EM BUSCA DE “LUZ, AR E CLARIDADE” ...dos largos telheiros industriais ao modernismo do séc. XX

ALGUNS CONTRIBUTOS PARA UMA HISTÓRIA DA ARQUITECTURA DA INDÚSTRIA DE CONSERVAS DE PEIXE EM PORTUGAL

O tema em estudo focaliza a evolução da arquitectura conserveira portuguesa, desde finais de oitocentos até meados do século XX, e pretende evidenciar como a arquitectura das fábricas contribuiu para o aumento da produtividade e a dignificação das condições de trabalho deste outrora significativo ramo da indústria exportadora nacional, através de modelos arquitectónicos que evoluíram até ao modernismo e num sector industrial maioritariamente tido como tradicional. Aqui, o paradigma moderno surge exemplificado através de um caso de estudo particular: a fábrica da Algarve Exportador Limitada de Matosinhos (1938). É neste binómio, entre tradição e modernidade, entre produção artesanal e automatização, que é possível encontrar o valor de um indústria que possibilitou, a seu tempo, a expansão do tecido e da vida urbana e um desenvolvimento económico e social sem precedentes nos centros portuários. É também sobre este fenómeno arquitectónico e urbanístico que se opera o resgate do espaço de memória e a sua valorização humana, histórica, patrimonial e cultural.
Hugo Nazareth Fernandes

1. CONTEXTO HISTÓRICO-TIPOLÓGICO
1.1. A primeira geração: o paradigma oitocentista das primeiras fábricas conserveiras

Para o compreendermos, devemos esclarecer que, em termos de funcionamento, as edificações do período conserveiro que antecederam ao período moderno em Portugal remontam, em parte, ao modelo das cetárias, com práticas milenares, em que o interior era concebido como um espaço que pudesse integrar as diversas etapas de tratamento do pescado 1.

Por outro lado, alguns autores referem a granja agrícola multifuncional como um outro paradigma concorrente para o estabelecimento do tipo de fábrica conserveira 2.

1 A importância da indústria conserveira romana encontra-se bem atestada pela presença de numerosos vestígios de oficinas ou fábricas pelo litoral português. As cetárias romanas são conhecidas um pouco por toda a bacia mediterrânica e só em Portugal conhecem-se mais de quarenta estações arqueológicas deste tipo. Veja-se a este respeito Centeno, Rui, A Dominação Romana, in História de Portugal, vol. 1, ed. Alfa, Lisboa, 1984, Santos, Maria Luísa Estácio da Veiga A., Arqueologia Romana no Algarve, dissertação para a licenciatura em Ciências históricas apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Vol. 1., Lisboa, 1971 e Cleto, Joel, A indústria de Conserva de Peixe no Portugal Romano – O Caso de Angeiras (Lavra, Matosinhos), [artigo], in Matesinus, n° 112 – 1995/6, entre outros.

2 Veja-se, a este respeito, Cordeiro, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989.

Do ponto de vista histórico, e segundo Jorge Custódio 3, a arquitectura da indústria conserveira portuguesa pode definir-se entre dois períodos:

1) um período inicial, com uma arquitectura «feita por engenheiros», segundo modelos importados para esta indústria emergente;

2) um segundo período, de uma arquitectura «feita por arquitectos», influenciada pelo Movimento Moderno, recorrendo a tentativas de estruturação de um modelo próprio.

O estabelecimento desta síntese anuncia uma ordem e permite-nos compreender a evolução desta arquitectura de carácter industrial.

Interessa, portanto, compreender de que modo cada um destes períodos se organizou e como se estruturou a sua evolução, da década de 1880 4 até à época de implantação de propostas modernistas, das quais a Fábrica de Matosinhos da Algarve Exportador (1938), da autoria do arquitecto António Varela (1903-1962), foi um modelo exemplar. O primeiro período é bietápico, de 1880 até ao «boom» de novecentos, e daí em diante em grande proliferação, da Primeira Guerra Mundial até à década de trinta; já o segundo período corresponde à fase moderna, de finais de trinta, passando pelo apogeu de exportações correspondente à Segunda Guerra Mundial, até à década de cinquenta.

Observam-se registos de finais de oitocentos e princípios de novecentos, de uma primeira fase de domínio desta indústria, em Portugal, por parte de gregos e italianos, implementada em portos pesqueiros onde abundavam o atum, o biqueirão e outras espécies, principalmente no sul do país 5. É a partir deste período que se começa a enlatar o pescado, sendo o fabrico da lata assegurado por uma unidade de solda em anexo ou por compra dos componentes da lata a terceiros: nesta situação podem indicar-se os casos exemplares da fábrica de Hubert de Ouizille (Setúbal, 1880), a fábrica de conservas de atum em lata S. Francisco de Francisco Rodrigues Tenório (Vila Real de Santo António, 1880) e a Santa Maria, de Parodi e Roldan (Vila Real de Sto António, 1879).

3 Segundo Jorge Custódio, esta imagem parece veicular a ideia de um primeiro período caracterizado por uma edificação pragmática e empírica, por vezes adaptada ao local mas essencialmente reproduzindo modelos construtivos segundo os raros desenhos técnicos à época (veja-se o caso do modelo de Opperman, essencialmente vulgarizado a partir de cópias de plantas) –, por oposição a um segundo período (a década de Trinta) correspondente a uma outra maturação e já com bases teóricas de cariz funcionalista, com uma intervenção dos arquitectos no processo de concepção em série e em cadeia, e um outro nível de cuidado no partido estético e de integração do edifício fabril em termos urbanísticos e arquitectónicos.

4 Conviria ainda referir os antecedentes históricos que precederam esta fase: antes do aparecimento das modernas fábricas de conservas de peixe já esta actividade se exercia com base nos denominados armazéns de salga que remontam à Antiguidade Clássica.

