Indústria, Comércio Externo e Intervenção Pública. As Conservas de Peixe no Estado Novo (1927-1972)
Francisco Maia Pereira Bruno Henriques – 2022
PRIMEIRA PARTE – A Missão exportadora: Estado, grupos de interesse e comércio externo.
4. A Guerra (1939-1945).
5. A integração na economia europeia (1946-1966).
4. A Guerra (1939-1945).
A Segunda Guerra Mundial transformou a pesca costeira da sardinha e a indústria de conservas. Em grande medida, a experiência foi diferente da Primeira Guerra Mundial. Em 1914-1918, e nos anos seguintes, houve um extraordinário crescimento da produção, do número de fábricas e do volume das exportações. Pelo contrário, na Segunda Guerra Mundial deu-se uma estabilização no volume da produção, acompanhada de uma contenção no número de novas fábricas. Como se explica esta diferença? A primeira razão tem a ver com o facto de a indústria nos anos trinta ter passado por uma fase de consolidação na sua distribuição territorial, ao contrário do que sucedia em 1914. Por outro lado, as circunstâncias em que Portugal participou na guerra, como país neutral, influenciou sobremaneira o comércio das conservas.
Neste capítulo desenvolvemos a hipótese que as exportações de conservas foram uma das garantias da neutralidade portuguesa e o mais valioso produto das exportações, pelo menos segundo as estatísticas oficiais. Além de as conservas serem um produto estratégico para as operações militares, a disputa pelas conservas feita pelos países beligerantes provocou a sua hipervalorização e permitiu a importação das matérias primas necessárias ao seu fabrico.
Depois de discutirmos os conceitos de neutralidade e comércio estratégico, argumentamos como a produção de conservas se tornou um agente indispensável da neutralidade portuguesa. Em segundo lugar, caracterizamos a estatização do comércio conserveiro realizada pelas instituições oficiais, com destaque para a celebração dos contratos de vendas colectivas, uma inovação institucional que garantiu a sobrevivência do comércio. Finalmente, indagamos sobre se a guerra constituiu ou não uma etapa de inovação empresarial no sector, por um lado, e uma oportunidade para a integração económica com outras indústrias portuguesas, nomeadamente para a produção de bens intermédios que as conserveiras necessitavam.
4.1. Neutralidade e comércio estratégico.
A Segunda Guerra Mundial, nas palavras de Eric Hobsbawm, foi uma «guerra total» que mobilizou a maior parte da sociedade civil, modificou as economias para o fabrico massivo de armas e produziu uma destruição inédita que transformou as vidas e instituições dos países participantes208. Na interpretação clássica de Alan Milward, o estudo das economias de guerra deve ter em conta não só o potencial de uma economia se preparar para a guerra, mas também a «síntese estratégica» que permitiu, em cada país, mobilizar os recursos de maneira eficiente para alcançar a vitória militar209. Na Alemanha, a preparação de uma economia de guerra foi conjugada com o expansionismo territorial do Terceiro Reich. Nos anos trinta, à medida que o investimento nos planos quadrienais se dirigiu ao rearmamento e à preparação das ofensivas militares (Blitzkrieg), medrou o projecto de uma «Nova Europa» autossuficiente e politicamente autónoma. Hitler, porém, debateu-se com as insuficiências dos territórios ocupados – quer no fornecimento de bens e serviços, quer na expansão das culturas agrícolas, que careciam de uma mão-de-obra intensiva – e, perante o avanço dos Aliados, prescindiu do colaboracionismo e mobilizou todos os meios para a vitória final210. Por outro lado, no Reino Unido, e sobretudo nos EUA e na União Soviética, o início da guerra não teve uma «síntese estratégica». Em grande medida, o bloqueio continental britânico resultou da expansão «napoleónica» do Terceiro Reich, a que se seguiram outras medidas, como uma intensa relação comercial com os países neutrais. A evolução do conflito criou um enorme défice orçamental com despesas militares britânicas superiores às da Alemanha, mesmo depois de a União Soviética e os Estados Unidos terem entrado na guerra211.
208 Eric Hobsbawm, Historia del Siglo XX (Barcelona: Crítica, 1995), 52.
209 Alan Milward, War, economy and society : 1939-1945 (Middlesex : Penguin, 1987), 19 e ss.
210 Mark Mazower,. Dark continent : Europe’s twentieth century (London : Penguin Books, 2018).
211 David Edgerton, «Controlling ressources. Coal, iron ore and oil in the Second World War» em The Cambridge History of the Second World War, org.,Michael Geyer e Evan Mawdsley (Cambridge: Cambridge University Press, 2015), 135-140.
No jogo de forças entre os beligerantes, os países neutrais desempenharam um papel crucial enquanto prestadores de serviços, de capital e de trabalho e como parceiros no comércio de bens essenciais. Note-se que o princípio da neutralidade jurídica, estabelecida pelo direito dos tratados e pelo costume internacional, foi subvertido pelo desenvolvimento da «guerra total». Nas vésperas do conflito, catorze países declararam a neutralidade, mas cerca de um terço foi ocupado, invadido ou tornou-se voluntariamente beligerante212. Não existe, portanto, uma neutralidade colectiva, por oposição a um estatuto de beligerante ou «não beligerante». Mas é possível comparar as relações entre os países neutrais e os beligerantes, tendo em conta as condições que os primeiros tinham para dissuadir, ou cooperar, com os segundos. Na sua maioria, os países que mantiveram a neutralidade tiveram no comércio um factor decisivo213.
Quais foram os factores determinantes da neutralidade portuguesa? A posição de Portugal na Segunda Guerra Mundial foi amplamente discutida e não é nosso objectivo fazer aqui um balanço sobre as diferentes perspectivas de análise. Podemos, no entanto, destacar três leituras sobre a neutralidade que, mais do que oporem-se, são complementares. A primeira debruça-se sobre a ação dos diplomatas portugueses em Lisboa, Madrid e Londres. Pedro Teotónio Pereira teria o mérito de controlar as tendências germanófilas do franquismo e as pressões anexionistas sobre Portugal após a ocupação de França e a entrada de Itália na guerra214. Em Londres, Armindo Monteiro estabeleceu um diferendo com Salazar, consciente da tensão em redor da aliança britânica e a postura equidistante cultivada pelo chefe de governo até final de 1942215. Segundo esta linha, Salazar nunca teria deixado de tomar as principais decisões através das informações diplomáticas, usando a sua intuição e a capacidade de entender a evolução do conflito216. Uma segunda interpretação sublinha a condição geoestratégica de Portugal. Sem um dispositivo militar dissuasor, a posição geográfica do continente e das ilhas portuguesas permitiu, por um lado, o afastamento do expansionismo territorial da Alemanha e, por outro, um trunfo no controlo do Atlântico217.
212 Wylie Neville, org. European neutrals and non-belligerants during the Second World War (Cambridge: CUP, 2002).
213 Golson, Eric. «The Economics of Neutrality: Spain, Sweden and Switzerland in the Second World War». Tese de Doutoramento, Londres, London School of Economics and Political Science, 2011.
214 Ver Castro Fernandes, José. «A política externa portuguesa e a neutralidade peninsular na II Guerra Mundial (1939-1942)». Tese de Doutoramento em Relações Internacionais, Lisboa, Universidade Lusíada de Lisboa, 2016.
215 Ver Pedro Aires Oliveira, Armindo Monteiro. Uma biografia política (1896-1955). (Venda Nova: Bertrand, 2000), sobretudo o capítulo VI.
216Filipe Ribeiro Menezes, Salazar. Uma Biografia política (Alfragide : Dom Quixote, 2014), capítulo V.
217Luís Andrade, «A neutralidade e os pequenos estados. O caso de Portugal (1939-1945)». Arquipélago. História, 1 -1 (1995).
A partir de 1943, a cedência de «facilidades» militares aos Aliados no arquipélago dos Açores foi decisiva na definição da «neutralidade colaborante» e garantiu, pelo menos, o consentimento sobre a continuidade do regime autoritário após a vitória das democracias. Finalmente, o comércio externo foi também um mecanismo de neutralidade. O controlo das importações britânicas sobre Portugal e, sobretudo, as exportações de produtos estratégicos para o Eixo e os Aliados permitiram um equilíbrio da posição neutral 218.
Em comparação com outros neutrais, faltavam a Portugal condições para oferecer trabalho e capital aos países beligerantes mas, em contrapartida, poderia dispor de mercadorias estratégicas e, ocasionalmente, serviços de transporte marítimo219. Note-se, em 1940, os acordo entre os diplomatas portugueses, ingleses e espanhóis para o fornecimento de trigo e produtos coloniais a Espanha, com navios portugueses, como forma de combater a escassez de alimentos no país dilacerado pela guerra civil e também dissuadir as tendências germanófilas. Desde 1939, Portugal e Inglaterra estabeleceram favoráveis condições de pagamentos que permitiram a concentração do comércio externo com Inglaterra e a acumulação de um saldo positivo no comércio bilateral 220. Na balança comercial, a subida do valor das exportações foi superior às importações, provocando um inusitado superavit entre 1941 e 1943. Tradicionalmente, essa transformação é atribuída ao comércio de volfrâmio que representou cerca de 40% das exportações entre 1942 e 1943. Todavia, é possível distinguir outros cinco produtos – algodão, cortiça, conservas de peixe, estanho e resinosos – que ocuparam o pódio das exportações e representaram, em conjunto, entre 63 e 90% das exportações (Quadro 4.1.). Entre esses produtos, avultam as conservas de peixe como o mais valioso em 1939 e de 1943 a 1945.
218 Para uma análise do comércio externo durante a Segunda Guerra Mundial, em conjugação com outros factores, ver Fernando Rosas, Portugal entre a paz e a guerra: estudo do impacte da II Guerra Mundial na economia e na sociedade portuguesa (1939-1945) (Lisboa: Estampa, 1990); António Telo, A neutralidade portuguesa e o ouro nazi. (Lisboa: Quetzal, 2000), e Eric Golson, « The Allied Neutral? Portuguese Balance of Payments with the UK and Germany in the second world war, 1939-1945». Revista de Historia Económica, 38-1 (2020): 79-110.
219 Golson, The Allied Neutral…, 79.
220 Abreu, Marcelo de Paiva. «A ‘blank cheque’? Portuguese Second World War sterling balances, 1940-73». The Economic History Review , 67 – 2 (2014): 535-555.
O quadro revela que, a partir de 1941, as exportações dos seis produtos estratégicos ocuparam a quase totalidade do comércio externo. Entre estas, destacam-se as conservas de peixe, o produto mais valioso e, 1939, de 1943 a 1945 e no conjunto total dos anos da guerra. Com efeito, o comércio de conservas tem um perfil diferente da «euforia» do volfrâmio, a que regressaremos adiante. Desde o início do conflito até ao seu estertor, a procura pelas conservas portuguesas foi gerida politicamente e tornou-se um agente da neutralidade portuguesa.
4.2. As conservas como agente da neutralidade portuguesa.
A principal hipótese que desenvolvemos neste capítulo é a venda de conservas ter sido um agente fundamental da neutralidade portuguesa. A produção regular de conservas, que não se verificou noutros países devido aos constrangimentos da guerra, permitiu satisfazer a procura dos países beligerantes. Os destinos das exportações variaram de acordo com as dinâmicas da neutralidade. Em 1939, o valor das conservas já dava sinal de um franco crescimento (Quadro 4.2.): as exportações valeram 249 mil contos, em preços correntes, enquanto no triénio 1936-38 tinham valido, em média, 196 mil contos. Mas o maior crescimento deu-se nos anos seguintes: 523 mil contos, em 1941, e um máximo de 904 mil contos em 1943, com tendência para descer até 1945. No mesmo quadro podemos ainda ver a distribuição das exportações de conservas segundo o país de destino e a percentagem ocupada pelas conservas nas exportações totais para cada país. No que toca à distribuição das exportações, o aspecto mais notável é a bipolarização do comércio entre a Inglaterra e a Alemanha. Se em 1939 os dois países absorveram cerca de 40% das exportações, em 1942 absorveram mais de dois terços e em 1943 a quase totalidade das vendas. A proporção das conservas nas exportações para os beligerantes é também assinalável: para a Alemanha, 40 e 45% em 1943 e 1944, respectivamente; e para Inglaterra, 41% em 1941 e 45% em 1944 e 1945. Os Estados Unidos, por sua vez, mantiveram uma reduzida quota nas exportações, com exceção de 1945, onde alcançam quase os 10%.
Se, por um lado, as exportações dependeram do posicionamento político de Portugal, por outro, foi a capacidade de as conservas substituírem produtos essenciais nos países beligerantes que ditaram o seu sucesso.
Numa primeira fase de neutralidade «benévola» e conveniente para os dois lados da contenda221, a exportação de conservas cresceu 30% em quantidade face a 1938. O crescimento deveu-se, sobretudo, à crescente procura inglesa, cujas importações, que rondavam as cinco mil toneladas anuais, subiram para 14,6 mil toneladas em 1939. No mesmo ano, as conservas representavam já 22% do total das exportações para Inglaterra222. Em curso estava uma das práticas mais importantes da guerra económica: as compras preventivas dos bens alimentares e estratégicos que poderiam ser vendidos ao inimigo. Em Inglaterra, a criação do Ministry of Economic Warfare institucionalizou o bloqueio económico à Alemanha a partir de compras preventivas, a divulgação de “listas negras” das empresas que negociavam com o Eixo e o controlo do comércio marítimo através da emissão de navicerts223. O projecto de acordo comercial luso-britânico em 1939 exprimia bem a intransigência e ambição do bloqueio: as exportações para a Alemanha deveriam reduzir-se a 1/12 da média de 1934-1938 e Lisboa receberia um entreposto de comércio colonial, em troca do fornecimento de contingentes trimestrais de produtos essenciais e vantajosas condições de pagamento 224.
Note-se, entretanto, que a Inglaterra tinha de fornecer folha-de-flandres, que Portugal não produzia, para importar as conservas de sardinha. Como referiu Medlicott no seu relato sobre o bloqueio económico, as conservas, a par do estanho e do volfrâmio, estiveram entre as principais compras preventivas. No que diz respeito à folha, a Alemanha tinha-se tornado uma das fornecedoras a Portugal nos anos anteriores à guerra; Inglaterra tinha, por isso, a missão de substituir as importações da Alemanha e fornecer o país com pelo menos 21 mil toneladas anuais. Até 1942, o comércio e eficiente distribuição da folha-de-flandres seria o principal desafio da indústria portuguesa. Por um lado, a política de contingentes trimestrais britânicos não se adaptava à sazonalidade da indústria conserveira e à irregularidade da pesca. Por outro, a retoma das capturas de sardinha aumentou a procura por folha-de-flandres – que a Alemanha estava disposta a fornecer. Ainda que as estatísticas oficiais não apresentem dados sobre a exportação para a Alemanha em 1940, é de estimar que, a partir do Verão desse ano, as vendas tenham aumentado consideravelmente, depois da proposta alemã para aquisição de 2,5 milhões de caixas225. Finalmente, Inglaterra respondeu na mesma linha: em 1941, firmou um contrato com o governo português para a aquisição de 1,5 milhões de caixas de conservas de sardinha 226.
Na realidade, a compra de conservas portuguesas não foi meramente preventiva; a Inglaterra, o país europeu que mais dependia do comércio internacional, era ameaçada pela guerra submarina e denotava graves problemas de abastecimento alimentar. Nos produtos da pesca, a dependência das importações era muito significativa227. As importações de conservas de salmão e «pilchard» do Canadá, EUA e Japão, bem como as conservas de arenque da Noruega, sofreram um comportamento oscilante de acordo com o desenvolvimento do conflito: a entrada do Japão no conflito e a guerra submarina no Atlântico, que provocou uma inicial quebra nas exportações de salmão, foi compensada pela subida das exportações de «pilchard» da Califórnia e de salmão do Canadá, após a entrada dos EUA na guerra, bem como as exportações de arenque228 (Quadro 4.3.). Note-se que, no caso das conservas de sardinha, Portugal tornou-se o fornecedor quase exclusivo do mercado britânico, depois de a França e a Noruega229 terem sido ocupadas pela Alemanha e Espanha estar a recuperar da guerra civil (Quadro 4.4.).
221 A beligerância portuguesa era inconveniente a 3 níveis: Portugal não precisava de legitimidade política, estado consolidado, apoios do exército, Hitler não ameaçava colónias; Eixo, Alemanha, interessados na neutralidade para manter certas ligações comerciais; Inglaterra não queria que Portugal se declarasse beligerante com receio da reacção de Franco e dos seus sectores germanófilos, no rescaldo da guerra civil. Ver, entre outros, Oliveira, Armindo Monteiro…, 202/203.
222 Em 1940 houve ainda uma considerável exportação para França: de 3 mil toneladas em 1939 para 6,5 em 1940. Em abril de 1940, encontrava-se em Lisboa uma missão francesa em representação do Ravitalliement com o objectivo de comprar conservas no valor de 70 milhões de francos. Ver DGRM,IPCP, Actas do Conselho Geral, 1 a 3.04.1940.
223 Milward, War, economy…, 295 e ss; e W. N. Meddlicott, The Economic Blockade (London: Longmans, 1952), 524 e ss.
224 ANTT, AOS, NE-2E, cx. 430, pt. 26.
225 Medlicott, The Economic Blockade…,525.
226 Medlicott, The Economic Blockade…,525. Em Fevereiro de 1941, a embaixada britânica garantia estar a tratar a exportação de folha inglesa e norte-americana com urgência e, em Julho do mesmo ano, seria assinado um acordo de venda de conservas com o objectivo de regularizar o acesso à folha – v. ANTT, AOS, NE-2E, cx. 430, pt. 29 (Subpasta 59 – memorandum da embaixada britânica, 24.06.1941; Subpasta 64 – acordo de fornecimento de conservas, 15.07.1941). A concorrência interna pela folha-de-flandres é visível através das listas de atribuição de navicerts. Algumas das maiores empresas conserveiras, como a Júdice Fialho e a Algarve Exportador, concorriam com empresas de outros sectores industriais como a Shell, Vaccum Oil, Nestlé ou a União Industrial de Graxas.
227 V. Imperial Comitte, Survey on Trade…, .
228 Ver Ministry of Agriculture and Fisheries, Fisheries in Wartime (London: [S.n.], 1946), 21. Agradeço a Martin Wilcox pela orientação na pesquisa sobre as fontes relacionadas com a indústria britânica na Universidade de Hull.
229 Antes da ocupação alemã, a Noruega estava preparada para exportar milhões de caixas de conservas de brisling para o Reino Unido. V. Medlicott.
Em suma, podemos sugerir que no mercado britânico o esforço para manter e até aumentar as importações de conservas de peixe respondeu ao objectivo de substituir a escassez de outros produtos alimentares. A indústria de pesca inglesa, dependente dos recursos em águas longínquas e com as frotas mobilizadas para o esforço de guerra, estava à beira da ruína no final da Guerra230. Mancur Olson, numa análise pioneira sobre a economia de guerra britânica, sugeriu que todos os produtos eram potencialmente substituíveis através de estratégias de adaptação da oferta ou de consumo de produtos alternativos231. Esta premissa significa que as ofensivas inimigas destinadas a enfraquecer o adversário, como os bloqueios comerciais ou o ataque a fábricas de armamento, foram menos danosas porque existiu uma capacidade de substituir os bens considerados estratégicos. A manutenção do comércio de conservas com Portugal, país neutral, com a contrapartida de aumentar os fornecimentos de folha-de-flandres, é um excelente exemplo da capacidade de adaptação da economia de guerra.
A ocupação de França no verão de 1940 e a entrada de Itália na Guerra deram ao Eixo uma aura de invencibilidade que transformou o jogo de forças internacional e a posição relativa dos neutrais. Salazar, empenhado na afirmação de uma «neutralidade geométrica» para garantir que a Península Ibérica não entrava directamente no conflito, dispôs-se a aceitar acordos económicos com a Alemanha. Inicialmente, os acordos especiais de «armas por conservas» ajudaram a compensar os défices na balança de pagamentos bilateral que a Alemanha mantinha com Portugal232. Note-se que, depois da expansão a Ocidente, Hitler começou a planear a invasão da União Soviética. O fornecimento de conservas ganhou um lugar preponderante nas negociações diplomáticas. Em Março de 1941, a Alemanha desejava a exportação de conservas de sardinha no valor de 20 milhões de marcos, a que as autoridades portuguesas prontamente se recusaram, em virtude do bloqueio inglês, mas também da capacidade de produção da indústria conserveira233. Enquanto os ingleses ameaçavam com a paralisação dos navicerts concedidos à folha-de-flandres e às oleaginosas coloniais portuguesas, a Alemanha avançava com propostas confidenciais de fornecimento de folha com a condição de as conservas fabricadas não serem exportadas para os países aliados. Em simultâneo, mantinham-se as tensões com a Alemanha. O ataque dos submarinos a navios portugueses levaram a opinião pública a insurgir-se contra o III Reich e a oposição do regime a denunciar as práticas de contrabando. Quase em simultâneo, Salazar negociava importantes abastecimentos alemães e a forma de iludir o bloqueio inglês, obter a anuência das autoridades espanholas no transporte de mercadorias e garantir “termos razoáveis” no fornecimento de bens essenciais234.
230 Martin Wilcox, «”To save the Industry from Complete Ruin”: Crisis and Response in British Fishing, 1945-1951». Business History, 63:3 (2019): 353-377.
231Mancur Olson. The economics of the wartime shortage: A history of food supplies in the Napoleonic War and in World Wars I and II. (Durham: Duke University Press, 1963). Sobre a receção da obra de Olson, ver também Stephen Broadberry, e Mark Harrison, org. Second World War: Seventy-Five Years On. (London: CEPR Press, 2020), 59 e ss.
232 Para uma reinterpretação do desfasamento entre os défices comerciais de Portugal com a Alemanha e a Suíça e a quantidade de ouro recebida por estes países, com alusão às práticas de contrabando, v. António Louçã, Hitler e Salazar. Comércio em tempos de guerra, 1940-1944 (Lisboa, Terramar, 2005), 12 e ss.
233 ANTT, AOS, NE-7, cx. 360, capilhas 24 e 28 (1941).
234 ANTT, AOS, NE-7, cx. 360, capilha 28 (05.02.1941 e 31.10.1941).
Em 1942 e 1943, o interesse pelas conservas de sardinha acentuou-se e a Alemanha tornou-se o principal destino das exportações235. Além das diversas frentes de guerra, começava a ser evidente que a estratégia alemã de constituir um espaço vital (Liebensraum) a partir dos territórios ocupados era insuficiente para suprir todas as necessidades de abastecimento.
Em 1943, o comércio de conservas de sardinha alcançou as 18,4 mil toneladas com a Alemanha e 17,2 mil toneladas com a Inglaterra, isto é, 49,2% e 45,8% do total das exportações, respectivamente. O comércio conserveiro, bipolarizado entre os dois países e coordenado ao milímetro pelo Estado através de contratos colectivos de vendas, exprimia a «neutralidade geométrica» empreendida pelo governo português. Note-se que, além de o comércio com a Alemanha ser um fiador da neutralidade portuguesa, a manutenção desta via de comércio contrapartida aos aumentos unilaterais dos preços das importações inglesas – ou em alguns casos, da sua proibição236.
O rumo da Guerra tendia, no entanto, para o lado dos aliados. A entrada dos EUA no conflito em Dezembro de 1941, o sucesso da operação Torch no norte de África e a resistência soviética em Estalinegrado deram o sinal de viragem.
O comércio «geométrico» beneficiava a indústria de conservas que assistia ao crescimento das encomendas e a elevação dos preços. Apesar da relutância de Salazar em abandonar a “neutralidade geométrica”, por crença na batalha do Eixo contra o “bolchevismo” ou a convicção numa paz de compromisso, a política externa portuguesa acabou por ceder importantes «facilidades» militares aos aliados no arquipélago dos Açores. Após a concessão, as autoridades alemãs supuseram a entrada de Portugal na guerra, apresentando um protesto formal. O diplomata Teixeira de Sampaio aludia à “neutralidade colaborante” como uma obrigação de respeitar os prévios acordos da aliança luso-britânica, o que não deveria ser confundido com qualquer hostilidade237. Se o embargo político das exportações de volfrâmio pareceu uma inevitabilidade, o comércio conserveiro ainda permaneceria activo, bem como a importação de ferro alemão. Em Lisboa, a empresa J. Wimmer continuava a representar os compradores alemães de conservas, mas as negociações terminariam no início de 1945, devido à paralisação das operações financeiras entre o III Reich e os bancos comerciais portugueses 238.
