de capacidade instalada nas fábricas; o investimento estrangeiro; a especialização nas conservas de sardinha; e o fenómeno do cluster industrial em Matosinhos.

610 DGRM, IPCP, Conservas Unitas, Lda. Setúbal (proc. 673, 1935/36).
611 Ver o pedido de substituição de duas cravadeiras Reinert por duas cravadeiras Sudry B.C. e fabrico nacional – DGRM, IPCP, Ramirez e Cª (Filhos), Lda. (proc. 3198, 1944/45)
612 Para um estado da questão sobre este debate, v. Andrea Colli, History of family business, 1850-2000 (Nova Iorque: CUP, 2003), 9 e ss. O estudo das famílias conserveiras da Galiza confirma esta tendência no sector da indústria de conservas. V. Carmona, org. Las famílias de la conserva…
613 Só entre 1940 e 1941, esta empresa teve sete pedidos de cessão de quotas. V. DGRM, IPCP, Pinhais e Cª, Lda.
614 Nelson. Ramirez: memórias de cinco gerações (Matosinhos : Ramirez & Companhia (Filhos), SA 2003), 61 e ss. Também a Algarve Exportador se vai manter na propriedade familiar até, nos últimos anos, se tornar numa sociedade anónima de responsabilidade limitada (SARL). V. , a propósito, DGRM, IPCP, Algarve Exportador, SARL ( proc. 3048, 1943/44).

615 O capital social da empresa original era de apenas 120 contos. A entrada de Américo Nascimento obteve a anuência do Grémio de Industriais de Setúbal por «se tratar de pessoas todas elas ligadas de há muito à industria de conservas». V. DGRM, IPCP, Conservas Unitas, Lda. Setúbal (proc. 3341, parecer do Grémio de Industriais de Conservas de Peixe de Setúbal, 19.04.1945).
616 V. o subcapítulo seguinte dedicado ao cluster de Matosinhos. A título de exemplo, ver o pedido da Algarve Exportador para se instalar no centro de matosinhos, em 1936, através da «Transferência da secção de cheio da fábrica de Lisboa para Matosinhos» – DGRM, IPCP, proc. 1152, 1936/1938). Este pedido de transferência daria lugar à construção da famosa fábrica nº6 da Algarve Exportador, desenhada por António Varela. V. Hugo Nazareth Fernandes, O Legado Invisível. Uma interpretação da obra de António Varela. Lisboa: Caleidoscópio, 2013.
617 DGRM, IPCP, Ramirez e Cª (Filhos), Lda (vários processos). A Sociedade Comercial de Conservas de Peniche iniciara a laboração em 1918. Como muitas fábricas de conservas, teve períodos de paralisação e laboraçoa intermitente, entre 1931 e 1933, por exemplo. Em 1939 produzia cerca de 25 mil caixas por ano, valor que correspondia à media anual das fábricas. Contudo, em 1958 mostrava dificuldades de solvência financeira e instalações obsoletes. A compra da fábrica valia, na realidade, pela aquisição do alvará que iria permitir a construção de uma nova fábrica moderna.
618 De forma resumida, em 1945 Francisco do Sacramento Pagarete pediu autorização para a reabertura de uma fábrica que estaria sem laborar desde os anos trinta. O requerente argumentava que a fábrica era «das mais antigas que se instalaram no concelho de Lagos, na época em que a produção das conservas de peixe era inteiramente manual» e que se propunha a modernizar as instalações (30.10.1945). Já o Grémio de industriais do Barlavento esclarecia que « tem este Grémio conhecimento de que o interessado tenha naquele Centro uma unidade industrial e, apenas, um velho armazém em que funcionou, até 1929, um fabrico de conservas do sistema manual e em que não existe hoje qualquer apetrechamento para a exploração que, recentemente, lhe foi autorizada. Nem sequer esse armazém teria condições para o referido equipamento industrial» (7.12.1945). Apesar dos pareceres pouco abonatórios dos Grémios de industriais do Barlavento e Sotavento algarvio, é-lhe concedida a transferência da « fábrica» para Vila Real de Santo António, em 1947. Um ano mais tarde, é autorizada a cessão de direitos de exploração da fábrica por parte de Viúva e Herdeiros de Francisco Pagarete à empresa Lusofabril. Lda. Em 1949 é autorizada a venda da fábrica a Manuel Pereira Júnior, industrial e armador da pesca da sardinha, mas o negócio não se terá concretizado; em 1957 é, finalmente, autorizada a compra da fábrica à Lusofabril por José António Ritta que era, na realidade, co-proprietário da Lusofabril, em conjunto com Domingos de Sousa Uva.
619 A morosidade dos processos foi identificado logo no início do processo, a propósito da discussão sobre a lei que tornaria o CI num mecanismo regulatório permanente. V. Brito, Industrialização portuguesa…, 120.
620 Ver, a propósito, o pedido da empresa José António Ritta para «Instalação de uma cravadeira Sudry B C 7 e uma semi-automática em substituição de duas BC 12 ou 14 autorizadas a instalar» . O requerente argumenta que não encontrou no mercado as cravadeiras que lhe tinham sido autorizadas, comprou dois modelos diferentes que funcionavam melhor e vinha, a posteriori, pedir autorização para mantê-los em laboração. Este caso coincide com a leitura de Brito sobre o CI como um processo que se «auto-alimenta» sempre que a um pedido inicial sucedem pedidos de substituição ou aquisição de máquinas acessórias, criando uma torrente de processos sobre os equipamentos industriais de cada fábrica. V. Industrialização portuguesa…, 209-211.
621 V. DGRM, IPCP, Algarve Exportador Lda., proc. 3845, 1947/1949, e proc. 3254, 1944/45; Pinhais e Cª, proc. 3109, 1944/45; Fábrica de conservas da Murtosa, proc. 3135, 1944/45, e 5139, 1960.

7.2.3.1 Mecanização e capacidade instalada.

No início dos anos trinta, o Consórcio Português de Conservas de Peixe (CPCP) subordinava o problema da mecanização das fábricas de conservas à nova política de coordenação económica do sector. De acordo com as decisões tomadas pelo Conselho de Administração do CPCP, a introdução de novas máquinas só deveria ser autorizada se não aumentasse em mais de 20 a 25% a capacidade de produção das fábricas623. Apesar de esta ser uma medida teórica, a capacidade de produção de cada fábrica resultara de um rigoroso inquérito industrial do Consórcio empreendido em 1933 e que estabeleceu a dimensão de cada empresa. Esta medida servia de base fundamental às políticas redistributivas de matérias-primas e contingentes de exportação, a repartição dos subsídios aos operários durante o período de defeso e a concessão de créditos a curto prazo às empresas. E, recorde-se, era complementada pela extensão do CI ao controlo da composição interna das empresas, a transformação das participações anónimas em nominativas e o controlo sobre qualquer modificação na estrutura do capital social 624.