5 Veja-se a este respeito os casos de Lagos, Olhão, Vila Real de Santo António, assim como do outro lado da fronteira, no litoral costeiro espanhol [casos de Ayamonte e Cádiz]. Refira-se que nos respectivos espaços portuários destas cidades surgem, por vezes, em documentação antiga, alguns nomes de industriais italianos ou gregos, como proprietários de fábricas de conservas em sal, como nos foi possível observar in situ.

O fabrico de conservas de peixe em lata surge aqui integrado, como processo de conservação inovador, oriundo das grandes unidades francesas que fabricavam todo o tipo de conservas pelo método de Apper 6 (como os usualmente designados «boiões» estanques).

Com estas primeiras fábricas chegam, também, um grande número de operários, muitos fugindo à fome ou à miséria, nos campos, assim como as novas tecnologias de conservação. No entanto, não é certo que tenham sido estas fábricas estrangeiras as primeiras a trazer o processo de enlatamento para o país, pois, segundo Sebastião Ramires, já funcionava em Peniche, em 1864, uma pequena fábrica de conservas de “sardinha em latas” 7. Embora não seja de relevo para o presente estudo a determinação da primeira fábrica, importará antes assinalar essa década de 1880 como o início do ciclo de desenvolvimento deste tipo de indústria através da construção das primeiras fábricas, num Portugal que despontava tardiamente para a «sua» revolução industrial. Convém acrescentar que não foi apenas por iniciativa de empresas ou de empresários estrangeiros que a indústria de conservas em lata se desenvolveu no país: noutras localidades do território (Figueira da Foz, Aveiro, Porto ou Olhão) vão surgindo empresas nacionais que começam lentamente a desenvolver-se por iniciativa de industriais portugueses 8.

6 “Na modesta fábrica de Massy, elaborando as primeiras conservas esterilizadas de carnes e legumes muito antes de Pasteur ter formulado a justificação científica do processo, Appert desvendou a rota de uma grande indústria moderna em que Portugal pôde tomar posição relevante, graças aos seus vastos recursos piscatórios.” Bernardo, Hernâni de Barros, Breve História da Indústria de Conservas de Peixe em Portugal, [artigo], in Indústria Portuguesa, Ano 25, n°289, Março de 1952, p. 75. Convém referir que, entretanto, na Noruega, assim como nos Estados Unidos, principalmente no estado do Maine, começam a desenvolver-se outras indústrias situadas na vanguarda dos aperfeiçoamentos fabris, tornando possível a multiplicação de iniciativas produtoras que, desde cedo, recolhem um fulgurante êxito. Contudo, a França, apesar da nova concorrência, continuou a manter-se na dianteira, beneficiando do que Appert lhe assegurara no princípio do século: “Em 1880 estavam em actividade nesse país cerca de 200 fábricas de conserva de peixe e dela irradiavam para outros, entre os quais Portugal, as iniciativas produtoras nesse ramo, trazendo à economia alimentar desses povos mais adiantados possibilidades que até então se ignoravam.” Idem, ibidem, p.75. Por outro lado, sabe-se que em 1865 já existia em Vila Real de Santo António uma fábrica de conservas de atum em azeite e que em 1879 desenvolvia ali valiosas actividades a fábrica Santa Maria, da firma Parodi e Roldan. Em 1880 foi fundada a fábrica São Francisco, de Francisco Rodrigues Tenório, que alcançou rapidamente grande prestígio pela alta qualidade do atum em lata que fornecia aos mercados internos e externos. Por seu lado, Hubert de Ouizille fala de um industrial francês, de nome Delory, que terá aportado em Setúbal, em 1880. Com base neste testemunho é possível considerar ter sido esta a primeira fábrica de conservas de sardinha a ser fundada em Portugal, seguida pela iniciativa de outros empresários franceses que fugiam da recessão dos cardumes das suas costas atlânticas. Veja-se a este respeito Cordeiro, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial”, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p. 26.

7 Veja-se a este respeito Ramires, Sebastião, Indústrias Portuguesas in Feiras de Amostras nas Colónias Portuguesas, Lisboa, 1923, in Bernardo, Hernâni de Barros, Indústria Portuguesa, n° 224, 1946, p. 74. Também se pode confirmar, segundo Barros Bernardo, pelas estatísticas industriais do distrito de Leiria. Cf. idem, ibidem, p. 74.

8 Com base num apontamento de Hernâni de Barros Bernardo, poder-se-á sintetizar em seis períodos toda a evolução desta indústria no território de Portugal8: 1) um ciclo de salga, abrangendo o período luso- romano e que predominou até ao séc. XV; 2) um ciclo de fumagem, que predominou nos séc. XVI e XVII, do qual, segundo o autor, não se encontram quase nenhuns vestígios; 3) um ciclo de molhos e de prensagem, mal definido, cuja existência pode ser atestada após o séc. XVI; 4) um ciclo de conservas em azeite, óleos, ou molhos, já mais definido no séc. XIX e que persiste no século XX; 5) um ciclo de conservas enlatadas, de variadas espécies, que principiou na segunda metade do séc. XIX e que atingiu o seu apogeu nas grandes indústrias da primeira metade do séc. XX; 6) um ciclo de congelação, a partir da segunda parte do séc. XX. Este sexto período de congelação, enunciado pelo mesmo autor, refere-se à transição da conservação provisória do pescado pelo sal (método tradicional), para uma fase de armazenamento frigorífico do produto. A medida, entre muitas outras com as quais se começa seriamente a confrontar esta indústria a partir dos Anos 60, não foi suficiente para fazer sobreviver de forma satisfatória a indústria de conservas em Portugal, pelo que nos reportamos a um estudo efectuado em
1967-68, sobre a viabilidade da empresa Algarve Exportador Lda face ao novo mercado, à época, emergente, e onde se enumeram as medidas necessárias para a sobrevivência desta indústria nacional para os anos vindouros, sendo uma dos quais a necessidade urgente da criação de uma «rede nacional de frio», que permitisse armazenar o pescado, transformando uma indústria que era tradicionalmente sazonal e sujeita às irregularidades da faina numa indústria activa durante todo o ano. Seria esta, entre outras, uma das iniciativas que poderiam renovar as conserveiras portuguesas, e lhes permitissem competir com os novos mercados estrangeiros, que começaram a competir directamente com a indústria nacional logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. Veja-se ainda a este respeito Cerqueira, Nuno Nazareth Fernandes de, A viabilidade de uma empresa, Instituto Superior Técnico, Lisboa, 1968, e Cordeiro, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, pp. 49-51.