Deste breve excurso podemos concluir: a venda de conservas, como produto estratégico, foram um dos garantes da neutralidade portuguesa. Numa fase inicial, «benévola» e respeitadora da aliança britânica, as exportações para Inglaterra dominaram o comércio conserveiro. Entre finais de 1940 e 1942, enquanto Salazar quis manter uma equidistância das potências militares, a repartição das exportações pela Alemanha e Inglaterra representou o equilíbrio preconizado pelas autoridades portuguesas. A partir de 1943, e até ao final da Guerra, a manutenção do comércio conserveiro com a Alemanha teve benefícios evidentes: permitiu a importação de bens essenciais e reduzir a dependência do mercado inglês, nomeadamente nos preços pagos às exportações, além de demonstrar uma prudente distância face aos países aliados democráticos.
A partir de 1945, com a Inglaterra como único comprador das conservas portuguesas, o produto terá uma forte desvalorização. O que valorizou as conservas de peixe não foi a aliança britânica, mas a possibilidade de serem adquiridas pelo adversário. A concorrência entre os beligerantes inflacionou a intervenção do Estado no comércio.
235 ANTT, AOS, NE-7, cx. 360, capilha 33 (documentos de 23.03.1942 e 07.05.1942). À semelhança das conservas de sardinha, Francisco de Paula Brito alertava para os pedidos de importação de estanho acima das medias de produção nacional.
236 Caso, por exemplo, do sulfato de amónio, de grande importância para a viticultura. V. Telo, A neutralidade portuguesa, p. 147/148. Uma das formas mais nítidas de esclarecer o pensamento político de Salazar sobre o futuro da Guerra é transmitido, ainda que de forma indirecta, nas investidas epistolares estabelecidas com Armindo Monteiro, embaixador português de Inglaterra. Nesse sentido, em 1942, já o embaixador prenunciava uma paz “yankee-britânica” e instava o chefe de governo a manter uma posição firme face aos Aliados para beneficiar das negociações do período de paz. Todavia, nas conversações com os diplomatas alemãs em 1943, apesar dos recuos na frente oriental, era ainda perceptível a hipótese de uma vitória do III Reich. Salazar não comungava desse optimismo mas também não recusava liminarmente a hipótese. V.ANTT, AOS, NE-7, cx. 360, capilha 39.
4.3. A estatização do comércio.
A guerra obrigou a uma maior intervenção do Estado na economia para assegurar o abastecimento dos bens essenciais à população e o regular funcionamento das actividades agrícolas e industriais. De um ponto de vista legal e doutrinário, a conjuntura obrigou a um esclarecimento sobre a função dos organismos de coordenação económica e dos grémios corporativos que tinham sido criados para dirigir a economia sem substituírem a iniciativa privada ou desempenharem um papel activo no mercado. Durante o conflito, a rede de organismos cresceu quer em número, quer na extensão das competências já consagradas na lei. Entre essas competências, assumiram funções de racionamento, fixação de preços, aquisições e distribuição de matérias-primas. O acréscimo de responsabilidades teve, porém, consequências: multiplicaram-se as críticas de prepotência, nepotismo e corrupção, sobretudo com o agravamento das condições de vida, a escassez de bens essenciais e a desvalorização dos salários reais. Em 1945, os esforços do Ministro da Economia, Supico Pinto, em sublinhar os méritos da organização corporativa no abastecimento do país eram um sintoma da contestação generalizada sobre a «organização»239. Em 1947, a Comissão de Inquérito criada na Assembleia Nacional veio dissecar muitos dos problemas, abusos e distorções criadas pelo funcionamento dos organismos durante a Guerra, funcionando como uma espécie de depuração do sistema, mas sem nenhuma consequência política 240.
Não por acaso, o relatório final da Comissão de inquérito pouco ou nada diz sobre a actuação do Instituto Português das Conservas de Peixe, ainda que tenha sido entregue uma extensa documentação pelo organismo de coordenação económica e os grémios de industriais e exportadores. A primeira causa é mais ou menos óbvia: as críticas debruçavam-se, principalmente, sobre o mercado interno, nas tarefas de distribuição e racionamento, em momentos que a organização se arrogou como agente económico, comprando e vendendo mercadorias com a obtenção de lucros. Ora, no caso do IPCP, como de outros sectores, a missão era prosseguir com as exportações num cenário de verdadeira disrupção do comércio internacional. A segunda causa para a ausência do IPCP no dito relatório parece-nos ser o relativo sucesso com que o organismo geriu a distribuição dos bens intermédios à indústria e coordenou a exportação de conservas com os beligerantes. Em 1939, o Estado já tinha reservado uma ampla capacidade de manobra, admitindo a necessidade de autorização prévia das importações e exportações e a realização de contratos de vendas colectivas 241. Em 1942 seria regulamentada a possibilidade de celebrar os contratos colectivos, salientando que, em cada sector, “o organismo de coordenação intervém […] como agente do Estado” 242.
Desde o início da guerra, em Setembro de 1939, o IPCP obrigou a que todas as vendas fossem realizadas a crédito aberto irrevogável, em Portugal e no estrangeiro; em Junho de 1941, o Conselho Geral, com a presença da direcção, pronunciou-se a favor da abolição dos preços mínimos. Na mesma sessão, passou a ser obrigatório o registo de todas as transações comerciais de conservas no IPCP243. A evolução do conflito e a necessidade de assegurar o fornecimento de folha-de-flandres levou, entretanto, à formação dos contratos de vendas colectivas. Os contratos eram, antes de mais, uma resposta aos pedidos dos beligerantes coordenados por entidades oficiais – como a United Kingdom Comercial Corporation – que procuravam um interlocutor ao mesmo nível em Portugal. Com a atenta participação do Ministro da Economia, o IPCP passou a ser o fiel executor dos contratos: responsável pela distribuição da folha-de-flandres nos centros industriais; coordenação da produção de uma «Marca Nacional»; e responsável, com os representantes do sector da pesca, em estabelecer preços à produção primária que permitissem cumprir os preços acordados com as missões estrangeiras 244.
Todos os contratos tinham uma cláusula em comum: para o fabrico das conservas, o cliente tinha de fornecer a quantidade necessária de folha-de-flandres, mais 50% que seria distribuído no país para outros usos. Na realidade, a indústria conserveira passava a dispor de uma condição preferencial em relação a outras indústrias porque absorvia 75% das importações de folha, enquanto nos anos anteriores importava cerca de metade245. Os contratos tinham outras vantagens: aos beligerantes, davam a oportunidade de comprar grandes quantidades de conservas e a garantia que a folha vendida a Portugal não seria utilizada para outros fabricos; a Portugal, país neutral, davam uma maior capacidade negocial, garantiam o abastecimento de folha e alguma estabilidade dos custos de produção. A documentação do Arquivo Histórico Parlamentar permite-nos verificar se os contratos foram eficazes (Quadro 4.5.). Vejamos, em primeiro lugar, a capacidade de cumprir com as encomendas. Na safra de 1942/43, a capacidade de resposta da indústria conserveira foi sobrestimada; apesar de ter sido um bom ano de capturas, a produção não foi suficiente para a totalidade de caixas contratualizadas e os armazéns, vazios desde 1941, não puderam disponibilizar stocks246. Note-se que, em média, a produção anual fixava-se em cerca de 2 milhões de caixas de conservas e os contratos de vendas colectivas somavam a quantia de 2,352 milhões de caixas. Em teoria, com o aumento das capturas, a produção poderia alcançar estes níveis com uma utilização mais intensiva do equipamento industrial; mas, mais uma vez, o problema colocou-se a montante, com inúmeras dificuldades para a entrega da folha-de-flandres inglesa, quer por escassez, quer pela relutância em atribuir navicerts a mercadorias que pudessem ser utilizadas em benefício dos adversários247. Dificuldades que justificam, aliás, a reduzida percentagem de cumprimento do contrato inglês (48%) face ao alemão (76%). A situação, entretanto, melhorou na safra de 1943/1944 – no período decisivo do conflito, a abundância de sardinha e o acesso regular à folha-de-flandres permitiram cumprir os contratos e facturar excedentes. Na última safra, 1944/1945, as exportações iniciaram um novo ciclo, dominadas pelo controlo quase monopolista de Inglaterra e dos EUA; a Alemanha recebeu apenas 12% das encomendas. De resto, as ligeiras variações nos preços (Quadro 4.6.) também demonstram o jogo de forças entre o Portugal neutral e os beligerantes: a Alemanha, com excepção de 1942/43, esteve sempre disposta a pagar mais pelas conservas de sardinha, enquanto a Inglaterra, à medida que se perfilava como único comprador, pressionou para a descida dos preços. Note-se, por último, os preços das conservas no mercado «livre», que atingiram quase o dobro dos preços dos contratos. Todavia, este mercado estava, em tempos de guerra económica, reduzido a quantidades insignificantes: exportações por encomenda postal a particulares, até 10 quilogramas, e de outras conservas que não a sardinha, reservadas aos exportadores que, com a estatização do comércio, tinham visto a sua actividade paralisada.
No final da guerra, com as economias europeias em processo de recuperação, as exportações iniciaram um novo ciclo que se prolongou até ao último contrato assinado com Inglaterra em 1952. Os Aliados continuaram, a partir de organizações oficiais, a comprar grandes quantidades de conservas que distribuíram por populações carenciadas, sobretudo na Europa. Mas os contratos de vendas colectivas, que em tempos de guerra asseguraram a continuidade do comércio estratégico, perderam as suas vantagens comparativas. Com a crise de escassez de sardinha em 1947-1948 a pressionar a subida dos custos de produção e a diplomacia inglesa a impor preços baixos, a manutenção dos contratos levantou duras críticas de exportadores e industriais que clamaram pela restituição de um comércio livre com a Inglaterra.
237 ANTT, AOS, NE-7, cx. 360, capilha 44 (conversa de Teixeira de Sampayo com Barão de Huene).
238 ANTT, AOS, NE-7, cx. 360, capilha 40 (1945).
239 Luís Supico Pinto, Organização corporativa : entrevistas concedidas ao Diário de Notícias. Lisboa : Império, 1945.
240 Sobre a Comissão de Inquérito e as críticas e desalentos de alguns corporativistas neste período, v. Lucena, Sobre a evolução…, ; e Fernanda Rollo, «Desmandos da organização corporativa e reencontros do corporativismo no rescaldo da II Guerra. O Inquérito à Organização Corporativa de 1947» em Corporativismo, Fascismos, Estado Novo, org. Fernando Rosas e Álvaro Garrido (Coimbra: Almedina, 2012), 190-227.
241 Diário do Governo, Decreto 30:137 (14.12.1939).
242 Diário do Governo, Portaria 10:497 (20.09.1943).
243 DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, 05.06.1941.
244 Idem.
245 As minutas dos contratos mostram que, da quantia de 50% remanescente de folha de flandres, 25% era distribuída pelo IPCP e 25% entregue à Comissão Reguladora de Comércio de Metais. Ver AHP, AN, Caixa 70, nº 1.
246 GICPC, Relatório e Contas, 1941.
247 Ver DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, . Houve, de resto, contratos com outros países que foram cancelados por estes não conseguirem assegurar o fornecimento de folha a Portugal.
Podemos, enfim, considerar que os contratos surgem como uma estratégia eficaz de manutenção do comércio de conservas, com a condição de o Estado se tornar um agente económico que recebe e distribui as matérias-primas, estabelece as quotas de produção e as normas de fabrico e, finalmente, a exportação, incluindo os preços. Nos anos da guerra, o IPCP cresceu em número de funcionários: de 163, em 1939, para 237 em 1944. As receitas do Instituto, se em 1939 alcançaram os 4,5 mil contos, em 1944 mais do que duplicaram, com 10,4 mil contos248. Note-se, no entanto, que uma parte considerável desta receita será absorvida pelos subsídios entregues ao elevado número de operários; e outra parte, como veremos, será entregue aos organismos responsáveis pela regularização do abastecimento alimentar no pós-guerra.
Poderíamos, além disso, questionar se os contratos colectivos teriam sido mesmo necessários para o sucesso das exportações de conservas durante a guerra. A comparação mais óbvia a fazer é com o comércio de volfrâmio: uma mercadoria que atinge uma sobrevalorização em tudo semelhante às conservas, mas com características de produção e comércio muito distintas. A história é bem conhecida: o interesse sobre o volfrâmio português (e espanhol) cresceu em 1941, com a entrada da União Soviética na guerra e a interrupção dos fornecimentos de minério à Alemanha provenientes do oriente. Até essa data, o Estado português não impôs limites à extracção e exportação do minério, mas em Dezembro do mesmo ano viu-se obrigado a controlar a emissão de licenças e regular todo o circuito de exportação a partir da Comissão Reguladora de Comércio de Metais249. Todavia, em 1942, as restrições foram levantadas e multiplicaram-se as «concessões provisórias». É neste período que se multiplicam os volframistas que de forma espontânea percorreram as serras do interior e alcançaram fortunas com a extracção de pequenas pedras. O governo de Salazar, por sua vez, esticou ao máximo o comércio com a Alemanha, mesmo no período em que a neutralidade portuguesa se afirmava plenamente «colaborante». Nas conservas, o processo foi inverso. Partindo de um nível alto de regulamentação nos anos trinta, a indústria nunca deixou de estar fortemente controlada pelo Estado. Para manter o fabrico, as importações de folha-de-flandres e a distribuição dos «molhos», azeite e óleos – produtos escassos no mercado interno – tornou-se indispensável. Em vez de permitir a multiplicação de produtores, o IPCP proibiu a entrada de novos agentes e monopolizou o comércio exportador. Os produtores de peixe salgado, em particular, viram a sua actividade limitada para que o recurso da sardinha pudesse ser alocado à indústria de conservas e ao consumo público. Em suma, a intervenção do Estado, de que a actividade comercial é apenas o resultado final, permitiu que vários recursos escassos e irregulares fossem mobilizados para o fabrico de uma mercadoria de guerra que se tornou no principal produto de exportação.
248 Diário das Sessões da Assembleia Nacional, nº 96, 1947 [Suplemento – Relatório Geral da Comissão de Inquérito à Organização Corporativa].
249João P. Avelãs Nunes, «Corporativismo e economia de guerra: o salazarismo e a Segunda Guerra Mundial». Em Corporativismo, Fascismos, Estado Novo, org. Fernando Rosas e Álvaro Garrido. (Coimbra: Almedina, 2012).
4.4. As empresas.
Em Junho de 1940, o director do IPCP anunciava aos industriais o final da liberdade de comércio. Os constrangimentos criados pela guerra e a necessidade premente de negociar com as missões oficiais a exportação de grandes quantidades de conservas eram um prenúncio da estatização do comércio250. Devemos agora ter em conta quais as consequências para a estrutura empresarial criadas pelo conflito mundial. Será que todas as empresas beneficiaram da mesma forma com a criação dos contratos colectivos? É possível identificar desenvolvimentos regionais específicos, decorrentes da conjuntura da guerra? Houve uma transformação tecnológica relevante nas fábricas conserveiras?
As fontes primárias ajudam-nos a perscrutar estes problemas: os relatórios de execução dos contratos revelam a participação das empresas na produção e a percentagem de utilização da capacidade instalada em cada fábrica251. Nota prévia: ao estabelecer o preço de venda das conservas e tornar-se o agente exclusivo de exportação, o Estado, através do IPCP, assumiu a gestão pública da produção – determinando, inclusive, as margens de lucro dos industriais que correspondiam, grosso modo, a 10%. Em relação à primeira variável, é de notar que tanto as pequenas como as «grandes empresas»252 produziram para os contratos colectivos. Na safra de 1942/1943, as três maiores empresas produziram 17% das encomendas, o que revela um relativo domínio no mercado.. Contudo, se observarmos a média de utilização da capacidade instalada, verificamos que as empresas que possuíam mais de uma fábrica ficaram aquém da média das empresas de menor dimensão253. Por outras palavras: foram as empresas mais pequenas, com apenas uma fábrica, que se destacaram com uma maior utilização da capacidade instalada. Esta tendência «distributiva» é confirmada por outro dado: em todos os centros industriais, a produção foi particularmente equilibrada com nenhuma fábrica a ultrapassar a quota de 10% da produção. Vemos, assim, que o critério que presidiu à execução dos contratos foi a distribuição o mais igualitária possível por todas as fábricas e empresas, não só com o objectivo de repartir a actividade económica mas também com o compromisso de manter o maior número de operários. De um ponto de vista empresarial, as empresas que tinham diversificado a sua estrutura e reduziram custos de produção com economias de escala não encontraram vantagens comparativas na estatização do comércio.
Note-se, no entanto, que a política redistributiva dos contratos colectivos não obviou o acentuar dos desequilíbrios regionais (Quadro 4.7). Estes resultavam, sobretudo, das diferentes condições de acesso à sardinha em cada centro industrial. A preponderância do centro de Matosinhos – cuja produção alcançou 40% dos contratos colectivos, frente a 36% no biénio 1937-38 – não é surpreendente porque as capturas tendiam a concentrar-se a norte. O início da guerra surpreendeu várias empresas que, depois de uma continuada escassez de sardinha no Algarve e em Setúbal, deslocalizaram as suas fábricas para Matosinhos: entre 1939 e 1948, o número de fábricas neste centro cresceu de 28 para 55. Os desembarques de sardinha no porto de Leixões representaram, nos anos da guerra, mais de metade do total nacional. Por outro lado, nota-se uma subida de importância relativa do centro de Setúbal, que se atribui não só a uma modesta retoma das capturas de sardinha, mas também ao efeito de distribuição das encomendas pelo elevado número de empresas que continuavam a existir no centro sadino 254. Por último, os centros do Algarve foram aqueles que reduziram mais a produção industrial devido à quebra nas capturas de sardinha. Os preços da sardinha comprimiam as margens de lucro destinadas aos industriais – em 1944, de acordo com os Grémios de industriais, a sardinha ocupava 36,6% do custo total de produção255. As diferenças entre centros eram notáveis: em 1943, o quilo de sardinha vendido à indústria custava 2,7 escudos em Matosinhos, 4 escudos em Setúbal e 5,5 escudos em Portimão. Apesar da distribuição equitativa de matérias-primas e encomendas, as diferenças ecológicas continuavam a ser determinantes para o sucesso regional da indústria.
250 DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, 7-11.06.1940.
251 V. AHP, AN, Cx. 70, nº 1 (Listas de execução dos contratos por empresas dos centros conserveiros).
252 «Grandes empresas» são aquelas que, por norma, possuem mais de uma fábrica ou uma capacidade de produção instalada superior a 50 mil caixas. Em 1933 eram 16 (7,9% do total) e em 1953 eram 25 (13,8% do total).
253 V. AHP, AN, Cx. 70, nº 1.
254 Note-se, ainda, que no centro de Setúbal a procura por sardinha para consumo em fresco foi menor do que em Matosinhos, o que teria um efeito de ligeira moderação sobre os preços de venda à indústria
Importa, ainda, esclarecer em que medida o conflito contribuiu para a inovação tecnológica e a transformação das fábricas. Os dados estatísticos disponíveis permitem-nos comparar a evolução da capacidade instalada, o número de empresas e a dotação tecnológica. Em primeiro lugar, é notável uma mudança na estrutura industrial a médio prazo: em 1933, 173 empresas detinham 210 fábricas e uma capacidade de 5913 milhares de caixas; vinte anos mais tarde, em 1953, existiam 155 empresas com 180 fábricas e uma capacidade semelhante de 5702 milhares de caixas256. A redução no número de fábricas e empresas foi acompanhada por uma tímida renovação do equipamento industrial, sobretudo nos últimos anos do conflito e no imediato pós-guerra. Entre 1942 e 1951, as mudanças mais evidentes foram a substituição de cravadeiras e autoclaves, o crescimento da potência instalada e uma melhoria no acesso à energia eléctrica, especialmente em Matosinhos (Quadro 4.8).
No caso dos autoclaves, a capacidade de aquecimento medida em metros quadrados duplicou 257. Nas cravadeiras, a substituição por modelos de maior eficiência, como as Sudry 12 e 14 e as Lubin de oito lunetas, foi possível graças à autonomia da indústria portuguesa na produção de cravadeiras em serralharias especializadas.
255 Filipe Fernandes, «A indústria nos últimos 15 anos» (AMP, FH, Caixa 15).
256 IPCP, Compilação…, 10-13.
257 Este crescimento foi motivado não só pelo aumento da capacidade de produção, mas também pelas normas de higiene do IPCP que impuseram, a partir de 1940, que todas as fábricas tivessem instalados cozedores em separado para as operações de cozedura e esterilização das latas.
258 Lista de Embarcações das Pescas Industriais. Lisboa, Gabinete de Estudos das Pescas, 1956.
Admitindo que parte dos lucros de guerra foram aplicados na renovação do equipamento industrial, podemos presumir que a substituição de cravadeiras e autoclaves foi o principal investimento das empresas conserveiras. Os investimentos a montante, nomeadamente a integração vertical da indústria de conservas com a pesca de sardinha, seriam novamente adiados. Segundo uma lista de embarcações publicada pelo Ministério da Marinha, em 1955 apenas 13% das traineiras da pesca de sardinha pertenciam a conserveiros 258. Entre estas, a maioria pertencia a grandes empresas, como a Júdice Fialho, Feu Hermanos e Algarve Exportador, que preconizaram a integração da pesca e até da construção naval após a Primeira Guerra Mundial, mas detinham uma parte da frota envelhecida – como os cercos a vapor da Júdice Fialho, no Algarve, quando se assistia à generalização dos motores diesel a bordo das novas traineiras. Nas fábricas, o impulso na mecanização provocará aumentos de produtividade nos anos cinquenta; mas a estrutura empresarial continuou a estar pulverizada, com uma dispersão do capital social das empresas. Em 1953, apenas 16 empresas possuíam mais do que uma fábrica de conservas, e o rácio de fábricas por empresa tinha inclusive descido desde o início da intervenção do Estado Novo, em 1933, de 1,21 para 1,16259. Ao longo de duas décadas mantiveram-se muitas empresas marginais que, sem a distribuição administrativa de contingentes, matérias-primas e quotas de exportação poderiam não ter condições de sobrevivência. Numa perspectiva semelhante, Carmona Badía observou esta tendência em Espanha no início da autarquia franquista e, em particular, o travão que o sistema de intervenção teve na organização das empresas, cuja gestão avançava para uma certa profissionalização 260. Em consequência, a indústria conserveira em Portugal continuou a depender dos preços do mercado da primeira venda de sardinha – sintoma de uma «economia desarticulada» que a intervenção pública ainda não tinha resolvido.
Na realidade, a estatização do comércio não estava vocacionada para a criação de unidades industriais mais robustas. Noutro capítulo iremos analisar as «oportunidades perdidas» para a introdução de novas tecnologia na linha de produção contínua da indústria de conservas, criadas em Espanha durante a Segunda Guerra Mundial. No final do conflito, o IPCP acumulara mais de trinta mil contos, em resultado da comissão de 3% cobrada sobre os contratos colectivos, quantia que deveria ser destinada a um «Fundo de Apetrechamento Industrial». Contudo, em 1945, o produto das comissões foi entregue à Federação Nacional dos Produtores de Trigo para auxiliar a tarefa de subsidiar os preços do «pão político» e assim contribuir para a regularização dos abastecimentos. Os lucros do comércio neutral foram, em definitivo, absorvidos pela política de estabilização económica e social que a guerra tornou necessária.
4.5. Guerra, matérias-primas e integração económica.
A ruptura do comércio internacional durante a Segunda Guerra Mundial acabou por criar um estímulo à maior integração das economias nacionais261. Perante as dificuldades em importar matérias primas e bens intermédios, empresas e governos procuraram reduzir dependências externas e substituir os produtos pela criação de novas indústrias domésticas. O sector das conservas é um caso exemplar para compreender as hipóteses e limites da indústria transformadora para substituir as importações e utilizar exclusivamente os recursos nacionais. No centro da questão esteve o acesso a dois produtos: a folha-de-flandres e os «molhos» das conservas – azeites e óleos.
