Atentado a Almeida Carvalho (31 de agosto de 1855)
Attack on Almeida Carvalho (August 31, 1855)
Albérico Afonso Costa – IPS/ESESET; IHC/FCSH.
Carlos Mouro – Investigador de História Local.
Original language: Portuguese
Pages (from-to): 199-212
Number of pages: 13
Journal: MUSA museus, arqueologia & outros patrimónios
Issue: number 6
Publication status: Published – 2018
Event: Encontro sobre Arqueologia Urbana e História Local: Homenagem ao Historiador e Arqueólogo João Carlos de Almeida Carvalho (1817-1897 – http://maeds.amrs.pt/, Setúbal, Portugal
Duration: 8 Sep 2017 → 9 Sep 2017
RESUMO
Na noite de 31 de agosto de 1855, quando se dirigia a sua casa, foi o jornalista João Carlos de Almeida Carvalho cobardemente apunhalado, na Rua da Praia (hoje Av. Luísa Todi). O atentado deu brado na imprensa, de norte a sul do País. A condenação foi unânime, sendo que a maioria dos mais importantes jornais da época interpretaria o crime como uma tentativa de condicionar a liberdade de imprensa, um crime de natureza política e politicamente utilizado como meio de criticar o Governo da época.
ABSTRACT
In the evening of the 31st August 1855, when he was going home, the journalist João Carlos de Almeida Carvalho was cowardly stabbed in Praia Street (nowadays Luísa Todi Avenue). The attack echoed in the press from the north to the south of the country. The condemnation was unanimous, and the majority of the most important newspapers of the time would interpret the crime as an attempt to condition the press freedom, a crime of political nature and politically used as a means to criticise the government of that time.
Para contextualização do atentado à vida de João Carlos de Almeida Carvalho (1817-1897), ocorrido em Setúbal ao início da noite 31 de agosto de 1855, uma sexta-feira, importa que remontemos a 1851, o ano em que um golpe político e militar chefiado pelo marechal-duque de Saldanha (1790-1876) inaugurou um novo período da governação constitucional, genericamente designado por “Regeneração”. A 22 de maio constituiu-se um novo executivo presidido por aquele militar e no qual colaboraram as figuras prestigiadas de Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858) e de António Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887). Chegava assim ao País a estabilidade política consubstanciada no rotativismo e abriu-se um período de implementação de um muito significativo conjunto de reformas políticas, administrativas e económicas que se traduziriam num clima de paz e de progresso. Foi o tempo de introdução do caminho-de-ferro, de construção de estradas, de um surto industrializante – a Regeneração foi, no dizer de Oliveira Martins (1845-1894), o “nome português do Capitalismo”.
Por certo como reflexo, já, dos novos tempos, em 1855 – o ano da aclamação de D. Pedro V – realizou-se a Exposição Industrial do Porto e puderam os produtores nacionais participar na muito concorrida Exposição Universal de Paris.
1855: ANO DE VIRAGEM NA HISTÓRIA DE SETÚBAL
Setúbal acolheu o movimento promovido por Saldanha com honras, mesmo, de visita do próprio Duque. A vila dava sinais de querer erguer-se da letargia em que se encontrava: foi extinta a velha Roda do Sal (2-8-51), abriu-se um Liceu Municipal Setubalense (nov.) e estabeleceram-se outras aulas de primeiras letras, pensava-se na ligação ferroviária ao norte da península…
Verdadeiramente, os novos ventos que sopravam chegam a Setúbal em 1855. Este foi, na verdade, um ano de viragem na história sadina. Vejamos:
Foi em 1855 que o concelho de Setúbal se viu ampliado pela anexação dos territórios de Palmela e de Azeitão, antigos municípios (Dec.º 24 de outubro), e que o engenheiro inglês John Rennie (1794-1874) elaborou os primeiros estudos sobre as obras do porto de Setúbal, prenunciando o que viria a ser, décadas volvidas, uma das mais movimentadas portas de mar de Portugal.
Foi em 1855 que os industriais setubalenses Feliciano António da Rocha (?-1889) e Manuel José Neto (1820-1896) fundaram as primeiras unidades conserveiras locais, das quais saíam “ géneros alimentícios que consistiam em diferentes qualidades de peixe e, principalmente, sardinha em conserva de azeite, dentro de caixas de lata hermeticamente fechadas” (ADSTB, APAC, 18/1: 12).
Assim, tornou-se a então vila (cidade após 1861) pioneira da introdução em Portugal dos novos métodos de conservação, baseados nas descobertas do francês Nicolas Appert (1749-1841). Em França, aliás, e no preciso ano de 1855, veria F. A. da Rocha reconhecida a qualidade das conservas apresentadas à Exposição Universal de Paris, ao obter uma menção honrosa (Afonso & Mouro, 1988). Eram as primícias da indústria conserveira local, que seria, após o impulso estruturador que empreendedores gauleses lhe proporcionaram (1880), a atividade definidora da economia local. Diga-se, ainda, que naquele certame foram premiados outros industriais e produtores de Setúbal, nomeadamente Manuel Luís de Sousa (sal) e João Pedro Martins (vinho moscatel).
Foi igualmente em 1855 que os vapores da carreira Lisboa – Londres, neste ano iniciada, passaram a servir, também, o porto de Setúbal.
A outro nível, nesse ano-charneira foi fundado o ainda activo Club Setubalense, agremiação que reunia a sociedade de bom-tom sadina, enquanto que essas mesmas elites participavam, de modo muito empenhado, na imprensa e nas múltiplas agremiações de cultura e recreio que iam nascendo. Significativo se revelaria, dobrado o meio da centúria, o surto de grupos, grandes ou pequenos, mais ou menos efémeros, que reuniam os amadores das artes de Talma e de Euterpe (Mouro & Pena, 2011).
Após profundas remodelações reabriu o Teatro Bocage, antiga casa de espectáculos setubalense criada, em 1834, por três operários locais: Cândido Xavier da Silva, pintor; Manuel Duarte da Silva, carpinteiro; Joaquim Alberto Solho, pedreiro. A renovada sala abriu com uma peça apresentada pela companhia do Teatro Ginásio, de Lisboa.
