2015 - Artigo "O mar e as pescas do passado" no livro Recordando o Passado de Clímaco Ferreira da Cunha

TÍTULO: Recordando o Passado

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AUTOR: Clímaco Ferreira da Cunha

DATA EDIÇÃO: 2015

EDIÇÃO: 4ª ed. – [S.l. : s.n.], 2015 (Horta : O Telégrapho). – 310 p. : il. ; 21 cm

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O MAR E AS PESCAS NO PASSADO

Desde a descoberta das nossas ilhas “Açores”, que os nossos antepassados dependeram muito do mar, S. Jorge e consequentemente na nossa Calheta também assim aconteceu. Por não haver estradas, muito cedo se começaram a movimentar de lugar para lugar e no entretanto para as outras ilhas em barcos pequenos e simples, à vela ou a remos, (a pão de milho como era hábito dizer) que os nossos artesãos fabricavam o melhor que podiam.
Sem esse primitivo meio de transporte para pessoas e bens, não teria sido possível o desenvolvimento das nossas ilhas, dado que as ligações terrestres entre lugares e freguesias só aparecem depois de séculos da nossa colonização.

A pesca foi uma das indústrias primitivas da humanidade, existente desde as épocas mais remotas. Começou e ser exercida no nosso meio no princípio da colonização, tanto mais que, conforme testemunho de antigos cronistas o peixe abundava nos nossos mares à volta de todas as nossas ilhas.
Assim “Gaspar Frutuoso”, referindo-se à pesca em S. Jorge diz: — «a nossa gente ter ficado vários anos sem ter anzóis, mas que o peixe era tanto que amarravam um prego dobrado a uma linha e esta a uma vara de “ginga” por ainda não haver canas, usando uma isca grande de carne e assim matavam todo o peixe que queriam. Às vezes até o apanhavam com as mãos quando andavam na borda da água. Na altura era apanhado no calhau por ainda não terem barcos».
No, entretanto, foram fabricando os barcos que evoluíram com o tempo, criaram os mais variados aparelhos de pesca, como o anzol, o bicheiro, (nome popular bocheiro) a camaroeiro, o inchalavar, a rede do chicharro, a rede de emalhar, a rede de cerco, a tarrafa, a grozeira, o pregueiro, a corrica, o arpão, a lança, a tenaz, o caniço, o cofre, a vara, a linha, os arames, os fios de nylon, a canastra e a tina para iscas vivas, etc. Mais tarde os gigues, e tantos outros cada vez mais sofisticados.
Temos que considerar que a vida do mar quer em transportes ou pesca sempre foi muito dura e seriamente perigosa, tendo no nosso meio, e não só, ceifado muitas vidas, o que muito lamentamos, hoje apoiados nas novas tecnologias conseguem saber tudo em relação às pescas e sobre o tempo. No entanto esse perigo sempre existe e existirá, embora sem qualquer comparação com esse passado.

Viajar há sessenta ou setenta anos atrás, não era o mesmo que nos dias de hoje. O sentido e significado das palavras não têm a mesma força que actualmente. O simples voto de Boa Viagem, que hoje se tornou banal em qualquer despedida, para uma viagem de duas ou três horas apenas, perdeu o significado que lhe era atribuído nesses tempos. Os navios fundeavam ao largo dos portos, o desembarque de passageiros era efectuado por lanchas motorizadas, a que chamávamos de “gasolinas”, e que rebocavam barcaças e lanchões que transportavam a carga de bordo para terra, e no regresso levavam a carga que a ilha exportava.

No tocante às pescas os nossos antepassados aproveitaram e trataram peles de “gatas do mar” para lixas (a palavra lixa provém do nome científico deste peixe “Dalatias licha”) também se dizia que eram exportadas essas peles para fabrico de coletes à prova de bala. Fizeram azeite de fígados de albafar, toucinhos de toninha, das gatas e outros, que foram utilizados para iluminação, lubrificação, untar ferramentas e até para temperar o aço.
Tivemos na segunda metade do século passado a apanha de algas (agar-agar) para exportação que foi na época uma boa fonte de rendimento. 