Convém recordar que, para além da indústria de salga, com o seu modelo milenar da cetária, surgem nas últimas décadas do século XIX algumas unidades fabris que integravam os mais variados processos de fabrico e produção de conservas de todo o tipo 9. O facto do processo de enlatamento surgir no contexto destas fábricas com produção variada, também se pode explicar pelo acentuado poder económico que estas primeiras empresas detinham, surgindo isoladamente como autênticos colossos industriais, tendo sido estas as primeiras beneficiárias de novas tecnologias importadas do estrangeiro, coisa que as pequenas empresas de iniciativa privada ainda não possuíam, o que comprova que o fabrico de conservas em lata surge numa primeira fase integrado nas unidades de fabrico de conservas de todo o tipo, e demonstra que ainda não existia um edifício especializado na produção exclusiva de conservas de peixe em lata. Segundo alguns autores, estas primeiras fábricas de conservas de peixe foram construídas com base nos modelos adaptados das primeiras explorações agrícolas industrializadas, com um acentuado contraste entre o interior e o exterior, como o descrevem José Salgado e Joaquim Leitão 10.

Estas primeiras conserveiras não eram muito diferentes de outras unidades industriais oriundas de outros ramos emergentes: podemos citar, como exemplo, a Real Companhia Vinícola Portuguesa, instalada na zona sul de Matosinhos, em 1899, enorme complexo industrial com 11.000 metros quadrados de área, em relação ao qual Joaquim Leitão escreveu: “(…) não é um traçado de arquitectos (…), é um enorme plano de batalha, com toda a estratégia que a suprema e invencível divisão do trabalho contém” 11.

10 Segundo José Salgado: “(…) uma solução fortemente inspirada nos modelos das primeiras explorações agrícolas industrializadas, com um acentuado contraste entre o exterior e o interior.” In Cordeiro, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p. 20. Este relembra ainda que esta fábrica, instalada na zona sul de Matosinhos, “(…) foi a primeira unidade industrial a ocupar aquela zona constituindo um foco de atracção para futuras indústrias.” in Leitão, Joaquim, Guia ilustrado da Foz, Matosinhos, Leça e Lavadores, Livraria Magalhães & Moniz Editora, Porto, 1907, p. 20, in Cordeiro, ibidem, p. 26.

11 Cordeiro, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p. 20. Segundo a opinião de José Salgado, acentuando o carácter fortemente diferenciado entre o aspecto exterior da fábrica e o seu interior, comenta: “(…) grandes cobertos em telha apoiados em pilares e travejamentos em madeira, as altas paredes em pedra, a clara distinção entre os corpos a que correspondiam diferentes funções, tudo sugere uma granja: só que aqui, celeiros, adegas, lagares, etc., estão concentrados, criando um volume compacto que não unitário. A finalidade do edifício talvez seja um elemento decisivo para interpretar esta forma, já que estas instalações não eram fábrica no sentido restrito do termo: funcionavam mais como armazéns onde se procedia à análise química laboratorial, à rotulagem, embalagem e expedição de um produto natural que não era ali totalmente transformado.” Idem, ibidem, p. 21. Esta descrição refere-se à Companhia Vinícola, em Matosinhos, mas poderia ser facilmente adscrita à primeira geração das indústrias conserveiras, como fábricas de conservas de todos os géneros. Com efeito, reencontram-se as mesmas características neste sector: um espaço de laboração, específico, fechado ao exterior, e uma volumetria que delimitava rigorosamente o espaço da produção: “Tudo o que se passa no interior da fábrica é agora vedado aos olhos do público.” Id., ibid., p. 23, nas palavras de José Lopes Cordeiro, mas também relembrando que é esta é uma das principais características dos modelos da arquitectura industrial que surgem com a Revolução Industrial: “(…) com a definição de um espaço fechado e especializado, do qual estão excluídas todas as actividades que não estejam propriamente ligadas à produção. A sua relação com o espaço urbano reduz-se a um simples muro que delimita o espaço de produção, ou a uma fachada por vezes decorativa que não só não nos fornece nenhum elemento sobre o que se passa no seu interior, como por vezes desempenha um papel de dissimulação dessa actividade.” Id., ibid., p. 23.