Ainda nesse longínquo ano a vila de Setúbal assustou-se com os possíveis efeitos da cólera que grassava em algumas localidades.
1855: ANO DE VIRAGEM NA VIDA DE ALMEIDA CARVALHO
Também para a biografia de J. C. de Almeida Carvalho o ano de 1855 se revelou de particular significado. Em alguns aspectos, aliás, os sucessos particulares de vida cruzaram-se com a biografia do lugar que lhe fora berço.
Porém, há que acrescentar que a 22 de fevereiro, em Lisboa, morreu-lhe a mãe – Ana Rita de Almeida e Silva Carvalho. De como viveu tão singular momento dão conta, nas já referidas memórias, breves palavras desencantadas: “Minha mãe, que desde alguns anos sofria de uma grave enfermidade, falecia em Lisboa, na madrugada do dia 22 de fevereiro daquele ano de 1855, na Rua dos Douradores, n.º 11, 3.º, freguesia de S. Nicolau. Só me deixou o que a Lei lhe proibia tirar-me” (ADSTB/PSS/APAC/L/0010).
Logo após, a 9 de Maio, recebeu o Alvará que o autorizava a advogar, cumprindo assim, ao fim de anos de autodidatismo, um desejo nunca concretizado – o de ver-se advogado: “No dia seguinte o Dr. Teles da Silva entregava-me o atestado mais honroso e lisonjeiro para mim, datado de 27 de janeiro de 1855, e em seguida requeria ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça pedindo licença para advogar nos auditórios das comarcas de Setúbal, Almada, Aldeia Galega e Alcácer do Sal, visto que as três últimas confinavam com a primeira, que era aquela em que queria advogar, mas que casos haveria em que fosse necessário entrar nas limítrofes.
“Obtidas as informações favoráveis dos respectivos juízes de Direito, e examinado perante o juízo de Direito da Comarca de Almada, foi-me concedido o Alvará para poder advogar nas referidas comarcas, datado de 9 de maio de 1855 e firmado pelo conselheiro presidente do Supremo Tribunal, José da Silva Carvalho” (ADSTB/PSS/APAC/L/0010).
A 17 de Junho foi inaugurada a Associação Setubalense das Classes Laboriosas, a primeira associação mutualista local. Almeida Carvalho registou o sucedido: “A exemplo do que já então se havia praticado em Lisboa e Porto e ainda em algumas outras cidades, lembrara eu a conveniência de em Setúbal se estabelecer aquela Associação e de feito auxiliado por alguns cavalheiros (…), resolvemos fundar a mesma Associação, que foi inaugurada no dia 17 de Junho daquele ano.
No dia 28 de outubro era apresentado pela mesa o projeto de Estatutos que, sendo submetido à discussão e aprovado, subiu à sansão do Governo, foi aprovado por Decreto de 28 de abril e Alvará de 15 de maio, e apresentado assim à assembleia geral em 10 de agosto do referido ano [1855] ” (ADSTB/PSS/APAC/L/0010). Pelo que lemos no primeiro número d’O Setubalense (Set), em artigo não assinado, ainda que saído, sem dúvida, da pena de Almeida Carvalho, ali “representantes do trabalho querem pela associação honrar o trabalho, origem da riqueza e prosperidade de todas as Nações, querem por meio dos socorros mútuos levar a independência às classes laboriosas, e nobilitá-las pela instrução que nivela todas as classes e torna iguais todos os homens perante a sociedade” (Set, 1-7-1855: 2).
No mês seguinte, a 11, saiu dos prelos da Rua do Romeu o primeiro número do semanário O Setubalense.
Sirvamo-nos, uma vez mais, das palavras do seu redator principal: “Continuava eu estudando, sempre estudando e escrevendo diversos artigos em diferentes jornais, principalmente no A Revolução de Setembro.
Mas como me achava envolvido na política militante do partido denominado Regenerador, eu e alguns amigos resolvemos fundar em Setúbal um periódico, de que fui principal redator e responsável. Estabeleceu-se a tipografia, que comprámos, e saiu o primeiro número do periódico O Setubalense no 1.º de julho de 1855” (ADSTB/PSS/APAC/L/0010).
A partir desse ano, e devido também à tenacidade de Almeida Carvalho, a Regeneração foi chegando a Setúbal. De facto, na vila pôde ler-se o primeiro periódico local, foi possível participar em inéditas manifestações culturais e cívicas, introduziu-se seriedade no órgão de gestão municipal, facto a que a ação de Almeida Carvalho não foi estranha, também – nomeadamente pelas críticas veiculadas n’O Setubalense –, dando cumprimento a um ambicioso programa que assinara em “Editorial” do pioneiro número do “seu” hebdomadário:
“Coloquem-se portanto à frente da administração municipal homens inteligentes e enérgicos, honestos e independentes, homens que acreditem no presente e tenham fé no futuro, porque uma das causas principais dos males da nossa Terra é essa desgraçada tendência que há, com mágoa o dizemos, para colocarmos só e exclusivamente à testa da nossa administração homens cuja única garantia que nos dão é o peso dos anos que os faz arrenegar do presente e desesperar do futuro, porque só vivem do passado!” (Set, 1-7-1855:1-2).
Prometia Almeida Carvalho a crítica desassombrada à atuação dos poderes localmente instituídos… Nas suas palavras adivinhava-se um desenlace dramático…
O ATENTADO
Os factos ocorridos ao início da noite de 31 de agosto de 1855 contam-se em poucas palavras. Almeida Carvalho, então com 38 anos, saíra da tipografia do semanário que fundara – O Setubalense – e cujo primeiro número fora para as bancas a 1 de julho de 1855.
Assim, saindo da Rua do Romeu – ainda existente –, cruzou a Praça do Sapal – após 1865 conhecida pelo nome do poeta sadino Bocage – e dirigiu-se à Rua da Praia – depois denominada Av. Todi (1895) e Av. Luísa Todi (1932) – a caminho de casa, ao início daquela artéria, no palacete que ainda hoje torneja para a Travessa da Porta do Sol. Ao passar frente aos atuais edifícios da Caixa Geral de Depósitos e da Biblioteca Pública Municipal foi violentamente apunhalado.
