2009 Antiga Crónica de Olhão - António Simões Júnior
2009 Antiga Crónica de Olhão
Edição electrónica de Janeiro de 2009, da APOS – Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão, baseada na Primeira edição em português: Antiga Crónica de Olhão, Gráfica Algarve, 1996.
Revisão: António Paula Brito
Capa: fotografia da Travessa António Bento, perto da Av. 5 de Outubro, na década de 1910
Primeira edição em castelhano: Vieja Crónica de Olhão, Montevideu, Uruguai, 1956.
Primeira edição em português: Antiga Crónica de Olhão, Gráfica Algarve, 1996.
Coordenação editoral: Vitoriano Rosa Grafismo e produção: Vasco Medeiros Rosa, com Jorge Santos.
Impressão: Inova Artes Gráficas.
Depósito legal 104 316/96
Difusão: Livraria Farracha, Rua do Comércio, 136, Olhão.
Patrocínio da Câmara Municipal de Olhão e pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Olhão.
Tradução para português de Diamantino Piloto.
http://www.olhao.web.pt/personalidades/antonio_simoes_junior.htm
Nota prévia:
Em relação à antiga edição em papel, datada de 1996 e já esgotada, a presente edição electrónica tem como atractivo adicional as anotações em rodapé sobre algumas personagens e cenários que tiveram correspondência com a realidade. Efectivamente, um dos maiores interesses deste livro é o de descrever uma situação que existiu em Olhão na década de 1940, onde muitas das personagens assinaladas com nomes fictícios, têm correspondência com personalidades reais. A APOS considerou importante gravar e esclarecer nestas anotações as correspondências entre realidade e ficção, antes que se perca a memória das pessoas que ainda têm este conhecimento. Por estas anotações, agradecemos os contributos de Augusto Calé, Deodato Pires, Giuseppe Cocco, Joaquim Silvestre e Júlia Ponce, entre outros. No entanto, advertimos o leitor que o livro trata de uma visão pessoal do autor, historicamente datada e, obviamente, ficcionada, o que significa que, embora António Simões Júnior se tenha baseado nalguns factos e personalidades reais, existe muita ficção no livro, sobretudo no que é referido para as personagens com nomes fictícios.
DE OPERÁRIO A EXILADO E ESCRITOR
O autor de Vieja Crónica de Olhão, António Simões Júnior, foi um dos primeiros intelectuais que conheci e que contribuíram decisivamente para o despertar do meu interesse e gosto pela leitura e pela escrita.
Pelo meu irmão José, falecido prematuramente, chegavam-me ecos e informações da personalidade singular do autor. Havia uma amizade entre eles, cimentada pelo espírito de solidariedade operária muito forte na época, que se explicava pelo facto de o meu irmão ser fundidor e ele pintor da construção civil. Os livros que o meu irmão trazia para casa eram emprestados pelo António e com eles vinha sempre um comentário verbal, que pressurosamente me era transmitido. Curiosa tarefa pedagógica aquela a que Simões Júnior se impunha, revelador de leituras aturadas e do sentido crítico que já nessa altura, embora jovem, possuía.
Não era por acaso que se dizia que ele lia muito; que, por vezes, se isolava no seu quarto, entregue febrilmente à leitura de livros e à escrita, com grande preocupação de sua mãe, que não achava o facto normal!…
Mas junto aos livros vinha periodicamente o jornal Avante, clandestino no tempo do Estado Novo, indicador das ligações que o autor mantinha com o movimento operário organizado e o seu aparelho político ilegal.
Nessa época – decorria a Segunda Guerra Mundial – era eu praticante de escritório, recém admitido. Simões Júnior soube do facto e pediu que eu dactilografasse um manuscrito de sua autoria, cujo título já não recordo – seria, porventura, o embrião do presente livro? Aceitei o encargo com interesse e entusiasmo, só que a breve trecho foi interrompido porque a entidade patronal queria que eu adquirisse prática na dactilografia, sim, mas não com trabalhos literários!
…mar e as ondas «falam»…
Que o mar e as ondas «falam», aprendi também com o autor deste livro porque ele o dizia ao meu irmão e essas impressões, impregnadas de poesia, chegavam até mim, insinuando-se e gravando-se no meu espírito juvenil.
Ao relacionamento por intermédio do meu irmão, seguiu-se a amizade pessoal e directa entre ambos, graças à minha convivência com amigos comuns, nomeadamente o Manuel Madeira e o Raúl Veríssimo, que mantinham com o autor afinidades culturais e políticas.
António Simões Júnior, ao tempo, foi colaborador do jornal Gazeta do Sul, do Montijo, e correspondente de Vértice, de Coimbra, revista que foi um espaço e uma referência cultural progressista na época, onde as novas gerações – dos anos 40 aos anos 60 – se afirmaram sob os valores do «novo humanismo» enquanto expressão cultural, social e política, e do neorealismo, enquanto escola literária.
Em 1947, o autor publica o seu primeiro livro, Poemas Juvenis, aliás o único livro de poesia conhecido na sua já vasta obra literária. Colaborei na sua venda e divulgação. Hoje deve ser um livro esgotado mas, felizmente, possuo um exemplar na minha biblioteca.
