O SESIMBRENSE 25 DE JULHO DE 2012 - A Fábrica Francesa

Edifícios com história (VII)

João Augusto Aldeia

Foi em Março de 1904 que a empresa francesa Ouzille & Companhia adquiriu a maioria dos terrenos onde viria a construir a sua fábrica de conservas. Tratava-se da   nascente do ribeiro de Entre-Hortas, actualmente coberto pela rua Amélia Frade, encosta que tinha o nome de Horta do Calvário.

Os principais proprietários deste terreno eram José Marques Antunes e sua mulher Sofia Amélia, que o tinham herdado do pai de Sofia, Jerónimo Francisco Perneco. Os quase 2.500 m2 de terreno foram aforados aos franceses, por cem mil reis. Mas existiam algumas pequenas parcelas onde tinham sido construídas habitações, respectivamente por Jerónimo Neto e Joaquim Pedro Pitorra, que também foram adquiridas pelos franceses.

Toda a operação financeira passou pela casa bancária de José Henrique Totta: o futuro Banco Totta.

As habitações referidas foram demolidas e, por causa desta grande operação, desapareceu uma artéria ali existente e que tinha a designação de rua Cardoso.

Por essa mesma altura, a fábrica de conservas da Companhia Nacional, ensaiava, com bons resultados, as primeiras máquinas de soldar instaladas na vila.

As obras na Horta do Calvário começaram quase de imediato, e com tal rapidez que a imprensa noticiava, a 25 de Maio, que “a construção da nova fábrica de conservas prossegue com grande actividade, devendo muito em breve estar pronta para a laboração”, e, em 11 de Julho, que o edifício se encontrava pronto ( jornal A Vanguarda).

Quando, em 1906, se fizeram os estudos para o abastecimento de água a Sesimbra, foi feita uma estimativa para o consumo das três fabricas de conservas então existentes, que foi a seguinte:

Ouzille: 6 mil litros

Garrec: 5 mil litros

Nacional: 4 mil litros,

mostrando que a Ouzille era, então, a maior fábrica conserveira da vila (a fábrica Nacional fora destruída pelo fogo em 1902, tendo sido apenas parcialmente reconstruída).

Em 1906 deu-se um conflito entre a fábrica e a Câmara, relacionado com as obras de cobertura do ribeiro de Entre-Hortas. A câmara anterior, de orientação Regeneradora, fizera um acordo com a empresa conserveira, para que fosse ela a executar parte das obras de cobertura do referido ribeiro. Mas em 1906 era presidente da Câmara, António Peixoto Correia, do partido Nacionalista, que não aceitou o acordo estabelecido com a Câmara anterior. Numa carta enviada a Câmara em Dezembro de 1906, a empresa ameaçava “reclamar pelas vias diplomáticas”.

A Ouzille, que também possuía fábricas de conservas em Setúbal e Portimão, vendeu todas estas unidades a empresa Arsene Saupiquet, em 1912.

Com a diminuição da quantidade de peixe na costa portuguesa, as grandes fábricas foram encerrando, resistindo apenas pequenas fabriquetas que tinham sido investimentos de pessoas de Sesimbra – frequentemente, antigos soldadores. Os lucros excepcionais da 2ª Guerra Mundial ainda permitiram que duas destas fábricas – a Primorosa e a Belavista – tivessem investido em novos edifícios e maquinaria, mas também elas acabariam por fechar.

0 excepcional edifício de 3 naves da fábrica Ouizille, ainda hoje existente, teve depois outras utilizações. Foi ali que esteve o arraial da armação Greta, que pertencera a empresa Soares & Pólvora, mas era então de Ramada Curto. Grande parte da companha era constituída por algarvios, que ali costumavam cantar e dançar de roda, alçando a perna (e o pé descalço), ao som de toadas com esta:

Já não sou Maria Rosa

Já não sou Rosa Maria

Boa perna e boa meia

Faz a perna luzidia

Faz a perna luzidia

Bonita, bela e airosa

Já não sou Rosa Maria

Já não sou Maria Rosa

A seguir ao 25 de Abril, quando se fizeram obras de remodelação no mercado municipal, a praia das frutas e do peixe funcionou neste mesmo edifício: ver foto nesta página.