Nos primeiros anos da guerra, multiplicavam-se os relatos de escassez de folha-de-flandres nos centros industriais. Em Março de 1941, por exemplo, era relatado no Conselho Geral do IPCP que em todo o país existiam pouco mais de 12 mil caixas de folha, o que correspondia apenas à laboração de uma semana 262. Os Presidentes dos Grémios de industriais dirigiram-se ao Ministro da Economia a implorar que fossem concedidos à folha-de-flandres os navicerts ingleses para responderem às encomendas e manterem os operários com trabalho. Do lado do IPCP, a regulamentação endureceu: logo em 1939, os industriais forma obrigados a declarar os stocks de folha e avisados que o IPCP se designara comprador «por conta e em exclusivo proveito dos industriais».263 . Com os contratos de vendas colectivas, o fornecimento de folha tornou-se mais regular e coube ao Instituto distribuir a folha pelos centros industriais, de acordo com a capacidade teórica de produção de cada fábrica, e servir de interlocutor entre os compradores e os fabricantes264. Todavia, a burocratização do comércio de folha esteve longe de resolver os problemas. Em Julho de 1942, por exemplo, o IPCP recebera duas queixas em simultâneo: do lado dos compradores alemães e ingleses, chegava a acusação de os fabricantes estarem a utilizar indevidamente a folha que receberam para a execução dos contratos; do lado dos industriais, multiplicava-se as queixas sobre os critérios utilizados para determinar a capacidade teórica das fábricas, elemento decisivo para a distribuição da folha265. Mesmo no final da Guerra, com a escassez de folha a persistir, a liberalização do comércio era dificultada pelo facto de o IPCP se ter tornado o principal comprador, por via dos contratos colectivos266. Apesar de o IPCP actuar no mercado para regularizar a oferta de folha, o problema central da dependência externa não fora resolvido.
O problema de abastecimento da folha-de-flandres despertou o velho projecto de construir uma indústria siderúrgica em Portugal267. Ferreira Dias, o principal responsável pela onda industrialista e Subsecretário de Estado da Indústria desde 1940, procurou resolver o impasse no lançamento da indústria siderúrgica com uma troca de prioridades: em vez de se prosseguir com as tentativas de produção de aço em altos-fornos com o auxílio da indústria de cimentos, o Estado deveria apoiar a produção de laminados, como a folha-de-flandres, com a garantia de abastecer a indústria de conservas. Em Novembro de 1941, Ferreira Dias comunicou o seu plano ao IPCP e obteve, aparentemente, o apoio unânime dos industriais. A Companhia Portuguesa de Siderurgia foi criada em 1942, presidida pelo antigo ministro Sebastião Ramires, com a indústria conserveira como acionista maioritário e um exclusivo de produção 268.
A produção da folha dependia, no entanto, da tecnologia e conhecimento técnico de empresas estrangeiras. A dificuldade de importação de máquinas e sucessivos desentendimentos com a empresa belga Firminy inviabilizaram o projeto acalentado por Ferreira Dias. O projecto, contudo, não esmoreceu, e até ao final dos anos cinquenta a prioridade do projecto siderúrgico continuou a ser a produção de folha de flandres. É importante notar que, de parte dos industriais, foram aumentando as dúvidas sobre a aplicação dos fundos corporativos neste projecto industrial. Os industriais esperavam não só a retoma do comércio internacional, mas opunham-se também à ideia de criar uma central de produção de latas que devia acompanhar o fabrico de folha-de-flandres em Portugal. Receavam, em concreto, a impossibilidade de manterem as várias latoarias que persistiam no interior das fábricas e ocupavam os operários ao longo do todo ano, com quem tinham compromissos firmados pelos contratos colectivos de trabalho269.
Diferente foi a evolução na utilização de «molhos» na indústria, cujo peso no custo da produção nos anos da guerra, entre 11 a 18%, não deve ser ignorado. Entre a produção oleícola nacional e a indústria conserveira decorria um lento processo de integração que a Segunda Guerra Mundial acelerou e consolidou. Tradicionalmente, tal como em Espanha, os conserveiros importavam azeite refinado de Itália em regime de drawback para não afectar a competitividade externa das conservas. Todavia, com a crise internacional dos anos trinta e a protecção à produção nacional e colonial, os incentivos à importação foram retirados. Em meados dos anos trinta, dois acontecimentos transformaram o acesso da indústria ao azeite: a reorganização da produção e comércio de azeite, encabeçada pela Junta Nacional do Azeite; e o deflagrar da Guerra Civil de Espanha, que interrompeu o fornecimento de azeite espanhol. Nos anos seguintes, com relata o boletim oficial da JNA270, a procura de azeites refinados pela indústria conserveira foi o principal motor para a criação da indústria de refinação de azeite, com evidentes vantagens para os produtores de azeite que aumentavam a rendibilidade das safras.
Durante a guerra, o azeite tornou-se um bem alimentar essencial mas também um produto imprescindível para a produção de conservas. O IPCP e a JNA desenvolveram um longo expediente sobre a aquisição, os preços e a reserva de contingentes de azeite. Por outro lado, e apesar das dificuldades do transporte marítimo no Atlântico, a importação de óleos coloniais – e a reserva de importantes contingentes, que chegam a ultrapassar as 4 mil toneladas – permitiu o contínuo abastecimento da indústria de conservas. Salvo casos pontuais, não faltaram «molhos» à indústria em tempo de guerra. As curvas de consumo do azeite e óleo demonstram, aliás, a capacidade de substituir os azeites por óleos frente à instabilidade das safras de azeite ou as contingências do transporte das oleaginosas coloniais. Perante o ambiente excepcional de conflito, as conservas foram produzidas com óleo ou azeite de acordo com as disponibilidades, à custa do relaxamento das medidas de controlo de qualidade que tinham sido rigorosamente implantadas nos anos trinta.
259 IPCP, Compilação…, 10; cálculos nossos.
260 Carmona, Desarrollo industrial y associacionismo…, 114.
261Jari Eloranta e Mark Harrison, «War and disintegration, 1914–1950»e m The Cambridge Economic History of Modern Europe, org. Stephen Broadberry e Kevin O’Rourke, (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), 133-155.
262 DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral .
263 DGRM, IPCP, Circulares, Circular nº 313 (15.09.1939).
264 DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, 19-29.05.1942.
265 Ver a queixa da Algarve Exportador sobre a Júdice Fialho, duas das maiores empresas do sector. DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, 3-5.06.1942.
266 Ver a oposição dos representantes dos Grémios algarvios sobre as medidas de economia de guerra. DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, 16-18.10.1946.
267J. Martins Pereira. Para a história da indústria em Portugal: 1941-1965. Adubos azotados e siderurgia. (Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2005).
268 O capital social da Companhia era constituído pelos Fundos corporativos dos Grémios de Industriais que ajudaram a capitalizar a iniciativa.
269 DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, 19-21.2.1946.
270 Junta Nacional do Azeite [JNA], Boletim, 1946.
A integração económica durante a guerra foi, sobretudo, um processo incompleto. O voluntarismo que presidiu à formação da Companhia Portuguesa de Siderurgia foi contraposto pela realidade dos factos: a dependência externa não se reduzia aos recursos naturais ou ao capital, mas também à transferência de conhecimentos 271. A previsão sobre os custos de produção foi, de acordo com a documentação consultada, quase nula. Por outro lado, a intensificação da produçãoo de azeite e a articulação entre organismos de coordenação económica granjeou a integração «oficial» da indústria com os indispensáveis molhos. No plano empresarial, a integração vertical entre a produção de azeite e o fabrico de conservas não existia – com a exceção de Júdice Fialho, decano da indústria no Algarve e abastado proprietário agrícola, nos idos anos vinte 272.
271 Sobre a interessante discussão do ímpeto industrialista na Segunda Guerra Mundial, conjugado com o protecionismo que culmina na aprovação da Lei de Nacionalização de Capitais em 1943, bem como a dependência de empresas estrangeiras nas novas iniciativas industriais, ver Rosas, Entre a paz e a guerra….
272 Jorge Serra, «O nascimento de um império conserveiro: “A Casa Fialho” (1892-1939)». Tese de Mestrado, Porto, Universidade do Porto, 2007.
4.5. Conclusão: o triunfo da organização.
A conjuntura da Segunda Guerra Mundial alterou significativamente o comércio internacional das conservas de peixe. De produto de consumo alimentar nos países mais desenvolvidos, as conservas de sardinha passaram a ser um bem estratégico para suportar as ofensivas militares e alimentar as populações residentes e dos territórios ocupados. O seu valor extraordinário levou a que fossem alvo de disputa pelos beligerantes europeus que viram consideravelmente reduzidas as importações de produtos do mar. Para o governo de Salazar, a possibilidade de vender conservas constituiu mais um agente da neutralidade portuguesa, a par da posição geoestratégica de Portugal e o comércio de volfrâmio.
Se o processo de reorganização da indústria tinha revelado entropias durante os anos trinta, a Segunda Guerra Mundial ofereceu uma oportunidade para testar a utilidade dos organismos de coordenação económica e da organização corporativa. Ao contrário daquilo que sucedeu no mercado interno com os grémios concelhios e outros organismos encarregues do abastecimento alimentar, sobre os quais pesaram acusações de nepotismo e corrupção, a indústria de conservas parece ter beneficiado da existência prévia de uma organização com extensos poderes de intervenção no mercado. A distribuição da folha, azeite e óleos e das quotas de produção para satisfazer as encomendas dos contratos colectivos permitiu que a maioria das empresas mantivessem a laboração num período de escassez de matérias-primas. Um dos reflexos da prosperidade da indústria de conservas foi a relativa estabilidade social nos centros conserveiros durante os anos da guerra, apesar dos efeitos negativos de subida dos custos de vida.
A estatização do comércio teve, no entanto, os seus custos. A transferência dos lucros obtidos com os contratos de vendas colectivas para financiar os preços do pão é apenas um dos aspectos a ter em conta. Com o sistema paritário dos contratos, as empresas em expansãoo e com maior capacidade instalada perderam vantagens comparativas e as empresas marginais aumentaram a percentagem da sua capacidade efetiva. As consequências deste modelo distributivo sentiram-se no segundo pós-guerra quando a indústria continuou a estar pulverizada, com um elevado número de empresas e fábricas e uma baixa produtividade por unidade industrial. O problema terá maior acuidade quando a tendência internacional se afirmou, nitidamente, a favor da redução dos custos de produção.
5. A integração na economia europeia (1946-1966)
De um ponto de vista económico, os passos dados na integração das economias europeias após a segunda guerra foram o enquadramento institucional que mais influenciou o desenvolvimento da indústria conserveira. A participação portuguesa no processo de integração é bem conhecida na historiografia, ainda que a periodização da abertura da economia portuguesa mereça ser discutida. Se é certo que foi a partir de 1960 que a industrialização do país se orientou decisivamente para as exportações, em resultado da adesão portuguesa à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), as preocupações públicas para fomentar as exportações começaram mais cedo, desde o final dos anos quarenta, na sequência da crise comercial ocorrida nesses anos. Por outro lado, como se observa no caso da indústria de conservas, as exportações portuguesas beneficiaram da liberalização do comércio externo preconizada pela Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), criada em 1948, antes de Portugal ter aderido à EFTA, em 1960. O próprio «efeito EFTA», que se traduziu num crescimento espectacular das exportações portuguesas, nomeadamente para o Reino Unido, teve um efeito menor na indústria de conservas do que o aumento da procura externa dos países que formaram a CEE.
De que forma a indústria de conservas beneficiou dos movimentos de cooperaçãoo económica europeia? O que revela a experiência da indústria sobre a capacidade de adaptação a um espaço económico cada vez mais liberalizado? Para respondermos a estas questões, é necessário caracterizar a evolução das exportações, em perspectiva comparada, e identificar os aspetos institucionais que continuaram a interferir na produção e comércio de conservas. A intervençãoo do Estado, em particular, demonstra uma série de continuidades em relação às políticas empreendidas antes da Segunda Guerra Mundial.
A par das transformações na cooperação internacional e no comércio europeu, o consumo dos produtos da pesca estava em profunda mudança. O crescimento da produção e consumo de peixe congelado e a diversificação na produção de conservas, com um domínio crescente das conservas de atum, foram as principais mudanças. Alguns dos maiores produtores de conservas de sardinha, como Espanha e França, optaram por diversificar a sua produção para aproveitar as novas oportunidades de consumo, uma tendência a que já tinham dado início nos anos trinta. Todavia, a indústria portuguesa, à semelhança da indústria marroquina, mantiveram a «monocultura» da sardinha.
A pesca e a indústria transformadora em Portugal não possuíam uma estrutura concentrada, com possibilidade de investimentos em capital-intensivo na captura e processamento do peixe, à semelhança de outros países. Mas a falta de concentração industrial e comercial não foi apenas um produto das condições estabelecidas pelos mercados; foi também, como veremos, o resultado da regulação industrial em vigor e, em parte, uma consequência do prolongamento da intervenção do Estado na indústria, através da organização corporativa e de coordenação económica, que permitiu a sobrevivência de diversas empresas marginais.
Neste capítulo, a integração das economias europeias e o efeito sobre as exportações de conservas são discutidas sob diferentes prismas. No primeiro subcapítulo identificamos as principais transformações em curso nos mercados internacionais e argumentamos que a indústria portuguesa seguiu um caminho de crescimento sem diversificação. Em segundo, discutimos como, durante os anos cinquenta, a abertura da economia portuguesa começou a ser preparada por um conjunto de instituições pouco conhecidas, nomeadamente o Conselho de Ministros para o Comércio Externo e o Fundo de Fomento da Exportação. A este propósito, os colóquios celebrados no final da década que antecedeu a adesão à EFTA foram um local expressivo de discussão sobre as vulnerabilidades e o potencial de crescimento das exportações portuguesas. A ideia subjacente ao funcionamento destas instituições era que o Estado, à semelhança do que ocorria nas medidas autárcicas de substituição das importações, devia ocupar-se do comércio exportador, da qualidade dos produtos e da sua publicidade. Porém, à margem ou em conjugação com esta nova política comercial, foi a intervenção «corporativa» e do organismo de coordenação económica que continuaram a desempenhar um papel fundamental na alocação dos recursos e na seleção dos mercados.
Na realidade, não obstante a liberalização do comércio externo, a intervenção dos Estados na economia continuou a ser uma prática generalizada. Os processos de integração em organizações supranacionais exigiram uma nova coordenação política e a defesa casuística dos grupos de interesse ligados à indústria e ao comércio. Esta prevalência do Estado-Nação face à cooperação internacional foi visível, em Portugal, tanto no relacionamento estabelecido com os países da OECE como no processo de criação de uma zona de comércio livre, em 1957, e, finalmente, na adesão à EFTA.
Na indústria de conservas, os problemas do segundo pós-guerra eram de longa duração e anteriores ao conflito mundial: a variação nos preços das matérias primas e a oscilação nos preços internacionais dos mercados importadores. Para mitigar o efeito destas variáveis nas empresas, os conserveiros incitaram a uma nova proteção do Estado para fixarem os preços à pesca e patrocinar a criação de um Entreposto de comércio. A percepção do problema das conservas tinha, no entanto, mudado: se nos anos trinta e quarenta a intervenção guiou-se pelo paradigma da «cartelização», a partir de meados da década de cinquenta a tónica passou a estar na necessidade de reduzir os custos de produção, produzir em massa e renovar as formas de comercialização. Esta mudança foi percebida por Correia de Oliveira, figura central na gestão do comércio externo que, inspirado no relatório de Salazar escrito em 1931, trouxe a indústria de conservas para a discussão sobre as políticas públicas na Câmara Corporativa.
Por último, fazemos um análise ao impacto da entrada portuguesa na EFTA sobre a indústria de conservas. Ao contrário de outras indústrias transformadoras dirigidas à exportação, o «efeito EFTA» sobre a indústria de conservas foi tímido e não proporcionou um aumento significativo do consumo das conservas de sardinha nos países associados. Apesar de o « efeito EFTA » ser inegável na transformação das exportações portuguesas, este caso serve para questionar a suficiência desta opção diplomática na plena integração das economias europeias
5.1. As transformações na produção e comércio internacional.
O final da Segunda Guerra Mundial trouxe alterações duradouras na produção, comércio e consumo dos produtos da pesca. Desde logo, houve uma retoma acelerada da produção. Segundo um relatório da Food and Agriculture Organization das Nações Unidas (FAO), a produção mundial de pescado rondava as 22 milhões de toneladas antes da guerra, desceu para cerca de 20 milhões durante o conflito mas, em 1955, já superava os 27 milhões de toneladas 273. Entre 1954/1955 e 1964/65, a produção mundial de produtos da pesca cresceu 42% (Quadro 5.1). O crescimento deveu-se à incorporação de novas tecnologias na pesca, com uma generalização da utilização de navios de grande porte com redes de arrasto (trawling), acompanhados por mudanças no comércio e por um crescente apoio dos estados à modernização das frotas, através da concessão de subsídios e empréstimos com baixas taxas de juro. No que concerne à utilização das capturas, o consumo de pescado fresco, salgado ou conservado em latas deixou de ser a opção dominante. Ainda que estes segmentos da indústria continuassem a crescer, foi a produção de peixe congelado e de farinhas de peixe que tiveram um crescimento mais pronunciado. A transformação do pescado em farinhas foi inicialmente entendida como uma estratégia para absorver os excedentes da pesca e regular a oferta do pescado. Porém, com o dinamismo da procura agrícola por este produto, rapidamente se tornou num factor de pressão sobre os recursos marinhos que continuavam a ser explorados com acesso livre. O colapso da sardinha na Califórnia e do arenque no mar do Norte são exemplos eloquentes dos riscos associados à integração da pesca com actividades agrícolas e pecuárias de prática intensiva 274.
O comércio de produtos da pesca cresceu com uma intensidade maior do que a produção pesqueira. Em 1948, os sinais de retoma já eram evidentes, com 20% das capturas a serem destinadas ao comércio internacional275. Houve uma tendência para se comercializar produtos de maior valor acrescentado como o peixe congelado, inteiro ou em filetes276. A difusão do peixe congelado remete para um conjunto de transformações profundas: a capitalização intensiva da pesca, que permitiu a construção de novos navios com sistemas de congelação a bordo; a transformação das redes de distribuição, que se traduz na difusão das redes de frio e a instalação de frigoríficos nas casas particulares; e a transformação do marketing, no sentido de promover a democratização do consumo de peixe, bem como os programas públicos alimentares nas escolas, hospitais e restaurantes.
Na Noruega, após a Segunda Guerra Mundial, a introdução de fábricas de congelação do pescado nas províncias do norte foi uma inovação criada pelo Estado para recuperar as estruturas industriais destruídas pela Guerra, aumentar os rendimentos da pesca e obter uma base de apoio social aos governos socialistas que lançavam as primeiras medidas de planificação económica keynesiana 277. As novas fábricas introduziram modos de produção «fordística» que transformaram a organização social das comunidades marítimas. Por outro lado, as mudanças foram também protagonizadas por grandes empresas com a concentração vertical da pesca e da transformação e venda de peixe congelado através de novos produtos. O caso da Gorton’s e o lançamento dos fish sticks, nos EUA, popularmente conhecidos como «douradinhos», é um exemplo paradigmático278. Os fish sticks são o resultado de múltiplas inovações relacionadas com a criação dos navios fábrica flutuantes, a renovação dos transportes e a investigação científica aplicada à criação de novos produtos. Graças ao crescimento do circuito de produtos congelados no transporte ferroviário e rodoviário, a intensa campanha de publicidade direta ao consumidor e a investigação desenvolvida com o Instituto de Tecnologia de Massachusets, a Gorton’s conseguiu expandir a produção e tornar-se líder do mercado. Também neste caso, os apoios públicos – do governo federal e dos estados norte-americanos – foi fundamental quer no apoio à investigação, quer na disponibilização de crédito e na difusão de programas nas escolas 279.
273 FAO, The state of food and agriculture, 1955: review of a decade and Outlook. (Roma: FAO, 1955), 81.
274 Chris Reid demonstra como, em Inglaterra, a aplicação de medidas «productivistas» utilizadas no sector agrícola desenvolveram a indústria de farinhas de peixe. Porém, até 1971, o arenque deixou de ter uma subutilização e passou a ter um problema de escassez. O crescimento da indústria de subprodutos, desacompanhado de medidas de regulação no acesso aos recursos, contribuiu para o colapso da pescaria. V. «Underutilization, Undersupply, and Overfishing in the Herring Industry 1930-1980: A Case Study in the Evolution of Britain’s Productivist Fisheries Policy» em Too valuable to be lost: overfishing in the North Atlantic since 1880, org. Álvaro Garrido e David Starkey (Berlim: De Gruyter, 2020), 87-109.
275 James Coull World fisheries resources (London: Routledge, 1993), 229.
276 Coull, World fisheries…, 230.
277 Bjorn-Petter Finstad, «The Frozen Fillet: The Fish that changed North Norway?», International Journal of Maritime History, XVI-1 (2004), 31-33.
278 Paul Josephson, «The Ocean’s Hot Dog: The Development of the Fish Stick». Technology and Culture, 49 – 1 (2008), 42.
279 Josephson, The Ocean’s Hot Dog…, 54-57.
Na realidade, a uma escala global existem tendências regionais diversas e por vezes contraditórias. Se é certo que o consumo de peixe congelado nos países industrializados ocidentais cresceu mais do que o peixe conservado pelo sal ou em latas de conservas280, a mesma tendência não se aplica ao Sudeste asiático, onde o consumo de pescado fresco continuou a ser dominante. Além de um notável crescimento demográfico e a formação de novos Estados-Nação, os governos asiáticos apoiaram a construção de novas frotas para a exploração das espécies de peixes demersais, estimulando uma corrida aos stocks de peixe e o progressivo encerramento da fronteira dos recursos marinhos disponíveis281. Nos EUA, houve um crescimento expressivo no consumo de conservas de peixe, mas cada vez mais concentrado no atum282. O crescimento do consumo de conservas de peixe foi menos expressivo na Europa do que noutras regiões, como o continente africano, onde além do consumo crescente emergiram novos produtores de conservas de peixe, com destaque para a África do Sul e o Senegal.
Este desenvolvimento é importante para caracterizar as mudanças na produção de conservas de sardinha (Quadro 5.3). Segundo o mesmo relatório da FAO, em 1955 cerca de 10% das capturas mundiais eram transformadas em conservas, mas em algumas regiões (África, América do Norte e América do Sul) essa percentagem podia alcançar os 20%. Entre as espécies de peixe enlatadas estavam os atuns e similares, o salmão do Pacífico, o arenque e as diferentes subespécies de sardinha. Na produção sardinheira, ocorreram dois fenómenos que tiveram a maior importância para o futuro da indústria portuguesa. Em primeiro lugar, a expansão dos concorrentes nos mercados europeus, muito em especial a indústria marroquina. Enquanto a indústria portuguesa procurava nos anos cinquenta recuperar a média anual de produção anterior à guerra, em torno das 30 mil toneladas, a indústria marroquina registara um crescimento espetacular: de 12,8 mil toneladas em 1938 para 56,1 mil em 1950. Ainda que o segundo pós-guerra demonstrasse um recuo nas medidas protecionistas, em particular na Europa, o crescimento da indústria em Marrocos devia-se em grande medida à manutenção das condições preferenciais no mercado francês, isenta de direitos, e à atração do investimento francês nas conserveiras marroquinas283 . Por outro lado, os locais onde o consumo de conservas mais cresceu estava longe de ser o tradicional mercado europeu onde Portugal detinha vantagens comparativas e uma presença comercial de longa data. As conservas de pequenos pelágicos de origem japonesa ou da União Soviética, processadas a bordo de navios-fábrica, tiveram uma presença dominante nos mercados asiáticos. Noutros países, como a Venezuela, México e África do Sul, a produção doméstica cresceu rapidamente, auxiliada por políticas protecionistas. Na África do Sul, um dos principais importadores de conservas portuguesas fora da Europa, o desenvolvimento da indústria conserveira permitiu não só abastecer o mercado interno e substituir as importações, mas também exportar conservas de «pilchard» para países africanos e asiáticos, onde tinha a vantagem de possuir uma moeda mais competitiva do que os produtores europeus284.