O próprio rememoraria o sucedido, num texto memorialístico que nos legou, cujos originais estão hoje à guarda do Arquivo Distrital de Setúbal (ADSTB): “… pelas nove e meia horas da noite de 31 de agosto de 1855, na Rua da Praia, entre os edifícios do Hospital e da Alfândega, e próximo da guarda militar desta casa fiscal, quando eu passava pacificamente e sem cuidados, recolhendo da imprensa para minha casa, fui aleivosa e cobardemente agredido por dois assassinos, um dos quais me cravou o punhal no peito” (ADSTB/PSS/APAC/L/0010).
É ainda o agredido quem nos esclarece, em nota às já referidas memórias, a natureza do ferimento sofrido: “O ferro penetrou próximo ao estômago, uns 15 centímetros acima do umbigo, e a ferida foi profunda”(ADSTB/PSS/APAC/L/0010).
O atentado seria noticiado pel’O Setubalense, na edição de 2 de setembro, numa brevíssima e muito apressada nota perdida no canto inferior direito da última página (a 4.ª): “Srs. redatores de todos os periódicos! Pelas 9 horas e meia da noite de 31 de agosto foi cobardemente acometido o nosso colega e responsável por dois homens de jaqueta, os quais lhe deram uma facada, de que se acha gravemente enfermo!!!” (Set, 2-9-1855: 4).
A gravidade do caso levou à publicação de um “Suplemento ao n.º 10 d’O Setubalense”, datado de 3 de setembro, ao qual nos referiremos. Desde já convém sublinhar alguns dos pormenores, na esteira do que fizeram os responsáveis do periódico: o atentado tivera lugar “… na praia, no lugar mais frequentado desta vila…”; fora praticado por “…dois homens que o precediam (…) desde o Largo do Sapal, fingindo-se um deles embriagado…”; “… acudiram várias pessoas, mas nem um soldado da Alfândega, nem um agente de segurança pública…”; “… a Autoridade Administrativa e o Regedor só tiveram conhecimento do facto na manhã seguinte…”.
Enfim: o ferido encontrava-se em perigo de vida!
Fig. 1 – Primeira notícia sobre o atentado que Almeida Carvalho sofrera (O Setubalense, 2-9-1855: 4).
Fig. 2 – Suplemento ao N.º 10 do Setubalense (3-9-1855), com uma mais desenvolvida nota sobre o atentado de 31 de agosto.
CRIME POLÍTICO?
Como já referimos, 3 dias depois do atentado à vida de Almeida Carvalho O Setubalense [Set] editou uma página especial – Suplemento ao N.º 10 do Setubalense – datada de 3 de setembro, enunciando a dúvida: teria o crime conhecido motivações políticas ou tratar-se-ia de um simples ato de banditismo?
“Seria o crime premeditado e posto em execução contra o particular honesto e inofensivo, que a todos acolhia com bondade, ou contra o escritor público, reto e inteligente, determinado a contribuir para o melhoramento do nosso município, reprimindo o abuso dos mandões, e opondo-se a qualquer conluio de compadres que vexasse os habitantes desta terra?” (Suplemento ao N.º 10 do Setubalense, 3-9-1855).
Apesar de a dúvida ser formulada, a pergunta é quase retórica. E a partir dos números seguintes, perante a passividade das investigações, é assumido claramente pelo jornal que o crime teve motivações exclusivamente políticas.
O Administrador do Concelho – Severiano Silvestre Lapa – e o Presidente da Câmara – Agostinho Rodrigues Albino – passam a ser apontados, mais ou menos explicitamente, como os mandantes do atentado, querendo suprimir uma voz extremamente incómoda para a sua governação.
“Dois assassinos atacam um homem perto da guarda da Alfândega, dão-lhe uma punhalada, este homem pede socorro, e nenhum soldado lhe acode, nem persegue os malfeitores! Que providências foram dadas acerca de tão insólito e inqualificável comportamento? “Nenhuma que nós saibamos. Que significa isto? “Que o sr. Administrador ou não soube, ou não quis exercer devidamente o seu cargo” (S, 16-9-1855).
Há que relembrar que O Setubalense havia aparecido há menos de dois meses e que, apesar de se assumir como um apoiante do regime, elegera como escopo principal a luta contra a governação local e contra o representante do governo Regenerador.
Por sua vez, a imprensa nacional, sem exceções, denunciará o atentado como um crime político contra a liberdade de imprensa.
VAGA DE INDIGNAÇÃO NACIONAL CONDENANDO O ATENTADO
A tentativa de assassinato de Almeida Carvalho esteve longe de ser um assunto estritamente local.
A notícia de que o redator principal do jornal O Setubalense tinha sido alvo de um atentado vai ter repercussão ao nível do País. Não só a imprensa de Lisboa e Porto, como também jornais de várias outras localidades vão noticiar o crime. Sem exceção, as notícias que se reportam ao atentado solidarizam-se com a vítima e denunciam-no como uma ação criminosa contra a liberdade de opinião escrita.
A imprensa nacional não se limitará a noticiar o delito como mais um acontecimento trivial ocorrido numa disputa entre protagonistas numa vila de província. Pelo contrário, esta ação contra a vida de Almeida Carvalho será objeto de análise e de comentário político durante mais de dois meses.
Sem exagero, podemos mesmo afirmar que o atentado provocou uma vaga de indignação condenando o ato criminoso e exigindo ação contra os mandantes do crime. Identificamos 20 jornais que se reportaram ao atentado, sendo que alguns deles trarão várias vezes este tema para as suas páginas, dando-lhe grande destaque.
Todos os principais jornais existentes em Lisboa, naquele ano, se reportam aos acontecimentos ocorridos em Setúbal: O Português [P], A Imprensa e a Lei [IL], Nação [N], O Progresso [Pr], A Revolução de Setembro [RS]. Também o diário da ‘cidade invicta’ O Porto e a Carta [PC], em vários números, dará grande destaque ao atentado perpetrado em Almeida Carvalho.
Por vezes merecerá a honra de primeira página e até de inflamados editoriais. A evolução do estado de saúde de Almeida Carvalho será igualmente alvo da atenção da imprensa.