Além da conveniência administrativa em deter a mecanização das fábricas e a dimensão produtiva das empresas, a autorização para a instalação de novas máquinas exigia a manutenção do mesmo número de operários inscritos no quadro da empresa requerente. Considerando que a maioria do trabalho feminino era dado como temporário, esta medida protegia sobretudo os operários masculinos. O CI aparece, assim, subordinado a imperativos de estabilidade social e dependente de outras políticas sociais do Estado Novo. Depois de, em 1934, terem sido aprovados os horários de trabalho na indústria de conservas, os operários masculinos tinham garantido, por despacho ministerial, a interdição de mulheres e moços no uso das máquinas nas oficinas de «vazio»625. Os contratos colectivos de trabalho criados a partir de 1936 também fixavam um número mínimo de horas de trabalho semanal para os operários masculinos. A principal consequência destas conquistas dos operários masculinos foi não só uma lenta mecanização no período anterior à Segunda Guerra, mas também a proliferação de numerosas oficinas de fabrico de latas anexas às fábricas conserveiras, com fabrico manual ou semi-mecanizado, impedindo a concentração e redução de custos em latoarias independentes 626.

As críticas dos industriais às dificuldades impostas pelo CI não tardaram. Em Setúbal, em 1938, os conserveiros queixaram-se da morosidade dos processos e das multas sofridas por terem instalado máquinas antes de publicada a devida autorização 627. Esta crítica era, de resto, secundada pela Associação Industrial Portuguesa e bastante divulgada na imprensa generalista, o que suscitou a intervenção da censura para manter a credibilidade do mecanismo quando este se tornava permanente, após a publicação da lei 1.956 de 1937628. Já durante a Guerra, em 1942, os representantes dos industriais reunidos no Conselho Geral do IPCP temiam que as as restrições à mecanização impostas pelo CI fossem prejudicar a competitividade externa da indústria, face ao rápido crescimento da indústria marroquina629. Não por acaso, em 1948 seria liberalizada a proibição de instalação de novas cravadeiras e cofres de esterilização, ainda que sujeita a autorização prévia, medida que respondia a numerosas críticas dos industriais no imediato pós-guerra 630.

Mas é só em 1964 que encontramos uma sugestão formal para o abandono do CI e da medida de capacidade instalada como um mecanismo central de controlo da actividade de cada empresa. Num relatório encomendado pela comissão nomeada pelo Subsecretário de Estado da Indústria para a reorganização da indústria, afirmava-se que «os estabelecimentos industriais do sector conserveiro não precisam obrigatoriamente, para atingir os melhores rendimentos, em custos e qualidades, que lhes sejam determinadas capacidades mínimas de produção em qualquer das secções do ciclo de transformação» 631.

622 V. DGRM, IPCP, Ramirez e Cª, proc. 4974, 1958. A necessidade de o IPCP emitir um parecer sobre todos os pedidos de CI foi consagrada mais de duas décadas antes, em 1936, no decreto 26:777, alínea c) do art. 16.
623 DGRM, CPCP, Livro de Actas do Conselho de Administração, fol 126. De 1932 até 1948, a introdução de novas cravadeiras só poderia ser feita pela substituição efectiva das máquinas instaladas, que deviam ser seladas ou partida na presença de um funcionário da Circunscrição Industrial. Ficavam, assim, impedidas de serem revendidas para outras fábricas.

624 Para uma análise crítica do CI aplicado à indústria de conservas, em comparação com a lei geral de 1937, v. Fernando Cruz, «Algumas observações a propósito do condicionamento da indústria de conservas de peixe», Indústria portuguesa, nº 224 (1946), 683-685.
625 V. Patriarca, A questão social…, II, 369; e Rodrigues, A indústria de conservas…, II, 259/260.
626 V. Avelino Poole da Costa, Inquérito à indústria de vazio das fábricas de conservas de peixe e à indústria de latoaria mecânica (Lisboa, Tip. Jorge Fernandes, 1946). Para uma leitura crítica deste relatório, v. José M. Lopes Cordeiro, « Algumas características da indústria portuguesa das conservas de peixe nas vésperas do segundo conflito mundial», Cadernos do Noroeste, 8, 1(1995), 36 e ss.
627 «Condicionamento Industrial», A Indústria, 31.03.1938.

7.2.3.2 Investimento estrangeiro.

O cerceamento do investimento estrangeiro na indústria portuguesa vem, antes de mais, enquadrado pelo texto constitucional de 1933 que, no art. 7º, limitava os direitos e garantias dos estrangeiros residentes em Portugal, e por diversa legislação aplicável à indústria e ao CI, em particular após a Segunda Guerra Mundial. Assim, a lei de Nacionalização de Capitais, de 1943, reservava a empresas com a maioria do capital social detido por portugueses a participação nas novas indústrias a serem lançadas no país – ainda que a dependência da importação de tecnologias e capital humano fosse uma realidade indesmentível 632. As restrições à transmissão de propriedade de nacionais para estrangeiros nos estabelecimentos de indústrias condicionadas eram, de resto, confirmadas pela lei que estabelecia as novas bases do CI em 1952 633.

A participação de estrangeiros na indústria de conservas esteve ainda influenciada pelas inúmeras restrições aplicadas no domínio das empresas da pesca e do exercício da pesca em águas territoriais portuguesas, reservada a cidadãos nacionais desde os últimos anos do século XIX, com cedências acordadas com as autoridades espanholas em sucessivos convénios de pesca634. A entrada de empresas estrangeiras na indústria de conservas, ou a propriedade de maioria do capital nas empresas existentes, veio finalmente consagrada na legislação de 1932635. Ainda que, aparentemente, as empresas estrangeiros há muito instaladas em Portugal não fossem submetidas a uma reorganização ou «nacionalização», é importante notar, segundo os processos do CI, que o cumprimento da lei foi escrupuloso. A título de exemplo, um pedido de José Correia Pontes para a aquisição de duas fábricas obteve o parecer favorável do Grémio de Industriais do Sotavento do Algarve, mas com a condição de ser alterada a escritura da empresa para que a sócia maioritária, no caso de “vir a casar-se com um estrangeiro, em comunhão de bens, […] não possa vir a ser sócio da firma” 636.

628 Sobre a actuação da AIP, v. ANTT, MCI, Cx. 28, correspondência da AIP dirigida ao Ministro, datada de 22-07.1936: “pedir providências no sentido de se evitar a morosidade do andamento dos processos sujeitos à Direcção Geral da Indústria e respeitantes ao condicionamento das indústrias […] A simples mudança de local de uma oficina, a montagem de uma instalação necessária e urgente, não podem aguardar longos meses o despacho de requerimento […]”. Sobre a censura, ver os cortes sugeridos ao artigos de Nuno Simões no «Diário de Lisboa», em Junho de 1937, e aos artigos publicados sobre o CI na revista Conservas em Maio de 1936. ANTT,MCI, Cx 23, pt. 9.
629 DGRM, IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1941-1944), fol. 289.
630 Caetano Feu Marchena, “Condicionamento Industrial. Capacidade de produção”, Conservas de Peixe, nº 4 (1946), 11/12; e António Feu, “Um passo em frente”, Conservas de Peixe, nº 33 (1949), 33-41.
631 AMO, GICPSA, Plano de reorganização da Indústria e Comercio de Conservas de Peixe, 1963-1964 («Relatório da comissão nomeada por despacho do Senhor Subsecretário de Estado da Indústria de 24/1963», 14).