12 Id., ibid., p. 21. 13 Id., ibid., p. 23. 14 Id., ibid., p. 23.
Segundo a opinião de José Salgado, acentuando o carácter fortemente diferenciado entre o aspecto exterior da fábrica e o seu interior, comenta:

(…) grandes cobertos em telha apoiados em pilares e travejamentos em madeira, as altas paredes em pedra, a clara distinção entre os corpos a que correspondiam diferentes funções, tudo sugere uma granja: só que aqui, celeiros, adegas, lagares, etc., estão concentrados, criando um volume compacto que não unitário. A finalidade do edifício talvez seja um elemento decisivo para interpretar esta forma, já que estas instalações não eram fábrica no sentido restrito do termo: funcionavam mais como armazéns onde se procedia à análise química laboratorial, à rotulagem, embalagem e expedição de um produto natural que não era ali totalmente transformado. 12

Esta descrição refere-se à Companhia Vinícola, em Matosinhos, mas poderia ser facilmente adscrita à primeira geração das indústrias conserveiras, como fábricas de conservas de todos os géneros. Com efeito, reencontram-se as mesmas características neste sector: um espaço de laboração, específico, fechado ao exterior, e uma volumetria que delimitava rigorosamente o espaço da produção: “Tudo o que se passa no interior da fábrica é agora vedado aos olhos do público” 13, nas palavras de José Lopes Cordeiro, mas também relembrando que esta é uma das principais características dos modelos da arquitectura industrial que surgem com a Revolução Industrial:

(…) com a definição de um espaço fechado e especializado, do qual estão excluídas todas as actividades que não estejam propriamente ligadas à produção. A sua relação com o espaço urbano reduz-se a um simples muro que delimita o espaço de produção, ou a uma fachada por vezes decorativa que não só não nos fornece nenhum elemento sobre o que se passa no seu interior, como por vezes desempenha um papel de dissimulação dessa actividade.

Em síntese, o estabelecimento dos dois paradigmas (as cetárias e a granja agrícola multifuncional) permite compreender que, por volta de 1880 – encontrando-se o processo de conservação em lata numa fase bastante experimental –, surgem duas situações:

1) uma tipologia semelhante à utilizada na indústria de salga, ou seja, uma unidade autónoma de fabrico inteiramente manual, sem a assistência de máquinas, e assistida por uma unidade dita de «vazio», onde os soldadores fabricavam as latas, sendo esta unidade integrada no mesmo edifício ou, situação mais comum, num edifício à parte;

2) uma produção de conservas de peixe em lata integrada numa grande unidade de fabrico de todo o tipo de conservas (carnes, legumes, frutas cristalizadas), onde o processo de fabrico de conservas de latas ainda coexistia com esses outros processos mais antigos de conservação de alimentos, nos quais o método de Appert (ou appertização – uma patente de esterilização anterior à de Pasteur) era também utilizado.

A crescente massificação da produção e o seu rápido crescimento observado no final de oitocentos, levaram à procura de uma organização exemplar do pessoal, através de um método que, já no final do século, se podia observar nas granjas multifuncionais que, embora não possuindo especialização, eram tidas como exemplos de organização laboral. Algumas das primeiras conserveiras apresentam situações em analogia com o tipo da granja agrícola, através da tipologia das fachadas, do sistema de construção, a organização em volta de um pátio central, etc. Mas o edifício de fabrico conserveiro caracteriza-se, contudo, pela sua unidade em volta do mesmo sistema de produção, o que origina uma tipologia própria assim como um sistema construtivo.

Nesse sentido, o tipo da fábrica de conservas de peixe em lata também parece aproximar-se de algumas tipologias dos primeiros edifícios industriais, ou seja: no que respeita a estabelecer uma possível estrutura tipológica da fábrica de conservas de peixe em lata, dever-se há considerar os dois tipos acima descritos (as cetárias e a granjas agrícolas), como paradigmas elementares.

Registam-se em Portugal, a partir de novecentos, toda uma série de aplicações do modelo fabril de Opperman15 levadas a cabo por alguns dos seus seguidores, às quais não são alheios alguns edifícios das maiores empresas conserveiras portuguesas que se estabeleceram nesses mesmos portos pesqueiros do litoral, e entre os quais destacamos algumas unidades do início do Século XX: a fábrica de conservas Lopes Coelho Dias a C.a Lda. (Matosinhos, 1899); a fábrica de conservas Brandão Gomes, (Matosinhos, 1900); a fábrica de conservas Santa Maria, da firma Parodí e Roldan, (Vila Real de Santo António, 1879); a fábrica de conservas de atum em lata São Francisco de Francisco Rodrigues Tenório (Vila Real de Santo António, 1880), a fábrica de conservas São José, da firma Júdice Fialho e C.a (Portimão, 1891); a fábrica de conservas Feu y Hermanos16 (Portimão, 1902).
15  Dentro de um quadro geral, observa-se uma série de estudos, durante o século XIX, no que respeita ao estabelecimento de modelos de arquitectura industrial, dos quais destacamos um estudo efectuado na Grã- Bretanha pelo engenheiro Opperman. Devido à crescente especialização e o desenvolvimento geral das indústrias no quadro da evolução da revolução industrial britânica, Opperman, através de uma análise de vários exemplos observados na época, estabelece uma série de modelos para diferentes edifícios industriais, tendo em conta uma melhoria do existente, dos quais destacamos um modelo que este engenheiro inglês desenvolveu para a industria de conservas de peixe em particular.
Estas fábricas caracterizavam-se essencialmente por uma visível unificação dos edifícios em grandes quarteirões fechados, marcando a passagem da primeira fase, de adopção do tipo agrícola, para uma segunda fase, com um tipo próprio, caracterizado por um espaço fechado e especializado que, pouco a pouco, irá substituindo a organização inicial da unidade industrial pela simples adição de volumes17. Uma outra característica desta arquitectura reside na tipologia das fachadas e na sua implementação em espaço urbano: será preciso não esquecer que muitas destas primeiras fábricas eram construídas em arrabaldes, faixas do litoral ou ribeirinhas limítrofes às zonas urbanas, tendo sido, aos poucos, absorvidas pela expansão do tecido urbano dos centros portuários. Simultaneamente, foram em muitos casos centros geradores desses mesmos novos espaço urbanos, onde, por vezes, a tipicidade toponímica de «rua da fábrica» é suficientemente esclarecedora.