POSIÇÕES DA IMPRENSA NACIONAL EM FUNÇÃO DAS SUAS OPÇÕES POLÍTICAS
A análise dos acontecimentos ocorridos em Setúbal foi, em grande parte, determinada pelo posicionamento político dos vários periódicos.
Podemos identificar três posições distintas:
1. Há um primeiro grupo de jornais que noticia o atentado partindo das informações que são veiculadas pel’O Setubalense. Relata os pormenores do ato contra a vida de Almeida Carvalho, descrevendo-o como um ato indigno contra a liberdade de imprensa e contra a integridade da vida humana. Clama por justiça para que não se possam repetir acontecimentos semelhantes no futuro.
É o caso do Conimbricense [C]: “ É mais um grande atentado cometido pelos inimigos da liberdade. Os sicários a quem o jornalismo vai acordar no meio das suas orgias, patenteando-lhes os crimes, procuram ver se por este meio lhe podem fazer calar a voz” (C, 8-9-1855).
Para O Campeão do Vouga [CV] o caso era “muito grave” e exigia a “mais séria intervenção do ministro do reino” (CV, 8-9-1855). Considerava, ainda, que Setúbal vivia uma situação de “anormalidade democrática” (CV, 29-9-1855).
Para outros, a hora era a de intervenção da Justiça e clamam pela intervenção do Governo “para que não fique pela impunidade autorizado um terrível precedente” exigindo, ainda, as “mais enérgicas e rigorosas providências para que sejam descobertos e castigados os autores de tão atroz atentado” (BT, 7-9-1855).
2. Imprensa adversária do Governo. É principalmente entre esta que se verifica uma maior veemência na condenação da ação contra o fundador e redator principal d’O Setubalense. A quase totalidade das folhas oposicionistas, particularmente as que apoiam a anterior governação de Costa Cabral, está na primeira linha deste combate político.
Para o jornal A Nação o facto de a opinião pública se pronunciar de uma forma unânime contra o atentado impõe a ação do Governo contra os criminosos. Este jornal vai servir-se da ironia para evidenciar o seu ponto de vista: “Não queremos que o ministro do reino consulte as entranhas das vítimas para adivinhar os crimes públicos, mas recomendamos providência policial, vigilância e severo castigo para os facínoras. “Se a vida do escritor público estiver à mercê do punhal dos assassinos, adeus liberdade de imprensa” (N, 27-9-1855).
No início de outubro, este jornal denuncia que Severiano Silvestre Lapa, já em 1847, quando exercera funções de Administrador do Concelho de Torres Novas, fora responsável pela perseguição e derramamento de sangue de populares que se manifestavam pacificamente, para logo concluir: “Em 1855 sob a administração do mesmo Sr. Lapa, em Setúbal, passam-se idênticas cenas de sangue; e o pretexto é ainda a liberdade do pensamento, manifestado pela imprensa. Tão fatal coincidência deverá desvendar os olhos ao Sr. ministro do reino, para libertar do império do cacete, do punhal e do cinismo a nobre vila de Setúbal, digna de melhor sorte (…). Costa Cabral criou a odiosa lei das rolhas. Estará reservada para o Sr. Rodrigo [da Fonseca, Ministro do Reino] a glória da lei do punhal sobre a imprensa?” (N, 7-10-1855).
O diário lisboeta Imprensa e Lei por várias vezes se referiu ao atentado a Almeida Carvalho, acusando a governação regeneradora de não respeitar a liberdade de imprensa, de passividade e, mesmo, de proteção aos autores do crime.
Polemiza também com a Revolução de Setembro. Num primeiro momento acusa-o de silenciar o facto:
“E o silêncio do principal redator da Revolução [de Setembro] continua! Tomamos nota. A lei de rolhas do punhal não vale a pena de se discutir” (IL, 12-9-1855).
Este atentado seria a prova da insegurança que grassava no País, ao contrário do que sustentava o jornal setembrista. Acusava ainda este jornal de menosprezar a gravidade do crime contra o redator d’O Setubalense:
“Não foi salteado um rabequista na estrada; mas foi esfaqueado na vila o redator de um jornal. A liberdade regeneradora tem um triunfo e a segurança pública um atestado muito honroso. “Não admira que a Revolução ria enquanto as vítimas choram” (IL, 5-9-1855).
Este jornal da capital, reproduzindo uma notícia d’O Setubalense, dará ainda conta da afixação de cartazes a intimidar os redatores deste, o que provaria a insegurança e a falta de liberdade que se vivia em Setúbal (IL,12-9-1855).
No final de setembro, sob o título “Segurança Pública e Liberdade de Imprensa”, este diário transcreve outra notícia d’O Setubalense, na qual se dera conta de novas formas de intimidação: “Fomos informados que no dia 16 do corrente, no salão do teatro do Bocage, alguns cabos de polícia que guardavam o mesmo teatro, proferiram ameaças contra o jornal O Setubalense.
“Consta-nos também que o Administrador do Concelho de Setúbal demonstra por toda a parte a sua tolerância e o seu amor às instituições liberais, por meio da seguinte frase «Ou eu ou O Setubalense»”.
O artigo termina com um violento ataque ao Ministro do Reino, acusando-o de dar cobertura às autoridades locais, “atestando assim a sua cumplicidade com os criminosos” (IL, 27-9-1855).
Quase dois meses após o atentado, continua este a ser um tema em destaque no periódico que seguimos.
Num longo editorial sobre a violência política e a liberdade de imprensa os acontecimentos de Setúbal serão o mote para o ataque ao Governo. Escreveu-se então que o “atentado atroz contra a vida do redator do Setubalense” é o exemplo que prova que o governo da Regeneração “não tem a força nem a coragem para acabar com o terror dos sicários amimados com a impunidade” (IL, 19-10-1855).
Outro diário da capital, O Português, logo a 5 de setembro traz para a primeira página o atentado: “O recente facto acontecido em Setúbal a um dos redatores d’ O Setubalense é de uma gravidade tal, que deve despertar o governo para empregar todos os meios ao seu alcance para descobrir os autores dum tão covarde, como infame atentado”. Todo o artigo é centrado na responsabilidade do Estado e particularmente de Rodrigo da Fonseca Magalhães, em perseguir e entregar aos tribunais os responsáveis. Na sua perspetiva as autoridades teriam mais facilidade em encontrar os criminosos porque ao contrário das grandes cidades “há muito melhores meios de descobrir os autores dos crimes, porque ali todos se conhecem. Sr. Ministro do Reino! As nossas apreensões contra V. Exª. ficam formadas, se quanto antes não virmos a perseguição, e consequentemente a prisão dos criminosos, que em Setúbal atentaram contra a vida do editor do Setubalense” (P, 5-9-1855).