632 V. Diário do Governo, Lei 1:994, 13.04.1943. ; Rosas.
633 Diário do Governo, Lei 2:052, 11.03.1952 (Base XIII).
634 Ver, por exemplo, o decreto-lei nº 24722, de 3.12.1934, que determinou a interdição da pesca em Portugal às embarcações transmitidas parcial ou totalmente a estrangeiros; e o decreto 21:360, 9.06.1932, que fazia depender de autorização do Ministério da Marinha a alienação a estrangeiros, por qualquer título, incluindo a arrematação judicial, de navios portugueses.
635 O decreto nº 21623, na alínea d) do art. 1º, estabelecia que não era permitido no exercício da indústria de conservas a «admissão de capital estranho em comparticipação de interesses e cedência ou a transferência de qualquer parte do capital social das empresas». Este enquadramento jurídico seria frequentemente citado para conter o investimento estrangeiro, mas também a entrada de novos investidores nacionais na indústria.
636 AMO, GICPSA, Condicionamento Industrial (proc. «José Correia Pontes»).

O caso Massó Lusitânia é sintomático dos receios que encobriam a entrada de empresas estrangeiras das conservas. Nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, a Massó Hermanos afirmava-se como a maior empresa conserveira da região de Vigo e, atenta ao crescimento dos desembarques de sardinha em Matosinhos, procurou associar-se ao armador e industrial Adão Polónia numa empresa mista. Além de ser uma empresa de grandes dimensões, a Massó detinha a patente de uma nova tecnologia, os canais de evisceração e fornos de cozedura contínua, que constituíram a principal inovação técnica na organização da indústria de conservas de sardinha no imediato pós-guerra.637. A entrada no centro de Matosinhos foi, no entanto, indeferida pelo CI 638.

No Conselho Geral do IPCP, todos os representantes da indústria se opuseram à empresa espanhola com três argumentos: a empresa iria introduzir “maquinaria moderna”, com graves consequências sociais, como a perda de emprego; iria especular nos mercados externos com a conserva produzida em Portugal, vendendo-a a preços baixos e compensando os prejuízos com as vendas no mercado interno espanhol; e, por último, temiam que «quanto maiores forem os lucros e a categoria industrial […] dão-lhes a faculdade de obterem, com relativa facilidade, o acesso rápido aos cargos mais importantes da organização corporativa » 639. Frente a esta ameaça, a organização ponderou adquirir as fábricas que corriam o risco de cair em mãos de estrangeiros.

Apesar de não se ter consumado a entrada da empresa Massó em Portugal, os sistemas Massó foram patenteados em Portugal e distribuídos pela empresa de Adão Polónia. Apesar do seu efeito comprovado na redução dos tempos de produção e aumento da produtividade, a sua aplicação na indústria portuguesa parece ter sido parcimoniosa. Além da referida empresa portuguesa e da Feu Hermanos, em Portimão, não existem registos da transferência deste sistema para outras empresas.

Em termos gerais, o CI funcionou como um obstáculo efetivo ao investimento estrangeiro mas, mais uma vez, devemos ter em conta a capacidade de iludir o sistema. Nesse sentido, a partir de meados dos anos sessenta já era visível a participação do investimento estrangeiro em diversos ramos da indústria portuguesa 640. Os grupos económicos que por esta altura ganham uma nova escala na estrutura produtiva afirmam-se como canalizadores do investimento directo estrangeiro, ainda que formalmente fosse executado por empresas portuguesas 641

637 Sobre os impactos desta mudança, ver Luisa Muñoz, «Dos siglos y cuatro generaciones de dinámica empresarial», Las Famílias de la Conserva…, 135/136.
638 BDGI, nº 329 (1943), 187. Negada autorização a Gaspar Massó e Eugenio Fradique Gonzalez para realizarem cotas de 45% e 15%, respectivamente, no aumento de capital para 10 mil contos requerido pela empresa Adão Polónia. Sobre o desenrolar deste processo, v. DGRM, IPCP, Massó Lusitana, Lda. Matosinhos.
639 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1940-1941), fols. 66 a 71.
640 V. Salgado de Matos, Investimentos estrangeiros em Portugal (Lisboa: Seara Nova, 1973), e Belmira Martins, Sociedades e grupos em Portugal(Lisboa: Estampa, 1973).
641 V. Ferreira da Silva, Amaral e Neves. «Business Groups in Portugal», 54.

7.2.3.3 Especialização nas conservas de sardinha.

Um terceiro vector de actuação do CI revela como a política industrial foi um mecanismo que intensificou a especialização da indústria conserveira, em particular na produção de conservas de sardinha em azeite e molhos, em detrimento de outras formas de transformação do pescado, como a conservação pelo sal e a congelação.
Esta actuação correspondia à política de valorização das exportações de conservas de sardinha, mas cedo tornou-se num mecanismo de protecção aos conserveiros que, assim, enfrentavam uma menor concorrência com outros segmentos da indústria transformadora na aquisição do pescado. A proteção aos conserveiros acentuou-se durante a Segunda Guerra, quando os baixos custos de entrada na indústria de conservas pelo sal suscitaram a multiplicação dos pedidos de instalação. Por despacho ministerial, em 1946, foram recusados mais de uma centena de pedidos de instalação da indústria da salga. Sentindo-se impedidos de exercer a actividade, os industriais da salga reuniram-se e reclamaram a sua representação na organização corporativa do sector 642.

Mas é no caso da congelação do pescado que o CI se revelou mais intransigente e com uma restrição de grande duração, inspirada pelos pareceres ditados pelo IPCP que recomendavam, invariavelmente, a proibição de instalação de estruturas de congelação no interior das fábricas. Esta medida teve uma enorme repercussão na laboração industrial, na medida em que não permitia o armazenamento das matérias-primas e o funcionamento regular da indústria ao longo do ano, nem permitia a importação de pescado em grandes quantidades para a regularização do trabalho industrial. Os pedidos de instalação foram sistematicamente negados até, pelo menos, 1969643. Note-se que o principal argumento era que a indústria portuguesa não poderia manter o mesmo padrão de qualidade se recorresse à sardinha congelada. Contudo, esta estratégia não só impedia a regularização da indústria e o fim da sazonalidade da indústria, mas também o aproveitamento de novas tendências de consumo de peixe congelado nos países europeus mais industrializados. Diferente foi a estratégia seguida em Espanha, em que a indústria transformadora teve importantes apoios públicos para a reconversão e introdução da congelação, estratégia de capital intensivo que culminou na formação da empresa Pescanova 644.