Ainda há em Olhão pessoas que viveram a época e os acontecimentos que serviram de inspiração ao enredo e à criação das personagens do livro. É relativamente fácil identificar quem foi o abastado industrial de conservas de peixe que o autor «baptizou» com o nome de José Gago ou o seu concorrente Manuel Laguna, que se inclinava para fornecer preferencialmente aos Aliados; quem ele caracterizou como Dr. Dias, médico, intelectual e historiador ou aqueloutro a quem chama o poeta lírico Feliciano; quem terá sido o Sr. Famalicão, fabricante de marmelada, cuja nora era «a alemã esbelta e loira» que se passeava pela Avenida «de braço dado com o seu marido». Outras personagens há a que o autor não teve, porém, a preocupação de dissimular os nomes, nomeadamente, o contabilista Sr. Prata, o idealista Dr. Ponce, o Amândio (foi meu vizinho e amigo, tendo realizado o seu sonho de emigrar), a Espanhola da Rua da Palmira, o Olhitos, o Ferrinho, o Bocage, a Dorila, etc.
Mas tanto ou mais importante que as personagens, é o contexto económico, social e político que marcou a vida olhanense da época – entre o fim da Primeira República liberal no nosso país e o fim da Segunda Guerra Mundial –, que o livro pretende captar. A proliferação de fábricas de conservas de peixe, era estimulada pelas necessidades dos países beligerantes numa guerra que não discutia apenas o país ou o bloco de países mais fortes, mas também e, principalmente, o modelo de sociedade que deveria ser institucionalizado: Democracia, Nazi-Fascismo ou Comunismo. António Simões Júnior soube enquadrar a vida olhanense dos anos quarenta numa visão simultaneamente local, regional, nacional e universal. O seu romance desdobra-se em análises sucessivas. A existência de um núcleo numeroso de operários conserveiros e afins, carenciado e reivindicativo, no seio do qual despontava a organização operária clandestina. A introdução no processo de fabrico conserveiro da máquina de soldar eléctrica, que era suposto lançar no desemprego os operários soldadores e que, por isso, deveria ser destruída!… A estratificação da sociedade civil olhanense em ricos, remediados, pobres e indigentes. Os sonhos de liberdade que a BBC do Pessa acalentava aos radiouvintes, em contraste com o regime ditatorial em que os portugueses viviam. Os vendavais cíclicos que, por falta de meios de detecção e de segurança adequados, terminavam em naufrágios e tragédias, com o seu cortejo de vítimas entre os pescadores da vila.
Todos estes ingredientes, toda esta temática, faz com que eu defenda que este livro, a despeito de ter sido publicado no estrangeiro, deve inserir-se na corrente neo-realista portuguesa.
J. Carlos Silvestre
UM EXILADO OLHANENSE NO NORTE DE ÁFRICA, BRASIL, URUGUAI E ARGENTINA
Ao findarmos a leitura da Vieja Crónica de Olhão – afortunadamente vinda às nossas mãos – fomos forçados a trazer à «Vila de Olhão» este seu retrato tirado nos anos quarenta. Até para que a deixasse orgulhosa da força que transmitiu o retratista. Porque não foi este livro, este retrato, mostrado na devida altura ao fotografado? Por que esteve escondido dos olhares mais de quarenta anos? Procurando demonstrá-lo, presumimos três hipóteses:
A primeira ser escrito e editado para lá do Atlântico: escrito na Argentina e editado em Montevideu. – Como tanto tens andado pelo mundo inteiro, minha querida terra!…
A segunda por estar em castelhano, e daí uma resistência de entrada em espaços da língua portuguesa.
Finalmente porque se fosse já concebido em Portugal e o autor aqui estivesse, ele não se atreveria mostrar publicamente na sua pátria, o ideal político envolvente do livro.
Tentaremos, com escassas informações obtidas, mas cheias de interesse, algumas notas biográficas acerca do autor.
Considerámos obrigatória tal tentativa para que os vindouros soubessem da existência de um olhanense que exprimiu a dor sentida na juventude com o sofrimento dos seus conterrâneos. Também nos atrevemos, sob a nossa fraca capacidade de crítico, fazer uns resumidos comentários às ideias e estilo literário dele, para justificarmos o grande apreço deixado pela leitura do livro.
António Simões Júnior nasceu no Poço Longo, freguesia de Quelfes, concelho de Olhão, a 25 de Setembro do ano de 1922. Filho de modestas famílias, depois da instrução primária, aliás como a maioria dos moços desse tempo, deram-lhe a escolher um ofício para garantir a subsistência. Não seria o mais preferido, mas entrou na aprendizagem da pintura de construção civil.
Entranhado na classe operária, não deixou, todavia, de dedicar-se aos livros, donde, aos poucos foi captando conhecimentos de matérias humanísticas, como literatura e política, enveredando corajosamente pela sua filiação no Partido Comunista Português, perseguido pela PIDE. Infelizmente, por essa tendência principiou a ter perseguições da parte dos repugnantes bufos da PIDE, que espiavam tudo e todos em toda a parte. Estávamos nos meados dos anos quarenta quando essa perseguição se intensificou, extensível, aliás, a muitos amigos seus, partidários de ideais socialistas. O sistema político e a segunda guerra mundial agravaram a miséria do povo, oprimido pela falta da ambicionada liberdade. Para muitos a solução estava em fugir da sua terra beijada e castigada pelo mar, onde só uma dúzia de fabricantes e outra de armadores desfrutavam de vida regalada.