Poucos dias mais tarde, traz de novo o tema para a primeira página, reproduzindo um artigo do Progresso: “Em Setúbal todos sabem o nome do assassino do senhor Almeida Carvalho menos as autoridades que não querem, ou não lhes convém sabê-lo. A bem poucas léguas da capital assassinam-se indivíduos, que são nossos irmãos pela pátria, nossos colegas pela missão; e as autoridades não fazem caso, e os assassinos triunfam” (P, 16-9-1855).
É feito um apelo a todos “os jornais políticos” para que se solidarizem com esta causa, dado estar atingida a liberdade de expressão: “Até aqui o punhal do assassino não tinha procurado o seio dos jornalistas; hoje à sombra da inércia das autoridades, está dado o exemplo” (P, 16-9- 1855).
Ainda no final de setembro volta ao tema do atentado, reproduzindo a notícia d’O Setubalense sobre as já referidas ameaças de que tinha sido alvo no teatro Bocage por parte de alguns elementos da polícia.
O Bracarense [B] também se vai indignar contra o atentado a Almeida Carvalho: “É no centro de uma vila populosa e ilustrada, onde existe uma guarda de segurança, que dois ignóbeis sicários cravam o punhal em um homem de bem, que por mera dedicação exercia o mister de jornalista, pugnando pelos interesses da sua terra, e pedindo a repressão dos muitos abusos que ali eram tolerados por uma antiga indulgência, e medravam à sombra de hábitos e usanças de muitos anos”.
Critica duramente a passividade dos poderes públicos na perseguição aos responsáveis pelo atentado.
Denuncia a existência de um duplo crime: contra o cidadão e contra a liberdade de imprensa. Desafia o Governo a empenhar-se na perseguição aos mandantes do hediondo ato: “Bradamos bem alto ao governo para que mande proceder às mais rigorosas investigações, porque é de presumir que os instigadores do crime ficassem por detrás da cortina, entretanto que os seus instrumentos o perpetraram” (B, 14-9-1855). E terminava a exortar a imprensa a solidarizar-se com as vítimas das perseguições à liberdade.
Por fim, também O Porto e a Carta, jornal portuense apoiante de Costa Cabral, dá por várias vezes grande destaque ao acometimento a Almeida Carvalho, aproveitando para litigar com o governo e explicando pormenorizadamente a sua versão: “Dizem-nos que há ampla liberdade de imprensa; podem discutir à vontade os atos ministeriais, avaliem a situação como o julgarem conveniente. A Regeneração folga com isto, porque a Regeneração é eminentemente liberal. Podem escrever à vontade, porque vivem em um país em que há leis, que vigorosamente protegem os cidadãos.
“Muito bem, quanto a palavras. Vamos, porém, à sua verdade prática. “O redator do Setubalense foi acometido no meio da vila de Setúbal por dois assassinos que o esfaquearam. A voz do povo apregoou o nome dos assassinos, e a do agredido confirmou o zum-zum popular, em uma solene declaração feita diante da autoridade. “E que fez ela? “Ao princípio entrou na questão a gritar. Fez um espalhafato que parecia que queria punir a vila inteira. Mas depois cruzou os braços, protegeu os assassinos, e ultimamente por palavras e por obras declarou-se conivente com o crime” (PC, 2-10-1855).
E dirigindo-se diretamente ao Ministro do Reino, prossegue numa oratória inflamada clamando pela defesa da liberdade de expressão. Aponta a contradição entre a retórica da Regeneração a favor da liberdade de expressão e as suas ações que a contradizem. O caso de Setúbal comprovaria o desacerto entre “o dito e o feito”: “As palavras da Regeneração já não iludem; queremos factos. E os factos apontam para Setúbal, e clamam bem alto, que a liberdade de imprensa está ameaçada como nunca esteve. Por um lado, incita-se a expansão das opiniões, por outro pune-se com o punhal dos assassinos os adversários da Regeneração” (PC, 2-10-1855).
O Porto e a Carta travará, ainda, uma violentíssima polémica com O Século [Se] – efémero diário publicado em Lisboa entre 1 de abril e 30 de dezembro de 1855 – a propósito da “segurança pública”, em que a questão central da discussão é à volta da cobertura que o Governo dá às autoridades de Setúbal.
Para O Século a questão da violência política e da segurança pública têm uma natureza estrutural:
“Desenganemo-nos, não se trata de castigar um delinquente ou reprimir um atentado, trata-se de vencer os efeitos da ignorância e rudeza popular, eivados pelas discórdias de uma longa carreira de conflitos e discórdias civis. Este trabalho não é para um governo e menos para um homem só” (Se, 7-10-1855).
O jornal cartista considerava que as estatísticas provavam que o crime e a violência haviam aumentado com o Governo então em funções, apesar de a “regeneração, durante os quatro anos que tem governado, ter gozado da mais profunda paz, ao passo que o ministério Cabral, durante toda a sua existência foi agitado por convulsões populares, concitadas pelas calúnias que lhe assacaram” (PC, 12-10-1855).
Para O Século era mais uma missão civilizacional que estava em causa e não tomar medidas administrativas para afastar os protagonistas locais. Só a tolerância política podia vencer um passado histórico recente de lutas fratricidas violentas.
3. Os periódicos que apoiam o governo da Regeneração estão numa posição defensiva nesta matéria. Respondem, por um lado, às acusações proferidas contra a Regeneração; por outro, às que lhes são feitas, diretamente, pelos jornais da oposição.
De toda a imprensa que consultámos, apenas O Século, a Revolução de Setembro e o Leiriense [L] defendem abertamente o Governo.