642 V. BDGI. Só a 8 de Maio de 1946, são negados 120 pedidos para instalação de fábricas de conservas de peixe pelo sal; 10 para a instalação de novas filetagens; 6 para instalação de fumagens ou secagens de peixe; 12 pedidos de instalação de novas salgas em fábricas de conservas já existentes ou para ampliação e transferência das existentes.V. «Uma exposição da indústria da salga», Conservas de Peixe, nº 18 (1947), 27.
643 DGRM, IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral do IPCP (sessão de 28.10.1969). Esta intransigência foi notada na biografia empresarial da Ramirez. V. Soares, Ramirez…, 80.

7.2.3.4 Localização industrial: o cluster de Matosinhos.

Por último, entendemos que o CI surge como um mecanismo institucional que permitiu a formação de um cluster de empresas conserveiras em Matosinhos. Não é nossa intenção desenvolver neste ponto o contributo das aglomerações de pequenas empresas na formação da economias externas e sinergias que lhes conferem competitividade, uma hipótese teórica inicialmente formulada por Alfred Marshall e discutida recentemente por Becattini e Porter, entre outros autores 645. Em Portugal, o fenómeno de cluster e competitividade deu-se na indústria de transformação da cortiça, onde os aspectos institucionais, como na indústria de conservas, foram relevante no processo de crescimento 646. Por um lado, o CI permitiu a sobrevivência de unidades de pequena dimensão e a sua transferência para Santa Maria da Feira, onde se concentraram progressivamente. Além das externalidades formadas neste centro, relacionadas com a prestação de serviços especializados à indústria, as empresas beneficiaram de custos salariais mais reduzidos do que no centro e sul do país. Esta diferença salarial regional não resultava de um ajuste entre a procura e oferta de trabalho, mas da fixação de salários por despacho do governo em 1941.

O fenómeno de cluster da indústria de conservas em Matosinhos foi semelhante à indústria de cortiça, mas com nuances atribuídas às idiossincrasias das conservas de peixe, relacionadas com a natureza dos recursos e as estratégias de diversificação das empresas. A concentração geográfica em torno do porto de Leixões, em Matosinhos, a partir de 1935, se deveu às crises de escassez da sardinha no centro e sul do país e ao facto de o peixe ser o principal elemento no custo de produção das conservas. Ora, o CI, apesar da sua natureza restritiva e protecionista, mostrou-se permeável à transferência de fábricas do centro de Setúbal e dos centros do Algarve para Matosinhos 647. Entre 1937 e 1950, foram pedidas 18 transferências e, apesar de frequentes oposições do Grémio de Industriais do Norte, apenas uma foi recusada (Quadro 7.23). No início dos anos cinquenta, Matosinhos era já o principal centro conserveiro e porto sardinheiro do país.

644 Jesús G. Rivero, « Revisitando el nudo gordiano: el desarrollo de la congelación en la pesca gallega (1960-1970)» , Areas. Revista Internacional de Ciencias Sociales, nº 27 (2008), 72/73.
645 V. Alfred Marshall. Principles of Economics; An Introductory Volume (London: Macmillan, 1920); G.Becattini, Industrial Districts. A new Approach to Industrial Change (Cheltenham, Edward Elgar, 2004);M. Porter, The Competitive Advantage of Nations (New York: The Free Press, 1990).
646 Francisco M. Parejo e Amélia Branco, « Distrito industrial y competitividad en el mercado internacional: la industria corchera de Feira en Portugal» em Distritos y clusters en la Europa del Sur, org. José Antonio Miranda, Jordi Catalan, Ramón Ramón-Muñoz (Colección Historia Empresarial: Editorial LID, 2011), 131-136.

647 As autorizações concedidas às transferências continham, sobretudo antes da Guerra, diversas condições. A título de exemplo, sobre a transferência da Fábrica de Conservas «Madrugada» para Matosinhos, a empresa Saias& Irmãos era obrigada a: « organizar o seu quadro do pessoal em Matosinhos com, pelo menos 66% de pessoal residente e inscrito em Setúbal, pagando o transporte do pessoal, e arranjando-lhe alojamento em Matozinhos; da fábrica não poder ser transaccionada durante três anos depois de feita a transferência». V. BDGI, nº 74 (1939),1028.

Por outro lado, e ao contrário do que sucedia na indústria de cortiça, os contratos colectivos de trabalho e os despachos de fixação de salários mínimos não institucionalizaram um vantagem salarial em Matosinhos. A comparação das condições remuneratórias dos contratos colectivos assinados em 1936 exibem dois grupos distintos: o primeiro, composto por Setúbal e Matosinhos, com os salários mais elevados, e um segundo composto pelos centros de Lisboa, Peniche e do Algarve com salários mais baixos648. Contudo, e por diversas razões – disponibilidade de mão-de-obra, maior mecanização da indústria e menor tradição reivindicativa – os salários efectivos em Matosinhos indicam ser inferiores aos restantes centros. Se tomarmos em comparação o ano de 1950 entre os centros de Matosinhos, Setúbal e Portimão, verificamos que os salários a Norte eram inferiores, sobretudo no caso dos trabalhadores temporários. Ao mesmo tempo, verificamos que a quantidade de sardinha desembarcada em Matosinhos era muito superior a Setúbal e Portimão e os preços médios de primeira venda eram mais baixos, sobretudo em relação ao Algarve (Quadro 7.24).

O derradeiro testemunho de formação do cluster são as externalidades que surgiram rapidamente no centro de Matosinhos, como atestam algumas monografias locais649. Entre estas conta-se a fundação de novas empresas de litografia para ilustração e estampagem das marcas em folha de flandres e, sobretudo, duas serralharias mecânicas que vão produzir a quase totalidade das máquinas utilizadas na indústria de conservas. A progressiva mecanização da indústria conserveira foi ainda um poderoso estímulo para a precoce electrificação pública do concelho de Matosinhos 650.

648 Sobre esta comparação, v. Barbosa, Sobre a indústria…, 144. Joaquim Rodrigues discutiu o cumprimento duvidoso das condições dos contratos, as denúncias dos Sindicatos Nacionais e os protestos dos industriais. V. Rodrigues, A indústria de conservas…, II, 287 e ss.
649 Tato, Memória da indústria conserveira…, 260-292; e Cordeiro, A indústria conserveira em Matosinhos…, 40-44.