Sabe-se, portanto, que o mar sempre foi uma imensa seara do Criador, fornecendo peixes variados, mariscos, crustáceos e moluscos, que muito bem os souberam e sabem aproveitar. Foi nas pescas que a nossas gentes encontraram essa abundante fonte de alimento, inesgotável durante séculos, além de que não é necessário estrumar, adubar ou alimentar para que daí se tire o maior proveito.

Parte dos peixes eram apanhados de “pedra” em pesqueiros, os peixes do fundo nas suas “marcas”, e também os peixes ditos “de cima de água”. Foram então aprendendo com o tempo os melhores sítios, melhor época do ano e até melhor hora para a apanha de cada espécie, utilizando aparelhos, engodos e iscas diversas, adaptados a cada tipo de captura.

No, entretanto, foram aprendendo a cozinhá-lo pelas mais variadas formas tais como, assado, cozido, frito, caldeirada, caldo de peixe, etc., até aos pratos mais sofisticados, estudando e descobrindo assim cada espécie para que tipo de cozinhado mais se prestava e presta. 

Como nem sempre era possível pescar sobretudo no inverno e na época não existir rede de frio, estudaram e descobriram as formas de o conservar, começando por salgá-lo e de seguida secá-lo, em cima das pedras, sendo os de maior porte escalados.

Havia quem o secava sobre palha de tremoço ou gravetos e até pendurado em cordas, tipo linhas de estender roupa, para assim com o arejamento fazer uma secagem mais uniforme e o peixe não azeitar. Também o faziam de dois sais em sal moura, acondicionado em utensílios de barro ou barricas, e fumado depois de salgado pendurado no fumeiro e assim tinham características e paladares diferentes. As espécies que melhor se prestavam para seca, eram o chicharro, a cavala, a serra, o bonito, a bicuda, o dourado, o congro, a veja, etc.

Fez-se sobretudo nos fins do século XIX princípios do século XX, exportação de peixe seco para a Madeira, Continente e até para a Alemanha, este era escalado com a cabeça caso contrário perdia valor, sendo acondicionado em caixas de madeira, colocando entre cada peça casca de milho, palha de trigo ou de centeio, para evitar o grau de humidade, ou então em barricas pela forma de sal moura.

Assim se manteve até que na primeira metade do século passado chegou até nós o sistema de enlatado em conserva para aqueles que se prestavam para tal fim, assim como o bonito, a albacora, o patudo, o rabilo e o voador, um passo de gigante quer para nosso uso ou para exportação até para o estrangeiro, como ainda hoje acontece.

Assim no princípio da década de quarenta do século passado aparece na Calheta a fábrica de conservas de peixe “Santo Cristo”, pertença de Américo Antunes, que funcionou em sistema rudimentar e artesanal num barracão ainda existente abaixo das instalações da Polícia Segurança Pública.

Tínhamos da Calheta as traineiras, Jorgense, Santa Sofia e Ana Isabel. De S. Miguel a Santo Espedito e a Carlos Norberto esta apelidada de “burra preta”, que pescavam para a mencionada fábrica Santo Cristo.

Nos finais dessa década surge a fábrica “Marie de Anjou”, de Eduardo Quintelha, do Algarve, que anos depois a vendeu a Jean Sountier, da Suíça, que lhe deu o nome de “Marie de Anjou” uma famosa bailarina de Paris de quem era fã. Em 1961 vendeu a fábrica a uma sociedade Jorgense bem nossa conhecida, constituída por Nuno Álvares de Mendonça, o irmão Wagner de Mendonça e o Eng.º José Maria Melo, laborou desde essa data até 1971. Hoje encontra-se em ruínas ao fundo da baia da nossa Vila, triste imagem da nossa bela Calheta. Esta tinha duas traineiras, a Ponta do Topo e Ponta dos Rosais. Em 1950 foi construída a “Sociedade Corretora”, hoje fábrica “Santa Catarina” na Fajã Grande, fundada a partir do alvará da de “Santo Cristo” no entretanto desaparecida.

Da Calheta na altura tivemos as traineiras Calhetense e Ilha de S. Jorge de Domingos Cunha, Regina Maria de Dr. Fernando Cunha e S. Judas Tadeu de Manuel Luís Gonzaga. Hoje temos a Mestre Afonso propriedade da fábrica Santa Catarina.
Vinham também traineiras de outras paragens descarregar e vender o seu pescado a estas duas fábricas.