Era então frequente, noite sim, noite não, pequenas lanchas, desprezando a fiscalização marítima e sem receio de afundamento, romperem o escuro do mar. Faziam rumo à costa marroquina, essas lanchas saturadas de jovens e homens, por vezes com a família agarrada. É numa dessas noites que Simões cheio de esperanças, abandona a terra, onde aprendeu a irmanar-se aos seus conterrâneos e a revoltar-se contra as injustiças. Chegado a Marrocos, trabalhou com muito sacrifício na luta pela sobrevivência e, após uns meses de contacto com as culturas árabes, abala para a Argentina, onde se tem mantido até hoje. Na Argentina, em total dedicação às letras, reparte-se por livros e revistas. Atrás de si tem uma obra a dignificá-lo e a honrar a sua terra: A sua obra literária – mais de 30 livros de ficção, ensaio e teatro, é toda ela em castelhano, carecendo e merecendo ser vertida totalmente para português.
Dou o meu contributo para preencher esta lacuna traduzindo Vieja Crónica de Olhão.
Testemunho dum crente numa revolução séria, verdadeira, que nesse tempo se presumia ter-se já iniciado na hoje extinta URSS: uma sociedade sem distinções, com pão, paz e cultura, onde não houvesse «mar seco». O socialismo a que se referia o Dr. Ponce à porta do Café Avenida enquanto decifrava palavras cruzadas: não haveria mais pobres, «porque todos os seres humanos serão iguais perante a lei e terão os mesmos direitos e deveres».
A Vieja Crónica de Olhão reflecte a imagem da sociedade olhanense do tempo, revelando a mentalidade dos fabricantes e armadores; a luta e o sofrer dos pescadores e operários; a vida dos desesperados, asilados e desgraçados como o Eduardo, o Tocha, o Olhinhos. Enfim, dos que miseravelmente viviam dos mandados e das engraxadelas nos sapatos duma reduzida burguesia.
Tudo descreve, de forma simples, António Simões Júnior, com relevo e fluência. É directo, objectivo, sem floreados. Os retratos têm uma vida que só uma forte observação capta.
Numa palavra: arte. Os Olhanenses deverão conhecer este álbum histórico da sua terra, porque traduz ideias e sentimentos em imagens faiscantes como relâmpagos inesperados que perduraram em nós por muito tempo.
Após o 25 de Abril surgiram falsos mártires, gritando contra os pontapés que levaram e os martírios que sofreram antes da revolução. Reclamavam assim, à nova sociedade, os benefícios e juros dos anos sofridos em silêncio. António Simões Júnior, esquecido pela Argentina, é o oposto desses pseudo-mártires, um símbolo dos autênticos sacrificados, sobre quem devem recair os agradecimentos e o respeito dos filhos de Olhão.
Um símbolo reforçado por esta Antiga Crónica de Olhão, que vale a pena ler!
Diamantino Piloto
Antiga Crónica de Olhão
Havia alguns dias que aquele grupo de pescadores contornava o litoral algarvio, metendo-se cada vez mais nas terras do Sul. A abundância de peixe naquela costa impressionava esses homens rudes e invadia-lhes a mente com pensamentos estranhos.
Ali estava para merecê-los, com sussuros e promessas, o mar desconhecido, abrindo-se e fechando-se com uma riqueza infinita que corria diante dos seus olhos deslumbrados.
Tinham descoberto um imenso filão de ouro, um ouro mais precioso do que aquele que buscavam os exploradores nos longínquos lagos do Arizona. Viessem dizer-lhes que não era ouro toda aquela fosforescência fundida no mar azul! O sol emergia do Oceano, pestanejando rutilante; a água tornava-se menos agitada, menos sussurrante, penetrada pelo olhar do astro dominador.
Os pescadores começaram a levantar a rede. Suas mãos calosas e impacientes agitavam-se nos xalavares e revolviam-se entre os peixes miúdos que ainda saltavam vivos. Jogavam com o peixe como as crianças com os calhaus na praia. O cheiro da maresia penetrava-lhes nos pulmões, e o céu, muito azul, como a primeira conquista das suas vidas, despertava-os para uma nova aventura impondo-lhes novos itinerários ao seu destino. A boca abria-se-lhes e fechava em exclamações de regozijo, enquanto os olhos aprendiam a sorrir e a encarar a existência com mais alegria e confiança.
Ao som dos rebeldes gritos, que não podiam calar no peito, os seus braços robustos empunharam os remos e remaram com mais força rumo ao desconhecido. As gargalhadas afluíam-lhes aos lábios cobrindo o bendito mar, onde as suas velhas lanchas deslizavam. Ílhavo, seu torrão natal, não era mais do que um ponto desvanecido no horizonte, mal perceptível na sua imaginação. As embarcações sulcavam as ondas do oceano e os peixes matizavam a esteira aberta pelas quilhas, formando cardumes, ansiosos por comer os resíduos de comida que lhes era atirada por mãos de gente feliz e coração contente.