1.2. Características espaciais e funcionamento geral das fábricas da “primeira geração”

O edifício era projectado em extensão sempre que possível, procurando ocupar, a maior parte das vezes, quarteirões inteiros, constituindo-se geralmente de um só piso na zona de fabrico, destacando-se um volume de dois a três pisos na zona de escritórios, de forma a ser facilmente identificável. Estas características são comuns à maior parte dos edifícios conserveiros construídos, nesta primeira fase da indústria, pelo país todo no início do Século XX.

Deste modo é possível estabelecer uma síntese tipológica das fábricas desta primeira geração:

1) um edifício projectado em extensão, ocupando por vezes quarteirões inteiros, quando integrado no tecido urbano;

2) um espaço fechado ao exterior, dividido por funções, com um pátio em comunicação e articulação das várias secções, integrando por vezes um cais de desembarque, quando a fábrica se encontrava à beira-mar ou à beira-rio;

3) uma zona de fabrico, geralmente não excedendo um piso de altura, e uma zona de administração com dois a três pisos facilmente identificável, surgindo integrada, na maior parte das vezes, no mesmo edifício, mas procurando quase sempre destacar-se pela sua expressão formal, no exterior e/ou no interior;

4) um sistema construtivo composto geralmente por paredes auto-portantes em alvenaria de pedra, tijolo, ou de argamassas diversas; um travejamento dos pisos em madeira, assim como pilares, também em madeira, quando fosse necessário vencer um vão;

5) a proximidade do edificado junto a uma linha de água, exterior ou subterrânea, permitindo o fácil escoamento dos detritos;

6) a inclusão, por vezes, de uma linha-férrea, com ligação directa aos ramais de distribuição.

17 Tal não significa que este modelo fabril (organizado em torno de um edifício principal caracterizado por um espaço fechado ao exterior), não tenha sido sujeito a ampliações diversas ao longo do tempo, o que se explica facilmente pela expansão comercial desta indústria emergente das primeiras décadas do século XX.

Fig. 1 – Fábrica de conservas Feu y Hermanos, Portimão, 1902; planta geral. Secção de vazio, secção de fabrico, armazéns de cheio e cais de desembarque (Arquivo do Centro de Documentação e Informação da C.M. de Portimão).

16 Reconvertida, desde 2008, no actual Museu de Portimão.

Fig. 2 – Fábrica de conservas Feu y Hermanos, Portimão, 1902. alçado da secção de vazio, secção de fabrico e armazéns de cheio (Arquivo do Centro de Documentação e Informação da C.M. de Portimão).

2. EM BUSCA DA MODERNIDADE

2.1. Evolução do sistema de produção de fábrica de conservas de peixe: o caso da fábrica de Matosinhos da Algarve Exportador Limitada (1938)

O sistema de produção de uma conserveira variou ao logo do tempo. Caracterizou-se, num primeiro momento, por uma produção em série inteiramente manual, onde o fabrico da lata era efectuado manualmente por soldadores, como classe operária distinta, demarcando-se do operariado conserveiro, exclusivamente composto por mulheres, e distinguindo-se também no espaço físico, por possuir uma unidade de solda integrada na unidade de fabrico ou noutro edifício em anexo (a secção de «vazio»18). Isto, nas grandes fábricas, sendo que, nas mais modestas, a lata era comprada a terceiros e, nesses casos, o ofício da solda afirmava-se como actividade independente da conserveira e constituía-se então como uma indústria mono produtora própria19.

As sucessivas invenções, decorrentes de uma crescente acentuação dos processos mecanizados, vieram contribuir para um cada vez mais rigoroso sistema de fabrico em cadeia e em série, com o qual se tornará mais fácil introduzir maquinaria cada vez mais especializada. Por exemplo, o processo de azeitamento, que tradicionalmente era realizado, de forma manual, numa tina (como é o caso, ainda hoje, da Pinhais, em Matosinhos), passa a ser efectuado, a partir dos Anos 40, por máquinas automáticas (as azeitadeiras). Outro, ainda, é o caso do fecho da lata, tradicionalmente efectuado pelos soldadores com recurso ao chumbo, (e que mais tarde veio a ser abandonado devido ao seu carácter tóxico), tendo sido totalmente substituído pelas cravadeiras automáticas, como no caso da Fábrica de Matosinhos da Algarve Exportador Limitada, e assim por diante, etc.

Nota Histórico-Artistica
Conjunto arquitectónico constituido pelas fábricas “Algarve Exportador” e “Rainha do Sado”
“O conjunto dos dois edifícios preenche o quarteirão definido pelas ruas de Roberto Ivens (ex. Dr. Alves da Veiga), Heróis de França (ex. João Chagas) e a Avenida da República. O edifício da fábrica de conservas Algarve Exportador foi inaugurado a 5 de Outubro de 1939, tendo sido apresentado o seu projecto em 31 de Março de 1939, tendo sido apresentado o seu projecto em 31 de Março de 1938, segundo consta no Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos. O edifício da Fábrica de conservas Rainha do Sado data de 1941. Ambas as obras são marcos importantes na historia da arquitectura portuguesa. Quanto à Algarve Exportador,a sua concepção ultrapassa a importância que já por si teria como património da arqueologia industrial, significando então, aqui em Matosinhos, a tipologia de fábrica de conservas com as repetidas três naves e o pequeno espaço de escritórios, o pátio de acesso de pessoal, com os cais para carga e descarga distribuindo as diversas dependências da fábrica e anexos para o pessoal. (…) é momento obrigatório de reflexão para o estudo do modernismo na arte em Portugal. Obra do Arquitecto António Varela que representou para a arquitectura moderna em Portugal a geração funcionalista em conjunto com Adelino Nunes, Keil do Amaral, Couto Martins, Arménio Losa, Januário Godinho, José Porto, Viana de Lima e outros. A obra pode ser referida na continuidade de experiências de renovação da linguagem arquitectónica tais como a Garagem do Comércio do Porto (1929) de Rogério de Azevedo, ou a 2lota” de Massarelos (ou Bolsa do Peixe) E Manuel e Januário Godinho (meados dos anos 30). Quanto à Rainha do Sado, é obra assinada pelo engenheiro civil Alfredo Daniel.(…) No entanto, pelo diálogo que estabelece com o espaço urbano e com a preexistência que lhe é imediata (a Algarve Exportador já estava construída quando da sua concepção), a compreensão que faz do espaço da rua na composição dos alçados e na resolução do ângulo agudo formado pelas ruas Heróis de França e Roberto Ivens, dão-lhe importância integradora, formando com o edifício com o edifício da Algarve Exportador um conjunto unitário (…)” In Memória Descritiva que acompanhou o pedido de classificação (o qual originou o processo nº 85/3(96)

