Indústria, Comércio Externo e Intervenção Pública. As Conservas de Peixe no Estado Novo (1927-1972)
Francisco Maia Pereira Bruno Henriques – 2022
ÍNDICE
1. Introdução.
1.1. Objeto de estudo e objetivos do trabalho.
1.2. Conceitos, debates e cronologia.
1.3. Formação e consolidação da indústria de conservas.
1.4. Fontes e metodologia.
1.5. Estrutura.
1.1. Objeto de estudo e objectivos do trabalho.
Entre 1927 e 1966, as conservas de sardinha portuguesas lideraram os mercados internacionais. Ao contrário da maioria das indústrias transformadoras em Portugal nesse período, a indústria de conservas esteve orientada exclusivamente para os mercados externos. Quais foram as razões e circunstâncias que determinaram o seu sucesso? Esta tese procura responder a esta questão, mas tomando em conjunto a análise da realidade política e económica que ditou o crescimento da indústria. A principal hipótese de estudo assenta sobre a intervenção do Estado, uma intervenção cujas características foram concebidas em 1932 e perduraram até 1974, ou até além dessa data. A ruptura com uma tradição liberal e a extensão do controlo administrativo a todas as esferas da produção é comprovada pelo material empírico disponível. Compete-nos, no entanto, interpretar as origens e funcionamento dessa intervenção, e em que medida teve um impacto real e duradouro na evolução da indústria.
O problema essencial da indústria de conservas era a capacidade de ser competitiva em termos internacionais. Para avaliarmos a competitividade externa temos de ter em conta os produtores internacionais numa análise comparada, mas também os aspectos institucionais e as iniciativas empresariais no caso português. A inusitada atenção pública sobre o sector no início dos anos trinta do século XX merece ser questionada. A ação de grupos de interesse ao nível do Estado serve apenas como explicação parcial. Parece haver outra hipótese mais consistente. No contexto de um novo regime autoritário que proclamava a autarcia económica, a política de substituição de importações revelou-se sempre insuficiente. Era necessário, por isso, promover as exportações para conter o défice comercial, assegurar a estabilidade monetária e compensar a quebra das remessas de emigrantes. Esta conjuntura justifica que as primeiras medidas de reorganização económica do Estado Novo fossem dirigidas às actividades exportadoras, como a indústria de conservas, também afectadas pela queda dos preços internacionais durante a Grande Depressão. A missão exportadora do Estado destinava-se à defesa da qualidade dos produtos, a criação de novas regras de concorrência e a intervenção directa do Estado nos mercados.
No período anterior à Segunda Guerra Mundial, a indústria de conservas teve uma inegável importância económica e social: 18% nas exportações de mercadorias, entre 1930 e 1938, e o emprego direto a 22 mil operários. Durante o conflito mundial, o comércio estratégico fez das conservas o produto mais valioso das exportações portuguesas, pelo menos em números oficiais. Entre 1948 e 1958 manteve a importante quota de 11% nas exportações, mas perdeu relevância na segunda metade dos anos sessenta. Acompanhar a evolução das exportações de conservas é, em grande medida, avaliar a evolução do comércio externo português. Permite, em concreto, caracterizar o comércio externo na transição de um quadro de bilateralismo para a cooperação económica multilateral a que Portugal aderiu no segundo pós-guerra.
A indústria de conservas tinha duas características especiais que a distinguem das restantes indústrias. A primeira é o facto de transformar o peixe, elemento frágil e de ocorrência irregular que, depois de capturado no mar, é altamente perecível e deteriora-se rapidamente no transporte para as fábricas. Por estas razões, a indústria não só se concentrou no litoral junto aos principais portos de pesca como se especializou nas espécies de pescado mais abundantes. A especialização nas conservas de sardinha, que representam três quartos da produção entre 1933 e 1967, é justificada pela abundância desta espécie pelágica na costa portuguesa1. Contudo, a sardinha apresentava notáveis flutuações, cujas razões ainda não são totalmente conhecidas. Apesar das flutuações, o valor da sardinha no conjunto da pesca desembarcada era dominante e formou em Portugal verdadeiras «economias sardinheiras» locais, à semelhança do que ocorrera em França nas décadas centrais do século XIX2. Este fenómeno caracterizou-se pela formação de polos de desenvolvimento e migração interna acompanhados da industrialização da pesca e das técnicas de conservação do pescado. As «economias sardinheiras» desenvolveram externalidades como a construção naval, as latoarias e construção de máquinas, os serviços portuários e comerciais de importação de matérias-primas e exportação dos produtos finais. Em termos sociais, os centros conserveiros revelam uma estreita interdependência dos estratos familiares. Os filhos dos pescadores seguiam o ofício dos pais e as jovens mulheres, ainda menores, eram recrutadas informalmente pelas mães, ou familiares próximas, para trabalharem nas fábricas de conservas 3.
A segunda característica da indústria de conservas era a exclusiva dependência dos mercados externos, em particular dos países europeus. Esta concentração geográfica devia-se não só à tradição de crescimento do sector, que substituiu os mercados das conservas francesas no final de Oitocentos, mas também à dificuldade de concorrer fora da Europa com produtores internacionais como o Japão e os Estados Unidos. Podíamos, por isso, suspeitar que a evolução da indústria foi ditada pelas conjunturas que marcaram o comércio intraeuropeu no século XX. Mas esta hipótese serve apenas para o período de aproximação das economias europeias no imediato pós-guerra. O certo é que dentro da Europa subsistiram as entidades políticas do Estado-Nação com políticas comerciais externas diversas e hábitos de consumo variados. As decisões da política externa portuguesa podiam não ser as mais acertadas para a expansão do sector. Como veremos, o problema coloca-se com a adesão à EFTA, organização de países onde, salvo Inglaterra, não existia um hábito de consumo relevante das conservas portuguesas.
A dificuldade em encontrar um equilíbrio entre a oferta e a procura externa foi um tema recorrente de análise de economistas políticos coevos 4. Ainda que a maioria dos trabalhos seja de natureza descritiva, encontramos um esforço pela reflexão sobre os problemas do comércio externo português e as condições necessárias para superar a concorrência internacional. Sublinhe-se, no entanto, o precedente das «Notas sobre a indústria e comércio de conservas de peixe», publicadas por Salazar em 1931, ainda ministro das Finanças, depois de ter visitado os centros industriais do Algarve. O aspecto mais relevante do estudo de Salazar, a par da leitura da crise económica internacional, foi ter colocado a ênfase na necessidade de uma reorganização institucional da indústria em que o Estado assumia um papel coordenador através de novas organizações. Nas décadas seguintes, apesar da emergência de discursos sobre a defesa de uma concorrência «livre» e desapegada das instituições oficiais, esta ideia nunca deixou de estar presente, tanto num plano político como na organização quotidiana das fábricas e empresas.