Finalmente, uma parte das instalações tem servido, até aos nosso dias, para lojas de companhas de pesca: Zé Leste, Céu de Glória, Estrela de Sesimbra e Emiliano – mas tendo as duas primeiras encerrado recentemente.

Fábricas francesas em Sesimbra

A unidade fabril construída pela firma Ouzille & Companhia não foi a primeira “fábrica francesa” de Sesimbra: na zona a beira mar, que também era conhecida como “Calvano”, e onde depois esteve a fábrica da Companhia Nacional de Conservas – existiu outro investimento de franceses, duma Societe Brestoise; não se conhecem muitos pormenores sobre esta fábrica, e é provável que tenha sido absorvida pela CNC.

Mas houve outros investimentos de conserveiros franceses em Sesimbra: já referimos no Sesimbrense, quando escrevemos sobre o actual edifício do Mercado, que o conserveiro francês Leon Delpeut esteve por trás da constituição da fábrica de conservas de Marques Pereira & Figueiredo, em 1897, e toda a gente o conhecia em Sesimbra como o verdadeiro proprietário e administrador daquela fábrica.

Outra firma francesa, a Ferdinand Garrec, adquiriu esta mesma fabrica em Abril de 1900 – mas Leon Delpeut, que era também seu sócio, e que continuou a dirigir as operações fabris.

A firma Ouizille construiu em 1904 o edifício fabril cuja história contamos hoje, mas cuja propriedade passaria mais tarde para uma outra firma francesa: Arsene Saupiquet.

E poderia ter havido ainda uma outra fábrica de conservas francesa: o fabricante Chancerelle adquiriu também terreno próximo da praia de Sesimbra com esse mesmo fim. Mas, em 1901, a Companhia Nacional de Conservas viria a adquirir uma faixa de terreno entre aquela propriedade e a praia, possivelmente com o objectivo de impedir a construção de uma fábrica concorrente.

Na reunião de 15 de Dezembro de 1910, o presidente republicano Uno Correia disse a Câmara que “entre o edifício da Fábrica Nacional e a Fonte da Califórnia existe uma enorme faixa de terreno, que pela sua proximidade com o mar se adapta perfeitamente para a construção de umas fábricas de conservas de peixe, constando-lhe porém que os terrenos pertencem a dita Fábrica Nacional que os comprou para obstar a que neles se edificassem fabricas similares, prejudicando assim o desenvolvimento industrial do concelho. Nesta mesma reunião a Câmara deliberou adquirir esse terreno, mas tal nunca se viria a concretizar.

As operárias que não eram “efectivas”

Em Setembro de 1907 deu-se um episódio revelador do tratamento desigual que era dado as mulheres operárias, relativamente aos homens. O Governo estava a tentar aplicar uma lei que estabelecia um dia de descanso por semana, para todos os operários. Os soldadores da fábrica Ouizille queixavam-se de que era a única que não dava descanso semanal: as outras duas “desde que laboram, têm sempre dado descanso, nos domingos, ao pessoal efectivo.”

Pierre Boudrot, em representação da fábrica Ouzille, contestou a possibilidade de haver um dia de descanso, com o argumento de que o peixe podia chegar em qualquer dos dias da semana. A esta argumentação respondeu a Câmara que a fábrica não teria qualquer “prejuízo em manter o domingo para descanso semanal do pessoal efetivo da referida fábrica, porque embora as vezes tenha de meter peixe nesse dia, e certo serem os trabalhos preparatórios feitos pelas mulheres que, além de não fazerem parte do pessoal efectivo da fábrica, só com raríssimas excepções têm trabalho sucessivo em 5 ou 6 dias em cada semana. Ou seja, o direito ao descanso não valia para as mulheres operárias conserveiras.

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