18 Apelidava-se de «secção de vazio», porque decorria do facto de, nesse determinado espaço, a lata ainda se apresentar vazia.

19 Muito embora dependente das flutuações do mercado conserveiro.

Fig. 3 – Quarteirão da Fábrica nº6 da AEL / Rainha do Sado, Matosinhos. Vista para sul, no cruzamento da Avenida da República com a Rua Heróis de França (fotografia de Hugo Fernandes 1999)

Muito embora se deva ter em conta as inúmeras variações dos sistemas ao longo do tempo, é contudo possível apresentar o esquema de produção típico de uma fábrica de conservas de peixe em lata, pelo que se apresenta uma breve síntese do sistema de base (quadro 1).

Quadro 1 – Esquema de funcionamento de uma conserveira: a fábrica recebe, a montante, a lata vazia vinda da secção de vazio, assim com o peixe conservado em sal (I.); na secção de fabrico (II.), procede-se em primeiro lugar ao descabeço e limpeza do peixe, sendo este de seguida lavado (1), passando à cozedura (2) e ao seu enlatamento nas latas recebidas da secção de vazio (3), sendo a operação efectuada pelas operárias nas várias bancadas; passa para a secção de azeitamento (4), sendo aqui o processo manual ou mecânico (executado pelas azeitadeiras); a lata é de seguida fechada nas cravadeiras (5), seguindo para a esterilização, efectuada por processo de autoclaves (6), sendo de seguida lavada (7), donde segue finalmente para o armazém de cheio, a jusante (III), onde se procede à verifição de cada lata (8), antes do seu embalamento (9) e armazenamento (10). [Note-se que este esquema se irá manter no caso da fábrica de Matosinhos de António Varela, assim como noutros projectos de sua autoria: a fábrica da Afurada e a remodelação da unidade de Lagos da AEL].

Fig. 4 – Làzaro Lózano – publicidade da AEL, in revista Conservas, Anos 40.

Fig. 5 – António Varela, Fábrica nº6 da AEL, perspectiva, 1938, in A Arquitectura Portuguesa e Cerâmicas e Edificação / Reunidas, nº 40 (Julho de 1938).

Fig. 6 – AEL: organização do espaço interno da fábrica segundo o projecto original de António Varela (Arquivo da CM Matosinhos – esquematização do autor ): verifica-se em planta a funcionalidade do sistema em cadeia que progride de forma linear, e de modo semelhante ao esquema apresentado no Quadro 1 (I: Secção de Vazio; II: Secção de Fabrico; III: Secção de Cheio) : a numeração representada corresponde à numeração da memória descritiva de António Varela: (1) gerência e acesso à habitação do encarregado; (2) secção de fabrico; (3) armazém de cheio; (4) armazém de vazio e depósito de sal; (5) entrada de serviço; (6) garagem; (7) depósito de água em elevação; (8) creche, vestiário, refeitórios e balneários; (9) habitação do encarregado; (10) galeria na secção de fabrico. Em termos funcionais, é ainda possível observar a localização do núcleo constituído pela casa das caldeiras/motor/autoclaves, depósito de guano,chaminé, casa do azeite, oficina, garagem, pátio e armazém para instituto (fiscalização).

Estes melhoramentos também contribuíram para um progressivo restauro e alguma remodelação das fábricas da primeira geração, que por vezes chegam até aos nossos dias com evidentes indícios de diferentes momentos construtivos, assim como a nível do funcionamento interno e das aplicações de elementos mais recentes.

É ainda possível considerar, de algum modo, que se a primeira geração «produziu latas», a segunda terá «produzido fábricas»… Esta imagem, apresentada por Jorge Custódio 20, poderá servir para distinguir os dois tempos na história da indústria conserveira: um primeiro tempo em que se apostou na quantidade, face a uma crescente exportação, e um segundo tempo em que se acentuou a qualidade, não só do produto, mas também no aperfeiçoamento das unidades fabris, o que passou obrigatoriamente por uma reflexão tipológica ao nível da arquitectura.

A primeira geração, que situamos entre 1880 e as primeiras décadas de novecentos, caracterizou-se por uma predominância de produção da região centro (os centros portuários de Lisboa, Setúbal, Sines, Peniche, Nazaré) e da região sul do país (Lagos, Portimão, Olhão e Vila Real de Santo António), enquanto que a partir de meados da década de trinta começou-se a estabelecer uma clara hegemonia na região norte, em parte devido ao aumento de escassez dos bancos sardinha nas costas mais a sul.