Podemos, em síntese, definir os principais objectivos deste trabalho: compreender a evolução da indústria de conservas de peixe portuguesa, em comparação com as congéneres internacionais, no contexto do comércio externo português, com especial atenção às conjunturas externas, aspectos institucionais e iniciativa das empresas; analisar, à luz da indústria de conservas, a missão exportadora do Estado Novo na defesa das exportações tradicionais, tanto nas políticas comerciais como na regulação interna do funcionamento da indústria; determinar a importância da intervenção pública na indústria e exportação de conservas, nomeadamente na sua especialização internacional, e entender as circunstâncias em que se desenvolveu a ação do Estado em articulação com as empresas e os grupos de interesse da indústria.
1 As espécies de peixe pelágicas habitam a coluna de água e a superfície das águas oceânicas e não dependem dos fundos marinhos para se alimentarem. As sardinhas alimentam-se dos nutrientes que se formam nas águas superficiais, em resultado das correntes de upwelling auxiliadas pelos ventos predominantes do quadrante Norte, que movimentam as águas profundas para as zonas costeiras.No período em análise, a sardinha era a espécie pelágica mais capturada ao largo da costa portuguesa, secundada pelo carapau, o biqueirão e a cavala. A sardinha europeia (sardina pilchardus) distribui-se pela costa atlântica, desde a Bretanha até à Península Ibérica, e na costa atlântica de Marrocos. Uma das suas características particulares é ter um período de vida curto e um rápido crescimento que atinge 90% do comprimento máximo até aos dois anos. As flutuações das capturas decorrem das variações acentuadas dos ciclos reprodutivos que, por sua vez, são causadas por um conjunto de variáveis como as mudanças oceanográficas, a temperatura e salinidade da água, as correntes marítimas e a disponibilidade de nutrientes. A imprevisibilidade das flutuações dificulta a gestão equilibrada da pesca da sardinha. V. Susana Garrido, e Laura Wise. «Stock ibérico da sardinha: da biologia à gestão das pescas». Argos – Revista do Museu Marítimo de Ílhavo, nº 8 (2020): 33-35. Sobre o «mistério» das flutuações da sardinha e o desenvolvimento internacional da investigação científica, v. Inês Amorim, «The Social Dilemmas of the Portuguese Sardine: Overfishing, Scientific Knowledge, and Local Comunnities in the Late Nineteenth Century» em Too valuable to be lost: overfishing in the North Atlantic since 1880, org. Álvaro Garrido e David Starkey (Berlim: De Gruyter, 2020), 29-47.
2 Dubois, La révolution sardinière. Pêcheurs et conserveurs en Bretagne Sud au XIX siécle (Rennes: Presses Universitaires de Renne, 2004), 133 e ss.
3 Sobre a segmentação laboral no sector conserveiro e as suas raízes num período pré-industrial, ver a tese de Luísa Muñoz, «Los mercados de trabajo en las industrias marítimas de Galicia. Una perspectiva histórica. 1870-1936» . Tese de doutoramento, Barcelona, Universidad Autónoma de Barcelona, 2003. León Poinsard descreveu esta realidade em Setúbal, no início do século XX. V. Le Portugal inconnu. (Paris: Bureaux de la Science Social, 1910).
4 Alberto da Cunha Dias. Conservas de Peixe. Subsídios para um estudo de um Problema Nacional. (Lisboa: Edições Delta, 1932); António Pinto Barbosa, Sobre a indústria de conservas em Portugal
1.2. Conceitos, debates e cronologia.
Neste exercício são utilizados conceitos que, além de terem um sentido polissémico, têm uma historicidade própria, remetendo-nos para a identificação dos significados concretos que têm para a caracterização do período em análise. Fazer um esclarecimento prévio do uso dos conceitos é talvez a melhor forma de evitar anacronismos e interpretações ambíguas sobre os objectivos do trabalho. Três conceitos invocam debates historiográficos e servem para balizar, brevemente, a nossa análise empírica: a indústria, o comércio externo e a intervenção pública.
Em termos gerais, podemos considerar que a indústria inclui todas as actividades que implicam a transformação de matérias-primas e destinam-se a produzir riqueza com um valor acrescentado5. A este conceito está associado, inevitavelmente, o conceito de industrialização enquanto processo que, gerado pela revolução industrial, induziu profundas mudanças económicas e sociais e difundiu novas técnicas6. Portugal é considerado um país de industrialização «lenta e tardia» na periferia europeia, atraso que suscitou um debate sobre as causas e progressos desse desenvolvimento7. Para interpretar a fase de modesto crescimento industrial nas primeiras décadas do Estado Novo, foi invocado o modelo teórico de substituição das importações como factor dominante no fenómeno de industrialização8. Só a partir dos anos sessenta, com a entrada portuguesa na EFTA, teria existido uma viragem no processo de industrialização com uma orientação para as exportações.
Num segundo plano, importa distinguir a composição da indústria portuguesa entre os anos vinte e sessenta do século XX, onde é flagrante a ausência da chamada «indústria pesada» e, até aos anos cinquenta, também uma tímida presença da produção de energia a partir de recursos endógenos, o que implicava a importação massiva de combustíveis. Era a indústria transformadora que ocupava um maior peso na produção industrial, sempre acima de 70%, e dentro desta, uma grande diversidade de actividades que incluíam as indústrias alimentares, bebidas e tabaco, os têxteis, vestuário e calçado, as madeiras e a cortiça, além das indústrias químicas. Só na década de sessenta é que começam a ganhar peso as indústrias de papel, os produtos metálicos, construção de máquinas e a metalurgia de base 9.
Neste contexto de industrialização tardia e de um sector industrial disperso, a indústria de conservas ocupou um peso relevante tanto na produção industrial como na população activa10. Contudo, o seu crescimento não se justifica pela substituição de importações, nem pela articulação com os mercados coloniais, como sucedeu com a indústria algodoeira11. Trata-se de uma indústria exportadora que assegurou a competitividade externa através de uma contínua especialização no fabrico de sardinha. Para esse processo contribuiu, de forma decisiva, a intervenção do Estado.