As vozes daqueles lobos do mar redobraram de intensidade, tornando-se ainda mais sonoras, transtornadas por um crescente entusiasmo. Sentiam-se conquistadores dum elemento que lhes prestava vassalagem. Por isso, gritavam ainda mais com todas as suas forças como se fossem os homens mais ditosos da terra. A grandeza do oceano transmite à orla da praia vizinha o eco das entusiásticas vozes humanas.
A sua alegria lembrava a que sentiu Colombo perante o panorama das virgens terras da América. Este havia descoberto um novo mundo, permitindo um intercâmbio entre dois hemisférios. É tanto o ouro no fundo do imenso mar que nem pensam apoderar-se dele. Além disso, os seus braços não abarcariam mais que alguns escassos metros do tapete líquido.
Lá longe, onde se perdem as observações desses seres ansiosos e felizes, divisase uma pequena enseada, cavada e afundada por águas marinhas na eterna luta com a terra. Rumo a ela dirigem aqueles pioneiros as quilhas das embarcações, as primeiras a explorar um mar quase virgem.
A notícia do descobrimento não tarda em propagar-se e, então, outros pescadores embarcam na aventura, seduzidos, como eles, pela abundância de pesca daquele mar.
Também estes descobrem a enseada e nela acham um porto de abrigo.
Na praia deserta, onde apenas se vislumbram os caminhos abertos pelos cascos das muares dos quelfenses, ocupados na apanha da morraça ou nas andanças de contrabando, acamparam os pescadores. E, pouco a pouco, foram surgindo nas orlas marítimas antes inabitadas várias barracas de madeira e colmo, que se estenderam até formar um grupo, desafiando a animosidade e a desconfiança da gente das imediações.
A pouco e pouco, com o rolar tranquilo dos anos, a pequena comunidade de pescadores avança, sem se deter, terra adentro, transformando-se numa aldeola. Depois, à mercê das investidas do mar, as choças começam a desaparecer. Principiam a surgir em seu lugar esbranquiçadas casas de alvenaria.
A premente necessidade de intercâmbio aproxima mais as gentes da terra e do mar, iniciando-se um rudimentar comércio vantajoso para ambas as partes. Os camponeses trazem as bestas carregadas de legumes, frutos e cereais, até ao centro do povo, e regressam com elas carregadas de peixe.
Ao entardecer, quando as lanchas deixam o porto e saem ao mar, os pescadores ficam silenciosos durante algum tempo, enquanto contornam a barra, contemplando a minúscula aldeia, cuja mancha ainda cinzenta e esbranquiçada com o seu aspecto liliputiano avista-se desde a extremidade da ilha que, como ela, não tem nome. Sim, o seu torrão ainda não é cristão. Há que baptizá-lo o mais depressa possível, fazê-lo grande e livre; livre como as ondas prateadas do mar azul. Os pescadores vão recordando as lendas ouvidas aos camponeses. Como estes, são simples, ignorantes e crentes.
Há que procurar um nome para a sua aldeia, repetem intimamente; há que afugentar do seu seio, os espíritos sarracenos, ali deixados pelos mouros. E seguem meditando em busca de um nome que não surge.
O nome obstina-se em não aparecer, mas eles procuram-no incansavelmente.
A quinhentos metros da aldeia existe um grande poço de água a correr ininterruptamente, seja Verão ou Inverno. Nele lavam as camponesas e as mulheres dos marítimos as suas roupas e enchem cântaros. A água, brotando em jorros límpidos, abastece toda a aldeia e arredores. É tão grande o poço de água que não parece um poço, mas um olho de água. A palavra corre como água transparente. Se os olhos não se cansam de contemplar o líquido impetuoso, tão-pouco a boca se cansa de pronunciar:
Olhão! Olhão! O torrão já tem nome; acaba de baptizá-lo a santa e sábia boca do povo.
I
José Gago 1 sente-se enfadado com a leitura do diário. Tira os óculos e põe O Século sobre a secretária do escritório, dispondo-se a saborear o cafezinho fumegante que a criada acaba de servir-lhe. Está farto, cansado dos comentários da guerra.
Efectivamente, aquelas notícias dos jornais, quase sempre lacónicas, excitam-lhe o sistema nervoso e contribuem para lhe amargurar a vida. Ora são os Ingleses e Russos que recuam, ora os Alemães. Há muito pouca estabilidade nas principais frentes de batalha.
– Puf! – vocifera. – Que vão para o diabo, Ingleses e Alemães. – Sorve algumas gotas de café, disposto a esquecer-se, por algum tempo, dos acontecimentos internacionais, mas não o consegue. Deixa voar a imaginação, insistindo no mesmo assunto. Acha-se visivelmente preocupado. Não é para menos… Na noite anterior, os ingleses ameaçavam, na sua emissora, a BBC de Londres, os industriais portugueses que persistem em vender conservas de peixe aos Alemães. Segundo a conversa do locutor, já se estava elaborando uma lista negra com o nome das firmas reincidentes. E nessa lista a sua fábrica não tardaria a figurar.
– Abutres! Bandidos! Ainda têm a corda ao pescoço e já ameaçam os industriais neutros, como se fôssemos seus lacaios e estivéssemos obrigados a seguir as suas directrizes. Não, isso não! Tenham os ingleses santa paciência, mas na minha fábrica mando eu! Venderei as minhas conservas a quem eu quiser, isto é, a quem me pagar melhor porque, na realidade, é esse o meu melhor amigo. Os ingleses até parece que já se esqueceram das suas imposições e extravagâncias de outrora. Se eles se esquecem das coisas com relativa facilidade, eu não. As recordações perduram em mim, apesar do tempo correr. Antes da guerra eram os ingleses isolados na sua ilha, a impor os preços.