Este novo dinamismo centrou-se em Matosinhos e foi assegurado pelo porto de Leixões, primeiro porto de pesca do país. A cidade de Matosinhos passa então a ser considerada, a partir de 1937, como o principal centro de uma indústria com uma característica maioritariamente exportadora, no limiar da Segunda Guerra Mundial21 (o que explica a aposta da AEL no norte).

Postal ilustrado de 1949, editado pela papelaria e tipografia Regional, por altura das festas do Senhor de Matosinhos.

Fig. 7 – António Varela, Fábrica de conservas Algarve Exportador Limitada – alçado norte (reconstituição do autor com base no original – arquivo da C.M. de Matosinhos, 1938, AEL, desenho nº4). A nascente, o corpo da administração e a habitação do gerente, no piso superior; a poente, a secção de vazio, com acesso ao terraço destinado à secagem do peixe e a sua torre de observação sobre o mar e o porto de Leixões; ao centro, a extensa secção de fabrico, com cinquenta metros de comprimento e a grande clarabóia na cobertura. Note-se uma métrica de dez módulos intercalados por pilastras e a retícula janelar em betão armado que integrava o sistema de caixilharia oscilante destinada à ventilação. 

2.2. O modelo teórico do atelier ARS arquitectos (1946)

No crescente esforço de racionalização de meios através da busca de uma arquitectura que se queria cada vez mais funcional e do qual a fábrica de Matosinhos da Algarve Exportador Limitada surge como resposta pioneira, seria interessante referir um artigo publicado na revista Conservas de Peixe em 1946, (fig.8) como proposta de um modelo teórico de fábrica de conservas vinculada ao esforço de automatização e ao funcionamento em cadeia22 23.

Citam os autores, seguidamente, toda uma série de equipamentos industriais inovadores, “maquinismos com que já estão equipadas algumas fábricas modernas” 24, assim como a questão da higiene das instalações, “hoje objecto de louvável preocupação dos modernos industriais” 25.

20 Segundo depoimentos ao autor.
21 Cordeiro, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p. 48.

22 Referimos «publicado» no que diz respeito, especificamente, ao artigo. No que respeita à elaboração do modelo teórico pelo atelier ARS (constituído por Fortunato Cabral, Morais Soares e Fernando Cunha Leão, autores, entre outras obras modernas, do Mercado do Bom Sucesso, Porto, 1949-1952), não nos foi possível apurar a data exacta de sua concepção: parece, e apenas isso, que terá sido elaborado já no período do pós-guerra e com o propósito expresso de publicação na imprensa, pelo que se depreende do tom geral do artigo.

23 In Uma fábrica de conservas moderna, artigo do atelier ARS Arquitectos, Conservas de peixe, 1946. 24 Idem, ibidem.
25 Id., ibid.

Seria importante notar que, em 1946, já era possível confirmar a existência de outras unidades fabris com estas mesmas características modernas, que considerámos como a segunda geração de fábricas conserveiras, inaugurada em 1939 com a Fábrica de Matosinhos da Algarve Exportador Limitada, da autoria do arquitecto modernista António Varela (1903-1962). Deste grupo, é possível destacar a Fábrica de Benito Garcia (1943), na Afurada, também do mesmo autor, e a Fábrica Dias Araújo e C.a, projectada por Januário Godinho (1910-1990), em Matosinhos, já no pós-guerra, entre outras, como estabelecimento e plena afirmação de um tipo que terá sido ainda pioneiro com o exemplo da fábrica da AEL, no fim da década de Trinta. De facto, tornam-se patentes no discurso de 1946 do ARS Arquitectos, certos princípios de ordem característicos do Movimento Moderno, e que já tinham sido anteriormente postos em prática por António Varela no projecto da fábrica da AEL, sete anos antes:

Trata-se de cerrar o trabalho das condições normais da natureza, de Sol, espaço e limpeza, como meio natural que preside à longa e minuciosa formação do ser humano. Só assim se conseguem transformar radicalmente as condições de trabalho, dando conforto e uma certa alegria a esta parte mais longa e mais dura da vida. A todos estes factores, ideias e regras tem de se atender na elaboração dum projecto para uma fábrica de conservas moderna para rasgar novos horizontes à produção desprezando os usos rotineiros. De acordo com estes princípios se elaborou o desenho que a gravura representa, que como se verifica, não tem a pretensão de ser um projecto, mas sim um esquema estrictamente funcional da parte mais importante de uma Moderna Fábrica de Conservas. À roda desta zona gravitam todas as secções subsidiárias que não vale a pena enumerar por serem do conhecimento geral. Adoptá-lo é uma questão de ética, uma decisão do espírito, a aceitação de um ponto de vista. Os meios estão todos ao alcance e à disposição de quem queira elaborar o plano. 26

CONCLUSÃO

Num quadro histórico alargado, relembramos que no que respeita a evolução do modernismo na arquitectura portuguesa, foi indubitavelmente a década de Trinta o tempo do surgimento das novas oportunidades. O Estado Novo começou lentamente a tomar forma e a sua edificação, inseparável do pensamento político de Salazar, realizou-se com a criação da União Nacional, em 1932, com a Constituição, o Estatuto do Trabalho Nacional e os Sindicatos Nacionais, em 1933, o que permitiu, nesta fase primordial, o relançar da economia e da indústria27. Nesta década de Trinta, onde grande parte dos arquitectos da nova geração moderna ainda «acreditou» numa possível reforma geral da arquitectura feita através da aplicação de princípios modernos, internacionais, pela relativa liberdade geral com que alguns arquitectos ainda exerceram a sua arte e a sua investigação, antes do retrocesso geral dos «duros Anos Quarenta»28. Esta arquitectura passou, mais tarde, já nesta década, para uma «arquitectura de resistência», devido à inevitável e consequente cristalização do regime 29.