280 Coull, World fisheries…, 216.
281 John Butcher, org. The closing of the frontier : a history of the marine fisheries of Southeast Asia, c.1850-2000 (Singapore : Institute of Southeast Asian Studies, 2004); ver o capítulo 6.
282 Andrew Smith, American tuna : the rise and fall of an improbable food (Berkeley : University of California Press, 2012).
283 Para um resumo sobre a formação da indústria marroquina, ver Jean Domingo, «L’industrie marocaine de la conserve de poissons», Cahiers d’outre-mer, nº 25 (1972): 307-337. 284 Michael Culley, The Pilchard: biology and exploitation. (Oxford : Pergamon Press, 1971), 206-210.
285 Xán Carmona Badía, « Crisis, reconversión y concentración: la atunización de la indústria española de conservas de pescado (1959-2007)», 6 e ss.
Mas talvez a maior transformação do segundo pós guerra tenha sido aquilo que Carmona Badía definiu como a atunização do mercado285. O facto de Espanha, França e o Japão perderem terreno na produção de conservas de sardinha não significa que tenham reduzido a sua participação na indústria conserveira, mas reconduziram o esforço de captura e transformação para novas espécies cujo consumo estava em forte crescimento286. Entre 1938 e 1953, as capturas mundiais de atuns e similares triplicaram, e continuariam a crescer nas décadas seguintes devido à expansão das frotas atuneiras de altura que capturaram grandes quantidades de atum rabilho (Thunnus albacares) e de bonito (Katsuwomus pelamis), cujos stocks pareciam mais estáveis do que os recursos marinhos costeiros, nomeadamente a sardinha. Devido à menor fragilidade do atum em comparação com os pequenos pelágicos como a sardinha ou o arenque, bem como a capacidade de preservar as qualidades orgânicas através dos processos de congelação, este recurso era mais facilmente congelado após a captura e transportado entre os locais de extração, transformação e consumo. A transformação do atum permitiu uma mecanização mais intensiva da linha de produção de conservas, a redução da sazonalidade do trabalho e o aumento da produtividade. Com a regularização no abastecimento da matéria-prima e a mecanização, as empresas ganharam uma nova escala com a integração vertical da pesca e a distribuição nos mercados interno e internacional com recurso a inovadoras campanhas publicitárias 287.
Um aspecto central na atunização da indústria de conservas foi a capacidade de os países europeus ultrapassarem as fronteiras naturais da pesca costeira no Atlântico Norte e na região do Mediterrâneo. Desde meados dos anos cinquenta multiplicam-se as empresas de capital misto (joint-ventures) na regiões menos desenvolvidas através de contratos que permitiam a concessão de licenças de pesca e o abastecimento dos mercados dos países concessionários. No caso de Espanha e França, essa expansão começou a ser feita a partir dos territórios insulares, de antigas colónias ou áreas de influência como o Sahara Ocidental, Senegal e Costa do Marfim 288. Nos EUA, a tradicional exploração dos tunídeos na costa da Califórnia deu lugar a novas conserveiras em Porto Rico e nas ilhas Samoa, onde os custos de produção eram mais baixos e os stocks de atum tropical mais estáveis e abundantes289. Entre todos os países, o Japão foi aquele que apresentou uma estratégia expansionista de maior sucesso. Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão encontraria constrangimentos no acesso ao Pacífico Norte, devido à forte expansão das frotas da União Soviética e às restrições de pesca exercidas na região de Kamchatka e nas ilhas Kuriles, e a Sul pela expansão da indústria de pesca da China. Os constrangimentos geopolíticos forçaram a inovação e a expansão planetária da indústria pesqueira. Em meados dos anos sessenta, a indústria nipónica já operava em todos os oceanos do mundo com cerca de 200 navios de pesca, dos quais 140 eram destinados à pesca e transformação do atum. Além dos compromissos firmados para o abastecimento dos territórios onde operavam os navios japoneses, as empresas japonesas detinham os conhecimentos técnicos para a modernização da pesca e da transformação dos tunídeos290. A partir dos anos setenta, o mercado do atum evoluiu para um controlo oligopolístico de grandes empresas e a afirmação de novos produtores internacionais, com destaque para a Indonésia e a Tailândia291.
286 Em França, entre 1937-39 e 1953-54 a produção de conservas de peixe cresceu quase 40%, mas o crescimento da produção de conservas de sardinha foi praticamente nulo Avigneau, L’ industrie…, 363 e ss. Em Espanha, a crise de escassez de sardinha na Galiza prolongou-se durante toda a primeira década do segundo pós-guerra, incitando à diversificação da produção conserveira com a utilização dos moluscos, como o berbigão, e as conservas de atum. V. Badía, Desarrollo industrial y associacionismo…, 112/113.
287 Ver, como caso paradigmatico da transformação e especialização nas conservas de atum, a empresa espanhola Calvo, que em 1979 lançou o famoso slogan «Atún claro, calvo». Xan Fraga Rodriguez, «Los Calvo. Protagonistas de la renovación de una industria madura» em Xán Carmona, org. Las famílias de la conserva…, 562-566.
5.1.1. Portugal: crescimento sem diversificação.
O impacto das transformações internacionais foi quase imperceptível na estrutura da indústria de conservas portuguesa no segundo pós guerra. A produção continuou a ser dominada pela transformação da sardinha em latas de conservas de azeite e molhos, orientada para a exportação e dirigida sobretudo para os mercados europeus. Apesar de não se verificarem tendências de diversificação da produção nem de concentração industrial, as exportações tiveram um aumento consecutivo a partir de 1953 e até 1966. A principal hipótese para a sustentação deste crescimento sem diversificação foi a recuperação do comércio europeu, associado ao crescimento das economias europeias no segundo pós guerra, e em particular aos efeitos da liberalização do comércio.
Esta tendência é corroborada pelos dados recolhidos no quadro 5.4. Apesar das notáveis flutuações na pesca da sardinha e da aguda crise no final dos anos quarenta, a produção de conservas de outras espécies nunca se distinguiu como uma alternativa. Nenhuma das espécies de pequenos pelágicos, como a cavala e o carapau, nem os atuns e similares, ultrapassaram a produção anual de 10 mil toneladas. As causas para esta concentração na sardinha são diversas e estão tanto do lado da oferta como da procura. As capturas de cavala e carapau demonstraram flutuações ainda mais pronunciadas do que as capturas de sardinha; apesar da valorização externa das conservas de cavala, a instabilidade do recurso impediu que esta constituísse uma alternativa forte à sardinha. Por outro lado, a pesca de atum no Algarve e na costa ocidental apresentou uma tendência decrescente nas décadas seguintes à Guerra. De resto, e em termos gerais, manteve-se como pano de fundo um controlo estrito das importações de produtos da pesca que não servissem exclusivamente para o abastecimento alimentar, como o bacalhau. Esta medida axiomática da política económica fazia a indústria conserveira depender exclusivamente dos recursos marinhos costeiros e impedia a diversificaçãoo industrial com recurso à importação de pescado.
288 V. Dias e Guillotreau, Fish canning industries… , 72/73
289 Robert Gillet, A short history of industrial fishing in the pacific islands (Rome: FAO, 2007), 10/11.
290Georg Borgström, Japan’s world success in fishing (London : Fishing news, 1964), 23-32.
291 Patrice Guillotreau, «Turning a fish into a brand: a century of rent-seeking strategies in the tuna canning industry» (Comunicação apresentada no 15th IIFET Conference, Montpellier, 13-16 de Julho, 2010) e Liam Campling, « “Commodity Frontier”: Business Strategies and Environment in the Industrial Tuna Fisheries of the Western Indian Ocean». Journal of Agrarian Change, 12-2/3 (2012): 252-278.
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Podemos aventar três hipóteses para a falta de diversificação da indústria portuguesa. A primeira remete para os anos da Segunda Guerra Mundial e a possibilidade de crescimento dada à pesca da sardinha. Entre 1938 e 1947, a frota sardinheira cresceu de 244 para 314 embarcações de pesca de cerco. No entanto, a partir de 1948, a pesca sofreu uma forte crise de escassez com uma redução de 40 mil toneladas. Esta crise de recursos também afectou França e Espanha – onde a crise foi mais duradoura, até 1956. Apesar da intensidade da crise em Portugal, a recuperação foi rápida, o que permitiu a reabilitação dos rendimentos das empresas de pesca costeira. A percepção científica do problema da sardinha apontava para um fenómeno de flutuação cíclica, diferente da «sobrepesca» que ocorria noutras espécies e territórios, nomeadamente com a sardinha da Califórnia 292. Estas circunstâncias levaram a uma insistência na especialização da pesca de cerco e a uma ausência de estratégias alternativas.
Um segundo argumento prende-se com o «atraso» das empresas portuguesas. Quer as empresas de pesca, quer as conserveiras, eram na sua maioria de pequena dimensão, compostas por uma ou duas traineiras e uma fábrica de conservas. Com níveis de produção baixos, o investimento em novas embarcações e na transformação das linhas de produção seria quase impossível. Todavia, quando observamos outros países, verificamos que as principais estratégias de capital-intensivo no sector das pescas foram apoiadas pelo Estado. Foi o caso do Japão, em que o controlo governamental e o patrocínio das agências oficiais permitiu a expansão das empresas e dos acordos de pesca em cerca de vinte países293, e de Espanha, que viu nascer grandes empresas de captura e congelação a bordo, como a Pescanova, com apoios públicos do regime franquista 294. Os dois segmentos da produção internacional que acusavam maior dinamismo – a produção de peixe congelado para abastecimento e exportação e a produção de conservas de atum – encontraram diversos obstáculos em Portugal. Os apoios públicos à renovação das frotas foram dirigidos quase exclusivamente às pescas de abastecimento de bacalhau e pescada. No que concerne à difusão da congelação na indústria transformadora, a prática do condicionamento industrial foi severa na proibição de instalação de câmaras de congelação nas fábricas de conservas, ao mesmo tempo que favorecia a especialização no fabrico de conservas de sardinha em azeite e molhos. Na pesca do atum, apesar dos relatórios que chamavam a atenção para o interesse de constituir uma frota atuneira nacional295, o desenvolvimento da pesca oceânica foi sucessivamente adiado e a execução dos Planos de Fomento demonstra a dificuldade em mobilizar os armadores para a comparticipação na construção de navios atuneiros. Por estas razões, os focos de inovação aparecem isolados, relacionados com algumas empresas como a COFACO no arquipélago dos Açores, a Empresa de Pescas de Aveiro e a Companhia Portuguesa de Congelação.
Por último, devemos aceitar que, à medida que os seus concorrentes diversificaram a produção, Portugal ganhou vantagens comparativas por manter-se especializado nas conservas de sardinha. A partir de 1950 abriu-se uma conjuntura duplamente favorável: a pesca de sardinha teve um crescimento sustentado das capturas e os mercados europeus, onde se intensificou a cooperação económica, absorveram quantidades cada vez maiores de conservas. Esta conjuntura obriga a que nos foquemos na problemática da abertura da economia portuguesa e no efeitos trazidos pela liberalização do comércio europeu.
288 V. Dias e Guillotreau, Fish canning industries… , 72/73
289 Robert Gillet, A short history of industrial fishing in the pacific islands (Rome: FAO, 2007), 10/11.
290Georg Borgström, Japan’s world success in fishing (London : Fishing news, 1964), 23-32.
291 Patrice Guillotreau, «Turning a fish into a brand: a century of rent-seeking strategies in the tuna canning industry» (Comunicação apresentada no 15th IIFET Conference, Montpellier, 13-16 de Julho, 2010) e Liam Campling, « “Commodity Frontier”: Business Strategies and Environment in the Industrial Tuna Fisheries of the Western Indian Ocean». Journal of Agrarian Change, 12-2/3 (2012): 252-278.
292 Sobre o colapso da pesca de sardinha na Califórnia e o triângulo regulatório entre Estado, ciência e Pescadores, v. McEvoy, The Fisherman Problem…, em especial 156-165. Os estudos coevos sobre a sardinha na Califórnia eram acompanhados em Portugal, como revela a tradução de Joaquim Gromicho Boavida do California Cooperative Sardine Research Program Progress Report 1950 (Boavida,1953).
293 Georg Borgström, Japan’s world success…, 21.
294 Jesús Giráldez, «Revisitando el nudo gordiano: el desarrollo de la congelación en la pesca gallega (1960-1970)», Areas: Revista Internacional de Ciencias Sociales, nº 27 (2008): 71/72.
295 Ver a análise do comandante Horácio de Carvalho no relatório « A pesca do atum», onde traçou um quadro geral de evolução das capturas e indústria transformadora nos arquipélagos portugueses e no resto do mundo. Horácio de Carvalho sugeria a transferência de novas tecnologias para a pesca do atum, como os long-lines e as redes de cerco, de forma a reduzir o custo das matérias-primas para a indústria conserveira e criar economias de escala. V. DGRM, GAPA, A pesca do atum nos Açores (Relatório de Horácio de Carvalho, 1955).
5.2. A abertura controlada.
As transformações no comércio internacional foram acompanhadas por um novo paradigma nas relações comerciais na Europa. A cooperação económica e a redução das barreiras no comércio entre os países europeus ocidentais foram a principal mudança ocorrida na política externa no segundo pós-guerra. No entanto, como notou Alan Milward, a criação de organizações supraestaduais de liberalização económica, e mais tarde de integração política, não anularam a existência do Estado-Nação296. Os diferentes Estados, ao conviverem em organismos de gestão comum, continuaram a representar interesses particulares e defensores da sua soberania. A experiência portuguesa de «integração» enquadra-se nesta visão geral. Numa perspectiva estritamente política, a participação de Portugal nas organizações internacionais foi dominada pela manutenção intransigente do império que criou um progressivo isolamento internacional. Mas a adesão aos organismos de cooperação económica, iniciada logo em 1948 com a entrada na Organização de Cooperação Económica, foi entendida com uma necessidade de garantir o desenvolvimento económico e a estabilidade social da Ditadura297. As relações económicas com o império, apesar de terem recebido uma renovada atenção nos anos cinquenta e sessenta, não constituíam uma alternativa às relações comerciais com os países europeus. A participação de Portugal no processo de integração económica europeia seguiu a tendência dos países mais industrializados da Europa ocidental com regimes democráticos. Anos mais tarde, em 1986, quando Portugal entrou na Comunidade Económica Europeia, a maioria das barreiras comerciais já tinham sido desmanteladas no país 298.
Neste processo de abertura a participação directa de Salazar foi, aparentemente, menor. A representação portuguesa nos organismos de cooperação externa foi ocupada por uma nova geração de diplomatas, economistas e políticos que formaram convicções próprias sobre a necessidade de tornar a economia portuguesa mais competitiva e aberta ao exterior, em particular no sector exportador299. Portugal foi dos países que mais liberalizou o comércio externo300. Um dos resultados mais expressivos desta política foi o aumento sustentado do peso do comércio externo na riqueza nacional (Quadro 5.5.). Do lado das importações, após a crise comercial entre 1947 e 1950, os fornecimentos externos continuaram a crescer, necessários para satisfazer o aumento do consumo e sustentar a nova etapa de industrialização, sobretudo através da importação de bens intermédios para execução dos Planos de Fomento301. Por sua vez, o crescimento das exportações está diretamente relacionado com a anulação das barreiras quantitativas ainda durante o período da OECE, antes da constituição da CEE e da EFTA. Apesar de uma evolução mais tímida a partir de 1955, o peso das exportações no PIB deve-se à retoma das exportações tradicionais nos mercados europeus, onde as conservas de peixe continuam a ocupar uma posição relevante, superior a 10% do total das exportações.
296 Alan Milward, The European rescue of the nation-state (Londres: Routledge, 1993), 119 e ss.
297 Nicolau A. Leitão, Estado Novo, Democracia e Europa, 1947-1986 (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007), 55.
298 Lucia Coppolaro e Pedro Lains. «Portugal and European integration, 1947-1992: an essay on protected openness in the European periphery». E-journal of Portuguese History, 11-1 (2013): 62.
299 Destacam-se neste grupo José Gonçalo Correia de Oliveira, José da Silva Lopes, Valentim Xavier Pintado, Manuel Jacinto Nunes, Isabel Magalhães Colaço, Francisco Pereira de Moura e José Calvet Magalhães.
300 Alberto Xavier, Portugal e a Integração Económica Europeia (Coimbra: Almedina, 1970), 92.
301 Para uma análise sobre o aumento do valor das importações e o crescimento da importação de produtos manufacturados em Portugal, em comparação com outros países, v. Valentim Xavier Pintado, Structure and growth of the portuguese economy (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002), 267-269.
Ao longo deste subcapítulo procuramos demonstrar como a abertura da economia portuguesa foi cautelosa, exercida com um atento controlo governamental através de novas organizações. Merecem destaque o funcionamento do Conselho de Ministros para o Comércio Externo, organização que ao longo dos anos cinquenta vigiou a evolução das importações, das exportações metropolitanas e coloniais e a análise semestral da balança de pagamentos e de comércio, no contexto da participação de Portugal na OECE; e o Fundo de Fomento da Exportação, criado em 1949 para promover o apoio público às exportações num contexto de grave crise comercial. Em segundo lugar, a participação de Portugal na liberalização do comércio europeu foi crucial para compreender a expansão da indústria de conservas de peixe. A reabilitação da Alemanha como pivô da cooperação económica – ao contrário daquilo que sucedera no rescaldo da Primeira Guerra Mundial – foi o elemento central para a mudança no perfil das exportações dos países europeus302. Nas vésperas de adesão à EFTA, os países que tinham formado a CEE, incluindo a Alemanha, detinham uma quota superior no comércio externo português, devido sobretudo à perda de importância do mercado inglês nas importações e exportações portuguesas303. Esta constatação serve para problematizar os resultados do chamado «efeito EFTA». Nos países que compuseram a EFTA as exportações de conservas encontraram importantes limitações relacionadas com os hábitos de consumo, mais do que a concorrência de outros países. Esta evolução difere de outras indústrias que foram catapultados pela entrada de Portugal na EFTA, como a indústria têxtil e, no plano das indústrias alimentares, a indústria de concentrado de tomate.
302 Milward, The European Rescue…, 121 e ss.
303 Pintado, Structure and growth…, 258
5.2.1. Da crise dos abastecimentos ao «fomento» da exportação.
No imediato pós-guerra, um dos problemas prementes na sociedade portuguesa era a regularização dos abastecimentos alimentares e a necessidade de dissolver o mercado negro que prosperara durante a guerra. A desvalorização real dos salários provocada pela inflação e o encarecimento dos bens essenciais provocaram um crescente descontentamento social que ameaçava a estabilidade do regime. Politicamente, a vitória das democracias liberais na Guerra reforçava as oposições à ditadura e exigia uma resposta coordenada do regime para afastar os dissidentes, conter as organizações oposicionistas e preparar o governo para o pós guerra304. Em 1947, Salazar procede a uma remodelação do governo para acomodar os diferentes grupos de interesse em movimento. Na tutela da Economia, a entrada do ministro Daniel Barbosa em 1947 foi um ponto de viragem. Perante a gravidade da carência de abastecimentos, o novo ministro empreendeu um significativo aumento das importações pagas através das divisas acumuladas durante a guerra e capacitou os organismos de coordenação económica para manterem o controlo sobre a aquisição, armazenamento e distribuição das matérias-primas305. O aumento das importações permitiu desmobilizar os stocks de produtos no mercado negro e introduziu uma tendência deflacionária nos preços de retalho, ainda que à custa do agravamento do défice da balança comercial e de pagamentos. Barbosa, engenheiro e adepto da nova linha de rumo traçada por Ferreira Dias, acreditava que estava incumbido de lançar as “indústrias-base” do programa de fomento e reorganização industrial, que também requeria um aumento de importações de bens de equipamento. Mas a preocupação em regularizar os abastecimentos absorveu o seu curto mandato306 . No final dos anos quarenta, a crise comercial causada pela quebra das exportações e o aumento das importações deu espaço aos críticos seguidores da ortodoxia financeira, como Araújo Correia, relator das contas gerais do Estado307. Vinte meses após a nomeação, Daniel Barbosa acabou substituído pelo conservador e corporativista Castro Fernandes.
A política de estabilização dos abastecimentos continuou a ser um dos eixos centrais do Ministério da Economia que, a partir de 1948, dispôs de um Fundo de Abastecimento para comparticipar os preços de consumo. A extensão e organização do Fundo de Abastecimento está ainda por esclarecer mas algumas análises sectoriais sugerem que foi um importante regulador dos preços que permitiu absorver os ciclos de escassez e abundância dos produtos alimentares, com impacto nos salários e na contenção da inflação308. Ulisses Cortês, que sucedeu a Castro Fernandes na pasta da Economia, reconhecia, em 1955, a existência de «complexos e onerosos sistemas de compensação» para atenuar as flutuações dos preços internacionais e das mercadorias no mercado interno, concretizados no alargamento da acção do Fundo de Abastecimento:
«Desde os produtos alimentares às matérias-primas, aos combustíveis e aos fertilizantes químicos, não houve zona de aprovisionamento onde se não tivesse actuado com vista a garantir a normalidade dos preços e a plena satisfação das necessidades.
Entre 1950 e 1954, as intervenções impostas pela política dos preços atingiram a importância total de 2822670 contos, que teve como principal contrapartida o produto da tributação das mais valias, medida tornada imperiosa para evitar a hipertrofia do poder de compra interno e as suas perturbadoras incidências sobre o equilíbrio económico geral.»309
Se a política de estabilização dos preços se revelou axiomática neste período, não podemos no entanto deixar de notar uma nova intervenção pública destinada ao «fomento» das exportações. Pela primeira vez desde a constituição do novo regime, vai surgir uma declaração inequívoca e a acção legislativa dedicada a apoiar o crescimento das exportações portuguesas no estrangeiro. Este movimento foi incentivado pela grave crise do défice comercial no final dos anos quarenta310, mas também como corolário da adesão e Portugal à OECE e a necessidade de aproveitar as oportunidades que a liberalização do comércio europeu oferecia. De resto, desde 1945, com a primeira lei industrialista, ficara claro que o esforço de industrialização implicaria uma elevada importação de bens de equipamento que teria de ser compensada com um aumento das exportações.
Em 1950, António Pinto Barbosa e José Teixeira Ribeiro discutiram os principais problema do comércio exportador português. No imediato pós-guerra, as importações tinham sofrido uma valorização superior às exportações, cuja recuperação nos tradicionais mercados europeus era lenta 311. Os autores criticavam o desvio das reservas de divisas para a compra de bens de consumo quando deveriam ter sido gastas em bens de investimento, mas sublinhavam que para garantir um equilíbrio duradouro era essencial a revalorização das exportações. A exportação de conservas de sardinha e de azeite, por exemplo, tinham recuado devido às más colheitas agrícolas e anos de escassez na pesca. Contudo, era na procura – na descida das compras da Alemanha, do Reino Unido e de França – que colocavam os principais motivos de preocupação. Pela importância que estes países detinham no comércio externo português, advogavam por uma política de fomento dirigida sobretudo aos mercados europeus.
A criação do Fundo de Fomento de Exportação (FFE), em 1949, foi o primeiro passo para definir a política oficial de apoio às exportações portuguesas. Segundo o decreto-lei fundador, o FFE destinava-se a financiar e promover as exportações através da observação dos mercados e produção de informação especializada, a realização de campanhas de publicidade e missões no estrangeiro, e ainda a concessão de subsídios e empréstimos para melhorar as condições da produção312. Além das transferências financeiras de receitas obtidas pelos organismos de coordenação económica e dos juros de rendimentos próprios, as receitas do FFE dependiam das taxas cobradas à importação de veículos ligeiros, cujo valor podia variar entre 15% e 50%, de acordo com o preço de venda do veículo 313. A taxa, cobrada sobre o preço de venda ao público, ficava à margem dos compromissos de liberalização do comércio intraeuropeu previstos na OECE; os automóveis, bem de consumo duradouro, eram ainda no início dos anos 50 considerados pelos ministros como um produto «sumptuário»314.
304 Sobre a «primeira crise séria do regime» que se inicia durante os anos do conflito, com sucessivas greves e a reorganização da oposição, incluindo a revolta militar conhecida como «Abrilada» de 1947, v. Fernando Rosas, O Estado Novo…, 1994, 328-360 .
305 Sobre o período de governação de Daniel Barbosa e o contexto social e económico interno, v. Fernando Rosas, Salazarismo e fomento económico (1928-1948) (Lisboa : Notícias, 2000), 123-149 .