Um segundo conceito que perpassa toda a análise é o de comércio externo. Tradicionalmente, esta designação abrange a importação e exportação de bens e serviços, ainda que aqui daremos especial relevância ao comércio de mercadorias. O comércio externo surge como uma variável decisiva na etapa de industrialização do país. Desde logo porque, para o lançamento de novas indústrias, era essencial importar bens de equipamento e novas tecnologias. A exiguidade do mercado interno, por outro lado, colocava limites naturais e a necessidade de exportar para formar economias de escala. Em segundo lugar, o desequilíbrio estrutural da balança comercial, devido também à carência de bens essenciais de abastecimento, condicionava a estabilidade monetária interna e conferia ao comércio externo uma relevância política. A criação de novas indústrias nos anos trinta surge neste contexto de autarcia e substituição das importações, acompanhada de medidas protecionistas. Porém, e menos estudada, a ação do Estado dirigiu-se também à promoção das exportações como meio para alcançar um equilíbrio comercial e de pagamentos internacionais.
A prática do comércio externo está associada à ideia de autarcia ou auto-suficiência no aprovisionamento de produtos agrícolas e industriais, que na prática se revelava em políticas de substituição das importações. A experiência histórica revelada pela «questão das subsistências» durante e após a Primeira Guerra Mundial foi o terreno de afirmação de um desejo ideal de autarcia. Enquanto modelo ideal, a autarcia foi perseguida pelas políticas públicas que, além do protecionismo pautal, apoiaram estrategicamente o lançamento de actividades agrícolas como a Campanha do Trigo e a indústria de adubos. A autarcia é ainda um desiderato dos industrialistas que, na crise internacional do início dos anos trinta, entreviram uma oportunidade para mobilizar a atenção pública em torno de novos projectos industriais. Todavia, se a ideia de autarcia tinha um poder mobilizador, também foi contestada ao longo das décadas. Após a Segunda Guerra Mundial, o argumento que o desenvolvimento económico carecia de uma proteção autárquica foi questionado. Correia de Oliveira, por exemplo, em 1958, afirmava que Portugal, ao ter liberalizado as importações provenientes dos países europeus, antecipara-se no movimento de cooperação económica e nunca quisera desenvolver uma política de desenvolvimento autárquica 12. Já Rogério Martins, Secretário de Estado da indústria no início dos anos setenta, proclamou a insuficiência e o definitivo abandono do modelo autárcico 13.
Até aos anos sessenta, as exportações refletem o baixo nível de industrialização da economia portuguesa, compostas por matérias-primas e produtos com escassa transformação como os vinhos, a cortiça em bruto e as conservas de peixe 14. Se atendermos aos valores unitários, a tonelada de conservas de peixe exportada representava o triplo do valor médio das exportações. Para estudarmos a evolução do comércio conserveiro, as teses de dependência do comércio internacional revelam-se insuficientes porque, desde a sua formação inicial, a indústria de conservas exportou para uma grande diversidade de mercados com uma procura crescente, acompanhando a mudança de hábitos de consumo 15. Também parece pouco razoável interpretar os problemas da indústria nos anos vinte como um sintoma de uma «economia desarticulada» e subordinada à condição periférica no sistema da economia-mundo16. Esta hipótese perde valor se considerarmos que, apesar dos conflitos de interesse presentes na indústria de conservas, o seu desenvolvimento tecnológico e a capacidade de competir nos mercados externo era semelhante à dos países mais desenvolvidos.
À margem de um modelo teórico rígido, neste estudo procuramos discutir a evolução das exportações de conservas a partir de três conjunturas essenciais no desenvolvimento do processo histórico: a «desglobalização» dos anos trinta, marcada pela assunção do bilateralismo e o reforço do protecionismo; o comércio estratégico durante a Segunda Guerra Mundial e a neutralidade portuguesa; e a cooperação económica do segundo pós-guerra, concretizada na liberalização do comércio intraeuropeu.
Um último conceito utilizado no texto é o da intervenção pública. Para a sua definição é útil partirmos do art. 7º do Estatuto do Trabalho Nacional, de 1933: «O Estado tem o direito e a obrigação de coordenar e regular superiormente a vida económica e social». Esta concepção da relação entre o Estado e a Economia não só rompia com uma tradição liberal supletiva, em que a intervenção se destinava a corrigir pontualmente as ineficiências do mercado, como requeria a criação de novos instrumentos de intervenção pública. Neste sentido, e no que toca à intervenção na indústria, é necessário distinguir a atividade económica pública da regulação económica privada 17.
No que diz respeito à actividade económica pública, o Estado Novo teve uma intervenção crescente no processo de industrialização. Se, no período anterior à guerra, essa intervenção se circunscreveu à criação de instrumentos de despesa pública, como a Lei de Reconstituição Económica (1935) e a concessão de exclusivos para o exercício de novas indústrias, após o conflito mundial o Estado participou com empresas públicas ou de capital misto e com uma planificação a médio prazo concretizada nos Planos de Fomento 18. Contudo, foi talvez na regulação da economia privada que o Estado teve uma presença mais forte e duradoura. Esta regulação autoritária concretizou-se na criação de uma nova regulamentação normativa, o condicionamento industrial, que pode ser entendido como a única política industrial coerente do regime 19; e uma profusão de medidas administrativas destinadas a controlar os preços, salários e margens nas cadeias de produção mais relevantes 20. Neste último ponto devemos ter em conta a centralidade dos organismos de coordenação económica e organismos corporativos criados pelo Estado a partir dos anos trinta.
A experiência histórica do corporativismo português já foi amplamente estudada pela historiografia 21. No que diz respeito às relações económicas, os organismos corporativos e de coordenação económica evoluíram de uma concepção doutrinária de espaços de «auto-regulação» para instrumentos de uma regulação estadual da economia. Os organismos de coordenação económica, em particular, perfilam-se como executores da intervenção pública, quer no cumprimento das regulamentações normativas quer no exercício dos controlos administrativos. Ao mesmo tempo, a criação da organização corporativa eliminou o pluralismo representativo e concentrou os poderes nos organismos administrativos. Este processo, com diferentes intensidades em cada sector de actividade, teve múltiplas resistências e incompreensões 22.
Como veremos no caso da indústria de conservas, a intervenção pública no capital social das empresas esteve ausente. Todavia, tanto o condicionamento industrial como o organismo de coordenação económica tiveram um papel preponderante nos destinos da indústria, fomentando a sua especialização e um estrito controlo dos custos de produção, da concorrência e dimensão das empresas.
Finalmente, importa esclarecer a cronologia adoptada para este trabalho. É certo que o período longo entre 1927 e 1972 compreende pelos menos três conjunturas do processo de crescimento económico. Porém, aquilo que as une é a cronologia «política», isto é, a longevidade do Estado Novo como regime e, em particular, as instituições de regulação da actividade económica que constituem o objeto de análise. A maioria dos instrumentos de intervenção na economia criados nos anos trinta mantiveram-se em funcionamento até aos anos setenta e foram o espaço fulcral na relação entre a sociedade civil e o Estado.