O Século é o primeiro destes jornais a reportar-se ao incidente. Reproduz a pequena notícia d’O Setubalense, de 2 de setembro, sobre o atentando. No já referido suplemento de 3 de setembro, O Setubalense fizera um apelo à imprensa nacional para que esta se solidarizasse com o jornal e com o seu editor principal, numa altura em que este se encontrava gravemente ferido e com prognóstico reservado.
O Século, em jeito de resposta, escreve: “Não era preciso apelar para os redatores das diferentes folhas periódicas, para o governo proceder com justiça. O governo sabe o que se deve à imprensa; e se este facto não fosse alheio de outras considerações de maior monta, já por si um crime, bastava a suspeita que faz nascer de que se tenta por semelhante modo coagir ou impor à liberdade de opinião escrita, para que o governo se empenhasse na perseguição do criminoso” (Se, 5-9-1855).
Já referimos a dura polémica que O Século travou com o Porto e a Carta, num artigo de primeira página, a 7 de outubro e no qual considerava que a questão da segurança pública era uma questão que só se poderia compreender pelo atraso do País e independente da boa vontade, da energia e zelo de um ministro.
Para O Século as acusações formuladas pela oposição são absurdas, até porque grande parte das autoridades administrativas tinha sido nomeada por Costa Cabral.
O próprio Administrador do Concelho de Setúbal estava nesta situação. Para este periódico o Governo tinha sido sempre tolerante para com os seus adversários políticos:
“É daí que parte um dos maiores princípios da sua força. Não demitiu nem perdeu ninguém por opiniões políticas e fez bem. As autoridades foram conservadas e os empregos garantidos” (Se, 7-10-1855).
O Século ainda no mês de outubro critica o jornal A Imprensa e a Lei por este censurar e culpar o Governo de não dar importância às acusações dos jornais oposicionistas sobre a atuação e a responsabilidade das autoridades locais. O ponto de vista d’O Século é a falta de provas apresentadas para incriminar o Administrador do Concelho de Setúbal (Se, 20-10-1855).
O Século irá ainda argumentar que nestas matérias não pode o Governo “guiar-se pelas reclamações das folhas da oposição”. Na sua perspetiva, a oposição não se move pelos “desejos do bem público, mas unicamente pelos estímulos de antipatias pessoais ou conveniências de partido” (Se, 20-10-1855).
Nos inícios de novembro, mais de dois meses após o atentado, O Século indigna-se, ainda, e rejeita as acusações do diário O Português: “Onde viu o Português que esta folha não supusesse digno de atenção o atentado cometido traiçoeira e cobardemente contra o redator do Setubalense? O Século foi dos primeiros jornais – e parece-nos que ainda primeiro que o Português – que protestou contra o meio atroz com que se julgava calar a imprensa, atentando contra um dos seus representantes.
E fê-lo porque viu nesse facto razões de uma causa comum que não podem ser indiferentes a membro algum do jornalismo, porque o que há pouco se deu com O Setubalense pode-se amanhã dar connosco ou com outro qualquer jornal.
“Não vemos, portanto, fundamento para o Português nos dizer que não supusemos digno de atenção o atentado cometido contra o redator d’O Setubalense” (Se, 8-11-1855).
Reitera, ainda, a ideia de que os jornais da oposição continuam a acusar o Administrador do Concelho de Setúbal de ser instigador ou conivente com o atentado, mas não apresentam qualquer prova desta culpa.
Recordemos que o jornal A Revolução de Setembro, nos primeiros dias após o atentado, denunciara-o como um ataque à liberdade de expressão e apelara ao castigo dos responsáveis (RS, 6-9-1855). As posteriores notícias serão marcadas pela polémica com outras publicações.
Já nos referimos à que estabeleceu com a Imprensa e Lei. Travará também uma dura discussão com A Nação, a propósito do Administrador do Concelho de Setúbal.
“A Nação quando vê um miguelista empregado pela Regeneração, como o é o Administrador do Concelho de Setúbal, que foi empregado também do Cabralismo, chama-lhe escória de todos os partidos” (RS, 6-10-1855).
O artigo, assinado pelo diretor António Rodrigues Sampaio, é todo escrito em tom jocoso e reporta-se a outras nomeações do Governo para cargos na administração: “Nós julgávamos que a Nação podia ser mais justa para com os seus próprios correligionários, e que não lhe ficava mal reconhecer esse ato de tolerância de justiça do governo liberal. Se, porém, ela se amofina pelo bem que se faz aos seus, não se esganice pela exclusão de que alguns ainda são vítimas” (RS, 6-10-1855).
Por último, O Leiriense não regateia a solidariedade ao Setubalense, mas esclarece que “não espera que nós acusemos o governo pelo crime cometido por um malvado”. Conclui a pedir a ação do poder judicial a favor da imprensa periódica do país que tinha sido “ferida cobardemente em um dos seus membros” (L, 12-9-1855).
Fig. 3 – O periódico Imprensa e Lei, de feição cabralista, conservador moderado, entrou decididamente na polémica.
Fig. 5 – Primeira página da edição de 2 de outubro de 1855 de O Porto e a Carta, um periódico cartista moderado, a propósito do atentado a Almeida Carvalho.
Fig. 4 – O Bracarense, um dos mais influentes periódicos do Norte, empenhado com a Regeneração, dedicou especial atenção aos acontecimentos de Setúbal.
OS AUTORES DO CRIME
Como vimos, os autores materiais do atentado a João Carlos de Almeida Carvalho lograram escapulir-se do local do crime, a coberto da noite e beneficiando, por certo, da complexa rede urbana da zona onde a ação fora praticada, em pleno centro histórico de Setúbal.
Ainda assim, ecoaram pelos cantos da vila, saídos de muitas bocas, os nomes dos presumíveis implicados; em algumas mãos circularam folhas-volantes nas quais se apontavam as culpas a familiares (ou a muito próximos) da influente família Albino. Mais: o próprio testemunho da vítima – ainda que vago, impreciso – apontou no mesmo sentido.
Doze horas após o crime, o Administrador do Concelho visitou o convalescente Almeida Carvalho. Retirou-se. “Voltando pouco depois perguntou ao sr. Almeida Carvalho se tinha conhecido os malfeitores que o haviam acometido, ao que ele respondeu que não podia designar pessoa alguma com certeza, mas que vira dois homens, um alto e outro mais baixo e grosso, o qual, encobrindo a cara lhe dera uma facada, e que este se parecia na figura com o sr. António Albino” (Set, 9-9-1855: 2).