306 Rosas, Salazarismo e fomento…, 134-137.
307 Sobre esta crítica, na sequência do posicionamento inicial das autoridades perante o Plano Marshall e o «volte-face» em 1948, v. Fernanda Rollo, Portugal e a Reconstrução Económica do Pós-guerra. O Plano Marshall e a Economia Portuguesa dos anos 50. (Lisboa: MNE, 2007), 119-127.
308 Para este relativo desconhecimento sobre o Fundo de Abastecimento contribui o estado actual da documentação pertencente ao Ministério da Economia. Apesar de se tratar de documentação avulsa, é útil a consulta da documentação depositada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo: ANTT, AOS, EC-7, cx. 90, capilha 1(“Situação financeira do Fundo de Abastecimento. Orçamentos”). Sobre a intervenção do Fundo de Abastecimento na gestão política dos preços de retalho de bacalhau, v. Garrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau…, 325-327.
309 Ulisses Cortes, A acção do Ministério da Economia: agosto de 1950 a dezembro de 1954 (Lisboa : Império, 1955) , I, XIV.
310 Enquanto o saldo negativo da balança comercial portuguesa se fixava em cerca de 1177 milhares de contos no período entre 1934-38, em 1947 ascendeu a 5155 e em 1948 a 6055 milhares de contos. V. José Teixeira Ribeiro e António Pinto Barbosa, A crise das exportações metropolitanas para o estrangeiro (Lisboa: AIP, 1950) [sem paginação].
311 Ribeiro e Barbosa, A crise das exportações metropolitanas… [sem paginação].
312 V. Diário do Governo, Decreto-lei nº 37:538, 02.09.1949. A composição do FFE sofreria alterações com o Decreto-Lei nº 45:151, de 22.07.1963 , e o Decreto-Lei nº 47:583, de 09.03.1967.
313 V. Diário do Governo, Decreto 37:539, 02.09.1949.
314 V. ANTT, AOS, PC-74, cx. 528, capilha 1 (CMCE, 12.05.1952).
Nos mercados externos, a intervenção do FFE tinha dois vectores fundamentais. O primeiro consistia na criação de uma rede de instituições, os Centros de Informações e serviços comerciais das Casas de Portugal, incumbidos de reunir a informação comercial sobre cada país, as oportunidades de negócio, as mudanças nos hábitos de consumo, o comportamento dos concorrentes internacionais e os stocks de produtos portugueses em depósito no estrangeiro. É através desta informação especializada que podemos reconstruir, por exemplo, as quotas de mercado das conservas de sardinha nos principais países de consumo. Esta informação comercial era condensada no boletim Fundexport, de periodicidade semanal, que incluía textos com um propósito didático , quase paternalista, como o «Decálogo do Exportador» ou instruções práticas para melhorar a embalagem dos produtos. O FFE foi ainda responsável pela organização de diversos colóquios, entre 1959 e 1969, em colaboração com a AIP, que se dedicaram a discutir a evolução das exportações portuguesas, o comportamento das empresas e as informações comerciais organizadas pelos serviços externos315. Nestes colóquios, que citaremos adiante, nasceu um importante debate sobre o dilema Estado/iniciativa privada na promoção das exportações, a necessidade de incutir a “mentalidade do exportador” e de promover, oficialmente ou pela via empresarial, agrupamentos de empresas para ganharem escala na promoção das vendas no exterior. Em 1959 a AIP convocou as diversas forças da indústria portuguesa para discutir os possíveis impactos da adesão portuguesa à EFTA 316.
Em 1969, decorridas duas décadas desde a fundação do FFE, era proposta uma síntese sobre a sua actuação. A ideia de apoiar publicamente as exportações no início dos anos cinquenta continuava a ser justificada como uma compensação às importações necessárias ao processo de industrialização. Esta perspectiva reactiva diferia de uma interpretação em que o crescimento da indústria e da agricultura seria mais fulgurante se a produção fosse orientada para as exportações. Desde 1952, a par dos serviços de informação comercial, o FFE tinha realizado 121 campanhas de «propaganda» em 10 mercados, com uma despesa total de 200 mil contos, suportada em 70% pelo FFE e comparticipada pelos organismos de coordenação económica317. Os resultados destas campanhas merecem uma apreciação crítica. Em primeiro lugar, os membros do FFE reconheciam que as ações de «propaganda» tiveram um carácter genérico de divulgação dos produtos portugueses sem referência específica a marcas ou empresas, o que poderia limitar o aumento da procura pelos produtos. Se analisarmos algumas das principais exportações, notamos que os apoios públicos não foram suficientes para retomar a atividade exportadora. O caso mais expressivo é o do vinho do Porto. Antes da guerra, o comércio de vinho do Porto representava cerca de 30% das exportações de produtos alimentares e bebidas; em 1967, apenas 14%318. A quebra da importância relativa devia-se ao arrefecimento da procura britânica, em parte substituída pelo consumo em França. Perante este cenário, o FFE dedicou uma importante fatia dos seus orçamento à divulgação do vinho do Porto – só em 1960, de acordo com as contas de gerência, foram gastos 11 mil contos. No seio da transição controlada para um comércio liberalizado, nas reuniões do CMCE, os ministros procuraram a diversificação dos mercados do vinho através de compensações à aquisição de equipamentos industriais319. Todavia, eram os próprios ministros que confessavam a ineficiência dos mecanismos criados para a promoção do produto. Em Dezembro de 1955, Paulo Pitta e Cunha, Ministro dos Negócios Estrangeiros, reconhecia que a acção do Solar do vinho do Porto em Bruxelas era nula 320.
Na realidade, o FFE surge mais nitidamente como um mecanismo de assistência à produção – nem sempre claramente dirigida aos mercados externos – em particular nos sectores que demonstravam um menor dinamismos nas exportações. A participaçãoo do FFE nas despesas dos Planos de Fomento (Quadro 5.6.) é, a este propósito, eloquente. Se nele abundam os sectores em que as exportações estavam em menor crescimento – como os vinhos, mas também o azeite e os frutos – estão ausentes as indústrias transformadoras em maior crescimento, como os têxteis e o concentrado de tomate. Nesta distribuição de recursos devemos ter em conta não só a ação supletiva do Estado para conceder melhores condições às exportações menos dinâmicas, mas também a acção dos grupos de interesse que compunham esses sectores. O vinho do Porto, à semelhança do azeite e das frutas, dispunham de poderosos organismos de coordenação económica criados nos anos trinta para resolver os problemas de produção e comércio internacional; perfilavam-se, no segundo pós-guerra, como os principais receptores dos novos apoios públicos à exportação.
314 V. ANTT, AOS, PC-74, cx. 528, capilha 1 (CMCE, 12.05.1952).
315 V. FFE, Ao serviço da exportação (Lisboa : Fundo de Fomento de Exportação, 1959); Colóquio da exportação (Lisboa : A.I.P., 1965); FFE, Colóquio ao serviço da Exportação. 4 Vols. (Lisboa: FFE, 1969).
316AIP, Colóquio sobre a posicão de Portugal perante a cooperação das economias portuguesas, Lisboa, Julho, 1960. 2 Vols (Lisboa : AIP, 1960).
317 FFE, «Medidas de promoção do desenvolvimento da exportação: a acção do FFE» em Colóquio da Exportação…, 1969, II, 223/224.
318 José da Silva Lopes, «O crescimento das exportações portuguesas no último meio século» em Colóquio da Exportação…, 1969, I, 102. 319 ANTT, AOS, PC-74, cx. 528, pt. 5 (CMCE, 04.05.1955 e 28.06.1955). 320 ANTT, AOS, PC-74, cx. 528, pt. 5 (CMCE, 26.12.1955).
Por outro lado, as contas de gerência demonstram como os investimentos do FFE revelaram alguma dispersão, frequentemente solicitados para acudir a despesas públicas que nada tinham a ver com o comércio exportador321. O aumento das dotações orçamentais, entre 1950 e 1960, a preços correntes, demonstra o seu crescimento, sobretudo a partir de 1957, que coincide com a criação da Secretaria de Estado de Comércio por Correia de Oliveira e um reforço das competências do FFE (Quadro 5.7)322. Porém, se fizermos a decomposição das despesas do organismo, podemos concluir que o FFE se dedicou mais à intervenção no mercado interno do que à missão prosélita de defender as exportações no exterior. A partir de 1953 surgiram duas rúbricas de maior peso nas despesas, a “Defesa e auxílio à exportação portuguesa, em especial perante as práticas anómalas de concorrência nos mercados internacionais” e a “Compensação do preço de produtos importados com o objectivo de facilitar a exportação de produtos nacionais”, cujos montantes anuais superavam os 5 mil contos323 . Em segundo lugar, é assinalável ao longo dos anos a contribuição para a “constituição de reservas nacionais de vinho”, que em 1955 se especificou na construção de um “centro de preparação de vinhos de alta qualidade da região do Dão” e a comparticipação na construção de adegas cooperativas do Douro. Avultam, ainda, despesas relacionadas com diversas contribuições e comparticipações nas estruturas de apoio à atividade económica, como os já referidos Planos de Fomento, o alargamento da rede eléctrica em Lourenço Marques ou os empréstimos às empresas Ferrominas e Minas de Vila Cova, a partir de 1958. A actuação nos mercados externos dirigiu-se quase exclusivamente aos países com quem se mantinham balanças deficitárias e onde se manteve uma importante estrutura de representação comercial e produção de informação especializada compilada, muitas vezes, no boletim Fundexport.
321 Esta dispersão e a insuficiência das dotações orçamentais foram assunto recorrente nas reuniões do Conselho de Ministros para o Comércio Externo. Ver, por exemplo, a discussão em torno do orçamento para 1954 em ANTT, AOS, PC-74, cx. 528, pt. 4 (CMCE, 23.02.1954).
322 Ver José Gonçalo Correia de Oliveira, Despacho aos serviços dependentes da secretaria de Estado do Comércio. (Lisboa : Fundo de Fomento de Exportação, 1958), 10/11. É no mesmo ano que o FFE organiza a presença portuguesa na Feira Internacional de Lausanne. Ver «Do Fundo de Fomento da Exportação à AICEP», Portugal Global, nº 126, 2020, 62-73.
323 Na discusão do orçamento suplmentar para 1954, o valor excedentário referia-se à constituição de reservas nacionais de vinho, com a concessão de um subsídio reembolsável à Adega Regional do Dão, e a despesa de 500 contos para “propaganda” de vinho do Porto na Suécia, que tinha alterado regras de importação de bebidas alcoólicas. ANTT, AOS, PC-74, cx. 528, pt. 4 (CMCE, 7.11.1954).
Em suma, o FFE, em conjunto com o Fundo de Abastecimento, foram mecanismos suficientemente variáveis para a adaptação da economia portuguesa ao processo de abertura ao exterior324. A sua gestão foi atentamente escrutinada pelo Conselho de Ministros do Comércio Externo. Na discussão sobre os orçamentos anuais, as insuficiências financeiras, que obrigaram a sucessivos orçamentos suplementares, e a falta de apoios diretos às atividades exportadoras suscitaram vários debates325. A discussão ganhou especial acuidade a partir de 1954. Como referia o Ministro das Finanças com algum alarme, a conjuntura favorável após o final da Guerra da Coreia e o equilíbrio da posição portuguesa na União Europeia de Pagamentos contrastava com a deterioração das balanças comercial e de pagamentos326. A intensificação das importações necessárias à execução do I Plano de Fomento exigiam que o reequilíbrio do comércio externo se fizesse por via das exportações. Esperava-se, inclusive, que a acção do FFE pudesse abrir novos mercados aos futuros produtos industriais que resultassem dos investimentos públicos, de forma a contornar os perigos de um mercado interno de pequena dimensão.
Apesar da modéstia de resultados, a actuação do FFE durante a primeira década não deve ser menosprezada. Os agentes privados acederam a uma informação comercial mais completa antes da tomada de decisões e o pessoal do FFE beneficiou da formação técnica proporcionada por missões fora do país, em conjunto com as experiências de negociação nos organismos internacionais. Foram esses mesmos técnicos que, debruçando-se sobre os mercados externos, identificaram as principais debilidades das empresas portuguesas. Entre elas contava-se uma incipiente estrutura de vendas, caracterizada pela multiplicidade de agentes exportadores e marcas, que dificultava um uso eficaz dos fundos em campanhas de «propaganda»327. Sem prejuízo do sucesso em sectores de produção com um maior valor acrescentado, a acção do FFE continuou, na década de sessenta, focada na promoção dos produtos tradicionais, cujo valor se manteve elevado na estrutura das exportações, mas insuficiente para o equilíbrio da balança de pagamentos 328.
O labor do Conselho de Ministros para o Comércio Externo (CMCE) é o segundo elemento caracterizador da política comercial externa dos anos cinquenta. Como recordou Nicolau Andresen Leitão, no seio do CMCE reuniu-se a corrente reformista do governo de Salazar que, em 1955, procedeu a uma nova remodelação governamental. Nela se incluía, além de Marcelo Caetano e António Pinto Barbosa como ministros da Presidência e das Finanças, respectivamente, jovens secretários de Estado que participam no funcionamento das organizações internacionais, como Manuel Jacinto Nunes e, sobretudo, José Gonçalo Correia de Oliveira. Ao longo da década de cinquenta, o fulcro da actuação do CMCE foi a coordenação da participação portuguesa na OECE que requeria dois cuidados especiais: o acompanhamento sobre a liberalização das importações, em particular a eliminação das restrições quantitativas (licenciamentos e contingentes), que se traduzia em novas oportunidades de exportação; e a vigilância atenta sobre a balança comercial e de pagamentos, sujeita à pressão do aumento das importações que, como vimos, devia ser compensada através da ação do FFE e de novos acordos comerciais. Acresce que, no seio da participação de Portugal na União Europeia de Pagamentos, mecanismo que permitia a convertibilidade das moedas nacionais e a supressão das barreiras aos pagamentos internacionais, Portugal deveria manter uma postura de equilíbrio em relação aos restantes países sem acumular saldos excessivos como credor ou devedor.
Em todo o caso, a leitura das atas do CMCE entre 1952 e 1957 – a partir desta data, e até 1959, as reuniões estão dominadas pelo projeto de formação de uma zona de comércio livre e a preparação de adesão à EFTA – demonstram, sobretudo, a gestão informal e «invisível» do processo de liberalização económica. Em meados dos anos cinquenta, os países da OECE tinham procedido com sucesso ao levantamento de 85% das barreiras quantitativas ao comércio. Portugal era um dos países membros que mais tinha contribuído para este objectivo, com uma taxa de liberalização de 93,7 % em 1956329. Todavia, este número contrasta com os múltiplos mecanismos informais criados pelos diversos ministérios para conter as importações consideradas desnecessárias, ou supérfluas, bem como as importações daqueles paíss com quem Portugal acumulava um crescente défice na balança de pagamentos, nomeadamente com a Alemanha330. Em Julho de 1955, com a presença de Salazar, a discussão em torno da balança de pagamentos dominou os trabalhos do CMCE. A posição deficitária devia-se ao aumento das importações necessárias à execução dos Planos de Fomento331 mas também a matérias-primas que seriam reexportadas como produtos industriais. Salazar referia-se, em particular, à necessidade de importar equipamentos como uma alternativa ao investimento estrangeiro, mesmo com o risco de criar desequilíbrios financeiros, e, no que se referia às matérias-primas, destacava os combustíveis que seriam refinados na SACOR, uma empresa criada com um forte patrocínio do Estado durante a Segunda Guerra Mundial332. Por outras palavras, é notável a persistência de um importante nacionalismo económico – ainda que mais velado do que nos anos trinta – que se reflecte em decisões administrativas e na coordenação entre as diferentes tutelas ministeriais. A título de exemplo eloquente, vejam-se as resoluções tomadas na reunião do CMCE de 15 de Julho de 1955:
«Resoluções do Conselho. Quanto à balança de pagamentos: Que o Ministro de Ultramar fixe em 90% a importância de cambiais provenientes da exportação a entregar até 31 de Dezembro ao fundo cambial de Angola; que o Ministro da Economia dificulte importações de automóveis de turismo; e facilitar as importações da zona dólar sempre que as condições de preço sejam mais favoráveis que as da UEP [União Europeia de Pagamentos]; que o ministro das Finanças procure, por meio de ação pessoal junto das administrações dos principais bancos de comércio, obter a sua colaboração no sentido da restrição de crédito às firmas que vendam a prestações artigos suntuários de importação e também no sentido de colaboração […] quanto ao financiamento de iniciativas estranhas ao Plano de Fomento»333.
324 De notar, entre estes dois mecanismos, a comunicabilidade entre ambos, que se traduzia numa frequente transferência de receitas do FFE para o Fundo de Abastecimento, cuja missão de control dos preços se presume, em termos políticos, mais relevante do que o fomento às exportações. V. ANTT, AOS, PC-74, cx. 528, pt. 1 (CMCE, 12.05.1952).
325 ANTT, AOS/CO/PC – 74, pt. 4 (CMCE, 23.02.1954)
326 ANTT, AOS/CO/PC – 74, pt. 5 (CMCE, 30.04.1955).
327 V. José da Silva Lopes, «O crescimento das exportações portuguesas no último meio século» em Colóquio ao serviço da Exportação, org. FFE (Lisboa: FFE, 1969), vol. 1, 33-108. No final dos anos sessenta, o FFE passa a dirigir a sua actuação directamente às empresas e regista algumas alterações na sua missão, nomeadamente na divulgação do «design» e de novas formas de comercialização. Para uma análise crítica, v. Herlander Duarte 1999, «Fundo de Fomento de Exportação», em Dicionário de História de Portugal, org. Maria Filomena Mónica e António Barreto (Lisboa: Fugueirinhas, 1999), Vol. 8, p. 74/75.
328 V. José da Silva Lopes, «A relevância das exportações para a indústria nacional» em Colóquio da Exportação, org. AIP (AIP: Lisboa, 1965), 65 e ss. O autor destacava a necessidade imperiosa de desenvolver as exportações de produtos industriais como condição de equilíbrio da balança de pagamentos.
329Xavier, Portugal e a Integração…, 92.
330 Ver a discussão em torno do orçamento do FFE para 1956, em que se previa um aumento de 12 mil contos em relação ao ano anterior, e cuja execuçãoo previa a criação de um Centro de Informações na Alemanha para potenciar o desenvolvimento das exportações e diminuir o «enorme e crescente saldo negativo do intercâmbio». ANTT, AOS/CO/PC – 74, pt. 4 (CMCE, 26.12.1955).
331Para acompanhar a execução dos Planos de Fomento foi criado o Conselho Económico, cuja memória documental está arquivada no arquivo nacional da Torre do Tombo.
332 Castaño et al., Os petróleos em Portugal…, 21 e ss.
333 ANTT, AOS/CO/PC – 74, pt. 4 (CMCE, 15.07.1955)
Em suma, o CMCE e o FFE procuraram concretizar o incentivo público às exportações mas sem comprometer a ortodoxia financeira e o processo de industrialização nacionalista, empenhado no lançamento de indústrias de base de substituição das importações. A política monetária de desvalorização do escudo para apoiar o sector exportador não constituía uma alternativa porque, além de poder afectar a estabilidade das contas públicas, era contrária ao processo de estabilização cambial em curso desde os acordos internacionais de Bretton Woods, em 1943. Além desta apreciação geral, podemos discernir uma forte presença dos grupos de interesse ligados à indústria e agricultura que estimularam uma discussão casuística sobre o processo de liberalização do comércio. Mais do que uma política concertada e com objectivos a longo prazo, o CMCE dedicou-se a observar os constrangimentos nas exportações em cada sector industrial, os programas de reorganização das indústrias em marcha e as possibilidades abertas pelos acordos comerciais com os países fora da órbita das organizações de cooperação, especialmente os países europeus de leste e do continente sul-americano. À semelhança de outros instrumentos de política económica, onde avulta o condicionamento industrial, o CMCE e o FFE propiciaram uma transição controlada de uma economia fechada para uma progressiva abertura.
Por último, cabe destacar a realização, em 1959, do colóquio «Ao serviço da Exportação», que constituiu um balanço da primeira década de vida do FFE. Os discursos proferidos durante a efeméride por três figuras centrais– Ferreira Dias, Ministro da Economia, Pedro Teotónio Pereira, Ministro da Presidência, e José G. Correia de Oliveira, Secretário de Estado do Comércio – oferecem uma síntese importante sobre o rumo da política comercial portuguesa nas vésperas de adesão à EFTA.
Ferreira Dias refreava as duras críticas que fizera em 1945, no livro Linha de Rumo, às feiras de amostras de produtos portugueses no estrangeiro, que lhe serviam de prova sobre a incapacidade de o país promover as suas exportações industriais334. Ainda que se mostrasse benevolente com a ação do FFE, o Ministro não descolara da sua visão axiomática da industrialização portuguesa que devia ser dirigida à substituição das importações. Nesse sentido, Ferreira Dias representava um importante sector que apoiava o fomento das exportações para, sobretudo, compensar o «fatal aumento das importações» que o processo de industrialização acarretava antes de se alcançar a «satisfação autárquica»335.
O Ministro da Presidência, Pedro Teotónio Pereira, reconhecia publicamente o labor de Correia de Oliveira por ter colocado o comércio exportador no primeiro plano do debate público. Mas, à semelhança de Ferreira Dias, recordava que as exigências previstas no II Plano de Fomento (1959-1964) deveriam ser o principal motivo para reforçar o apoio público e a iniciativa privada dedicada a produzir para os mercados externos. Esta visão oficial e nacionalista distancia-se de um modelo de industrialização orientado para as exportações que nasce nos anos sessenta, já visível no Plano Intercalar e no III Plano de Fomento, atento à conquista de novos mercados336. De seguida, Teotónio Pereira aproveitava a ocasião para confrontar as críticas feitas à organização corporativa, de que tinha sido um dos criadores. Afirmava, primeiro, que a «organização» se tornara indispensável para impor a ordem «no tempo em que nem o Estado nem na vida particular possuíamos quaisquer meios de intervenção»337. E insistia, num momento particular em que se dava a segunda arrancada do corporativismo com a criação das Corporações, que a rede de organismos corporativos e de coordenação económica criada nos anos trinta continuava a oferecer vantagens sobre outros mecanismos de intervenção. Indiferente à permanência dos problemas de concorrência e estruturas frágeis nas principais actividades exportadoras, onde se incluía a indústria de conservas, defendia, como defendera duas décadas atrás, uma visão ideal na organização do comércio:
«Nem sempre se tem entendido com suficiente constância que sobretudo no domínio da exportação a organização é condição vital […] Criaram-se grémios de exportadores […] Numa economia inteligentemente ordenada e voluntariamente situada entre o delírio da liberdade económica e a ameaça esterilizante dos monopólios socialistas, o número de exportadores industriais deve ser suficientemente amplo para impedir certos inconvenientes dos cartéis e suficientemente reduzido para que se não caia na excessiva fragmentação das firmas e das marcas ».338.
É o discurso de Correia de Oliveira que exprime um maior voluntarismo sobre a atividade exportadora e também uma sensibilidade aos problemas que afectavam as exportações. O momento servia para expor os novos objectivos do FFE e dar alento à iniciativa privada. Correia de Oliveira destacava a prioridade de se conhecerem as tendências do consumo, acima de outros incentivos ou medidas políticas, para se produzir com destino à exportação339. Em segundo lugar, assumia, com um certo paternalismo, que essa atividade não poderia ser desempenhada apenas pelas empresas340. A intervenção do Estado não se deveria cingir ao prolongamento da ação dos organismos de coordenação económica, como sugerira Teotónio Pereira; mas antes a um reforço da intervenção do FFE, que deveria concentrar toda a ação sobre a prospecção dos mercados, e os organismos de coordenação económica, vocacionados para atuarem nas relações económicas internas. Defendia a necessidade de os serviços do FFE se autonomizarem da esfera de representação diplomática para estreitarem relações com os agentes comerciais e prometia o desagravamento fiscal sobre as exportações. A sua longa exposição revelava, sobretudo, as ideias que tinham presidido à formação da Secretaria de Estado do Comércio e a reorganização administrativa dos poderes afetos à política comercial341. Apesar do voluntarismo de Correia de Oliveira, o FFE continuou a ter limites de atuação ao longo dos anos 60, relacionados sobretudo com a falta de eficácia da diplomacia económica prestada pelas organizações portuguesas no estrangeiro 342.