7.2.4 O processo de decisão: discricionariedade ou negociação?

A tomada de decisão nos processos de CI revela a presença de múltiplos interesses e participantes, cuja intervenção estava ordenada por uma sequência temporal e hierárquica rígida (Quadro 7.25). Após uma longa fase de consultas que envolvia as empresas instaladas, a organização corporativa e o organismo de coordenação económica, o requerimento inicial era submetido a um estudo e parecer dos serviços da Direção Geral da Indústria, parecer que informava o Ministro antes da emissão do despacho e a sua publicação no boletim oficial. Pelo carácter centralizado do processo na sua etapa final, e pela ausência de critérios claros e apriorísticos na tomada das decisões, o CI tem sido descrito como um mecanismo com uma considerável discricionariedade 651. As decisões tomadas por despacho ministerial estavam, sobretudo, dependentes da apreciação casuística feita pelos serviços administrativos públicos. Além disso, dada a fragilidade de alguns processos contrastar com a sua autorização, existem razões suficientes para pensar que muitas decisões não eram tomadas diretamente através do processo formal do CI, mas sujeitas a tráfico de influências e contactos diretos com os mais altos decisores políticos 652.

Ainda que esta interpretação geral nos pareça válida, o caso da indústria de conservas de peixe ilustra como os processos de decisão resultavam também de uma negociação entre os vários participantes a montante do estudo realizado pelos serviços oficiais. A concordância entre os pareceres emitidos pela organização das conservas e os despachos ministeriais leva-nos mesmo a aceitar a hipótese que o organismo de coordenação económica e os organismos corporativos tinham uma relevante precedência na tomada de decisão sobre os investimentos. Esta característica não anula a ideia de discricionariedade porque tanto o IPCP como os Grémios de industriais, à semelhança da DGI, não respondiam a critérios claros na emissão dos seus pareceres. Todavia, a participação de diversos organismos e, em particular, a tomada de posição sobre os pedidos do CI no Conselho Geral do IPCP, onde tinham assento os representantes dos industriais de todos os centros, leva-nos a crer que existia uma margem de negociação que antecede as tomadas de decisão.

650 Cláudio Amaral, «Energia, desenvolvimento local e modernização social. A electrificação do concelho de Matosinhos (1890-1980)». Tese de Doutoramento, Porto, Universidade do Porto, 2016.
651 Para uma análise detalhada dos procedimentos, Brito, Industrialização portuguesa…, 187-224; e Pires, La regulación, 204-288.
652 Brito, Industrialização portuguesa…, 208.

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Ut elit tellus, luctus nec ullamcorper mattis, pulvinar dapibus leo.

A confrontação desta hipótese é limitada pela ausência dos estudos e pareceres finais da DGI nos processos arquivados no IPCP. Todavia, como referimos, a participação do IPCP parece suficientemente relevante para informar os despachos ministeriais, e visível, por exemplo, nas condições técnicas exigidas nos despachos ministeriais que eram transcritas dos pareceres emitidos pelo IPCP. Ao mesmo tempo, a organização corporativa funcionou como um espaço de manifestação dos interesses protecionistas e a relutância em aceitar novos investidores na indústria. Em definitivo, o clima de restrição de liberdades tornou-se claro na execução do CI e afectou de forma mais nítida as empresas. É por isso que devemos iniciar a caracterização do processo de decisão pela base.

7.2.4.1 As empresas

Fosse pela dificuldade em cumprir as medidas, fosse pela habilidade dos industriais em iludir o sistema de licenciamento, as empresas possuíam uma margem mínima para introduzir mudanças no interior das fábricas. Contudo, seria mais difícil de contornar o mecanismo regulatório quando se tratava de introduzir uma nova linha de produção e diversificar os fabricos de conservas. Além disso, num sector tradicionalmente pulverizado, é de admitir que as pequenas empresas tinham um modesto poder de influência sobre os organismos corporativos, o organismo de coordenação económica e a tutela ministerial. Estas circunstâncias, em conjunto com a abrangência do CI, faziam com que as pequenas empresas não pudessem decidir livremente sobre as suas estratégias de expansão, mas submeterem-se a um longo processo de consultas que, em última instância, subtraía-lhes o poder de decisão.

Este comportamento é visível através de exemplos concretos. Em 1943, a Fábrica de Conservas da Murtosa começou a laborar com um alvará para o fabrico de conservas em escabeche. A nova fábrica resultara da iniciativa privada para agregar produtores que exerciam a transformação da enguia em “condições higiénicas e técnicas reprováveis”653. No entanto, logo em Abril de 1944, a empresa requereu a modificação do seu alvará para que fosse autorizada a produzir conservas de sardinha e outras espécies em azeite e molhos. Alegavam que a Murtosa, afastada dos principais centros industriais, tinha dificuldades em aproveitar o pescado que era desembarcado na praia da Torreira e que a sua transformação em conserva iria animar a actividade da pesca. Apesar da bondade do projecto, o pedido foi rejeitado por despacho ministerial, sustentado pelo parecer negativo do Grémio dos Industriais.

Dezasseis anos mais tarde, em 1960, a empresa voltou a requerer a transformação do seu alvará para fabricar conservas em molhos, alegando que a escassez de enguia na ria de Aveiro não permitia continuar com a especialização de conservas em escabeche e que novas empresas de conservas se tinham transferido do Algarve para a região de Aveiro 654. O pedido foi novamente recusado, com o mesmo argumento utilizado em 1945, assente na exclusividade do alvará para o fabrico de conservas em escabeche e a inconveniência de ter mais um produtor de conservas na região Norte. Após uma terceira tentativa sem sucesso, em 1965, o fabrico de conservas em azeite e molhos na Murtosa só seria aceite no final do regime, em 1974. O caso demonstra inequivocamente que houve estratégias de diversificação interrompidas pelo CI.

Noutros casos, as autorizações concedidas às empresas foram condicionadas por exigências específicas, não previstas pelas empresas no momento de apresentação dos pedidos e que resultavam da apreciação dos processos pela organização corporativa e os organismos de coordenação económica. Essas condições revelam, por exemplo, a necessidade de resolver conflitos de interesse, a integração vertical da pesca e conservas ou a manutenção do quadro permanente de operários da empresa. Delfim Linhares de Andrade, na ilha do Pico, desejou instalar uma fábrica de conservas de atum em 1964, mas só seria autorizado se construísse quatro barcos atuneiros e incluísse na empresa os pescadores e armadores interessados 655. As grandes empresas não estiveram imunes a estas condições particulares. Em 1936, a Algarve Exportador – a maior empresa do sector – desejava transferir a sua fábrica de Lisboa, em Alcântara, para Matosinhos. A transferência foi autorizada, mas com a ressalva de se manter a secção de “vazio” da fábrica de Alcântara e o número de operários do quadro permanente. A propósito destas condições, Filipe Nazareth Fernandes, gestor da empresa e filho do fundador Agostinho Fernandes, recordava que a manutenção das oficinas de “vazio” onerava o exercício da indústria, mas era um «mal necessário» das empresas para poderem cumprir com os encargos previstos nos contratos colectivos de trabalho e assegurar um trabalho regular aos operários masculinos 656.