Em termos convencionais, a cronologia inicial é balizada pela realização do primeiro Congresso de Pescas e Conservas na cidade de Setúbal, em 1927. Este acontecimento é relevante não só para compreendermos a acção dos grupos de interesse num novo marco institucional, após a queda do regime republicano, como serve também para inquirirmos as origens do intervencionismo económico que foi formalizado em 1932. No outro extremo, o ano de 1972 representa um fim de ciclo de expansão da indústria de conservas que se conjuga com a alteração das conjunturas externas. O acordo comercial celebrado entre Portugal e a CEE e a primeira crise internacional dos combustíveis não alteraram substancialmente os problemas estruturais da indústria, mas inauguraram um novo período de mudanças que culminará com a revolução de 25 de Abril. É importante notar que a profunda crise da indústria decorreu antes do período revolucionário, em consequência do modelo de desenvolvimento empreendido nas décadas anteriores.
(Lisboa: Império, 1941); José Viegas Dias, Estudo dos aspectos económico-financeiros da indústria de conservas de peixe em Portugal. (Lisboa: Editorial Império, 1958), José Gonçalo Correia de Oliveira, «Parecer nº 28/VI». Em Actas da Câmara Corporativa, nº 53 (1955): 545-583; Salviano Cruz, «A Economia das Pescas em Portugal. A Indústria de Conservas de Peixe». Revista de Pesquisas Económicas-Sociais, IV (1958); Ruy C. Nascimento, e Francisco Marques da Silva. A indústria de conservas de peixe. Breve estudo da integração económica do sector. Lisboa: IPCP, 1960.
5 J. Amado Mendes e Manuel Ferreira Rodrigues. História da indústria portuguesa : da Idade Média aos nossos dias (Mem Martins : Europa-América, 1999), 15.
6 Definição sugerida por Paul Bairoch, cit. por José M. Brandão de Brito, Industrialização portuguesa no pós-guerra (1948-1965). O Condicionamento Industrial (Lisboa, Dom Quixote, 1989), 73. Aplicação ao caso português, 79-83.
7 Miriam Halpern Pereira, Livre câmbio e desenvolvimento económico. Portugal na segunda metade do século XIX. Lisboa: Edições Cosmos, 1971; Jaime Reis, «O atraso económico português em perspectiva histórica (1860-1913)». Análise Social, XX (1984): 7-28; Pedro. «História e Crítica da Tese de Dependência». Em Desenvolvimento económico e Mudança Social. Portugal nos últimos dois séculos – Homenagem a Miriam Halpern Pereira, org. José V. Serrão, Magda A. Pinheiro e M. Fátima Sá, 37-48. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009.
8 Brito, Industrialização portuguesa…, 79-83; Alfredo Marques, por sua vez, denota a evolução de uma aliança agrária-industrial nos anos trinta, reveladora de uma estacionariedade das estruturas sociais e caracterizada pela autonomia da regulação estatal, para um modelo de desenvolvimento de base endógena a partir dos anos cinquenta. V. Política económica e desenvolvimento em Portugal (1926-1959). As duas estratégias do Estado Novo no período de isolamento nacional (Lisboa: Livros Horizonte, 1988), 24/25.
9 Álvaro Aguiar, e Manuel M. F. Martins. «A indústria». Em História Económica de Portugal, org. Pedro Lains e Álvaro Ferreira Silva (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005), vol. III, 209.
10 Em 1896, só a indústria têxtil e dos tabacos ocupava um número de operários superior à indústria de conservas. V. Barbosa, Sobre a indústria de conservas…, 19.
11 V. M. Anne Pitcher, Politics in the portuguese empire, The State, Industry and Cotton: 1926-1974.(Oxford: Clarendon Press, 1993).
12 José Gonçalo Correia de Oliveira, Despacho aos serviços dependentes da secretaria de Estado do Comércio. (Lisboa : Fundo de Fomento de Exportação, 1958), 36/37.
13 Rogério Martins, Caminho de um país novo (Lisboa: Gris, 1970), 94. Num balanço historiográfico, Alfredo Marques aponta os limites do modelo de substituição das importações. V. Política económica e desenvolvimento…, 160/161. Fernando Rosas sublinha, no entanto, que a política de um modelo de autarcia genérica e nacionalismo económico também incluía o apoio às exportações tradicionais e visava, sobretudo, a criação de condições de estabilidade social entre os grupos sociais que constituíam a base de apoio social do regime. V. O Estado Novo nos anos trinta (Lisboa: Estampa, 1986), 281.
14 Óscar Afonso, e Álvaro Aguiar. «A internacionalização da economia». Em História Económica de Portugal, org. Pedro Lains e Álvaro Ferreira Silva (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005), vol. III, 313.
15 Ver, sobre a tese de dependência, as obras já citadas de Miriam Halpern Pereira e Pedro Lains. Por outro lado, já nos anos 60 do século XX, devemos questionar a ideia que as exportações de conservas tinham uma procura externa limitada, como argumentou V. Xavier Pintado para o conjunto das exportações tradicionais, Structure and growth of the portuguese economy (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002), 272. Como veremos, nesse período o problema residia na dificuldade de a indústria portuguesa se adaptar às alterações nos mercados numa conjuntura em que o consumo de conservas continuava a crescer.
16 Schwartzman, The social origins of democratic collapse : the first portuguese republic in the global economy. Kansas: University Press of Kansas, 1989, 83-90.
17 Para uma discussão sobre estes conceitos, v. Vital Moreira, Auto-regulação profissional e administração pública (Coimbra: Almedina, 1997), 37 e ss.
18 Ana Bela Nunes e J. M. Brandão de Brito, «Política económica, industrialização e crescimento». Em Nova História de Portugal, Vol.XII, org. Fernando Rosas (Lisboa: Editorial Presença, 1992), 317 e ss., e Pedro Lains, «O Estado e a industrialização em Portugal, 1945-1990», Análise Social, XXIX, nº 128 (1994): 923-958.
19 Brito, Industrialização portuguesa…, 111 e ss. Para uma comparação com as políticas industriais europeias do século XX, v. uma comparação com países europeus, v. Foreman-Peck, James e Federico, Giovanni, org. European Industrial Policy: The Twentieth – Century Experience. (New York, Oxford University Press, 1999).
20 Ver, a propósito, a síntese de José Silva Lopes: «Intervencionismo económico» e «Preços, Controlo dos» em Dicionário de História de Portugal, org. António Barreto e Maria Filomena Mónica(Lisboa: Figueirinhas, 1999), vol 8; 292-294 e 187-191, respectivamente.