334 Sobre a obra de Ferreira Dias, ver a introdução de J. M. Brandão de Brito em Ferreira Dias Jr., Linha de rumo I e II e outros escritos económicos : 1926-1962. Lisboa : Banco de Portugal, 1998.
335 Ao Serviço da Exportação…, 1959, 21 .
336 V. Ana Bela Nunes e J. M. Brandão de Brito, «Política económica, industrialização e crescimento» em Nova História de Portugal, Vol.XII – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), org. Fernando Rosas. (Lisboa: Editorial Presença, 1992), 330-334 .
337 Ao serviço da exportação…, 1959, 10.
338 Ao serviço da exportação…,1959, 10.
339 «Só o estudo do mercado nos dirá em que medida as características internas e externas dos produtos, o volume da oferta, o preço, a política cambial, os direitos de importação, o sistema de comercialização e tantos outros factores são na verdade obstáculo à expansão das exportações». V. Ao serviço da exportação…, 1959, 32.
340 «Está o comércio exportador em condições de, por si, resolver os dois problemas a que atrás me referi? (…) a maioria das empresas exportadoras não têm a capacidade para, isoladamente e por si, garantir o conhecimento profundo e actualizado dos mercados». José Correia de Oliveira, « » em Ao serviço da exportação…, 30
341 V. Manuel de Lucena, Os lugar-tenentes de Salazar. (Lisboa: Alêtheia, 2015),239-263 .
342 V. FFE, Medidas de promoção…, 223/224.
5.2.2. O comércio de conservas: efeitos da liberalização.
Vimos, no primeiro subcapítulo, como a indústria de conservas se manteve à margem dos sectores mais dinâmicos no panorama internacional da transformação do pescado: a congelação e a indústria atuneira. No entanto, os benefícios obtidos pela cooperação económica europeia serviriam de contraponto. Em grande medida, o aumento das importações de conservas de sardinha foi o resultado da liberalização do comércio externo nos anos cinquenta, antes da adesão à EFTA. Por liberalização entende-se, neste período, o levantamento progressivo das barreiras quantitativas ao comércio, ou ao pagamento das importações, uma medida estrutural na criação da OECE em 1948. Ao criar um mercado liberalizado, e ao permitir o financiamento das importações através do Plano Marshall, as autoridades norte-americanas saíram beneficiadas com um aumento das exportações para o continente europeu e um alargamento da procura. No contexto da Guerra Fria, esta política tinha ainda um evidente efeito de conter as relações comerciais com os países do «Leste europeu».
Na realidade, o processo de liberalização não se iniciou de forma imediata. Foi a sua lentidão, aliás, e o prolongamento das restrições comerciais entre 1946 e 1950, que nos permitem aferir as vantagens da subsequente liberalização. No primeira década do segundo pós-guerra distinguem-se, por isso, dois períodos: o primeiro, até inícios dos anos cinquenta, marcado pela crise dos recursos marinhos e a resistência dos mercados externos à abertura comercial; e um segundo, até 1957, em que houve ma rápida liberalização nas trocas, em particular com a República Federal da Alemanha.
A crise entre 1946 e 1952 foi, certamente, um dos períodos mais duros vividos pela indústria de conservas de peixe. Um a um, a indústria foi perdendo todos os factores de competitividade que permitiram o triunfo da exportação durante a Guerra. O fenómeno mais grave foi a crise de escassez dos recursos marinhos. As capturas de sardinha, que em 1944 atingiram as 120 mil toneladas, recuaram para 47 mil em 1948 e 34 mil em 1949. Em Matosinhos, o maior centro conserveiro, os preços correntes de venda da sardinha à indústria subiram de 3,7 escudos em 1946 para 6,1 em 1949343. A crise de escassez terminou um período de duas décadas em que, apesar das flutuações anuais, existira uma abundância relativa de sardinha em toda a costa portuguesa. A escassez prolongada era agravada pelo crescimento da frota sardinheira durante a guerra. O impacto desta crise no sector da pesca e na ação dos conserveiros será discutido nos capítulos seguintes.
A indústria portuguesa foi ainda prejudicada pelo crescimento da indústria marroquina. Em contraste com a realidade portuguesa, a pesca de sardinha e a capacidade das conserveiras aumentaram exponencialmente, com a vantagem de a sardinha não ser disputada nas lotas pela procura para consumo público. Enquanto em 1938 a capacidade de produção de 38 fábricas era de 13,8 mil toneladas, em 1948 existiam 75 fábricas em Marrocos com capacidade de 50 mil toneladas anuais344. O crescimento devia-se, sobretudo, à procura francesa no imediato pós-guerra, que se traduziu no crescimento do contingente de importações de sardinhas marroquinas de 5750 toneladas em 1938 para 12 mil em 1948, isentas de direitos345. Com um mercado lucrativo em França, as empresas marroquinas desceram os preços nos mercados mais concorrenciais e conquistaram posições às empresas portuguesas, nomeadamente em Inglaterra, para onde exportavam cerca de um milhão de latas. O clima de euforia levou à abertura de novas sucursais francesas em Marrocos e ao crescimento do investimento estrangeiro, ainda que muitas empresas marginais sobrevivessem com as quotas que lhes eram garantidas na distribuição dos contingentes. Fora do mercado francês, a conjuntura começou a alterar-se no primeiro triénio dos anos cinquenta com a recuperação das capturas de sardinha em Portugal (Quadro 5.8).
Fonte: Domingo, L’industrie marocaine…, 326.
343 Estatística Industrial, INE, 1946-1949 (cálculos nossos).
344 «O desenvolvimento da indústria de conservas de peixe em Marrocos », Conservas de Peixe, nº 39 (1949), 29.
345 Jean Domingo, «L’industrie marocaine de la conserve de poissons», Cahiers d’outre-mer, nº 25 (1972): 322/323.
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Mas o aspecto mais saliente no imediato pós-guerra era a permanência dos mecanismos que tinham cerceado o comércio internacional durante o conflito mundial. À cabeça destacavam-se os navicerts impostos pela marinha britânica, que prejudicavam sobretudo a importação de folha-de-flandres, e os contratos de vendas colectivas com os países aliados que reexportavam as conservas portuguesas para os territórios mais atingidos pelo conflito346. As negociações entre o Estado português e o Combined Food Board constituído pelo Canadá, Inglaterra e Estados Unidos da América revelam a perda de poder negocial da indústria portuguesa347. Por outro lado, sem prejuízo dos efeitos de longo prazo dos acordos de Bretton Woods para a estabilização cambial, persistiam as políticas monetárias nacionais de desvalorização competitiva. A desvalorização do franco não só afectava o poder de compra em França, um dos principais mercados portugueses, como conferia maior competitividade às conservas marroquinas348. Por último, note-se que, ainda em 1950, os acordos comerciais bilaterais eram a prática recorrente que afectava o comércio de conservas. Os industriais queixavam-se da morosidade das licenças, a discricionariedade e falta de cumprimento dos acordos, bem como a ausência de acordos com os EUA e os países latino-americanos349. O corolário desta conjuntura foi o aparecimento inusitado de novos países no pódio dos principais clientes das conservas de sardinha, como a Bélgica, a Suíça e a Itália (Quadro 5.9.).
O comércio com a Alemanha é um excelente exemplo de como as relações comerciais estavam dependentes do novo enquadramento geopolítico. Em 1948, Duarte Silva, director do IPCP, exortava ao vice-presidente da Comissão Técnica para a Cooperação Económica Externa que se incluísse a exportação de conservas de peixe nas negociações com as forças de ocupação aliada em Berlim350. A este pedido sucederam várias cartas dos importadores alemães que denunciaram a desigualdade de tratamento entre a importação de conservas portuguesas e norueguesas, país que fora fustigado pela ocupação nazi. Em Março de 1950, António Feu avisava a direção do IPCP que a Alemanha estava também a fazer acordos para importar conservas marroquinas351. As exportações portuguesas foram retomadas em 1949, mas ainda sob o sistema de contingentes que foi cumprido em apenas 26%. Em Dezembro de 1950, um ofício da Comissão de Coordenação Económica comunicava a liberalização das importações de conservas. A partir dessa data, o crescimento das exportações foi espetacular, em termos absolutos e relativos (Quadro 5.10).
A retoma do comércio com a Alemanha fez parte de um projeto político mais vasto de garantir uma paz duradoura na Europa. A recuperação económica com base na abertura do comércio externo reflectiu-se nas taxas de crescimento das importações e exportações superiores ao crescimento do PIB alemão352. Portugal, no comércio externo, beneficiou indiretamente destes avanços na cooperação económica. No que diz respeito às exportações de conservas, a recuperação foi ainda conseguida pela retoma das exportações para Inglaterra, que permitiu reduzir a competição entre conserveiros e regular os preços, e o regresso da sardinha à costa portuguesa a partir de 1950.
350 DGRM, IPCP, Alemanha I (carta de 14.05.1948).
351 DGRM, IPCP, Alemanha I (Correspondência entre António Feu e A. Dircks, 1.03.1950).
352 Milward, The European rescue…, 121
353 José Correia de Oliveira, «Parecer nº 28/VI» em Actas da Câmara Corporativa, nº 53 (1955): 565-566.
354 V. Diário de Governo, Decreto-lei 38:659 (26.02.1952) que impunha a retenção de 30% do valor das exportações para os países da UEP. Esta circunstância levantou fortes críticas dos conserveiros que estavam, nesse momento, a retomar as exportações depois de um longo período de crise. Por despacho de ministerial de 15 de Março as conservas de peixe foram, no entanto, isentas da retenção de 30% imposta pelo decreto. V. «Falso alarme», Conservas de Peixe, nº 72 (1952): 7-8; e, sobre este tema e a participaçãoo portuguesa na UEP, Xavier, Portugal e a Integração…79-82.
Neste período confirmou-se, enfim, a concentração das exportações de conservas nos mercados europeus. Em cerca de três anos, entre 1953 e 1955, os principais compradores europeus, com exceção da França, tinham liberalizado as importações de conservas353. E nem o saldo credor português na União Europeia de Pagamentos, a partir de 1950, criado pelo aumento súbito das exportações no contexto da Guerra da Coreia, veio limitar o comércio de conservas354. Apesar da evolução positiva, no final da década persistiam múltiplos direitos de importação e impostos fiscais sobre as importações de conservas nos países da OECE (Quadro 5.11). Esta situação era particularmente visível no mercado francês, onde as conservas portuguesas eram sujeitas a direitos de 35% ad-valorem e um imposto de 20% sobre o valor da mercadoria desalfandegada, enquanto as conservas marroquinas beneficiavam de um contingente de 600 mil caixas isentas de direitos. Em Itália, os direitos atingiam 33% ad-valorem e o imposto fiscal de 3% mais 19 liras por quilo. A acção diplomática vinha, no entanto, somando algumas conquistas. Na Áustria, por exemplo, as conservas estavam sujeitas a um contingente anual, mas por via de um novo acordo comercial de 1954 o contingente foi eliminado e os direitos de importação de conservas de sardinha baixaram de 50% para 15% ad-valorem 355.
A permanência destas barreiras comerciais fez com que os conserveiros tomassem atenção aos processos de integração europeia, sobretudo a constituição da CEE e da EFTA, e exortassem pela adesão ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) – que Portugal subscreveu em 1962 – para contornar os direitos impostos pela pauta aduaneira comum nos países da CEE 356. Em todo o caso, até 1965 o crescimento das exportações teve nos mercados europeus o seu principal motor. As exportações de conservas de peixe para a Europa cresceram de 15,4 mil toneladas em 1950 para 64 mil em 1965; no mesmo período, as exportações para os restantes continentes não superaram a barreira das 10 mil toneladas (Quadro 5.12). Nesta distribuição, o aspecto mais saliente é a timidez da procura norte-americana, membro da OECE/OCDE e um dos principais consumidores de conservas. É certo que o consumo neste país se dirigiu a produtos de maior valor acrescentado, como as sardinhas sem pele e sem espinha e as anchovas, o que implica um peso mais relevante no valor do que no volume das exportações357. Mas, mesmo com apoios públicos de «propaganda», as exportações estabilizaram em torno das 6 mil toneladas. A estagnação deve-se, sobretudo, à alteração nos hábitos de consumo e à dificuldade de as conservas portuguesas se integrarem nos canais de distribuição das novas formas de venda das conservas nas superfícies de retalho onde os consumidores tinham uma nova autonomia na escolha dos produtos.
De acordo com um estudo sobre as preferências dos consumidores publicado pela «Fisheries Commercial Review» em 1956, o consumo de conservas nos lares norte-americanos tinha a preferência geral pelas conservas de atum, seguidas pelas conservas de salmão e só depois pelas conservas de sardinha358. Além desta tendência, o consumo de conservas estava cada vez mais determinado pela redução dos preços de venda e a capacidade de marketing de marcas fortes359. Em meados dos anos cinquenta, as conservas sem pele e sem espinhas eram ainda sujeitas a uma taxa de 30% ad-valorem e as conservas de atum sofriam uma forte concorrência das conservas espanholas e do Japão, que aderira recentemente ao GATT 360.
355 António Durão Ferreira. «Alguns problemas relacionados com a exportação de conservas de peixe» em Ao serviço da exportação, (Lisboa : Fundo de Fomento de Exportação, 1959),116-119.
356 «A adesão de Portugal ao GATT e a indústria de conservas», Conservas de Peixe, nº 174 (1960), 7-8.
357 Em 1959, por exemplo, os preços médios correntes na exportação de conservas de sardinha para os países da CEE era de 13,73 escudos por quilograma, 14,44 nos países da EFTA e 18,67 nos EUA. V. Ruy C. Nascimento, A captura de pelágicos e a indústria de conservas de peixe. Compilação de alguns elementos estatísticos no período 1948-1958 (Lisboa: IPCP, 1960), 80. 358 «Estudo sobre as preferências do consumidor de conservas de peixe nos EUA», Conservas de Peixe, nº 135 (1957): 17.
359 “Cerca de 65,1% das donas de casa que compram conservas de sardinhas não pedem uma marca especial. Contud, uma grande maioria é influenciada pelas marcas quando compra conserva de atum porque este beneficia duma maior propaganda do que a sardinha. A compra obedecendo à marca é praticada por 58% das donas de casa que compram atum em conserva e apenas por 35% das que compram conservas de sardinha”. V. Estudo sobre as preferências…, 17.
360 «Novos horizontes no mercado norte-americano», Conservas de Peixe, nº 115 (1955), 7-8.
Podemos afirmar, em síntese, que a primeira década do segundo pós-guerra assistiu a um processo de liberalização do comércio que beneficiou a exportação de conservas de sardinha e outras espécies. Este crescimento foi também favorecido por algumas alterações qualitativas nos hábitos de consumo, a começar pela divulgação das sardinhas sem pele e sem espinha na Alemanha, a partir de 1955, e a substituição do consumo de salmouras pelas conservas de sardinha em azeite e molhos em Itália. Todavia, este processo foi incompleto e, centrado na eliminação das barreiras quantitativas, permitiu a permanência de diversos direitos de importação. A progressão na cooperação económica europeia para o desarmamento alfandegário vai colocar legítimas expectativas entre os conserveiros. Porém, pairava igualmente a ideia que, para produzir para mercados abertos com uma crescente concorrência internacional, era necessário reduzir os custos de produção e «racionalizar» a produção de conservas. Entre os mercados consumidores era cada vez mais claro que a decisão de compra das conservas concorria com a aquisição de outros produtos que forneciam proteínas de origem animal, como a carne e os ovos, e o preço passava a ser um factor decisivo na sua aquisição 361. O aprofundamento do processo de integração económica com a formação do grupo dos «Seis» (CEE) e dos «Sete» (EFTA) teria efeitos paradoxais sobre as exportações de conservas.
361 Ferreira, Alguns problemas relacionados com a exportação…, 113.
5.2.3. Os Seis e os Sete: a integração na economia europeia.
A partir de 1957, as expectativas de desenvolvimento do comércio externo centraram-se nos movimentos de integração económica entre os países europeus. Se, em geral, o impacto destes movimentos foi positivo na indústria e nas exportações portuguesas, veremos como no caso das conservas ficaram aquém do sucedido noutras indústrias. O crescimento das exportações de conservas não dependia apenas da criação do comércio livre. Os hábitos de consumo, e a sua distribuição geográfica, continuaram a ser os determinantes da procura externa.
É útil rever as principais características do processo de integração económica europeu desde o final dos anos cinquenta e a participação portuguesa nesse processo. O Tratado de Roma, em 1957, cujas origens remontam ao início da década, consumou a ideia de criação de um mercado único e uma união aduaneira, que constituía um passo em frente em relação às políticas de liberalização da OECE. O governo britânico, cético e excluído do processo de integração, manteve relações preferenciais com os países da Commonwealth e promoveu a associação dos países que não formaram a CEE numa associação europeia de comércio livre, a EFTA362. Na realidade, a criação da EFTA não se opunha à constituição da CEE e era entendida como uma etapa transitória para os países signatários aderirem à CEE no futuro. O projecto de cooperação da EFTA seria menos ambicioso do que a CEE: centrado no comércio livre de produtos industriais, não incluía a criação de instituições supraestaduais de governação como na CEE, o que implicava a partilha dos mesmos ideais políticos que tinham em comum as democracias liberais363. Para Portugal, a adesão à EFTA oferecia vantagens óbvias: manter as relações comerciais privilegiadas com a Inglaterra, principal cliente das exportações; o acesso a mercados dos países europeus com um elevado rendimento per capita e, em simultâneo, a manutenção da autonomia política e da integridade da soberania colonial. Além desta vantagens, a historiografia demonstrou como a diplomacia portuguesa negociou condições muito favoráveis de adesão ao conseguir a inclusão de produtos agrícolas transformados na denominação de «produtos industriais» da Convenção de Estocolmo e um desarmamento alfandegário lento no mercado interno, durante um período de duas décadas, que permitiu uma transição suave da última nação europeia industrializada à abertura do comércio externo 364.
O sucesso das negociações na EFTA foi reconhecido pelos contemporâneos e o período transitório concedido a Portugal visto como uma oportunidade «realista» para fazer uma reorganização profunda nas estruturas industriais, e no lançamento de novos equipamentos, tal como tinha sido previsto no II Plano de Fomento (1959-1964)365. Porém, a percepção dos industriais conserveiros sobre o rumo dos planos de integração era diferente. Com a exclusão de Portugal da CEE e a subsequente adesão à EFTA, temiam o início de uma «marcha antagónica» entre dois grupos de países com políticas económicas distintas e receavam a penalização das exportações no mercado da CEE366. Estas preocupações não eram infundadas mas revelaram-se algo equívocas. As exportações de conservas para os países da CEE continuaram a crescer após 1957 porque, essencialmente, os países fundadores eram os principais consumidores de conservas de sardinha. Por outro lado, a adesão de Portugal a outras instituições internacionais, em particular o FMI e o GATT no início dos anos 60, permitiu a estabilização externa do escudo com uma taxa de câmbio fixo em relação ao dólar e a criação de um espaço alternativo para negociar a redução das tarifas sobre as exportações, sobretudo com a Alemanha. O problema não esteve, portanto, na obstrução do mercado único às exportações de conservas; esteve, sim, na ausência de dinâmica da procura exercida pelos países da EFTA.
O Quadro 5.13 apresenta a distribuição das exportações segundo os países europeus da CEE e da EFTA antes e após a constituição das organizações, entre 1951 e 1966. Os países que compunham a CE absorveram, entre 1951 e 1959, 48% das exportações, e entre 1960 e 1966, 50%. Durante este período, a evolução do volume das exportações foi sempre crescente, o que demonstra a capacidade de estes mercados absorverem quantidades cada vez maiores de conservas apesar da manutenção de direitos de importação. Este crescimento justifica-se pela incapacidade de encontrar um produtor do mercado único capaz de substituir as importações portuguesas. Já nos países que compõem a EFTA, a percentagem das exportações entre 1951 e 1959 e entre 1960 e 1966 coincidiu: 24%, o que representa cerca de metade dos países da CEE. Se olharmos em detalhe para o peso relativo dos países de cada organização (Quadro5.14), os resultados são também relevantes. Na CEE, além da Alemanha, o principal cliente das conservas portuguesas, e com exceção da Holanda, os restantes três países tiveram quotas superiores a 5%, por vezes próximas dos 10% do total. No tradicional mercado francês, onde as conservas de sardinha portuguesas tinham perdido competitividade, houve mesmo uma recuperação nos primeiros anos sessenta. Nos países EFTA, a procura esteve concentrada em Inglaterra, que entre 1957 e 1966 absorveu 62,3% das exportações este conjunto de países.
362 Na sequência do Tratado de Roma, seguiram-se longas negociações para a formação de uma zona de comércio livre entre os países do mercado comum e os outros países que compunham a OECE. Sobre a proposta britânica, ver Leitão, Estado Novo, Democracia e Europa…, 72-74 .
363 A relevância do Tratado de Roma para o direito internacional e a formação do direito da União Europeia não será aqui discutida. Além da formação do mercado único, o Tratado de Roma previa a livre circulação de pessoas, serviços e capitais e a criação de políticas económicas e sociais comuns. V. Leitão, Estado Novo, Democracia e Europa…, 65.
364 A participação de Portugal na EFTA, desde o processo de negociação ao desempenho das exportações, foi analisada por diversos autores. V. José da Silva Lopes, A economia portuguesa desde 1960 (Lisboa: Gradiva, 2002), 15-119; Valentim Xavier Pintado, Structure and growth of the portuguese economy (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002), 258 e ss.; Elsa Santos Alípio, Salazar e a Europa : história da adesão à EFTA, 1956-1960 (Lisboa : Livros Horizonte, 2006); Leitão, Estado Novo, Democracia e Europa…, 117-127; Richard Griffiths e Bjarne Lie, «Portugal e a EFTA, 1959-1973». Em Portugal e a Europa, 189 e ss.
365 Francisco Pereira de Moura, «Dificuldades que a integração põe à economia portuguesa» em Por onde vai a economia portuguesa? (Lisboa, Dom Quixote, 1969), 232-241.
366 V. «Em demanda da organização de um mercado europeu», Conservas de Peixe, nº 159 (1959), 9-10; «As conservas portuguesas e o Mercado Comum», Conservas de Peixe, nº 179 (1961), 7-8; e «Possibilidades conserveiras no âmbito da EFTA», Conservas de Peixe, nº 188 (1961), 7-8.
As percentagens do Quadro 5.14 referem as quantidades exportadas mas não o valor das exportações. E aqui encontramos outra diferença. Em termos gerais, as diferenças entre o conjunto de preços médios dos países CEE e EFTA é quase imperceptível (Quadro 5.15). Contudo, na CEE, o maior mercado – a Alemanha – era também aquele que detinha os preços médios mais altos, seguido pela Bélgica e pela Holanda. Nos países da EFTA, pelo contrário, os preços médios mais altos eram oferecidos pela Suíça e a Dinamarca que não superavam os 5% na quota das exportações portuguesas. O preço médio das conservas em Inglaterra, ligeiramente abaixo da média dos países EFTA, está relacionado não só com o aumento da concorrência externa mas também com a desvalorização da libra.
A expansão da indústria de conservas não se viu nem prejudicada, nem particularmente beneficiada, pela bifurcação dos movimentos de integração económica na Europa a partir de 1957. As exportações não deixaram de crescer nos países da CEE apesar de Portugal não fazer parte da organização nem ter, nesse período, qualquer acordo de associação. Por outro lado, os mercados dos países EFTA tinham um potencial limitado para a expansão do consumo, a par de um aumento da concorrência marroquina, norueguesa e espanhola. A Associação de Fabricantes de Conservas da Noruega, que também pertencia à EFTA, relatava em 1963 que a redução de 50% dos direitos de importação das conservas de sild beneficiava as exportações, mas alguns países que produziam conservas mantinham direitos sobre as protecionistas, nomeadamente a Dinamarca e a Suécia367. Apesar de o conjunto dos países EFTA agrupar produtores e consumidores de produtos da pesca, a integração destes mercados, que implicava desproteger algumas das indústrias tradicionais, esteve aquém das expectativas 368.