1 José Gago seria o industrial José Braz Pereira, proprietário da Fábrica Sardinha do Algarve Lda., que teria sido inicialmente um simples soldador muito reinvindicativo, mas que se tornou posteriormento num dos industriais mais bem sucedidos, e foi representante em Olhão do Consórcio Português de Conservas de Sardinha, criado pelo Governo em 1934, ou seja, ter-se-á tornado um símbolo dos industriais e do Governo, pelo que é tratado neste livro como o estereótipo do pérfido capitalista que explora os trabalhadores. É conhecida uma história da época em que as trabalhadoras das fábricas foram obrigadas pelo Governo a possuir uma caderneta que ficava retida na empresa, não podendo a trabalhadora trabalhar noutra fábrica sem uma permissão especial. Estas consideraram a obrigação insultuosa até porque as assemelhava ao tratamento então dado também às prostitutas que tinham igualmente uma caderneta para controlo médico. Perante isto, um dia que José Braz Pereira estava no café Avenida, um grupo destas trabalhadoras invadem o café na tentativa de o agredir, o que motivou a intervenção da GNR a cavalo (Cativo L. – Ainda Olhão e a Indústria de Conservas de Peixe – 2ª Ed. Câmara Municipal e Junta de Freguesia de Olhão, 2005, p. 30). Apesar de tudo, chamamos a atenção que muito do que é descrito neste livro pejorativamente para José Gago, não é verdade para José Braz Pereira.
E se lhes dava para recusarem as conservas por qualquer insignificância, ai ficavam perdidas umas dezenas de milhar de escudos. Queiram ou não, têm de convencer-se que os tempos mudaram, que as suas mãos não podem continuar a dar cartas a seu belprazer!
Além disso, que garantias oferecem eles aos fabricantes, se somos nós que temos de enviar os carregamentos de conservas à Inglaterra em barcos fretados por nossa conta e risco? E se uma mina marítima ou um submarino mete o barco a pique?
Sim, isso acontece… Não, não pode ser. Os alemães pagam mais e dão garantias. Só um parvo, um grande parvo, recusar-se-ia negociar com uns por causa dos outros. Eu sei que há alguns colegas meus, como o Manuel Laguna 2, por exemplo, que insistem em vender exclusivamente aos ingleses. Simpatias políticas? Muito bem, sim senhor, por que não? É para que as más-línguas não digam que no nosso país não há liberdade. Por minha parte não estou disposto a fazer fretes, quer dizer: a não voltar as costas a nenhum comprador. Como princípio apoiarei os alemães, porque me parecem os mais fortes, e ao lado dos mais fortes sempre se está seguro.
José Gago interrompe. Mas não consegue tranquilizar-se, preso a um sentimento rebelde que não chega a moldar-se às suas conclusões. Quer afugentá-las para longe, mas não pode. Os pensamentos e as dúvidas continuam a picá-lo no coração, até afundá-lo em recordações dolorosas. De súbito, uma interrogação martela-lhe o cérebro: «E se os ingleses me suspendem a distribuição da folha-de-flandres? Que diabo! Não tinha pensado nisso!».
Sente-se como um náufrago à procura de uma tábua de salvação, flutuando à deriva no mar tormentoso dos seus desordenados pensamentos. Os nervos contraem-se lhe, torturando-o ainda mais. O café não consegue acalmá-lo. «Talvez o tabaco…», pensa. Tira um cigarro e acende-o. Uma fumarada tapa-lhe a cara e enche o escritório de espirais.
Apercebe-se de que não pode perder o seu tempo em conjecturas inúteis, sem provento. No entanto continua afligindo-se. Venham agora dizer-lhe que o dinheiro dá felicidade! Também ele pensava assim antigamente, quando não tinha mais que um centavo.
2 O seu verdadeiro nome era José Dias Lagos, proprietário de uma estiva (método de conservar peixe em salmoura) e mais tarde de uma empresa de filetagem de biqueirão na Patinha. Não sabemos se exportava para os Aliados por motivos ideológicos ou apenas por motivos comerciais porque os EUA preferiam exactamente os filetes de biqueirão.
Os pensamentos íntimos, como onda agitada, qual cavalo indomável, não se detêm nesta ou naquela particularidade, avançam sempre. Torna a recordar os dias tristes e miseráveis da sua juventude atribulada.
Desdobrando o fio de uma penosa evocação, vai revivendo o passado, analisando o caminho percorrido em jornadas sem glória. Vê-se sentado num tosco banco, soldando latas de conserva, ao lado de camaradas que o escutavam atentos à verdade das suas palavras.
«Que será feito deles? Ainda estarão vivos? Como os esqueci! O tempo passa imperceptivelmente, quase sem que se dê conta».