21 Entre os estudos clássicos e pioneiros contam-se os de Manuel de Lucena, A Evolução do Sistema Corporativo Português. 2 Vols. (Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1976), Philippe Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à Democracia (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 1999) e Howard Wiarda, Corporatism and development: the Portuguese experience. (Amherst: The University of Massachusetts Press, 1977). Para sínteses recentes, v. Fernando Rosas e Álvaro Garrido, org. Corporativismo, Fascismos, Estado Novo (Coimbra: Almedina, 2012), Álvaro Garrido, Queremos uma economia nova! Estado Novo e corporativismo. (Lisboa: Temas e Debates, 2016), e António Costa Pinto, org. Corporatism and Fascism: the corporatist wave in Europe (London: Routledge, 2017), Dulce Freire e Nuno Estevão Ferreira. «A construção do sistema corporativo em Portugal (1933-1974)». Tempo, 25-1 (2019): 256-276.
22Ver, por exemplo, Dulce Freire, «Sector vinícola contra a organização corporativa (1933-1937)», Ler História, 42 (2002), 175-198.
1.3. Formação e consolidação da indústria de conservas.
As etapas de formação e consolidação da indústria de conservas antecedem o período em análise, pelo que se torna necessário identificar as principais linhas evolutivas. Um número importante de autores produziu estudos de âmbito regional que identificam o surto da indústria de conservas como um movimento assimétrico, dependente das tradições locais de conservação do peixe e da atracção de capitais e técnicas do estrangeiro, sobretudo da Bretanha francesa 23. Em todo o caso, existem três elementos fundamentais que contribuíram decisivamente para o triunfo da indústria: a oferta de sardinha, a concorrência internacional e as alterações no consumo de produtos da pesca.
Em 1808, o francês Nicholas Appert, estimulado pela administração de Napoleão, criou a técnica de esterilização aplicada aos alimentos em recipientes fechados 24. Através da acção do calor, as bactérias eram eliminadas sem que os alimentos perdessem o seu sabor e as qualidades orgânicas. Joseph Colin foi o responsável por transformar a apperturização num modo de produção industrial com o enlatamento da sardinha na costa da Bretanha francesa. Com esta inovação, o peixe enlatado deixava de ser um produto frágil e perecível e tornava-se fácil de transportar, resistente e com grande durabilidade. As conservas herméticas superavam os métodos tradicionais de conservação do pescado pelo sal, seco ou fumado, e alargaram o consumo humano dos produtos da pesca 25. Durante as décadas centrais do século XIX, a indústria francesa cresceu com base no mercado interno, favorecida pelas ligações ferroviárias entre a Bretanha e Paris, e no exterior, com exportações para o continente norte-americano. Enquanto em França as conservas em azeite se afirmavam como um produto de luxo consumido nos hors d’oueuvre e exibidos nas Exposições Internacionais, nos Estados Unidos foram um alimento prático, transportado nas corridas ao ouro na Califórnia e durante a guerra civil americana de 1861-1865 26.
Em Portugal, como em Espanha, havia uma longa tradição de captura e transformação dos recursos marinhos com destino ao comércio internacional. As origens remontam à Lusitânia romana, quando os complexos de cetarias se generalizaram no litoral português e os produtos da pesca eram exportados para as províncias setentrionais 27. A conservação e comércio de peixe pelo sal prolongaram-se pelos períodos medieval e moderno, mas com um crescente aumento das importações de bacalhau para o abastecimento interno. Na região de Aveiro, em meados do século XVIII, a quebra do mercado inglês das importações de bacalhau suscitou o lançamento de novas artes de pesca de arrasto costeiro, as xávegas, mais eficazes e produtivas do que os aparelhos tradicionais, que aumentaram os desembarques de sardinha e outras espécies pelágicas costeiras 28. Ao mesmo tempo, a ação mercantilista do Marquês de Pombal estendeu-se às pescas marítimas, com a criação da Companhia Geral das Reais Pescarias do Algarve e a fundação de Vila Real de Santo António com o propósito de transformar e exportar a sardinha conservada pelo sal. Estes antecedentes contam para o desenvolvimento das tecnologias de extração dos recursos marinhos e a organização do trabalho nas comunidades marítimas do litoral, com o trabalho repartido entre a extração do peixe e a sua transformação, executado por homens e mulheres, respectivamente 29.
A partir de 1880 deu-se um forte crescimento da indústria de conservas de peixe. O número de fábricas multiplicou-se num curto período: de 18 em 1884 para 66 em 1886 e 116 em 1912. As bases do crescimento industrial correspondem às tendências da industrialização nos países ocidentais: a difusão da força motriz do vapor na pesca da sardinha, estimulada pela procura conserveira, e a introdução de máquinas, sobretudo as cravadeiras, que substituíram gradualmente os soldadodres manuais no encerramento das latas30. Porém, era no comércio externo que se afirmavam as maiores possibilidades de crescimento. A intensificação das capturas de sardinha reduziu os preços do pescado, criando uma vantagem comparativa decisiva. Xán Carmona estima que o preço da sardinha em Portugal e Espanha foi inferior aos preços em França durante o primeiro terço do século XX 31. Ao mesmo tempo, compunha-se o mercado global de oferta das conservas de sardinha. Depois do início em França e a entrada de Espanha e dos EUA como países produtores, seguira-se a entrada de Portugal e a Noruega, e o Japão a partir de 1903 32. A posição competitiva nos mercados europeus consolidou-se através de incentivos fiscais, como a isençãoo de direitos de importação sobre os azeites e a folha de flandres utilizada na confecção das latas, a partir de 1881, e uma redução inicial nas tarifas de importação em França 33. A indústria de conservas foi dos sectores que mais cresceu no conjunto das exportações finisseculares, acompanhando a diversificação industrial que caracteriza este período. Para esse crescimento contou uma menor concentração das exportações na Grã-Bretanha e, além de França, uma maior expansão noutros mercados europeus, no Brasil e nos EUA 34.