7.2.4.2 A organização corporativa.

Os exemplos recolhidos sobre as empresas permitem afirmar que existia uma relação desigual entre estas e as autoridades públicas. Quando uma empresa elaborava o requerimento inicial, desconhecia as regras gerais a que deveria obedecer – salvo aquelas determinadas pela lei que criara o IPCP e regulamentara o condicionamento da indústria de conservas. As decisões finais, porém, continham obrigações que dependiam de uma apreciação casuística do requerimento e obrigavam as empresas a acatar condições específicas. Ora, durante este processo de apreciação casuística, a consulta à organização corporativa – em particular ao Grémio de industriais em que estava inscrita a empresa – constituiu uma das etapas mais relevantes do processo. E aqui reside um aspecto interessante. Se, num plano individual e de forma mais ou menos deliberada, os industriais conserveiros se opuseram às restrições do CI, num plano «colectivo», ainda que centralizado nas direções dos Grémios, a posição face ao CI foi mais conservadora do que se poderia crer.

Se tomarmos como exemplo um conjunto de 27 processos de CI que deram entrada no Grémio de industriais de conservas do Sotavento do Algarve entre 1936 e 1974, verificamos que o Grémio emitiu 13 pareceres positivos e 14 negativos. Entre os pareceres negativos, todos – com uma excepção – diziam respeito a novas instalações, incluindo reaberturas de fábricas e lançamento de novas linhas de produção. Os argumentos para a negação dos pedidos incluíam a determinação de uma localização imprópria, a ausência de comprovação de condições técnicas para o exercício da indústria, a exiguidade de recursos marinhos para suster o aumento da procura industrial e a indesejável concorrência com projetos industriais patrocinados pelo Grémio, em particular o lançamento da indústria de óleos e farinhas de peixe (Quadro 7.26).

Este desempenho da organização corporativa reforça a hipótese que o CI funcionou como um agente de corporativização da indústria. O processo burocrático, com a participação de diversos intervenientes, mas subordinado a uma decisão administrativa, substituía o princípio de economia «autodirigida» defendido na doutrina do corporativismo. E mesmo quando observamos a possibilidade de a organização corporativa participar no processo, através de pareceres não vinculativos, não podemos esquecer a composição oligárquica dos Grémios e o facto de as decisões não serem tomadas com a auscultação do conjunto de industriais de cada centro. Esta oligarquização também é válida para caracterizar o Conselho Geral do IPCP, organismo que emitia o parecer final antes de o processo ser remetido à DGI.

653 DGRM, IPCP, «Fábrica de Conservas da Murtosa, Lda» (proc. 3135, 1944/1945).
654 DGRM, IPCP, «Fábrica de Conservas da Murtosa, Lda» (proc. 5139, 1960).
655 BDGSI, Despacho de 29 de Abril de 1964.
656 Arquivo DGRM, Fundo IPCP, “Algarve Exportador, SARL. Matosinhos (I).
; e Filipe Fernandes, “Condicionamento do Vazio” in Conservas de Peixe, nº 6 (1946), p. 7.

7.2.4.3 IPCP: O organismo de coordenação económica.

Finalmente, importa regressar ao papel do organismo de coordenação económica, o IPCP. À partida, como referimos, a estrutura formal mantinha a possibilidade de ser exercido um poder discricionário na tomada de decisão final pela DGI e o ministro. Contudo, o nível de concordância entre os pareceres do Conselho Geral do IPCP e as decisões finais emitidas por despacho ministerial é tão elevado que nos leva a crer, quanto a este sector da indústria, que existiu uma preponderância das decisões do organismo de coordenação económica sobre a DGSI 657.

Desde os anos trinta, o IPCP estabeleceu, através de circulares e do seu laboratório, uma regulamentação precisa sobre as máquinas, o controlo da qualidade das matérias-primas e do produto final. O IPCP dispunha de quadros ocupados por engenheiros industriais que avaliavam as propostas dos requerentes, exigiam alterações segundo as normas internas em vigor ou recomendavam o seu indeferimento. Esta regulamentação específica estendia-se à própria dimensão do capital social das empresas658. Dentro do organismo de coordenação económica devemos, no entanto, distinguir duas instâncias: os serviços industriais do Instituto, que produziam pareceres técnicos, e o Conselho Geral, composto pelos presidentes dos Grémios de industriais, a direção e o delegado de governo, que emitiam o parecer final.

No caso dos serviços industriais, os pareceres técnicos emitidos sobre o CI revelam a importância determinante das regras estabelecidas pelo Instituto. Já vimos como, nos anos trinta, a mecanização das fábricas foi atrasada pela necessidade imposta pelo IPCP de as empresas manterem o mesmo número de operários depois de instaladas as novas máquinas. Este tipo de exigência, muito frequente, era nalguns casos complementado por condições mais específicas. Em 1937, por exemplo, para a defesa de um alvará um industrial tinha de assegurar um mínimo de produção, empregar operários desempregados e não exceder 5% da capacidade de produção que o IPCP lhe tinha determinado659. É certo, porém, que houve um paulatino relaxamento das medidas restritivas e, no que toca à mecanização das fábricas, o processo começou a ser visto como inevitável. A este propósito é eloquente uma circular do IPCP emitida em 1943:

“Não podem os conserveiros desconhecer que os industriais estrangeiros, num trabalho contínuo e silencioso, a cada momento aperfeiçoam a sua técnica para produzirem mais, melhor e mais barato. Parece indispensável que a indústria portuguesa das conservas entre no mesmo caminho. Não pode negar-se que muitas das instalações existentes não dispõem nem da aparelhagem mais moderna, nem de uma arrumação correcta, do que resulta fatalmente um elevado preço de custo. Em todas as instalações é sempre possível introduzir melhoramentos e para isso parece excepcionalmente propício o momento actual porque é indispensável que se esteja apto no momento da Paz para produzir em condições perfeitas.”660

Na realidade, a circular refletia a preocupação dos serviços industriais em melhorar as condições da indústria e uma crítica velada ao CI. Henrique Parreira, diretor dos serviços industriais do Instituto, opunha-se às “concentrações capitalistas” mas sublinhava a necessidade de concentrar “as pequenas oficinas em fábricas de tamanho conveniente, utilizando maquinismos de melhor produção e maior rendimento”661. Já o seu sucessor, Pinheiro de Magalhães, também membro da Direcção do IPCP, advogou pela liberdade total na montagem de cofres e cravadeiras no imediato pós-guerra, salientando a urgente necessidade de redução dos custos de produção 662.