Nesses tempos, era um dos dirigentes sindicalistas mais revolucionários de Olhão, empenhado numa guerra sem quartel ao capitalismo, o monstruoso explorador da classe operária. Nas assembleias, quando se tratava de defender os ameaçados interesses da classe operária, saltava para cima de mesas ou bancos, e agitando os braços ora à direita, ora à esquerda, incitava com veemência os companheiros à rebelião. A sua palavra fluida incitava à indisciplina, levava os ânimos ao rubro. Todos viam nele o dirigente do sindicato, o guia que lhes ensinava o caminho da luta.
Lembrava-se dos seus discursos: «Camaradas: O patronato pretende amarrar-nos ao seu carro de batalha sem a mínima consideração pelos nossos direitos de seres humanos. Mas nós, operários conscientes, que sabemos para onde vamos e por que lutamos, temos por primordial dever levantar as mãos e gritar: Basta!!»
«Camaradas: O elevado custo de vida leva-nos a apresentar ao patronato um novo pedido de aumento de salários não inferior a 30 por cento, sem o qual não poderemos fazer frente às nossas mais elementares necessidades. Saibamos manter-nos unidos como até agora e venceremos. Tudo depende de nós! Tudo depende do conhecimento da vida e do nosso espírito de luta. Os nossos braços são uma força que nada nem ninguém pode deter. A nossa voz é uma verdade que o capitalismo não poderá calar.»
Durante alguns anos, fora ele, José Gago, o principal pilar do sindicato dos soldadores, o fomentador das greves, o organizador de manifestações operárias, como um pequeno Lassale odiado e temido pela burguesia da terra. No entanto, um dia desaparecera subitamente da cena sindical e política.
Agora, com os seus pensamentos, aguilhoado pelo pesadelo, recorda esse dia e, sem que possa explicar-se a causa, examina as mãos. Algum remorso…? – Bah! – balbucia sem convicção.
A indústria de conservas olhanense prosperava e de repente passara a ser mundialmente conhecida, conquistando os mercados internacionais. A profissão de soldador passara a ser um manancial de novos-ricos.
José Gago, reunindo todas as suas economias, com três dos seus companheiros de bancada, alugara um velho barracão e, com processos rudimentares, iniciara-se na fabricação de conservas de peixe em azeite e salmoura. Teve sorte. Conheceu então a outra face da vida e mudou totalmente os pensamentos. Hoje é um dos industriais mais endinheirados da terra, a quem nada parece faltar. Não obstante, as preocupações atormentam-no como no tempo em que soldava latas, empunhando um ferro de três quilos nas suas mãos fortes para assegurar a subsistência diária.
Que se passa comigo? – interroga-se. – Não tenho falta de estar com preocupações, dando voltas à cabeça por causa dos senhores ingleses.
Mas, será efectivamente o «caso dos ingleses» o motivo que o preocupa ao ponto de o angustiar?
– Sim, são eles… – vocifera. – Mas e a mim, que me importa? Tenho milhões no banco, uma horta a vinte quilómetros da terra, com uma belíssima vivenda de Verão, um chalé na ilha, um iate todo pintado de branco com o meu nome à proa, motivo de inveja para os outros industriais, um cómodo e formoso Chevrolet do último modelo e um sem-número de coisas mais. Por isso, não me compete resolver o problema da folha de flandres. Para que quero os empregados? Para que lhes pago? Toca uma campainha e aguarda, enquanto alisa os escassos cabelos com as mãos suadas. À porta assoma a oblíqua cara da criada, aberta num sorriso: – Deolinda! Chama o senhor Pratas 3.
Pratas, o seu chefe de contabilidade, é um indivíduo muito instruído, que fala francês, inglês, espanhol, italiano e alemão. Pode dizer-se que é o seu braço direito, organizador e conselheiro. Diante dele, José Gago sente desmoronar-se toda a arrogância com que costuma tratar os demais empregados. Dirige-se-lhe sempre em termos respeitosos, como a um homem da sua categoria social, temendo que o outro se aperceba da sua ignorância de ex-soldador.
3 O sr. Pratas foi o contabilista chefe da Fábrica Sardinha do Algarve Lda. e tinha fama de ser um homem muito competente e culto.
O chefe da contabilidade acha-se agora na sua presença, pronto a escutá-lo. José Gago convida-o a sentar-se, oferece-lhe a cigarreira aberta, que Pratas não aceita.
– Creio que o senhor Pratas estará ao corrente das imposições britânicas feitas aos industriais portugueses. Por essa razão não vale a pena pormenorizar o caso; só quero saber qual a sua opinião sobre o problema da folha-de-flandres. Veja você: estou bastante preocupado, pois temo que os ingleses cheguem a realizar as suas ameaças.
Que lhe parece? Que opinião tem você sobre esta geringonça?
– Eu, senhor Gago, para falar-lhe com franqueza, não sei o que poderá passar-se.
Apesar disso, parece-me conveniente e aconselhável estudar bem o assunto referente à folha-de-flandres antes de optar por uma resolução definitiva. Se me permite, estudarei atentamente o caso, como merece, e amanhã, possivelmente, já me acharei em condições de dar-lhe uma resposta. Trata-se de um caso realmente delicado, mas não creio impossível de solucionar, já que para tudo há remédio…
– Animam-me muito as suas palavras, senhor Pratas. É assim que se fala! Bom, então você se encarregará de colher todos os dados possíveis, está bem?
– Naturalmente.