Este padrão de crescimento teve um reflexo na estrutura das empresas conserveiras. A ausência de um mercado interno de consumo dos produtos em conserva favoreceu a especialização produtiva orientada para a exportação. Em Espinho, por exemplo, a grande fábrica de conservas Brandão Gomes, que integrava horizontalmente a produção de conservas de peixe com frutos e vegetais, reduziu a sua variedade e concentrou-se na produção de sardinha 35. No Algarve, a conserveira Ramirez, especializada nas conservas de atum, construiu, segundo a biografia da empresa, o primeiro galeão a vapor para a pesca da sardinha e diversificou a produção 36. A maior empresa do sector, a Júdice Fialho, cresceu no primeiro quartel do século XX com uma estratégia expansionista de criação de fábricas nos portos sardinheiros e a concentração das vendas numa marca líder no mercado britânico, a Marie Elisabeth 37. Em todo o caso, existem dúvidas legítimas de que o sector das conservas – tal como a cortiça – pudessem ser um «sector de ponta» na industrialização tardia portuguesa 38. A irregularidade dos recursos marinhos e os limites da procura externa podiam conter o crescimento da indústria e a criação de efeitos de arrastamento sobre outras indústrias prestadoras de bens e serviços, como a construção de máquinas ou a construção nval, por exemplo. De facto, o século XX demonstrou que as crises periódicas da sardinha criaram uma indústria assente num pilar frágil.
À etapa de formação, entre 1880 e 1913, segue-se uma década de consolidação, entre 1914 e 1924, em que as exportações tiveram um crescimento espetacular de 190%. O crescimento é justificado pela euforia da Primeira Guerra Mundial que aumenta o consumo e faz multiplicar a entrada de novos conserveiros no mercado que, em 1925, seriam já 400. O alargamento do consumo prolonga-se para além do conflito. Do lado da procura, parece existir uma mudança significativa nos hábitos de consumo, uma «democratização» na compra de conservas e um aumento da publicidade nas vendas a retalho 39. Nos anos vinte consolida-se um equilíbrio delicado dos mercados externos em que Portugal detém uma posição dominante no ocidente europeu, a Noruega nos EUA, Espanha também na Europa e nos países sul-americanos, e o Japão, como os EUA, nos mercados asiáticos. Todos estes desenvolvimentos assentavam na ideia que os recursos marinhos eram abundantes e podiam suportar a expansão da oferta. Porém, a grave crise na pesca da sardinha em Portugal, entre 1925-1927, terminou com um ciclo de crescimento de três décadas.
O encarecimento do peixe, os conflitos entre industriais e exportadores em torno dos preços e o aumento do desemprego coincidem com o final da República e a instauração da ditadura militar. Os industriais conserveiros procuraram capturar as novas instituições, ou ocupar o vazio institucional deixado pelo anterior regime, através de grupos de interesse organizados e da Associação Industrial Portuguesa. Os problemas da indústria de conservas tornar-se-iam num exemplo dos problemas da economia liberal, fundada na liberdade individual e nos preços estabelecidos pelos mercados, que recebia as críticas dos doutrinadores do corporativismo e apoiantes de criação de um Estado autoritário. Dessa crítica, e do crescente nacionalismo económico na Europa, surgiu uma oportunidade para o Estado se afirmar como agente defensor do comércio exportador.
Antes de avançarmos na descrição das fontes, metodologia e estrutura do trabalho, é útil reunir em dois quadros o movimento de crescimento da indústria de conservas portuguesa em perspectiva comparada. No primeiro quadro verificamos como, pese algumas flutuações, Portugal se afirmou como um dos principais exportadores de conservas, em conjunto com Espanha, frente à tímida evolução de França, que não tinha a mesma disponibilidade de recursos marinhos, e da Noruega, cuja estrutura de exportações estava concentrada no mercado britânico (Quadro 1.1.). Em segundo lugar, a evolução comparada do volume das exportações de conservas de sardinha e do seu peso relativo no comércio externo português, a partir de 1931, revelam-nos que nas décadas centrais do Estado Novo as conservas foram constantemente um dos principais produtos de exportação. Este protagonismo é a causa, mas também a consequência, da extensa intervenção pública sobre o sector (Quadro1.2).
23 Maria da Conceição Quintas. Setúbal: Economia, Sociedade e Cultura Operária, 1880-1930 (Lisboa: Livros Horizonte, 1988); José Lopes Cordeiro, A indústria conserveira em Matosinhos. Exposição de Arqueologia Industrial. Matosinhos: Câmara Municipal, 1989; Joaquim Rodrigues, «A indústria de conservas de peixe no Algarve (1865-1945)». 2 vols. Tese de Mestrado, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1997; Maria J. R. Duarte, Portimão : industriais conserveiros na 1ª metade do século xx (Lisboa: Colibri, 2003); Sandra Nunes, As pescas e a indústria conserveira. Matosinhos, Monografia do Concelho. Vol. 7. (Matosinhos: Câmara Municipal, 2003); José Madureira Lopes, e Alberto Manuel de Sousa. A indústria de conservas de peixe em Setúbal (Santa Maria da Feira: Estuário, 2015).
24 Nicholas Appert, Le Livre de tous les Ménages, ou l’art de Conserver, pendant plusieurs années, toutes les substances animals et végétales. Paris: Patris et Ce., 1810. 25 Charles Cutting, Fish saving; a history of fish processing from ancient to modern times (New York: Philosophical Library, 1956), 187-196.
26 Jean-Christophe Fichou, « Les conserves de sardines à l’huile, ou le luxe français sur les grandes tables du monde ». Histoire, économie & société , 26:1(2007), 110-115.
27 Sónia Bombico, «Salted fish industry in Romain Lusitania: Trade memories between Oceanus and Mare Nostrum». Em Heritages and Memories from the Sea, org. Filipe Themudo Barata e João Magalhães Rocha(Évora: Universidade de Évora, 2015), 19-39.
28 Sobre a difusão das novas artes em diversos pontos da costa portuguesa, v. Inês Amorim, «Técnicas de pesca na costa portuguesa: melhorar ou inventar? Um percurso de investigação». Zainak, nº 25 (2003): 349-368.
29 Luísa Munõz defende que a organização industrial na indústria de transformação do pescado reproduziu a estrutura de organização do trabalho artesanal e a segmentação do trabalho feminino. V. «Actividad femenina en industrias pesqueras de España y Portugal (1870-1930)». Historia contemporânea, nº 44 (2012), 54.
30 V. Jesús Giráldez, «The Modernization of Spanish Fishing: The Case of Galicia, 1880-1936». Em Too valuable to be lost: overfishing in the North Atlantic since 1880, org. Álvaro Garrido e David Starkey (Berlim: De Gruyter, 2020), 12-15. Para uma leitura do processo de industrialização, v. David Landes, The unbound Prometheus: technological change and industrial development in Western Europe from 1750 to the presente (Cambridge : University Press, 1969), e Sidney Pollard, Peaceful Conquest. The industrialization of Europe, 1760-1970 (Oxford: Oxford University Press, 1981). Um dos sintomas do avanço da mecanização das fábricas de conservas foram os conflitos sociais decorrentes da substituição do trabalho manual masculino, que analisaremos ao longo do trabalho. Ver Vasco Pulido Valente, «Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)». Análise Social, XVII (1981): 615-678.