Durante a primeira metade dos anos sessenta a indústria de conservas obteve o volume mais alto das exportações. O elevado consumo nos mercados externos e a abundância de sardinha no litoral permitiram a estabilidade dos preços. Porém, começavam a surgir lentamente os problemas que vão ser o prenúncio da crise do sector na segunda metade da década: as dificuldades na comercialização das conservas e a concorrência externa. Os relatórios publicados pelos importadores na revista Conservas de Peixe oferecem um retrato fiel dos mercados. Na Bélgica, tal como na Alemanha, os importadores exortavam os fabricantes a melhorarem as suas embalagens, reduzirem o número de marcas e «modernizar» os desenhos gráficos para se adaptarem às vendas em supermercados perante o rápido desaparecimento das vendas em balcão. E notavam já uma tendência importante: na Bélgica, as importações nas marcas dos comerciantes belgas aumentavam todos os anos e, em Inglaterra, as marcas dos compradores já representavam 70 a 75% das importações inglesas das conservas de sardinha 369. Enquanto a concentração das vendas em marcas dos importadores tinha algumas vantagens, como a intensificação da publicidade e da distribuição das conservas, tinha também o inconveniente de retirar poder negocial aos fabricantes portugueses que ficariam mais dependentes dos preços feitos pelos importadores. Em segundo lugar, a concorrência externa dava, paulatinamente, sinais preocupantes. Em Inglaterra, Portugal detinha ainda uma quota de mercado das conservas de sardinha superior a 90% mas as exportações de Marrocos mais do que duplicaram entre 1961 e 1962. Mario Travani, em Itália, alertava os industriais portugueses para a necessidade de conter os preços das conservas e, quando a diferença de preço com as conservas marroquinas era assinalável, as vendas desciam automaticamente370. Os baixos preços das conservas marroquinas resultavam da condição preferencial que tinham no mercado em França, com um contingente de 670 mil caixas de conservas de sardinha anual que lhes permitia vender noutros mercados a preços baixos e compensar as perdas371. Mesmo no mercado francês, onde as conservas portuguesas nunca recuperaram a sua posição dominante no período entreguerras, surgiam novas tendências que podiam conter o recurso a importações. A indústria conserveira francesa começou a utilizar, pelo menos desde o início dos anos 60, sardinha congelada capturada na costa de Marrocos, passando a ter uma maior disponibilidade de recursos para a produção doméstica372.
367 “A indústria de conservas de peixe norueguesa em 1962”, Conservas de Peixe, nº 203(1963), 15-17.
368 Ver, por exemplo, as tensões existentes sobre o comércio de peixe congelado entre a Noruega e Inglaterra em Griffiths e Lie, Portugal e a EFTA…, 190 e ss. Por outro lado, os mesmos autores desconstroem a importância das concessões portuguesas atribuídas no célebre anexo G, afirmando que os produtos incluídos no anexo representavam menos de 1,5 do total do comércio e não faziam concorrência directa à produção de outros estados-membros.
369 Heinrich Nikel, «O mercado alemão em 1962», Conservas de Peixe, nº 205 (1963) ; Willy Moers, «As conservas de peixe no mercado belga em 1962», Conservas de Peixe, nº 205 (1963), e Victor A. Martin, «As conservas de peixe no mercado inglês em 1962», Conservas de Peixe, nº 205 (1963).
370 Mario Travani, «As conservas de peixe portuguesas e o mercado italiano», Conservas de Peixe, 1963.
371 «A indústria de conservas marroquina e o mercado comum», Conservas de Peixe, 1963.
372 J. Cardoso, «Mercado de França. “Carta de Bordéus”», Conservas de Peixe, 1963.
Por último, uma forma interessante de verificar o «efeito EFTA» na indústria de conservas é compará-lo com outros sectores exportadores. Numa perspectiva geral, o crescimento das exportações para os países da EFTA entre 1959 e 1966 foi de 473% nos produtos manufacturados e de 110% nos produtos alimentares e bebidas, incluindo os produtos transformados que tinham sido incluídos como «industriais» nas negociações de adesão, designadamente as conservas de peixe e o concentrado de tomate. Este crescimento representa uma viragem fundamental de um processo de industrialização baseado na substituição das importações para um novo período orientado para as exportações. Entre os produtos alimentares, o destaque é o concentrado de tomate, cuja exportação cresceu de 34 mil contos em 1959 para quase 300 mil em 1966; as conservas também cresceram mas a um ritmo menor e inferior à média, de 187 para 280 mil contos no mesmo período373. O protagonismo esteve, no entanto, nos têxteis e vestuário que ocupavam 60% das exportações de produtos manufacturados. Apesar do grande crescimento, Silva Lopes mostrava preocupação pela excessiva concentração num sector especialmente vulnerável ao protecionismo e à concorrência dos países em desenvolvimento374. Décadas mais tarde, o economista reconheceria também que este crescimento das exportações produziu uma excessiva especialização em sectores de trabalho intensivo, com pouca sofisticação tecnológica e dificuldade em conseguir aumentos de produtividade375.
No comércio de cortiça, à semelhança das conservas, a adesão à EFTA não teve um grande impacto nas exportações porque os países da EFTA, com exceção de Inglaterra, não eram grandes compradores de cortiça. Todavia, o facto de a cortiça em bruto não ter os mesmos benefícios de comércio livre que a cortiça manufacturada no espaço EFTA induziu a uma maior especialização das exportações em produtos manufacturados, sobretudo as rolhas, que em 1974 já representavam 60,7% da produção376. A indústria de concentrado de tomate teve um crescimento espectacular entre 1961 e 1966, quando a produção decuplicou de 9800 para 91543 toneladas377. A definição do concentrado de tomate como «produto industrial» nos anexos da Convenção de Estocolmo foi uma conquista do processo negocial, depois de obtida a anuência de Inglaterra que, inicialmente, foi pressionada pela Itália para não aceitar378. Com esta conquista, a produção portuguesa de concentrado de tomate ganhou quotas de mercado aos produtos italianos que perderam a sua competitividade. O sucesso da indústria de concentrado de tomate deveu-se também à atração precoce de investimento estrangeiro que permitiu a capitalização da indústria transformadora379 – uma iniciativa que, como veremos em maior detalhe, esteve ausente na indústria de conservas de peixe.
372 J. Cardoso, «Mercado de França. “Carta de Bordéus”», Conservas de Peixe, 1963.
373 José da Silva Lopes, «A EFTA e as exportações portuguesas – inquérito da Comissão Portuguesa da EFTA» em Colóquio ao serviço da Exportação, org. FFE (Lisboa: FFE, 1969), vol. 1, 228-230.
374 Lopes, A EFTA e as exportações portuguesas…, 230.
375 Lopes, A Economia Portuguesa desde 1960…, 113.
376 Amélia Branco, O Impacto das Florestas no Crescimento Económico Moderno durante o Estado Novo (1930-1974) (tese de Doutoramento, Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão, 2005), 225.
377 Pires, A Junta Nacional das Frutas…, 104 (Gráfico 5).
378 Elsa Santos Alípio, Salazar e a Europa…, 87/88.
379 Leonardo A. Pires, «Estado, cultura de mercado e regulação de interesses: o condicionamento industrial e o sector agroalimentar em Portugal, 1937-1974.», Ler História, 76 (2020): 143.
5.3. A intervenção do Estado: continuidades e mudanças.
A liberalização do comércio externo na Europa não implicou um recuo da intervenção dos Estados na economia. Pelo contrário, o esforço de recuperação no imediato pós-guerra, com a distribuição das ajudas financeiras norte-americanas, obrigou à assunção de um novo planeamento económico público. Portugal não escapou a esta tendência, ainda que as ajudas norte-americanas tenham ficado muito aquém das recebidas por outros países europeus. A ação do Estado centrou-se no processo de industrialização com a formação de empresas de capital misto nas principais «indústrias-base», como os cimentos e a siderurgia380. A formulação dos Planos de Fomento permitiu identificar as forças e debilidades da economia portuguesa e a dimensão do mercado interno, bem como os desafios que acarretava a abertura ao exterior e a necessidade de proceder à reorganização das indústrias exportadoras 381 .
Ao mesmo tempo, porém, a coordenação económica exercida pelos organismos pré-corporativos, e coadjuvada pela organização corporativa, não desapareceu com o final da Guerra. Em grande medida, foi no segundo pós-guerra que a actuação dos organismos de coordenação económica passou de transitória a permanente382. Na indústria de conservas, o IPCP continuou a desempenhar amplas funções no mercado, quer na aquisição de matérias-primas, quer na fixação pontual de preços mínimos de exportação.
A julgar pelas fontes primárias, o IPCP consolidou durante o segundo pós-guerra a sua «vocação empresarial», surgindo nitidamente como um agente no mercado quer das matérias-primas quer dos produtos finais, além de executar as funções de coordenação económica consagradas na lei de 1936 que, em mais de trinta anos, não sofreu alteração substancial. O crescimento das exportações permitiu ao Instituto alargar a sua base de receitas e oferecer condições de crédito de curto prazo mais favoráveis, através de uma maior percentagem de desconto sobre as mercadorias depositadas. A intervenção continuou a ser direta, animada por diferentes conjunturas, mudanças na procura internacional e com vários graus de intensidade. Assim, por exemplo, o IPCP continuava não só a coordenar mas também a fazer cumprir as regras impostas por cada mercado às exportações de conservas de peixe. Na América Latina, no Brasil e no México, as vendas careciam de declarações prévias dos exportadores e outras restrições como a proibição exportar latas brancas 383. Com o início da Guerra da Coreia (1950-53), as importações de folha de flandres dos EUA tornaram-se mais difíceis e caras. Para evitar a subida dos custos de produção e a perda de competitividade externa, o IPCP obteve uma reserva sobre as importações de folha de flandres, distribuiu a folha em contingentes pelos industriais e fixou um preço administrativo que correspondia a metade do preço no mercado livre 384. Nos «molhos», que em meados da década representavam cerca de 10% na estrutura de custos das empresas, o Instituto continuava, em 1953, a fixar os preços do óleo de amendoim em coordenação com a Junta Nacional de Azeite 385. Três anos mais tarde, perante uma crise de abastecimento de azeite refinado, o IPCP voltou a fixar preços e contingentes distribuídos pelos Grémios de industriais 386.
Foi no segmento da produção de anchovas que a coordenação económica dilatou mais o seu pendor interventivo, demonstrando como o Instituto exercia direitos de «propriedade» sobre esta atividade que ajudara a desenvolver desde os anos trinta. A exportação de anchovas tornara-se o segundo produto de exportação nas conservas de peixe, logo a seguir às conservas de sardinha. Entre os principais mercados estavam os Estados Unidos da América e Itália. A concorrência entre produtores portugueses neste mercado levara, no entanto, à necessidade de reinstaurar os preços mínimos de exportação em 1947.
Do lado da oferta, o mercado norte-americano de sardinhas exigia outros cuidados relacionados com a qualidade, tendo em conta que o produto era uma «especialidade» produzida sem pele e sem espinha. Neste domínio, o IPCP continuou a fixar os prazos da safra de pesca para as conservas «sem pele e sem espinha», único período em que se podiam produzir conservas destinadas aos EUA387. Deste excurso podemos concluir que a intervenção do Estado por via dos organismos de coordenação económica caracteriza-se por diversas continuidades. E o corolário mais relevante desta intervenção parece ter sido a estabilização dos custos de produção, que analisaremos noutro capítulo.
À acção interventiva do IPCP, que segundo a lei de 1936 se pretendia supletiva, somava-se um conjunto de ineficiências. Os principais projectos industriais em que a organização se envolvera com um duvidoso apoio dos industriais, a partir da aplicação dos Fundos Corporativos que estes detinham nos Grémios de Industriais, foram um logro. A criação de uma «fábrica corporativa» de tratamento de óleos de peixe em Alhandra, a partir de uma sociedade com capital subscrito por todos os conserveiros, esteve envolta em inúmeros problemas de transferência de tecnologias e concorrência com outros sectores da indústria portuguesa, como a indústria de óleos e oleaginosas dominada pela CUF e a produção de margarinas pela Unilever, representada em Portugal pela Jerónimo Martins388. Já a Companhia Portuguesa de Siderurgia, que se envolvera num litígio com os fornecedores externos de tecnologias para a produção de aço, continuou a ter no horizonte a produção de folha-de-flandres, como revelam as actas do Conselho Económico, um conselho de ministros informal para acompanhar a execução dos Planos de Fomento389. A instalação da indústria de siderurgia, incluída no plano das indústrias base sugeridas por Ferreira Dias na lei 2005, de 1945, seguiria, no entanto, o caminho da produção de aço em altos-fornos, associada à indústria de construção e dos cimentos, com a entrada decisiva de António Champalimaud. A discussão sobre a produção de folha de flandres em Portugal foi mesmo paradoxal: enquanto se insistia na necessidade de produzir folha para abastecer a indústria de conservas, a importação de folha era regularizada, a preços acessíveis, inclusive com o auxílio das ajudas financeiras norte-americanas 390. O logro dos projetos industriais revela, sobretudo, a dificuldade de as estruturas burocráticas se tornarem agentes de inovação industrial. O industrialismo latente nos anos trinta não tinha, vinte anos depois, grandes mudanças. Alves da Costa, chefe dos serviços industriais do IPCP, numa comunicação ao Segundo Congresso da Indústria em 1957 explicava que a indústria continuava a ter uma estrutura frágil, composta por múltiplas fábricas com um excesso de capacidade instalada e grandes diferenças na produtividade, que o autor identificava na forma de organização do ciclo de fabrico. Eximia-se de responsabilidades, acusando o condicionamento industrial da cristalização da indústria de conservas391. É certo, porém, que o IPCP também se mostrava pouco lesto a resolver os problemas internos da indústria – sobretudo o licenciamento e a investigação sobre a congelação do pescado, única forma de trazer uma maior regularidade à laboração industrial.
Numa perspectiva comparada, os organismos de coordenação da indústria de conservas que intervieram diretamente nos mercados tenderam a assumir um carácter mais técnico no segundo pós-guerra. Em França, como descreveu André d’Avigneau, os trabalhos de estudo e análise da produtividade do trabalho e a possibilidade de introduzir linhas de trabalho contínuo generalizou-se nos anos cinquenta 392. Na Galiza, a união de fabricantes desempenhou um papel importante na difusão da organização científica do trabalho proposta pelas missões de produtividade norte-americanas criadas pelo Plano Marshall e seguidas pela comissão nacional de produtividade. Noutro capítulo veremos como a produtividade do trabalho, apesar de ter sido longamente discutida na imprensa especializada da indústria de conservas, nunca foi alvo de um programa concreto de implantação nas empresas.
Nos anos cinquenta a indústria permaneceu sob um acentuado controlo burocrático. A abertura comercial nos países europeus não esmoreceu esta tendência que vinha dos anos trinta. A conjuntura era favorável ao crescimento das exportações mas a indústria debatia-se com problemas estruturais como a dimensão das fábricas, a pulverização do comércio e das marcas e a dificuldade de reduzir os custos de produção. Qual deveria ser a acção do Estado no segundo pós-guerra? Pelo peso que ainda ocupava na balança comercial, a indústria de conservas voltaria ao centro do debate político sobre a acção do Estado na reorganização das indústrias tradicionais. O debate político reeditava a discussão pública surgida um quarto de século antes com o estudo de Salazar nos alvores do Estado Novo. Agora, porém, os problemas eram diferentes e também com protagonistas novos.
380 Pedro Lains, «O Estado e a industrialização em Portugal, 1945-1990». Análise Social, XXIX, nº 128 (1994), em especial 926-929.
381 Para um balanço sobre os Planos de Fomento, ver Ana Bela Nunes e J. M. Brandão de Brito, «Política económica, industrialização e crescimento». Em Nova História de Portugal, Vol.XII – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), org. Fernando Rosas. (Lisboa: Editorial Presença, 1992); e Moura, Por onde vai a economia…, 41-97.
382 Lucena, Sobre a evolução…, II, 312 e ss.
387 Ver, por exemplo, para 1953, DGRM, IPCP, Circulares, nºs 916 e 923. 388 V. ANTT, EC-18, cx. 97, capilha 2, Venda da fábrica de hidrogenação de oleo de Alhandra, do Instituto Português das Conservas de Peixe. 389 V. ANTT, PC-49A cx. 531, Capilha 11 (Reunião de 29.01.1954).
390 Rollo, Portugal e a reconstrução económica…, 360-365.
391 António V. Indústria de conservas de peixe (Lisboa: [S.n.], 1957).
392 Avigneau, L’industrie…,476 e ss.
5.3.1. O «Entreposto» de Ferreira Barbosa
A crise sardinheira de 1947-1949 e a duplicação dos preços do peixe vendido em lota ressuscitaram entre os industriais de conservas o velho problema da indústria: a falta de acordos com o sector da pesca e a ausência de integração vertical da indústria com a aquisição das matérias-primas393. Na revista Conservas de Peixe, publicada em Matosinhos, uma intensa atividade publicista ajudou à celebração de acordos entre o Grémio de industriais de Conservas do Norte e os armadores de Matosinhos394. Estes acordos, porém, foram de curta duração. A recuperação das capturas de sardinha e a descida dos preços «livres» adiaram o problema de integração da pesca nas empresas conserveiras e os problemas de desconhecimento sobre o estado dos recursos marinhos, devido à falta de investigação científica 395.
Nos meios conserveiros, entretanto, formava-se a convicção que a estrutura do IPCP não era capaz de afrontar os problemas de descida dos preços das conservas nos mercados internacionais e a excessiva concorrência entre industriais. Curiosamente, o movimento de liberalização externa não era acompanhado pelo desejo de os industriais se libertarem dos mecanismos de coordenação económica; era, sim, uma oportunidade para proporem alternativas e reacender o projecto de formação de uma cooperativa de conservas com o patrocínio do Estado, mas com uma nova autonomia dos industriais na tomada de decisões. Nesse sentido, Ferreira Barbosa advogava pela fixação de preços das conservas enquanto as condições externas, ainda dominadas pelo bilateralismo e as restrições quantitativas, continuassem a exigi-lo, e ainda propunha o estabelecimento de contingentes de exportação para os industriais portugueses e a fixação das comissões dos serviços de comércio396. Opinião que era secundada por José Mora, que afirmava que o enquadramento legal da organização corporativa e do IPCP não permitiam abordar o problema da regularização do preços das conservas de forma prática e eficaz. Alegava que a indústria estava, em 1949, numa situação semelhante à que se verificara em 1931, mas com perspectivas mais pessimistas porque a capacidade de produção era mais elevada, alguns dos principais mercados europeus tinham desaparecido e havia restrições generalizadas às importações397.
Em Junho de 1953, as direções dos Grémios de industriais de conservas do Norte, Centro e Sotavento do Algarve dirigiram uma exposição ao ministro da Economia, acompanhada de um projeto de diploma, a elencar os problemas da indústria398. Começando pelos recursos marinhos, argumentavam que nos outros países conserveiros havia preços fixos à pesca e que em Portugal era necessária a sua imposição. Em segundo lugar colocava-se o dilema sobre os preços. Insistiam que o problema estava na concorrência entre industriais e exportadores e preconizavam a criação de um organismo regulador da oferta e dos preços, a «central da sardinha». Por último, incitavam à concentração industrial e ao alívio de encargos fiscais criados durante a guerra, nomeadamente as taxas de compensação sobre as matérias primas399.
Nos meses seguintes, a ideia de criar um novo organismo à margem da estrutura corporativa esteve longe de ser consensual. Entre os principais opositores encontravam-se os exportadores. Vale a pena recordar que, depois de integrados na organização corporativa, os exportadores continuaram a dirigir críticas à direção do Estado sobre o comércio e as propostas oficiais de substituir os «intermediários» pelos serviços comerciais dos organismos de coordenação económica 400. Em 1944, Joaquim Roque da Fonseca, diretor da Associação Comercial de Lisboa, denunciava ao ministro da Economia os efeitos negativos do «cartel» sobre as exportações e o perigo de se anular a concorrência entre os produtores nacionais. Depois da guerra, os exportadores foram os primeiros a desejarem a abolição dos contratos de vendas colectivas. Feliciano Pereira, do Grémio de Exportadores, defendia, em 1949, que a indústria atingira a sua «maioridade» e deveria desprender-se dos contratos com os compradores britânicos que compravam metade da produção nacional a um preço inferior para depois reexportarem as conservas portuguesas401. Alfredo Almeida, representante dos industriais de Setúbal, contrapunha o argumento dos exportadores com a necessidade de venda dos stocks acumulados durante a guerra e a circunstância de os pagamentos britânicos serem feitos a pronto, ao contrário do que ocorria noutros países 402.
A reação dos exportadores à proposta dos industriais reproduz uma tensão essencial com o regime autoritário, mas com uma diferença fundamental: ao contrário do que sucedera no início dos anos trinta, não era o Estado a decretar a eliminação dos «intermediários», mas os próprios industriais que desejavam constituir um organismo a quem os exportadores deveriam comprar os lotes de conservas. Numa reunião celebrada em Setembro de 1953, o representante do Grémio de Exportadores insurgiu-se novamente contra a possibilidade de um organismo regulador fixar preços às conservas. Referia que o aumento da concorrência verificado no período entre guerras se devia à entrada dos industriais na exportação que, com falta de preparação comercial, procuraram a descida dos preços, por oposição aos comerciantes que viviam em permanente contacto e «auto-disciplina» com os importadores estrangeiros 403.
393 Em 1946, os conserveiros apelavam já a uma nova regulamentação das vendas de sardinha e argumentavam que, numa «economia dirigida», deviam ser protegidos os dois sectores– pesca e conservas – contra o funcionamento livre do mercado. Que, por isso, a fixação de um preço mínimo de venda à indústria não era adequado, e que deveria também ser adotado um preço máximo de proteção aos conserveiros. Ver “O problema das lotas”, Conservas de Peixe, nº4 (1946): 21.
394Pela portaria nº 11:776, de 1947, tinha sido reposto o regime de venda livre da sardinha em lota; com a possibilidade, porém, de serem feitos acordos entre armadores e conserveiros para a fixação de quotas e preços. Surge, nesse contexto, a portaria nº 12:968, no Verão de 1949. O Grémio de Armadores da Pesca da Sardinha e o Grémio de Industriais de Conservas de Peixe do Norte, com uma proposta sancionada pelo IPCP, acordaram que os armadores forneceriam 30% da produção diária de sardinha à indústria de conservas em molhos nas lotas de Matosinhos, Afurada e Porto, com o preço fixo de 172 escudos por dois cabazes, e a restante produção seria vendida em lota livre, mas com o compromisso de os conserveiros não comprarem sardinha a preço inferior a 120 escudos por dois cabazes.
395 Em Janeiro de 1950,o editorial da revista falava da persistência da crise sardinheira e do «deplorável» atraso na investigação científica. Citavam pesquisas oceanográficas em França e na Califórnia; e uma entrevista a Alfredo Magalhães Ramalho que, enquanto director da Estação de Biologia Marítima, reconhecia não ter meios de pesquisa, nem um navio de pesquisa oceanográfica. O reflexo das flutuações da sardinha na indústria conserveira era já notável – em 1949 a produção anual foi de 700 mil caixas quando a média anual se situava, habitualmente, em 2 milhões de caixas. V. «A persistência da crise da sardinha», Conservas de Peixe, nº 46 (1950): 7-8 ;14.
396 V. Ferreira Barbosa, “Sistemas de vendas”, Conservas de Peixe, nº 39, 20-21
397 José Mora,“A Cooperativa-entreposto de conservas de peixe”, Conservas de Peixe, nº 41 (1949): 7-8; 20-22.
398 AMP, Feu Hermanos, Caixa 15.
399 AMP, Feu Hermanos, Caixa 15.
400 Sobre esta defesa, v. Associação Comercial de Lisboa, A função económica do comércio. Exposição apresentada ao senhor ministro do Comércio e Indústria em 21 de Abril de 1937 (Lisboa:ACL, 1937). Ver também o Parecer da Câmara Corporativa à proposta de lei nº 164, sobre a organização corporativa da lavoura, e os decretos 27:149 e 27:151(30.10.1936) .