– O assunto fica inteiramente nas suas mãos. Dou-lhe a maior liberdade quanto à resolução a tomar.
Para imprimir maior entusiasmo às suas palavras, José Gago bate-lhe amistosamente no ombro, enquanto acrescenta: – Você sabe muito bem que eu jamais deixei de distingui-lo com real estima e ampla confiança.
Levantam-se ao mesmo tempo. O chefe de contabilidade retira-se para o escritório e vai consultar alguns documentos, enquanto José Gago, já menos perturbado, aliviado por se ter despojado do peso que o oprimia, deixa o escritório. Na rua, sobe para o Chevrolet estacionado à porta da fábrica, segura o volante, carrega no pedal do acelerador e arranca em frente, livre como um pássaro, dono de si mesmo outra vez.
II
O Manuel Domingos também tinha sido soldador, e companheiro de bancada do José Gago há duas dezenas de anos. Tal como este, tinha forrado algum dinheiro que investira numa sociedade com Francisco Fernandes e Joaquim Bica, na instalação duma pequena fábrica de conservas de peixe em azeite e salmoura.
Todavia, a sorte não o acompanhou. Um ano depois de criada a firma – ano de esperança e sacrifício – os sócios comunicaram-lhe a inesperada falência da fábrica.
Pobre e analfabeto, nascido para soldar latas, não pôde fazer outra coisa senão aceitar a notícia como facto consumado, ainda que no seu espírito persistisse a dúvida quanto à honra dos seus sócios. Dúvida esta que se converteu em certeza quando, um mês depois, os viu fundar uma nova firma, que em meia dúzia de anos os levou à categoria de grandes industriais.
Desiludido e entristecido pela má-fé dos que o tinham enganado, não teve mais remédio que voltar a empunhar a sua ferramenta de ofício. Conseguiu de novo juntar algum dinheiro, e graças ao esforço dos seus braços acreditava que a vida continuaria sorrindo aos pobres como até aí. Mas não, tudo se revelou um sol fugaz.
Um dia, quando menos o previam os soldadores, apareceu em Olhão a primeira soldadora eléctrica. Era um monstro de ferro fundido, com tampas de aço, inerte, sem vida. Diziam os técnicos que numa hora realizava o trabalho de vinte homens. Os soldadores sorriam, incrédulos. Mas deixaram de sorrir e acreditaram ao ver o monstro inerte ganhar vida em contacto com a electricidade. Um só homem era suficiente para manejá-lo. Introduzia-se a lata num quadrângulo, punha-se a tampa e um envoltório de borracha, pisava-se um pedal e a lata saía soldada com muito mais perfeição e rapidez.
A soldadura eléctrica seduziu os industriais, que trataram de adquirir as que necessitavam para as suas fábricas. O desemprego caiu sobre os ombros dos soldadores, suplantados pelas máquinas. Olhavam os braços queimados pelo enxofre, as veias salientes e sentiam-se revoltados. Compreendiam que era necessário fazer qualquer coisa, menos ficar de braços cruzados ante a realidade. Vacilavam sobre o caminho a tomar, até que um velho soldador, ante a indecisão geral, gritou à porta de uma fábrica:
– Vamos destruir essas máquinas infernais, que nos roubam o pão e nos lançam na miséria! Não deixemos que destruam o futuro dos nossos filhos.
Estas palavras agitaram os soldadores como uma mola oculta. Numa gritaria tumultuosa irromperam pelas fábricas adentro, empunhando o que achavam à mão:
pedras, ferros, ferramentas, tirantes, etc. Com ódio turvo, lançaram-se sobre as máquinas com golpes sem fim. As máquinas resistiam. As vozes misturavam-se com o martelar do ferro. As mãos sangravam e os braços doídos pareciam desarticulados do corpo. Impotentes contra um inimigo tão poderoso, uma voz impôs silêncio, com acento desalentador: – Não há nada a fazer, camaradas! Só dinamitando estes demónios, poderemos destruí-los.
Ouviu-se outra voz de alerta: – A polícia! Vem aí a polícia…
Puseram-se em debandada, porque conheciam os métodos policiais.
No dia seguinte, as fábricas passaram a ser vigiadas pela Polícia e Guarda Nacional Republicana. Uma multidão de soldadores, acompanhados das suas mulheres e filhos, concentrava-se à distância, comentando os seus casos com emoção e impotente ira.
A resistência à autoridade e a ameaça de um novo assalto duraram poucos dias.
Depois, tudo voltou à normalidade. Cada qual procurou adaptar-se o melhor possível à nova profissão a que casualmente tivesse acesso. Como um condenado que, depois de vários anos de prisão, recupera a liberdade e procura readaptar-se, uns fizeram-se sapateiros e aprenderam depressa a manejar a sovela; outros converteram-se em pescadores e caldeireiros. E assim foram trilhando a espinhosa estrada dos pobres.
Manuel Domingos sentia as pernas dobrarem-se ao peso do corpo, enquanto o cérebro se agitava, tumultuoso, numa infinidade de recordações. Ia direito ao cais com o cesto de cana quase vazio, no braço. Levava lá dentro apenas duzentos gramas de pão escuro e uma dúzia de azeitonas. A avenida é larga mas o horizonte é estreito…
Caminha mas não pensa que caminha; pensa que está parado e só. Efectivamente está só na vida, sem família. A sua mulher morreu há alguns anos, vítima não se sabe de quê.