31 Xán Carmona, «Recursos, organización y tecnología en el crecimiento de la industria española de conservas de pescado, 1900-1936» em La cara oculta de la industrialización en España: La modernización de los sectores no líderes, org. Jordi Nadal e Jordi Catalán (Madrid: Alianza Universidad, 1994), 136.
32 Idem, 129.
33 João F. Dias, e Patrice Guillotreau. «Fish canning industries of France and Portugal: life histories». Economia Global e Gestão, X(2005), 69. A redução das tarifas em 1891 foi significativa, de 31,2 francos por 100 quilogramas para 10 francos. As importações de conservas em França, provenientes de Espanha e Portugal, aumentaram de uma média anual de 2000 toneladas entre 1894-1901 para 8900 entre 1902-1913.
34 Sobre o debate em torno da composição das exportações e do arrefecimento da procura britânica, v. Pedro Lains, Os progressos do atraso. Uma nova História de Portugal, 1842-1992 (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003), 75-82.
35 Cordeiro, A indústria conserveira…, 20 e ss.
36 Ramirez: memórias de cinco gerações. Matosinhos : Ramirez & Companhia (Filhos), SA 2003, 42.
37 Sobre esta expansão, v. Jorge Serra, «O nascimento de um império conserveiro: “A Casa Fialho” (1892-1939)». Tese de Mestrado, Porto, Universidade do Porto, 2007.
38 Jaime Reis, «O atraso económico português em perspectiva histórica (1860-1913)». Análise Social, XX (1984): 20.
39 Chris Reid, «Evolution in the Fish Supply Chain». Em History of North Atlantic Fisheries, vol. 2, org. David Starkey e Ingo Heidbrink (Bremen: German Maritime Studies, 2012), 27-58. No mercado inglês, o maior crescimento nas importações de produtos de pesca entre as duas guerras deu-se nas conservas. No final dos anos trinta, o Reino Unido era o maior importador mundial de conservas. Ver Imperial Economic Committee. Survey of the Trade in Canned Food. [S.n.]: [S.l.], 1939.
1.4. Fontes e metodologia.
Estudar o subsector das conservas de peixe implica analisar fontes de natureza qualitativa e quantitativa, identificar os principais produtores de informação e compreender os processos de transferência dos acervos documentais entre as instituições corporativas e o Estado democrático. Entre os produtores de informação incluímos o Governo e a administração central do Estado; o organismo de coordenação económica e os organismos corporativos; e os agentes económicos privados. Estas distinções são naturalmente porosas: muitas vezes apenas conseguimos aceder aos interesses individuais e colectivos através das representações enviadas ao Governo, depositadas nos arquivos públicos, ou através dos organismos corporativos, que constituem um interface entre a execução da regulação estadual e a representação «orgânica» dos industriais. Não podemos, além destas considerações prévias, olvidar a prática de censura e auto-censura que rodeia as publicações impressas durante o regime ditatorial, sobretudo na imprensa profissional do sector.
O estado dos arquivos documentais sobre as instituições públicas do Estado Novo é algo desolador, por diversas razões que foram devidamente identificadas 40. De certa forma, a preservação e tratamento arquivístico do acervo do Instituto Português das Conservas de Peixe, bem como de alguns Grémios de industriais de conservas, é excecional no conjunto geral. A existência deste acervo pode explicar-se pela extraordinária longevidade do Instituto que, após 1974, foi equiparado a uma nova Direção-Geral e só viria a desaparecer em 1993 com a reorganização da Direção Geral das Pescas, na dependência do Ministério do Mar. Esta longevidade não é uma mera coincidência. Pela extensão de poderes administrativos que foram sendo concedidos ao IPCP e pelo crescente papel que desempenhou na implementação de regras de funcionamento, higiene e segurança já em democracia, o antigo organismo criado em 1936 assumiu funções de coordenação económica que ultrapassaram a queda do regime autoritário.
A este acervo soma-se um conjunto diversificado de fontes primárias: a documentação do Arquivo Salazar sobre assuntos económicos, na Torre do Tombo; o fundo do Grémio de Industriais de Conservas de Peixe do Sotavento do Algarve, no Arquivo Municipal de Olhão; e os fundos das empresas Júdice Fialho e Feu Hermanos, no Museu de Portimão 41. Entre as fontes impressas, além da legislação e das estatísticas oficiais, destacam-se as revistas Conservas (1932-1941) e Conservas de Peixe (1946-1971).
Sobre a leitura das fontes primárias impendem três desafios metodológicos: cruzar a pluralidade dos discursos sobre o passado; identificar, a partir da análise do funcionamento das instituições, a ação dos indivíduos; realizar uma comparação internacional com o sector das conservas de peixe.
Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que sobre os mesmos acontecimentos existem visões díspares expressas em documentos escritos, sobre os quais devemos ter preocupações hermenêuticas. O discurso apologético sobre a obra social do Estado Novo não deve inibir o estudo sobre as dificuldades de «cartelização» do sector e o problema da credibilidade da regulação económica, problemas que uma primeira leitura das fontes impressas poderia não deixar clara. Um segundo exemplo encontra-se nos processos de condicionamento industrial. À margem da formalidade dos processos arquivados, a capacidade de os indivíduos influenciarem a tomada de decisões é considerável. Esta hipótese levou-nos a considerar até que ponto o condicionamento industrial foi um processo discricionário ou uma negociação entre múltiplos intervenientes que actuam dentro das instituições do Estado Novo.
A natureza das fontes impele este estudo a seguir uma história das instituições, mas dentro destas encontram-se indivíduos com diferentes agendas e pertenças territoriais. A necessidade de conciliar as diferentes identidades regionais da indústria conserveira, marcada pelas diferenças ecológicas de cada território, é um ponto essencial de análise. Por outro lado, a relação entre as instituições do Estado e os indivíduos não é meramente impositiva. Além dos privilégios concedidos pela nova organização, o intervencionismo económico do Estado foi suficientemente flexível para acomodar as pretensões dos industriais. Todavia, manteve uma autonomia assinalável na tomada de decisões e na condução das políticas económicas.
A informação quantitativa sobre as exportações de conservas permite-nos fazer uma comparação internacional com as indústrias congéneres europeias, ainda que parcial e de forma indirecta, a partir da bibliografia especializada ou das estatísticas coligidas pela FAO a partir de 1946. Ao compararmos a indústria portuguesa com o exterior podemos não só identificar as vantagens comparativas, mas compreender quais foram as principais estratégias de crescimento internacionais e a capacidade que a indústria teve, ou não teve, de as seguir.