Era tal a quantidade de “tunídeos” que as primeiras traineiras carregavam até ao limite, dando origem às fábricas trabalharem na época noite e dia, transportando e dando trabalho a pessoas de toda a ilha. Dado não haver ainda rede de frio o peixe tinha que ser preparado rapidamente.

Tivemos a caça à baleia em época áurea, tendo tido grande interesse em S. Jorge, nas Velas e no Topo, mas onde a Calheta não aparece nesta safra.

No entanto tivemos fundada em mil oitocentos oitenta e cinco a segunda maior empresa de pesca de bacalhau, em dimensão e anos de actividade, sediada primeiro na Figueira da Foz e depois em Lisboa, foi pertença de empresários da nossa Vila, o grupo Mariano & Irmãos, e que constou de quatro navios, Júlia I, Júlia II, Júlia III e Júlia IV, parte capitaneados e com marinheiros de S. Jorge.

Ainda no século passado dependíamos muito do peixe para a nossa alimentação, dado haver abundância e assim ser um produto na altura relativamente barato em relação à carne, ao queijo ou outro qualquer “conduto”.
Tomemos como exemplo, os barcos que iam à “marca” das cavalas ou do chicharro.

Vinham por vezes carregados até ao limite, as cavalas eram vendidas à dúzia e ao cento e o chicharro à “lata” (era medido por latas de vinte litros) e que as pessoas compravam ou trocavam por milho, sendo esse para secar para uso durante o inverno.

O peixe era dividido por soldadas ou quinhões, pelos marinheiros, mestre, aparelhos, barco e até havia um quinhão para o Santo Padroeiro.

Havia os “peixeiros ou nabiças” que compravam o peixe aos pescadores para o ir vender para o campo. Quantidades que carregavam às costas em dois grandes cestos, ou num burro com dois caixotes grandes, um de cada lado do dorso do animal, chegando por vezes a irem vendê-lo até ao Norte Grande, Loural e até à Caldeira de Santo Cristo.

Quem não conheceu, o “Manuel Peixeiro” a levá-lo as costas, o “Chico da Glória” numa mula manca e tantos e tantos mais, que rengo, rengo, com a pesada carga e o peso dos anos lá iam apregoando “peixe fresco”. No entretanto outros iam de furgoneta vendê-lo para os Nortes e Topo. O chicharro na venda porta a porta era vendido à dúzia, ao prato, ou ao cento.

As outras espécies eram vendidas a olho, parte desse pescado era trocado por milho, batatas, feijão, ovos e até galinhas.

Hoje sabemos que o peixe escasseia, razão forte para que tenha atingido preços tão elevados, chegando a título de exemplo, um quilo de chicharro que era o chamado “peixe dos pobres”, custar mais que o mesmo peso de carne, ou dois quilos de cherne mais que uma arroba (15 kg) de carne de vaca, um quilo de lapas o valor de três horas de trabalho de um trabalhador rural.

Mesmo assim com estes preços, é difícil conseguir peixe apanhado no nosso porto, desconheço a razão porque hoje não se apanha chicharro e cavala nas nossas “marcas”, sendo que quase todo o peixe que aparece à venda vem de outras paragens.

Sabemos ter hoje dos melhores peixes do mundo, dado as nossas águas ainda estarem pouco poluídas. Com essa qualidade aliada à grande diversidade que temos, os nossos restaurantes apresentam no seu “menu” pratos de produtos do mar que dá gosto saborear e aconselhar aos nossos visitantes, turistas e forasteiros.

Ainda temos a nossa bela amêijoa, ex libris da lagoa da Caldeira de Santo Cristo.
Por ser um alimento bastante saudável e de agradável sabor, esperamos que continue a existir variedades piscícolas em quantidade suficiente para abastecer as nossas cozinhas e a nossa restauração para o bem de todos, pescadores, intermediários e consumidores presentes e futuros.         
                                             

Clímaco Ferreira / Calheta S. Jorge, Ano 2010

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