Fábrica Pimenta
Adaptação do texto “Ao toque da Sirene” de Francisco Castelo publicado na Agenda de eventos “Sentidos”, da Câmara Municipal de Lagos, em Agosto de 2010.
O espaço geográfico que Lagos ocupa hoje já exportava peixe da sua costa desde a época romana. O garum era envasilhado em ânforas de barro, depois de curtido pelo sal, e embarcado nas galeras rumo aos mais importantes pontos do império. Com o tempo as vasilhas de madeira tomaram o lugar das de barro e barricas de várias dimensões transportavam atum, cavala e sardinha salgada para diversos destinos, sobretudo europeus.
Na segunda metade do século XIX o progresso tecnológico da nova vaga de industrialização traduz-se no aparecimento de um novo conceito, a fábrica. A instalação de centros industriais no Algarve, iniciada na década de oitenta desse século, veio operar uma enorme transformação social e económica, e a indústria conserveira foi um dos sectores que contribuiu para essa transformação. A primeira fábrica de conservas de atum em azeite, implantada em Portugal, surgiu em 1879, em Vila Real de Santo António. Em Lagos, a primeira fábrica terá surgido em 1882 pela mão de uma grande empresa francesa “Établissements F. Delory” com sede em Lorient, na Bretanha, e que também se estabeleceu em Setúbal (1880) e em Olhão (1881).
A sirene da fábrica era o sinal esperado, anunciando a chegada de peixe fresco. Então, um exército de mulheres corria para a fábrica, na esperança de serem escolhidas para trabalhar; eram elas a principal força de trabalho desta indústria, desenvolvendo frequentemente a sua actividade em condições deploráveis. Na fábrica, as operárias procediam às operações de descabeçar e esviscerar o peixe que seguia depois para os pios da salmoira onde ficava o tempo necessário. Seguidamente o peixe era frito em azeite ou óleo, enxugado, e embalado em latas cujo tampo era soldado. Uma evolução importante consistiu na alteração do processo de fritura para o da cozedura em que o peixe passou a ser literalmente cozido no vapor. Depois de amanhado seguia em grelhas para os cozedores ou cofres onde era submetido ao vapor. No fim da linha de produção, após o enlatamento, as conservas eram esterilizadas a uma temperatura superior a 100ºC, em autoclaves de vapor alimentados por enormes caldeiras com fornalha de lenha.
A introdução da máquina de cravar tampas nas latas, a cravadeira, veio aumentar a capacidade produtiva embora tenha gerado grande perturbação e o desaparecimento dos soldadores, até então a profissão melhor remunerada desta indústria. O processo de fabricação da conserva cumpre as seguintes fases: recepção do peixe; descabeço/evisceração; lavagem, salmoura; engrelhamento; secagem; cozedura; enlatamento; azeitamento; cravação; lavagem; verificação; embalagem; armazenamento. Mas não era apenas o peixe que se enlatava. Em 1939, a Sociedade de Conservas Aldite, laborando no alto de Santo Amaro, fabricou e exportou berbigão em conserva, com rótulo em castelhano “berberechos”, destinado certamente ao mercado hispânico.
Em 1908 Lagos liderava o arranque do processo de industrialização conserveira no Algarve com 10 unidades instaladas, contra 3 em Portimão, 1 em Albufeira, 2 em Faro, 7 em Olhão e 6 em Vila Real de Santo António. Em 1920 existiam em Lagos cerca de 32 fábricas, mas em 1938 o Anuário Comercial de Portugal referenciava apenas as seguintes: Algarve Exportador, Ltd; Aliança Fabril Lacobrigense, Ltd; Alpapito Murtinheira, Arez & C.ª; António da Silva Freitas; Établissements F. Delory; Fábrica de Conservas S. Gerardo, Ltd; João António Júdice Fialho (Viúva e Herdeiros de); Joaquim de Azevedo Santana; José Gonçalves Nunes; Luz Industrial Ltd; Paolo Cocco. Onde hoje se ergue, imponente, o Mercado Municipal da Avenida, em edifício reabilitado em 1924, funcionou uma fábrica de conservas de peixe. A Fábrica da Porta de Portugal terminaria a sua actividade na sequência de um grande incêndio ocorrido em 1915.
O declínio das pescas, a inexistência de uma rede funcional de frio e a diminuição da competitividade comercial das conservas nacionais nos mercados estrangeiros, foram os principais factores que no final dos anos 70 do século XX anunciaram o fim da epopeia das fábricas de conservas no Algarve.