40 Dulce Freire, N. Estevão Ferreira e A. Margarida Rodrigues, « Corporativismo e Estado Novo.
Contributo para um roteiro das instituições corporativas (1933-1974), Working Papers ICS, nº 1, 2014.
41 Consultámos ainda outros arquivos públicos, mas apenas para consultas pontuais: arquivo do Tribunal de Contas, Arquivo Histórico Parlamentar da Assembleia da República; Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, e Arquivo da CGTP. Além destes arquivos, frequentámos diversas bibliotecas públicas que possuem fontes impressas indispensáveis: Biblioteca do Ministério da Economia, biblioteca do IPMA, Biblioteca Municipal de Setúbal.
1.5. Estrutura.
Após o capítulo introdutório, o segundo capítulo discute as origens da intervenção do Estado na reorganização da indústria de conservas entre finais dos anos vinte e 1932. Esta intervenção foi relevante na medida em que se criaram instituições que dirigiram o sector até aos anos setenta. Procedemos a uma análise das diferentes variáveis explicativas: uma exógena, sobre a hipótese de ter sido a situação dos mercados externos a obrigar à intervenção pública; e outra endógena, assente na ideia que foram os grupos de interesse a mobilizar a atenção pública e «capturar» as instituições do novo Estado em construção. Apesar de não podermos excluir a importância de cada uma destas variáveis, argumentamos que o processo de reorganização da indústria ilustra a formação de um Estado autoritário, com poderes atribuídos a novas instituições, que exerce com relativa autonomia a direção das actividades económicas.
O terceiro e quarto capítulo procuram avaliar o desempenho económico das novas estruturas – organismos corporativos e a coordenação económica estatal. O problema essencial é a «cartelização estatal» do comércio, caracterizada pela fixação administrativa de preços mínimos de exportação. A análise dos mercados externos demonstra que esta estratégia foi um logro. Porém, a conjuntura de Guerra alterou o contexto de comércio externo e atribuiu uma nova utilidade à estrutura burocrática. Com o comércio de conservas polarizado entre os beligerantes, o organismo de coordenação económica passou a ser o principal agente de comércio e, no mercado interno, actuou como distribuidor das matérias-priams indispensáveis, em particular a folha de flandres. Esta actuação permitiu mesmo que o comércio de conservas fosse um importante, e nem sempre valorizado, agente da neutralidade portuguesa.
As condições de comércio no segundo após-guerra, analisadas no quinto capítulo, seriam muito diferentes em relação a 1933-1945. O problema já não era a manutenção das exportações no comércio bilateral ou durante a guerra, mas como preparar a indústria de conservas para a liberalização do comércio externo. O problema tinha acuidade porque comércio conserveiro estava concentrado na Europa, região que deu mais avanços na integração económica, e em que Portugal participa, apesar de pouco industrializado, sem um regime democrático e com territórios coloniais. A indústria conta com aspectos positivos, como o crescimento sustentado das capturas de sardinha e do consumo de produtos da pesca; mas também negativos, relacionados com o modelo de integração económica. Depois das negociações de adesão à EFTA se terem esforçado para incluir as conservas de peixe como «produto industrial», o aumento da procura ficou aquém do esperado. O modelo de expansão, ultraespecializado na sardinha, dava sinais de esgotamento. Mas, curiosamente, a intervenção do Estado teve mais continuidades do que rupturas. O organismo de coordenação económica, coadjuvado pelos organismos corporativos, continou a actuar no mercado das matérias-primas, com efeito nos custos das empresas, mas sem promover a concentração e reorganização industrial.
Na segunda parte, discutimos a evolução dos recursos marinhos, a organização industrial e o impacto da regulação conhecida como condicionamento industrial. Privilegia-se a análise das relações entre o Estado e a indústria e as relações intrassectoriais entre a indústria de conservas e a pesca. Como o preço do pescado era o principal elemento de competitividade da indústria, é importante compreender a evolução do sector da pesca da sardinha, tema do sexto capítulo. Nele contemplamos a evolução da produção e da produtividade, mas também do consumo e do comércio internacional; e o impacto de todas as medidas públicas sobre o sector. A produção evoluiu de um modelo artesanal para um modelo de exploração industrial, com a generalização da pesca motorizada, os aparelhos de comunicação e detecção de cardumes. Se esta transformação se devia à procura da indústria de conservas, também devia ao consumo público. A concorrência do consumo público de sardinha, que beneficiava o sector da pesca, ameaçava a competitividade da indústria de conservas. Esta distribuição do consumo é ainda mais importante porque, por via oficial, havia uma forte restrição às importações de sardinha para abastecer a indústria de conservas.
No sétimo capítulo focamos a atenção na organização da indústria: a evolução da estrutura industrial e o impacto do condicionamento industrial. O crescimento das exportações teve como base um notável aumento da produção de conservas no segundo pós-guerra. Para compreender este crescimento é necessário distinguir a acumulação de capital físico dos ganhos permanentes de produtividade. Em segundo lugar, tratando-se de um sector que concorre no exterior, é útil conhecer a estrutura de custos da produção numa perspectiva comparada. A estabilidade dos custos de produção na indústria portuguesa pode ser atribuída à intervenção do Estado na estabilização dos preços dos produtos intermédios, e, em comparação internacional, ao baixo peso relativo do trabalho, apesar de ser um sector de trabalho-intensivo. A manutenção do trabalho manual e a segmentação do trabalho feminino são outros aspectos fundamentais na competitividade da indústria. O facto de os salários não terem acompanhado a subida da produtividade criou graves problemas de recrutamento a médio prazo, a partir do momento em que houve uma diversificação da estrutura industrial junto aos centros conserveiros.
Uma última nota sobre a segunda parte da tese. A evolução da estrutura da pesca e da indústria estão relacionadas com a intervenção pública em ambos os sectores, ainda que de forma indirecta. Na pesca de sardinha, os investimentos por via dos planos de Fomento foram moderados, mas os financiamentos concedidos pela organização corporativa foram indispensáveis à renovação das frotas. Na indústria de conservas, a ausência nos planos de Fomento e na políticas de reorganização é flagrante, mas a política de regulação dos investimentos teve um impacto duradouro na estrutura industrial, tanto na dimensão das empresas como na dificuldade em introduzir novas tecnologias e linhas de produção.
O modelo de crescimento da indústria de conservas entrou em decadência em meados da década de sessenta. Esse fenómeno complexo, que congrega razões exógenas e endógenas, é discutido no epílogo que antecede a conclusão do trabalho.