A jusante da apreciação técnica dos serviços industriais estavam as reuniões do Conselho Geral onde eram discutidos todos os pedidos de CI. Note-se que nem todas as decisões foram tomadas por unanimidade. A entrada da Algarve Exportador em Matosinhos teve o parecer contrário do representante do Grémio do Norte mas foi,

657 Se tomarmos como exemplo os 30 processos da Fábrica Algarve Exportador em Matosinhos, notamos que apenas um não obteve a concordância entre o parecer do IPCP e a decisão final tomada por despacho ministerial.
658 Ver, sobre a autoridade técnica dos pareceres do IPCP, DGRM, IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1937), fols. 5/6. No mesmo ano, deliberou-se que “salvo razões especiais […] seja exigido às empresas industriais que se reorganizem com pessoas estranhas e sob a forma de sociedades limitadas, um capital correspondente a 15$00 por cada caixa de capacidade de produção.

659 DGRM, IPCP, Conselho Geral. Deliberações (Sessão de 31.03.1937). Note-se ainda, no mesmo ano, a exigência feita à empresa Marques & Neves, que pedira a transferência para Matosinhos, de empregar dois terços do pessoal que detinha na sua fábrica em Setúbal, caso estes se quisessem deslocar para Matosinhos (Idem, sessão de 6 e 7.12.1937)
660 DGRM, IPCP, Circulares, nº 547 (3.10.1943).
661 Henrique Parreira, “Concentração Industrial” in Conservas de Peixe, nº 6 (1946), p. 11/12.
662 DGRM, IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral (1947-1950), fols 49 a 54.
663 DGRM, IPCP, Conselho Geral. Deliberações (Sessão de 16 a 19.11.1937).
664 DGRM, IPCP, Ramirez (proc. 2771, 1942).
665 DGRM, IPCP, « Fábrica de Conservas da Murtosa », proc. 2871 (1942/1943).
666 DGRM, IPCP, « José António Ritta », proc. 3572 (1946/1947).

ainda assim, aprovada 663. Por outro lado, é de prever que os critérios para a emissão de um parecer favorável ou desfavorável foram porosos ao ponto de deixarem os industriais em suspense para conhecerem as decisões do Conselho. Se, nalguns casos, era suficiente considerar que o pedido devia ser deferido porque o requerente era pessoa bem aceite no Grémio664, ou porque o pedido de instalação fazia a indústria «sair dos moldes rotineiros da indústria caseira»665, noutros casos os pareceres eram negativos porque corriam o risco de criar desequilíbrios na oferta de trabalho e na concorrência de aquisição do pescado666. Em suma, as posturas são diversificadas, não parecem obedecer a regras claras e apriorísticas e fazem supor a capacidade de influência directa de alguns industriais sobre os representantes no Conselho Geral. Sublinhe-se, no entanto, que a elevada concordância dos pareceres do Conselho Geral e das autorizações finais indicam que esta era uma instância decisiva para a aprovação dos projectos na indústria de conservas de peixe.

7.2.5. A reorganização da indústria: um projecto adiado.

O impacto do CI a longo prazo na indústria de conservas confronta-nos com o problema da reorganização da indústria. Sobre este fenómeno é necessário estabelecer três ideias fundamentais. A «reorganização industrial» era um dos pilares essenciais da política industrial gizada por Ferreira Dias em 1945. Por reorganização entendia o Secretário de Estado da Indústria a necessidade de concentrar os sectores industriais mais dispersos, propor a integração vertical, modernizar unidades industriais capazes de produzir com maior qualidade e menor custo 667. Em segundo, a ideia de reorganização industrial foi recuperada no debate sobre o movimento de integração económica europeia no início da década de sessenta. A perspectiva de instalação de um comércio livre de produtos industrais entre os países europeus tornava premente a reorganização das indústrias mais dispersas para poderem suportar a concorrência internacional e alcançarem ganhos de produtividade industrial. O aumento da produtividade era, nas visõs mais progressistas, uma condição essencial para o desenvolvimento económico geral do país668. Em terceiro lugar, a indústria de conservas tivera o seu plano de reorganização de forma algo precoce, em 1956, com a publicação do decreto preparado por Correia de Oliveira. Note-se, todavia, que a «reorganização» referida no próprio decreto se cingia à necessidade de estabelecer novas condições na aquisição do peixe na lota e nas vendas dos mercados externos 669.

Apesar da moldura legal que propunha e legitimava a reorganização da indústria de conservas de peixe, é certo que nenhuma medida significativa foi tomada neste sentido. Um dos sintomas mais evidentes é a manutenção do mesmo número de unidades de fábricas de conservas em azeite e molhos em todo o país que, em 1953, eram 180 e, em 1965, 179 670. Na realidade, tanto o funcionamento do organismo de coordenação económica e da organização corporativa como o CI eram contrários à concentração do número de fábricas. Por um lado, ao assegurar a distribuição das matérias-primas, em particular nas conjunturas de crise e subida dos preços, e ao estabelecer cotas de laboração, o IPCP assegurava uma vasta proteção às empresas marginais, e os incentivos para extensão das unidades industriais não eram aliciantes. Por outro lado, é razoável supor que a maioria dos industriais secundava a política «equitativa» do organismo de coordenação económica e condenava a política de «reorganização industrial» como uma excessiva injerência sobre a liberdade das empresas671. No que diz respeito ao CI, a análise empreendida até aqui parece-nos suficiente para afirmar que o modelo não era favorável à concentração e fusão de empresas. A concordância com a quase totalidade dos pedidos de modificações, a recusa de entrada de novos investidores, nacionais e estrangeiros, e o favorecimento a uma especialização produtiva nas conservas de sardinha, recurso instável, constituíam obstáculos à criação de empresas de maior dimensão que estivessem preparadas para a crise que assolou o sector a partir de 1967 672

667 Ferreira Dias distanciava-se, assim, da suspeita que «reorganização» podia significar o apoio do Estado à formação de empresas monopolistas que seriam prejudiciais aos consumidores e favoreceriam a acumulação capitalista. V. Linha de rumo…, II, 46/47.
668 Ver, por exemplo, Armando Castro, Algumas exigências económicas da reorganização industrial em face da integração económica europeia (Lisboa: s.n., 1960), 4.
669 Diário de Governo, Decreto-Lei 40787, 27.09.1956. A introduçãoo do decreto deixa evidente a prioridade de organizar o sistema de venda das lotas e da comercialização das conservas como medidas de reorganização. E confessa que estavam por resolver os problemas de reorganização industrial e do aumento da produtividade da indústria. Ainda assim, era estabelecido no art. 8º que o Governo iria proceder à imediata reorganização da indústria através da regulamentação do condicionamento industrial, a elaboração de regulamentos sobre as condições técnicas da exploração das fábricas e o estabelecimento da dimensão mínima das fábricas e outros controlos administrativos.
670 Ver quadro 7.5.