Posteriormente – continuamos a seguir o relato d’O Setubalense, na edição de 9 de setembro – “Na manhã do dia 6 do corrente apareceram afixados em vários sítios desta Vila pasquins feitos na metade superior de cartas de enterro, nos quais se pedia um Padre Nosso e uma Ave-Maria por alma do Fiador do Responsável do Setubalense.
“A polícia também não apanhou nenhum dos indivíduos que se ocuparam em os afixar! “Não nos amedrontam estas e outras que tais ameaças; presumimos pouco mais ou menos donde elas vêm; mas fiquem certos de que os bicos da nossa pena se não cortam com a ponta do punhal”.
Na edição seguinte – a n.º 12 – O Setubalense deu conta aos fiéis leitores de que “na madrugada do dia 12 do corrente apareceram nesta vila pasquins concebidos nos seguintes termos, cuja ortografia conservamos.
“Habitantes desta vila podem ficar na certeza quem foi os assassinos de João Carlos de Almeida foi António Albino e António Macimo digo isto por que os conheci”. “Se o autor do pasquim (que pode ter sido feito por estratégia) conheceu os assassinos, como afirma, melhor seria que, em vez de se servir deste meio sempre vil e que nada prova, fosse fazer as suas declarações perante a Autoridade competente” (Set, 16-9-1855: 2).
Não foi possível conhecer o(s) autor(es) destas anónimas denúncias. Teriam elas sua origem em qualquer oculta “estratégia”, para seguirmos a suspeita lançada pelo próprio semanário que citamos? Emanariam elas do núcleo próximo de Almeida Carvalho, pretendendo dessa forma formular acusações impossíveis de fundar em provas concretas? Estas e outras perguntas terão que ficar sem resposta.
Pouco importa hoje, aliás, apurar os nomes dos autores do atentado à vida do setubalense Almeida Carvalho.
O que importa é notar que o Presidente da Câmara – Agostinho Rodrigues Albino –, e o Administrador do Concelho – Severiano Silvestre Lapa – passaram a ser apontados, mais ou menos explicitamente, como os mandantes do crime, os autores morais do atentado que visava calar (ou, no mínimo, intimidar) uma voz extremamente incómoda para a sua governação, a voz d’O Setubalense que, recorde-se, era novidade na vila do Sado há menos de dois meses. Como vimos, com o possível pormenor, a imprensa nacional, sem exceções, vai denunciar o atentado como um crime político contra a liberdade de imprensa.
Agostinho Rodrigues Albino (1822?-1903) era um rico proprietário, comerciante e agente do antigo monopólio do tabaco. Possuía grande influência eleitoral em Setúbal. A sua atuação enquanto presidente do município sadino mereceu acesas críticas por parte d’O Setubalense, que o acusava de “desfrutar o município como quem usufrutua uma prebenda”, promovendo a “compadrice na gerência dos negócios públicos” (Set, 30-9-1855: 1).
Também Severiano Silvestre Lapa foi sempre muito criticado no periódico que Almeida Carvalho redigia, nomeadamente pela sua postura enquanto Administrador do Concelho. Era acusado de ligações ao “miguelismo” e fora administrador, no tempo de Costa Cabral. Em 1847, quando exercia funções semelhantes em Torres Novas, vira-se envolvido em cena de sangue, ao reprimir protestos de trabalhadores, como já sublinhámos. Localmente, a respetiva ação era negativamente avaliada por garantir cobertura a todos os desmandos praticados na gerência municipal.
Com acusações deste quilate “às costas” não admira que o Popular, na edição de 7 de outubro, ao identificar Severiano Silvestre Lapa como irmão do visconde de Vila Nova de Ourém – o militar José Joaquim Januário Lapa (1796-1859), que exerceu cargos ministeriais e as funções de Governador da Índia – logo acrescentasse, em jeito de lamento e referindo-se ao Administrador de Setúbal: “diferente em tudo deste, e que envergonha com seus atos este honrado visconde”.
SÍNTESE CONCLUSIVA
Como vimos, o atentado de 31 de agosto de 1855 à vida de João Carlos de Almeida Carvalho deu brado na imprensa. Podemos afirmar que, de norte a sul do País, não houve periódico que não noticiasse e lamentasse aquele despropositado ato, acompanhando os desenvolvimentos do caso, e que não verberasse os responsáveis do mesmo. A condenação foi unânime, sendo que a maioria das mais importantes folhas da época interpretaria o crime de Setúbal como uma tentativa de condicionar a liberdade de imprensa, cortando- lhe a voz com a “lei do punhal”.
Para os jornais da oposição não restavam dúvidas: o atentado a Almeida Carvalho fora um crime de natureza política! Vão, assim, politizar ao máximo o sucedido, utilizando-o como uma arma de arremesso contra o Governo regenerador. O Ministro do Reino, Rodrigo da Fonseca, foi apresentado como cúmplice dos criminosos, pela má condução do processo de identificação, captura e castigo dos autores materiais do despropósito.
O representante do Ministério, em Setúbal – Severiano Silvestre Lapa –, seria também acusado de proteger os criminosos. Lapa é identificado como antigo miguelista e apoiante de Costa Cabral e denunciado como responsável pela repressão violenta de manifestações populares, quando ocupara igual cargo no concelho de Torres Novas. Para O Setubalense e para a imprensa oposicionista este currículo legitimava as acusações feitas: em Setúbal aquele responsável apenas continuava as suas velhas práticas, servindo-se dos mesmos métodos. Lapa era, ainda, conivente com os desmandos cometidos na administração municipal local, dominada pela figura influente de Agostinho Maria Albino.
Enfim, ao cabo de dias e dias retido no leito, Almeida Carvalho recuperou. Logo assinou n’O Setubalense um longo artigo no qual, “com a mão ainda trémula”, agradeceu as “esmeradas considerações” que de todos recebera, nomeadamente da parte da imprensa que apelida de “baluarte inexpugnável da liberdade”.