José Manuel Fernandes, no Inventário do DO.CO.MO.MO Ibérico Arquitectura e Movimento Moderno, comentando essa passagem do tempo da primeira geração do modernismo português, refere:

(…) um tempo inicial, entre 1920 e 1930, necessariamente experimental, [de quando nos] ficam preciosidades, obras com linguagens díspares, espaços e formas radical ou moderadamente modernizantes. Da década turbulenta dos anos 40, são testemunho projectos que tentam denodadamente «romper» a pesada cortina política, nacionalista e autoritária que impregnava os dois estados ibéricos – é o começo e a glória de uma arquitectura de resistência. 30

Neste contexto, a Fábrica de Matosinhos da Algarve Exportador Limitada situa- se no interstício destes dois tempos, sendo, em essência, um exemplo de um período de transição. E se é verdade que esta unidade integrava uma raiz modernista e funcionalista – tendo sido, a seu tempo, como referimos, e no meio em que se implementou, um projecto «radicalmente inovador» –, parecia revelar – mesmo através das suas ruínas, – o valor e a complexidade de um «estilo português de arquitectura modernista». (fig. 3,7,9,10).

“Luz, Ar e Claridade”…tal era o lema de Walter Gropius por altura da Deustscher Werkbund, e mais tarde, na Bauhaus dos Anos 20. À luz destes princípios modernistas, podemos hoje em dia afirmar, com alguma certeza, que o valor arquitectónico, urbanístico e histórico-social desta fábrica são inigualáveis no panorama de toda a arquitectura conserveira portuguesa. O que se seguiu, nos Anos 50/60 do século passado, foi uma lenta e progressiva decadência deste outrora grande sector industrial – por falta de competitividade para com os mercados estrangeiros, e que coincidiu, na sua arquitectura, com a implementação, mais ou menos estereotipada, de modelos técnico-funcionalistas, mais ou menos adaptados, ao longo do território nacional, sendo que as poucas e últimas unidades fabris a laborarem em Portugal carecem de qualidade arquitectónica, implantação urbana, qualidade construtiva, etc., em suma, daquilo que caracterizou o seu “período áureo”, mais parecendo, outra vez, os oitocentistas “largos telheiros industriais” mas, agora, em “chapa ondulada”…

26 Id., ibid.

27 Cf. Portela, Artur, Salazarismo e Artes Plásticas, Biblioteca Breve/Volume 68, ed. Instituto da Cultura e da Língua Portuguesa, Divisão de Publicações, Lisboa, 1982, pp. 76-77 [1aed. 1987].

28 Idem, ibidem. Veja-se ainda a este respeito França, J.-A., Terceira Parte – os Anos 40 e 50, in A Arte em Portugal no século XX, Bertrand Editora, 3a edição, Lisboa, 1991 [1aed. 1974].

29 Idem, ibidem.

30 Fernandes, José Manuel, Apresentação do DO.CO.M.MO Ibérico, in Arquitectura do Movimento Moderno – 1925-1965 – Inventário do DO.CO.MO.MO Ibérico, ed. DO.CO.MO.MO Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, 1998, p. 6.

A evolução e o declínio da arquitectura das fábricas de conservas de peixe é um espelho da história de um sector que marcou, mais do que a indústria portuguesa, a vida de gerações de milhares de trabalhadores em torno da dignificação laboral, num tecido social que lentamente se foi desagregando, podendo afirmar-se que, actualmente – e salvo raras excepções de algumas fábricas que mantêm laboração – “o período de defeso veio para ficar”.

Resta o espaço de memória, o legado, ou ainda, se quisermos, a herança – segundo heritage 31, termo sáxonico ontologicamente distinto de património –, mas isso, como diria Kipling, é outra história.

E só para terminar:
Diz-nos o texto de apresentação destes encontros:

Como Michel Perrot faz notar, ao contrário do que acontecia nos países ocidentais mais desenvolvidos, como a Alemanha ou os Estados Unidos, onde a consciência de classe é forjada na grande fábrica moderna, nos países de industrialização tardia a autonomia da vila ou do bairro popular providenciaram o cadinho necessário à reprodução de já tradicionais solidariedades de classe.

Ora a lição – ou a “herança”, se quisermos – que nos fica, e que podemos tirar do exemplo único, no panorama nacional, da Fábrica de Matosinhos da AEL, é a de que aí, e talvez só aí, a consciência da classe operária conserveira tenha sido forjada na grande fábrica moderna (tal como nos “países ocidentais mais desenvolvidos” – a crermos na afirmação de Michel Perrot). O que é raro no panorama português. É o que nos fica, através de depoimentos únicos entre todos aqueles que apurámos dentro do tecido social operário conserveiro a nível nacional: “Não havia nenhuma igual”, e outros comentários emocionados, testemunharam-nos o profundo sentido de pertença destas trabalhadoras para com a sua antiga fábrica.

Fig. 9 – AEL, interior da secção de fabrico, vista sobrelevada a partir da açoteia (foto de 1938). Note-se o sistema de asnas treliçadas em ferro, permitindo o vencimento de um grande vão de 26 metros de envergadura sem apoios intermédios. Á direita: as chaminés dos autoclaves; à esquerda: a fachada para a avenida da República e a retícula janelar de betão armado que integrava o sistema de caxilharia oscilante destinada à ventilação; em cima: a grande clarabóia; ao fundo, as janelas e o acesso da administração.
In Conservas de peixe, periódico, s/nº, 1946 (Arquivo do Gabinete de Arqueologia da C.M. de Matosinhos).

Fig. 10 – AEL, interior da secção de fabrico, vista sobre elevada a partir da açoteia (fotografia do autor 1999)

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