671 « Entende-se, todavia, a inconveniência de vária ordem que poderia advir de eventual concentração imposta a grupos ou algumas empresas ou fábricas. Prefere-se a solução deixar à livre iniciativa das empresas, tomar a decisão de concentrarem a sua actividade com a de outras empresas, ou até, de decidir cessar definitivamente a sua actividade, aplicáveis a processos individuais aprovados pela representação corporativa do sector, que torna possível, e aliciante em determinados casos, os encerramentos e as fusões desejadas pelos interessados». V. AMO, GICPSA, Plano de reorganização da Indústria e Comercio de Conservas de Peixe, 1963-1964. («Relatório da comissão nomeada por despacho do Senhor Subsecretário de Estado da Indústria de 24/1963,» 14)
672 Para uma crítica à ação do CI e a defesa da actuação dos organismos e coordenação económica e da organização corporativa na resolução dos problemas entre a produção industrial e o consumo, v. José da Silva Baptista, Reorganização industrial e ordem corporativa (Lisboa: s.n., 1957), 28/29.

7.3 Conclusão: uma cristalização industrial?

O crescimento da indústria de conservas teve duas características essenciais. Em primeiro lugar, foi um crescimento sem diversificação, assente na contínua especialização em produzir conservas de sardinha; e, em segundo, foi um crescimento sem uma reorganização industrial, o que colocou dificuldades para reduzir os custos de produção. Estas duas circunstâncias podiam levar-nos a crer que houve uma certa cristalização industrial. E que o crescimento da indústria foi sustentado por dois movimentos exógenos: a expansão dos mercados externos onde havia pouca concorrência às conservas de sardinha portuguesas; e o crescimento sustentado das capturas que permitiu conter o custo da principal matéria-prima, sobretudo no Norte.

Na realidade, a cristalização da indústria conserveira deve ser matizada. Os dados agregados sobre a produção, o número de fábricas e empresas inibem a verificação de mudanças na acção empresarial. Existiram pelos menos duas alterações relevantes: a formação de várias novas empresas e movimentos de capital no segundo pós-guerra e uma importante mecanização das fábricas. Este fenómeno de mecanização revelou, sobretudo, um aumento da capacidade instalada, com a multiplicação de cravadeiras e autoclaves, cuja tecnologia era já conhecida desde o primeiro terço do século XX. O processo de mecanização foi, se quisermos, uma mudança conservadora: as fábricas alteraram a sua estrutura e a organização do trabalho até um limite em que asseguravam os equilíbrios internos e os compromissos com as instituições do Estado Novo. Entre esses equilíbrios era necessário garantir a ocupação intensiva dos trabalhadores disponíveis nos centros do litoral e moderar a expansão da capacidade de produção instalada. Enquanto a manutenção do trabalho intensivo podia ter uma «racionalidade» associada à preservação da qualidade das conservas, o controlo sobre a dimensão das empresas revela os receios da criação de desequilíbrios regionais e o efeito disruptivo que teria a eliminação das empresas marginais.

A indústria de conservas não foi submetida à política de «reorganização industrial» preconizada por Ferreira Dias em 1945. Mas, por outro lado, a regulação incrustou a acção empresarial ao Estado. O condicionamento industrial teve impacto na dimensão das empresas, na sua localização e na especialização produtiva. As decisões regulatórias não dependeram apenas da apreciação técnica dos requerimentos, mas de uma série de compromissos relacionados com a política económica do regime: a barreira ao investimento estrangeiro, a questão social e a «missão exportadora» das conservas de sardinha em azeite e molhos. Todavia, como não existiam regras claras e apriorísticas e participavam vários intervenientes, as decisões não foram totalmente discricionárias. Do centralismo exercido pela Direcção Geral da Indústria na execução do condicionamento industrial passamos para um processo de negociação em que as empresas, a organização corporativa e o organismo de coordenação económica competiram em defesa dos seus interesses. A concordância entre os pareceres do Instituto Português de Conservas de Peixe e os despachos ministeriais foi grande, mas os organismos corporativos assumiram uma veia protecionista sobre os novos pedidos de entrada. Os empresários não devem ser vistos apenas como «vítimas da regulação»; os processos analisados permitem ver como foram capazes de iludir as obrigações do CI, ao mesmo tempo que se queixaram dos seus excessos ou propuseram a sua continuidade. Como em todas as dimensões de um regime autoritário, os mecanismos que afectavam a liberdade das empresas não podiam viver apenas do carácter coercivo ou repressivo, nem da absoluta discricionariedade da administração.

Conclusão da Segunda Parte.

Nos últimos dois capítulos propusemos uma análise densa sobre a utilização dos recursos naturais, a estrutura e a regulação da concorrência na indústria de conservas. Ao contrário da perspectiva seguida na primeira parte, com um estudo do funcionamento da organização institucional, aqui interessou-nos sobretudo identificar a ação das empresas e as características da produção. É sobre os agentes económicos privados que devemos tecer algumas conclusões.
Da análise das indústrias da pesca da sardinha e produção de conservas sobressai um paradoxo: apesar da forte integração entre as duas indústrias, as empresas de pesca e da indústria continuaram a exercer a atividade separadamente. Foram poucos os conserveiros que se fizeram armadores e ainda menos os armadores que se tornaram conserveiros. À partida, esta relutância na integração vertical pode dever-se ao risco e irregularidade das capturas, ou ainda a fenómenos específicos como a dificuldade em ter ganhos de produtividade com traineiras grandes ou fábricas de grande dimensão que lidavam com uma produção sazonal. O segundo aspecto a ter em conta é a dupla especialização da pesca nas capturas de sardinha e da indústria na produção de conservas de sardinha em azeite. A diversificação industrial, quer de produtos quer de mercados, esteve quase ausente até aos anos sessenta.

Esta configuração das iniciativas privadas não esteve isolada da ação pública. Na pesca da sardinha, o equilíbrio entre o «condicionamento» de novas entradas e o «fomento» na renovação das frotas favoreceram a especialização produtiva, na medida em que permitiram aos armadores expandirem o seu esforço de pesca e garantiram que a concorrência não sofreria alterações substanciais. Porém, o tabelamento dos preços de pescado ao consumo induziu em todo o sector das pescas um panorama de descapitalização que dificultava a introdução de novas tecnologias como a pesca oceânica e o frio industrial a bordos dos navios de pesca. Na indústria transformadora, as tentativas de diversificação industrial, ainda que tímidas, tenderam a ser recusadas pelo modelo discricionário da regulação industrial. Os motivos para esta recusa advêm do receio que novos segmentos da transformação poderiam colocar em causa a precedência dos conserveiros na aquisição do melhor pescado em lota. Indiretamente, as recusas de diversificação industrial, acompanhadas pela barreira ao investimento estrangeiro, contribuíram para a contínua especialização da indústria conserveira portuguesa.
Estas tendências, que podemos designar como conservadoras, foram no entanto acompanhadas por uma conjuntura positiva. Os mercados europeus, apesar do abrandamento da procura, continuaram a importar conservas de sardinha; a oferta de recursos marinhos acompanhou a procura e a inovação tecnológica da pesca; e as pequenas empresas criaram sinergias para serem competitivas, como demonstra a formação do cluster de Matosinhos. Todos estes factores seriam postos à prova na segunda metade dos anos sessenta.

Scroll to Top