Acrescenta: “À imprensa periódica de todas as cores e de todos os partidos, a quem reitero o meu reconhecimento, suplico que não desampare a defesa da minha causa que é a de toda a imprensa; e ao Governo peço garantias, que não temos, às nossas vidas; segurança, que não vemos, às nossas pessoas; e que nos livre de autoridades faciosas nossas encarniçadas inimigas, que pelos seus vergonhosos factos e vociferações contra nós, são um seguro apoio aos perversos que nos ameaçam e aos celerados que nos ferem, confiando já na impunidade do seu crime” (Set, 14-10-1855: 1 -2).
Na sequência da pressão exercida pela imprensa, a nível nacional, denunciando o envolvimento dos poderes locais no crime perpetrado contra Almeida Carvalho ocorrerão localmente significativas mudança políticas. A pressão junto do Governo não fora em vão.
O tão criticado Administrador do Concelho seria arredado do cargo que exercia. Para o seu lugar entraria Pedro Joyce, transferido de S. Tiago do Cacém, onde exercera igual função (Set, 2-12-1855).
Ainda medidas administrativas tomadas pelo poder regenerador viriam confirmar a necessidade de mudança ao nível local. De facto, a breve trecho seriam os territórios dos concelhos de Azeitão e de Palmela integrados no de Setúbal, pelo Decreto de 24 de outubro. Inevitavelmente, logo “foram dissolvidas as Câmaras dos antigos Concelhos (…) e nomeada uma Comissão para o novo Concelho de Setúbal, que foi composta de quatro vereadores da dissolvida Câmara de Setúbal, dos Presidentes das extintas de Palmela e de Azeitão, e do Sr. Manuel José Vieira Novais, proprietário e residente nesta vila” (Set, 9-12-1855). O elenco municipal foi, assim, mudado.
Desta investigação não resultam ainda claras as razões de tamanho conflito entre Almeida Carvalho (e o grupo que o acompanha) e os poderes locais; ou seja, da luta entre elementos que se integram no seio da família regeneradora. O Governo era regenerador; o elenco municipal setubalense era regenerador; o Administrador do Concelho representava localmente e fora nomeado por um Ministério do Reino regenerador. Por seu turno, Almeida Carvalho, já afeito às lides jornalísticas n’A Revolução de Setembro, ao fundar O Setubalense, assume-se claramente como regenerador. Escreveu ele nas sua Memórias: “Mas como me achava envolvido na política militante do partido denominado Regenerador, eu e alguns amigos resolvemos fundar em Setúbal um periódico, de que fui principal redator e responsável”.
A única razão que pode ajudar-nos a compreender esta tão encarniçada luta encontramo-la na sensibilidade social de Almeida Carvalho a qual teve tradução plena no projeto de criação da primeira estrutura mutualista local – a Associação Setubalense das Classes Laboriosas – inaugurada no preciso ano de 1855 e, aliás, noticiada logo no primeiro número do jornal que fundara. De resto, esta sensibilidade social de Almeida Carvalho seria atestada, poucos anos depois, aquando da sua eleição como procurador à Junta Geral do Distrito de Setúbal, como representante dos concelhos de Setúbal e Alcochete (1860), onde defendeu de forma inédita, os interesses dos mais desfavorecidos:
“Eu tinha advogado os interesses da pobre classe pescadora, com quem queriam continuar a especular”. Este posicionamento confrontava-o inevitavelmente com as elites oligárquicas que utilizavam os poderes que ocupavam em seu próprio benefício.
A virulência desta litigância é também compreensível no quadro de uma “guerra civil intermitente” que assolou o País durante a primeira metade do século XIX.
Fig. 7 – O Setubalense, na edição de 16 de setembro de 1855 denuncia o aparecimento de pasquins anónimos identificando presumíveis autores materiais do atentado.
Fig. 6 – O Leiriense, na edição de 12 de setembro, também respondeu ao apelo do congénere sadino. Escreveu-se: “Aquele jornal apela para a imprensa do país. Somos um dos membros da imprensa. Acudimos ao brado. Aqui estamos”!
FONTES
Jornais que referem o atentado:
Bracarense, O [B] – Braga (1855-1870)
Braz Tisana, O [BT] – Porto, (1851-1869)
Campeão do Vouga, O [CV] – Aveiro, (1852-1859)
Conimbricense, O [C] – Coimbra (1854- )
Imprensa e Lei [IL] – Lisboa (1853-1856)
Leiriense, O [L] – Leiria (1854-1868)
Nação, A [N] – Lisboa (1847-1928)
Popular, O [Pop] – Coimbra (1854-1856)
Porto e a Carta, O [PC] – Porto (1850?-1860)
Português, O [P] – Lisboa (1853-1866)
Progresso, O [Pr] – Lisboa (1854-1856)
Revolução de Setembro, A [RS] – Lisboa (1840-1901)
Século, O [Se] – Lisboa (1-4 a 30-12-1855)
Setubalense, O [Set] – Setúbal (1855-1857)
Arquivo Distrital de Setúbal (ADSTB):
APAC, 18/1: 12
PSS/APAC/L/0010
BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL
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Costa, A. A. (2011) – História e Cronologia de Setúbal. 1248-1926. Setúbal: Estuário/IPS-ESSE.
Carvalho, A. (1968) – Acontecimentos, lendas e tradições da região setubalense. Memórias do autor. Setúbal: Junta Distrital de Setúbal.
Jesus, F. Henriques de (1955) – Subsídios para a história do jornalismo setubalense. Setúbal.
Mouro, C.; Pena, H. (2011) – Para a história do Club Setubalense (1855-2010). Setúbal: Club Setubalense.
Mouro, C. (2001) – O Teatro Bocage. O Setubalense, 25 de Julho e 29 de Agosto (Página do Centro de Estudos Bocageanos).
(S.A.) (1984) – ( A) Imprensa em Setúbal. 1855-1983. Setúbal: Câmara Municipal de Setúbal/Associação dos eleitos comunistas e outros democratas/Biblioteca Municipal de Setúbal.
Santos, M. de Lurdes L. dos (1983) – Para uma sociologia da cultura burguesa em Portugal no século XIX. Lisboa: Editorial Presença/Instituto de Ciências Sociais.