401 DGRM, IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral, (2ª Sessão Ordinária, 24 e 25.02.1949).
402 Idem.
403 DGRM, IPCP, Livro de Actas do Conselho Geral, 1ª Sessão ordinária. 09.01.1953. fols 114 – 124.
404 «Calculo que durante os últimos três anos as conservas de sardinha se tenham vendido por menos 150 000 a 200 000 contos do que facilmente se poderia ter obtido». V. José Ferreira Barbosa, “Projecto de sugestão ao Governo nº 751/VI” em Actas da Câmara Corporativa, nº 27 (1955), 312.
405 V. Filipe Nazareth Fernandes, “Novo Rumo”, Conservas de Peixe, nº 15 (1947): 21-22.
Apesar da oposição dos exportadores, a ideia de criar um novo organismo regulador persistiu graças à ação imperturbável de Ferreira Barbosa, presidente do Grémio de industriais de conservas sediado em Matosinhos e procurador à Câmara Corporativa. Em Janeiro de 1955, a ação dos industriais culminou na apresentação de um projeto de sugestão ao governo para ser discutido na Câmara Corporativa. Depois de destacar a primazia das conservas de sardinha na exportação de produtos alimentares, o procurador Ferreira Barbosa sublinhava a crise da venda de conservas, sublinhando que uma das principais fraquezas da indústria era a instabilidade do preço da sardinha, além da fragilidade financeira das empresas que conduzia a vendas precipitadas404. Feito o diagnóstico, Barbosa propunha um plano que incluía medidas de normalização de abastecimento à sardinha e a criação de um entreposto regulador de preços de venda das conservas. A função do entreposto seria assegurar à indústria a compra de lotes de conservas «a preço compensador da produção» e vender a produção aos exportadores a «preços certos e convenientes». Em paralelo, a criação do Entreposto propunha a recuperação de um preço mínimo obrigatório, com novas sanções para os infratores, e a constituição de stocks mínimos obrigatórios para todos os industriais que quisessem exercer a atividade exportadora.
No âmbito das competências, é importante notar a tentativa de Barbosa dotar de novos poderes as direções dos Grémios de industriais sem hostilizar a ação do Instituto Português das Conservas de Peixe, a quem atribuía uma função essencialmente fiscalizadora. A intenção de reduzir os poderes do organismo de coordenação económica e transferi-los para a acção dos Grémios Industriais foi permanente, acalentada em sucessivos projectos e na imprensa conserveira, mas sem alterações de grande monta405. As principais decisões, como as quotas de exportação, o valor de compra das conservas aos produtores e a criação de serviços do Entreposto eram atribuídas à assembleia plenária dos Grémios e ao conselho geral – em vez da direcção – do IPCP, onde tinham assento os presidentes de todos os grémios (arts. 3 e 7). Sublinhe-se, ainda, a possibilidade de o entreposto, com a autorização do ministro da Economia, poder fazer vendas diretas ao estrangeiro (art. 8). Em suma: através de disposições regulamentares, dava-se a possibilidade de a organização corporativa ser um agente comercial podendo até, para isso, utilizar os fundos corporativos dos grémios, constituídos pelas contribuições individuais de todas as empresas e cuja utilização estava limitada à concessão de créditos de curto prazo.
5.3.2. A consulta aos industriais.
Nos parágrafos anteriores focámo-nos na intervenção dos presidentes dos Grémios e nos trabalhos da Câmara Corporativa, bem como nas opiniões expressas pelos industriais na revista Conservas de Peixe. Estas fontes permitem sondar os desejos e as iniciativas dos industriais mas representam a posição de uma oligarquia acomodada na organização corporativa. O grupo social dos conserveiros, em diferentes regiões, era necessariamente mais diversificado. Os Grémios, pela sua natureza constitutiva de adesão obrigatória e com as direções aprovadas pela tutela ministerial, com um sistema de votos que outorgava maior poder aos industriais com maior capacidade de produção instalada, oferecia poucas possibilidade de representação dos pequenos industriais e privava-os do escrutínio das principais decisões406 . Por outro lado, como já referimos no segundo capítulo, os grémios detinham uma autonomia financeira reduzida com o grosso das receitas a serem administradas pelo IPCP. Este duplo fenómeno – oligarquização e falta de autonomia dos organismos primários – é transversal a todo o sistema corporativo 407.
É por isso que a consulta feita a todos os industriais e exportadores sobre o projeto apresentado por Ferreira Barbosa à Câmara Corporativa revela um interesse especial. Pela sua natureza objetiva – a circular nº 961 perguntava a todos os industriais e exportadores se concordavam ou não com o projeto, e por que razões – esta consulta permite-nos não só auscultar a opinião do conjunto do sector mas também discernir sobre o estado em que se encontrava o apoio dos industriais ao Estado Novo e à intervenção corporativa. O resultado surpreende: na maioria das respostas, os industriais colocaram-se a favor da criação do Entreposto e, em particular, em manutenção das quotas de exportação e outros mecanismo de intervenção no mercado. Entre aqueles que se pronunciaram a favor destacam-se os industriais do centro de Matosinhos presidido por Ferreira Barbosa. Argumentavam, em especial, a necessidade de regular os preços de exportação e os preços da sardinha nas lotas408. A gerência da Dias, Araújo e Cª, de Matosinhos, por exemplo, defendia, em consonância com Ferreira Barbosa, que a indústria norueguesa vendia conservas de inferior qualidade a um preço superior porque exercia uma acção disciplinadora sobre o comércio exportador, consentindo por isso a criação de quotas de exportação e a criação do Entreposto409. Todavia, o apoio à fixação de preços nem sempre se fazia acompanhar da aceitação sobre as quotas de exportação, como testemunha a resposta das Conservas Belamar, de Vila do Conde410. Entre os apoiantes das quotas encontravam-se, no entanto, grandes industriais, como Edmundo Ferreira, da fábrica de conservas de Aviz, em Matosinhos, que as defendia como «o único meio viável para manter a venda e o valor das sardinhas portuguesas nos mercados externos»; e José Agostinho Fernandes, fundador da Algarve Exportador que, mais cautelosamente, afirmava: «Os organismos corporativos das conservas criaram-se para disciplinar, em bases sãs, o seu fabrico e comércio e não apenas para garantir a boa qualidade (…) daí o estarmos sempre de acordo, em princípio, com qualquer remodelação que se sugira (…)»411.
Os que se opunham à criação de um Entreposto apontavam, em geral, a inconveniência de criar uma nova estrutura burocrática, condenavam a fixação de contingentes e pugnavam pela liberdade de vendas como a melhor estratégia para promover o comércio exportador 412. Os industriais algarvios opuseram-se com veemência ao projeto de Ferreira Barbosa e sugeriram, em alternativa, uma «verdadeira política comercial» escorada na propaganda das conservas, novos acordos comerciais e redução das barreiras alfandegárias. Aproveitando a oportunidade, interpelaram o IPCP sobre a necessidade de rever os encargos dos contratos coletivos de trabalho , reduzir os impostos diretos e as taxas sobre os produtos importados e os preços oficiais dos azeites e óleos de mendobi 413. Em suma, opunham-se às medidas de controlo institucional da concorrência e confiavam que a liberalização do comércio externo, acompanhada de incentivos domésticos à exportação, seria suficiente para determinar o sucesso das empresas.
A tensão entre as tendências liberalizante e protecionista não se manifesta apenas nas mais altas esferas de decisão, mas também no seio dos grupos de industriais e na multiplicidade de agentes económicos privados. Por outro lado, os diferentes grupos de interesse, que tendem a identificar-se através de idiossincrasias regionais, sociais e ecológicas, manifestam vontades divergentes e diferentes graus de fidelização ao projecto corporativo.
406 Note-se, no entanto, que os representantes dos Grémios representavam no Conselho do Geral do IPCP posições concertadas previamente nos seus respectivos centros industriais. Ver, por exemplo, as reuniões de preparação do Conselho Geral em Portimão. AMP, Feu Hermanos, Caixa 3.
407 V. Garrido, Queremos uma economia nova!…, 110-126.
408 ANTT, EC-15, cx. 78, capilha 2, Situação da indústria de conservas de peixe(1947-1956). Respostas de Benjamim de Oliveira Especial, Matosinhos, 19.01.1955, e Fábrica de Conservas Alimentícias Dragão, 17.1.1955.
409 Idem, resposta de Dias, Araujo e Cª, Lda, Matosinhos, 20.01.1955.
410 Idem, resposta de Conservas Belamar, Lda, Vila do Conde. 17.1.1955
411 Idem, resposta de Algarve Exportador, 03.02.1955.
412 Idem, respostas de Aliança Exportadora Lda., 17.1.1955, e António da Silva Freitas, Lagos, 7.1.1955.
413 Idem, resposta de Fábrica Boa-Vista Lda., Portimão, 29.1.1955.
5.3.3. Na Câmara Corporativa: Correia de Oliveira e o decreto-lei 40787.
O último acto na discussão sobre a intervenção do Estado na indústria de conservas foi dado por José Gonçalo Correia de Oliveira, que apresentou um longo parecer à Câmara Corporativa sobre o projecto de sugestão de Ferreira Barbosa, a 18 de Junho de 1955. Este parecer corresponde, de resto, ao importante papel da Câmara Corporativa na preparação das políticas públicas do Estado Novo, onde se produziram documentos com apreciável desenvolvimento técnico e político que revelam a capacidade de a Câmara cooptar alguns dos profissionais mais qualificados nas áreas da economia, engenharia e comércio externo414. Um ano mais tarde, em 1956, a publicação do decreto-lei 40:787 foi decalcada dos conteúdos e linhas programáticas do dito parecer. A acção da Câmara Corporativa na definição das linhas de actuação do Estado face à indústria de conservas coincide com a formação da Corporação de Pescas e Conservas, em 1957, cuja função, apesar de ter ficado aquém dos propósitos doutrinários, visava especialmente a cooperação entre os interesses da indústria e da pesca 415.
Na realidade, o parecer da Câmara Corporativa foi obra de um homem só, Correia de Oliveira, que deixou um rasto documental que exprime a profundidade da análise e da recolha empírica sobre a indústria de conservas416. Desde o final da guerra, Correia de Oliveira prosseguiu uma carreira fulgurante nos organismos da administração pública dedicados às relações económicas externas e participou, como representante de Portugal, nas reuniões de trabalho da OECE e da NATO417. Em 1955 seria nomeado Subsecretário de Estado do Orçamento no ministério das Finanças, chefiado por Lumbralles. As suas intervenções públicas e ação política continuariam, no entanto, a incidir sobre o comércio externo, vincando a necessidade de adaptar a organização de coordenação económica e corporativa à nova realidade internacional.
O parecer sobre a indústria conserveira afirma uma convicção e uma premonição. A convicção que a participação portuguesa no comércio intraeuropeu era incompatível com medidas protecionistas que tinham como objetivo a salvaguarda de empresas marginais. Já em 1953, no Conselho de Ministros para o Comércio Externo, Correia de Oliveira opusera-se à fixação de quotas e preços de exportação às conservas portuguesas. Em segundo lugar, antecipava que a intervenção do Estado devia promover uma nova concentração de poderes executivos no organismo de coordenação económica, ao contrário do reforço dos poderes dos Grémios preconizado por Ferreira Barbosa. Serão estas preocupações que presidem, em 1958, à constituição da Secretaria de Estado do Comércio, criada à imagem e semelhança de Correia de Oliveira.
À semelhança de António Pinto Barbosa, Correia de Oliveira interessou-se pela indústria de conservas devido ao ascendente produzido pelo relatório de Salazar em 1931. A defesa inquestionável da liderança de Salazar, por quem professa uma enorme admiração e a identificação como chefe da Pátria, e de quem se terá aproximado paulatinamente, deu-lhe em troca a confiança para dirigir os processos de integração na economia europeia418. No que respeita à indústria conserveira, a «estranha actualidade» do relatório de Salazar levava Correia de Oliveira a suspeitar que a organização corporativa não fora «dotada da capacidade de solução dos problemas que se destinava a resolver»419. É preciso notar, todavia, a afirmação retórica. Depois de um exame atento à evolução legal da rede de organismos de coordenação económica e grémios concluía que «à organização das conservas de peixe, mesmo no estado de desenvolvimento que atingiu, será difícil negar-se-lhe que contenha, em si, a capacidade de promover a solução dos problemas que se lhe apresentam»420.
A análise de Correia de Oliveira debruçou-se sobre o crescimento da população ativa na indústria, a distribuição da capacidade de produção entre centros industriais, os preços das matérias primas e outros fatores que influenciavam a estrutura de custos. Porém, é no comércio – na evolução do peso relativo das conservas na balança comercial, nas razões dos termos de troca e no estudo da procura externa – que o autor concentrou um maior esforço analítico. Desse esforço resultou a percepção inequívoca que o comércio tendia a expandir-se entre os países da OECE, com exceção dos Estados Unidos, e que os esforços de diversificação de mercados foram da Europa eram, até então, insignificantes421. Mas é neste ponto que a abordagem é mais inovadora. Ao contrário de Ferreira Barbosa e de Salazar, Correia de Oliveira rejeita a culpa da concorrência entre conserveiros como o principal responsável pela desvalorização das conservas de sardinha. Após um estudo atento dos mercado conclui que, na realidade, os preços das conservas de sardinha portuguesas eram superiores aos do brisling da Noruega ou às conservas marroquinas, mas os seus concorrentes estavam a crescer mais nas exportações, num contexto de expansão generalizada 422.
Sobre a proposta de criação de um Entreposto, o relator do parecer criticou o protecionismo subjacente à ideia de refugiar os industriais das alterações nos mercados consumidores e recordou, a propósito, o fracasso da política de preços mínimos nos anos trinta. A conjuntura positiva criada pela abertura do mercado britânico levava Correia de Oliveira a considerar prescrita a necessidade de criar uma nova estrutura burocrática. Em síntese, propunha:
«A mais segura política não é a da sustentação dos preços, mas sim a do seu apoio no mercado: para recebermos o máximo, o melhor processo será, sem dúvida, o de provocarmos o alargamento da procura, levando a oferecer aquilo que dificilmente lhe pode ser imposto»423.
Em definitivo, Correia de Oliveira apelava a uma nova interpretação sobre a competitividade dos tradicionais produtos da exportação, em que a promoção das suas características autênticas ou «intemporais» deveria ser substituída por uma maior esforço na prospecção dos mercados e a adaptação ao gosto dos consumidores. Esta perspectiva vai estar presente na reorganização da Secretaria de Estado do Com´rcio, que preside a partir de 1957, e concretizou-se num reforço das competências atribuídas ao Fundo de Fomento da Exportação.
414 José Luís Cardoso e Nuno Estevão Ferreira, «A Câmara Corporativa (1935-1974) e as políticas públicas no Estado Novo», Ler História, 64 (2013): 31-54.
415 Ver Diário de Governo, decreto nº 41290, de 23.09.1957. Note-se que a formação da Corporação não implicou, em qualquer momento, a redução de poderes atribuídos aos organismos de coordenação económica. Sintomaticamente, a Comissão Reguladora do Comércio de Bacalhau e o Instituto Português das Conservas de Peixe seriam os «elementos de ligação entre o Estado e a Corporação» (art. 7º). Sobre a criação serôdia das corporações, v. Lucena, Sobre a evolução…,III, 329 e ss. 416 V. ANTT, EC-15, cx. 78, capilha 2, Situação da indústria de conservas de peixe(1947-1956). Esta análise inclui a recolha de dados sobre a população activa na indústria; a auscultação dos interesses conserveiros; a posição das conservas nos mercados externos e as diferenças entre os preços de exportação e de retalho; a comparação com outras exportações, como a cortiça e o vinho do Porto.
417 Para uma biografia política de Correia de Oliveira, Lucena, Os lugar-tenentes…, 239-262.
418 Idem, 238.
419 Oliveira, Parecer nº 28/VI…, 547.
420 Idem, 551.
421 Não quer isto dizer que desprezasse o seu valor. Fala dos mercados do leste europeu e do Médio Oriente «não abertos« como grande potencialidade. V. Idem, 569.
422 Idem, 576.
423 Idem, 576.
5.5. Conclusão: a cooperação internacional e o apogeu da indústria de conservas.
Tal como referimos no início do capítulo, o sector das pescas teve uma importante transformação a uma escala internacional no segundo pós-guerra. A preferência pelo consumo de novos produtos, como o peixe congelado e as conservas de atum, estão entre as principais mudanças. Estas tendências obrigaram a novas estratégias de capital-intensivo para alargar as fronteiras de capturas, renovar as cadeias de distribuição e o marketing. A indústria de conservas portuguesa não acompanhou, em grande medida, estas tendências. A produção continuou especializado nas conservas de sardinha destinadas aos mercados europeus. A estrutura industrial continuou a ser frágil, com múltiplos produtores, com uma produçãoo irregular e a dependência dos preços oferecidos pelos importadores. Não obstante todos estes problemas, depois de 1952 a indústria teve um crescimento sem precedentes, comparável a outros casos de sucesso internacionais. A que se deveu este crescimento? Se, por um lado, a intensificação das capturas de sardinha foi decisiva, a progressiva abertura dos mercados europeus e a participação de Portugal nas organizações de cooperação económica parece ter sido fundamental.
Neste sentido, a historiografia tem descrito a adesão de Portugal aos mecanismos de cooperação europeia como uma nova fase do regime autoritário: uma «abertura controlada» e inevitável para assegurar a estabilidade social interna. Todavia, seguindo a interpretação de Milward sobre o fenómeno de resgate do «Estado-Nação» que acompanha a formulação dos projetos supranacionais na Europa, podemos identificar pelo menos duas formas de intervenção do Estado que, de alguma forma, procuram controlar o processo de abertura da economia portuguesa. A primeira, de natureza supletiva, consistiu nos esforços de conter o impacto da liberalização das importações no mercado interno, como demonstram as decisões tomadas no Conselho de Ministros para o Comércio Externo, e incentivar as exportações através de subsídios à produção e à constituição de agências oficiais de comércio no exterior, projecto que foi corporizado na missão do Fundo de Fomento de Exportação. Uma segunda tendência de intervenção foi, na realidade, uma continuidade, ou a consolidação, da «intervenção corporativa» fundada nos anos trinta. O caso da indústria de conservas ilustra bem a resiliência do modelo corporativo no segundo pós-guerra e o seu modo de funcionamento: o primado do organismo de coordenação económica sobre os grémios de industriais, organismos primários esvaziados de poder e autonomia financeira. A determinação de parte dos custos de produção e a selecção dos mercados pelas entidades oficiais sobreviveu à margem dos compromissos internacionais firmados pelo Estado português com outras nações europeias.
As mudanças nos mercados exigiam adaptações céleres: reduzir os preços, aumentar a produtividade, mecanizar as linhas de produção e concentrar as operações industriais e comerciais. Apesar do sensível crescimento das exportações, as fontes indicam que as margens das empresas continuavam a ser curtas424. Em reacção, os conserveiros afirmavam que a «organização» não resolvera as duas vulnerabilidades estruturais: a dependência dos preços e quantidades de sardinha fixados pelos armadores com quem não tinham estabelecido acordos intersectoriais, e a dependência dos preços impostos pelos importadores. Apesar de a representatividade profissional ter sido contida pelas alterações na orgânica corporativa, os industriais mantiveram uma capacidade invulgar de mobilização e representação dos interesses – de que o projecto de Ferreira Barbosa apresentado à Câmara Corporativa é o melhor exemplo. O peso das conservas no comércio externo e o ascendente da «intervenção» de Salazar em 1931 colaboraram para uma nova atenção política sobre a indústria. Contudo, o novo protagonismo de Correia de Oliveira não foi suficiente para avançar com a proclamada reorganização da indústria. O adiamento dessa estratégia, explícita no decreto 40:787 de 1956, será sentido apenas uma década mais tarde, quando a saturação dos mercados externos e a crise de capturas exigiu às empresas uma maior capacidade de resistência e capacidade de diversificação.
424 José Viegas Dias argumentava que, em 1952 e 1953, o lucro unitário por quilograma de conservas exportadas «pouco excede os 10%». Tendo em conta que o exportador cobrava uma média de 15% do valor da mercadoria exportada, o autor conclui que a indústria teria tido um prejuízo de 40 mil contos em 1952 e 44 mil contos em 1953. V. Estudo dos aspectos económico-financeiros…, 116/117.
Conclusão da Primeira Parte.
No início do trabalho estabelecemos como hipótese a existência de uma «missão exportadora» que justificava a profunda reorganização institucional da indústria de conservas de peixe. Com efeito, a atenção pública dada ao sector não era um mero resultado da pressão exercida pelos grupos de interesse nos últimos anos da República e durante a ditadura militar. A intervenção do governo, a partir de 1932, sustentava-se num princípio de regulação estadual que colocava limites à liberdade de produção e comércio e à auto-regulação profissional425. Este modelo, que antecedeu a organização corporativa e os organismos de coordenação económica, foi seguido noutras atividades como os vinhos, os cereais e o bacalhau. Após diversas reformas ocorridas nos primeiros anos na estrutura institucional, a constituição do IPCP em 1936 foi a forma definitiva de estabelecer uma hierarquia da coordenação económica estatal. Além das funções disciplinadoras e regulatórias, o IPCP tinha a função de intervir nos mercados, tanto no comércio exportador como na importação dos bens intermédios.
O IPCP confrontou-se com três desafios: adaptar a ação coordenadora às diferentes conjunturas externas em mudança; mobilizar os agentes económicos privados para a execução de medidas consideradas de «interesse nacional»; e obter meios de financiamento próprios sem depender de transferências anuais da administração pública. Perante o primeiro desafio, os resultados foram diversos: se a imposição dos preços mínimos de exportação nos anos trinta foi um fracasso, a criação dos contratos de vendas colectivas durante a Segunda Guerra Mundial pode ser considerado um sucesso; contudo, no segundo pós-guerra, existiram novas dificuldades para reformar o sistema de vendas das conservas e reduzir o poder de negociação dos compradores estrangeiros. Todavia, mais importante foi a continuidade dos mecanismos de intervenção directa nos mercados, como a aquisição de azeites e folha de flandres, que permitiram a estabilização dos custos de produção. Até aos anos setenta, os custos das empresas estavam em larga medida determinados pelas iniciativas administrativas. Esta circunstância permitia a sobrevivência de empresas marginais.
Quanto ao segundo desafio, se é certo que existiram diversas resistências à organização corporativa e à perda de poderes de auto-regulação, não podemos deixar de notar também uma larga aceitação do modelo corporativo, visível na adesão ao sistema de créditos a curto prazo, às compras de bens à «organização» ou ainda na participação nos contratos de vendas coletivas. É certo, no entanto, que os projetos que envolviam a cooperação entre industriais, como as « fábricas corporativas » de óleos e farinhas de peixe e a indústria siderurgica, tiveram uma fraca adesão dos conserveiros. O mesmo se aplica à dificuldade em, a partir do IPCP, estabelecer acordos intersectoriais com os armadores da pesca da sardinha. O ideal de conciliação dos diferentes interesses em organizações que formariam um todo orgânico vem desmentido pela análise empírica deste estudo. A coordenação económica de cima para baixo executada pelo IPCP, com os seus sucessos e fracassos, prevaleceu sobre as tentativas de cooperação horizontal e vertical dos interesses privativos.
A principal conclusão preliminar é que a coordenação económica estatal revelou a sua eficácia quando se tratou de intervir nas relações económivas internas, na produção e no comércio. Foi particularmente eficaz na distribuição dos contingentes de exportação – que nos anos cinquenta ainda continuavam em vigor em França, entre outros países – e no comércio estratégico na Segunda Guerra Mundial. De certa forma, as políticas comerciais externas legitimaram um modelo centralizado de gestão das exportações. Porém, a intervenção pública nos mercados externos foi um logro. Os preços mínimos não puderam ser impostos e os mecanismos de «propaganda» das conservas estiveram desfasados da forma de comunicação com os consumidores, como revelaram frequentemente os correspondentes no estrangeiro. A ineficácia nos mercados externos está ainda relacionada com a impossibilidade de aplicar sanções diretas aos compradores estrangeiros e colocá-los sob o domínio da lei portuguesa.
Neste sentido, a «missão exportadora» das conservas de peixe serviu, sobretudo, como discurso de mobilização interna. Foi um incentivo à contínua especialização no fabrico de conservas de sardinha e ao aumento da qualidade dos produtos exportados. A intervenção pública seria menos atreita à inovação, diversificação industrial e procura de novos mercados.
425 Ver, para a história institucional do vinho do Porto, Moreira, O Governo de Baco…, 110-135.