Começara a enfraquecer e tornara-se num pau… Secou-se-lhe o corpo consumido.
Acompanhou-a até à última morada que, nem por ser a última, deixava de se diferenciar da dos ricos. Quis chorar pela companheira de tantos anos difíceis, mas não pôde… Não tinha já lágrimas! Também ele estava seco, ressequido como o mastro da Deus te guie.
Tem um filho, é certo, mas é quase como se não o tivesse. Há muitos anos que não o vê… São coisas naturais da vida dos pobres. A miséria traz todas as desgraças e incompreensões. Chico – seu filho – não é mau; ele tão-pouco… Por que estão, então, zangados? Não o sabe. É a vida, o mundo, o diabo. Vá-se lá sabê-lo. Mentira! Ele sabe quais foram os motivos que o levaram a afastar-se do filho e a perder a mulher. Sabe-o porque uma voz íntima, um sentimento ou pensamento confuso, ou qualquer outra coisa que não se sabe determinar, lhe fala ao ouvido. Mas tem medo… De quê? De pensar na realidade quotidiana, de gritar bem alto que sua mulher morreu de fome. Tem medo e baixa os olhos tristes.
O porto, na sua grande epopeia humana, menosprezada pelos burgueses da vila, está ali, a seus pés, expondo-se numa magnífica paisagem de cascos, velas, masteréus, vergas e mastros de todos os tamanhos. Um quadro vivo onde predomina o elemento humano. Os braços robustos dos pescadores puxam as redes para bordo das traineiras, ultimando os preparativos para se fazerem ao mar. As suas bocas abrem-se para entoar a rude canção da faina marítima. São os descendentes dos fundadores da vila, dos pescadores de Ílhavo, os construtores do progresso, os semeadores da abundância, heróis anónimos cuja epopeia não achou ainda quem a contasse.
No meio da algazarra da gente, que se perde na vastidão do mar, o piar das aves marinhas e o ruído dos remos fendendo a água, Manuel Domingos eleva os olhos e fixa o céu e o oceano expressivamente azuis, como um corpo e uma alma cingidos numa mensagem de vida e esperança. A lancha Deus te guie estava pronta a sair. Só faltava ele, «pescador de água doce», como lhe chamam a bordo. Desamarram a embarcação e os braços movem-se sobre os remos em impulsos vigorosos. A lancha ruma na direcção da barra, até o contramestre içar a vela e os remos se recolherem a bordo.
A noite surpreende-os já na solidão do mar.
III
Na rua da Palmeira, um compacto grupo de homens de diferentes idades, composto totalmente por operários conserveiros, da construção civil e pescadores, agitam-se nervosamente. Alguém consulta um velho relógio de bolso. São agora 21 menos 5. Aproxima-se a hora desejada… A hora de ouvir a BBC.
Das poucas pessoas que têm aparelho de rádio em casa, a boa mulher que todos conhecem simplesmente por «a Espanhola» abre, solícita, a janela ao estranho auditório que se junta à sua porta. Liga o rádio e capta o posto da BBC de Londres na sua última emissão diária para Portugal e colónias. O grupo de homens, que engrossa constantemente, comprime-se ainda mais, procurando não perder uma só palavra do locutor. Este, com uma voz fluida e vibrante, já tão conhecida, anuncia as últimas notícias das frentes de batalha.
Os aliados ocidentais avançam, quase sem encontrar resistência, pela França adentro. Os russos estão só a trezentos quilómetros de Berlim, perseguindo, no seu avanço vitorioso, as desmoralizadas tropas nazis, que fogem assustadas como lobos dizimados. Ante as novidades da guerra, os rostos dos trabalhadores, geralmente tão sombrios, abrem-se em francos sorrisos – como flor murcha surpreendida por uma manhã primaveril – e esquecem, momentaneamente, o fantasma da miséria.
Há alguns meses, desde que a polícia os impediu de se reunirem frente ao armazém do Baptista, que vão aí todas as noites para se inteirarem do desenvolvimento dos conflitos bélicos. Entre eles, contam-se muitos desempregados que, de dia, se juntam no jardim João Serra e comentam as notícias da noite anterior, extraindo conclusões de acordo com as suas esperanças.
Naqueles instantes, em que dezenas de aviões norte-americanos lançam bombas sobre o Japão, e em que os aliados avançam rumo à capital do Reich, as suas bocas não se cansam de afirmar: – Estamos no fim da guerra! Dentro de alguns meses ou talvez semanas, a paz será uma verdade redentora que voltará a iluminar o mundo. Então, todos eles, segundo a sua maneira de ver as coisas, poderão emigrar para a França ou outros países devastados pela guerra, onde possivelmente os seus braços encontrarão trabalho seja no que for.
Sim! A paz não pode tardar. Os alemães encontram-se entre dois fogos e com a corda ao pescoço.
Amâncio4 é um dos radiouvintes mais entusiasmados, infundindo, com o seu tom jovial, confiança e ânimo aos seus companheiros de luta e sofrimentos. É ele que espalha a notícia de que em Faro já funciona uma agência com inscrições abertas para contratos de trabalho para a França.
Há que ter paciência e esperar o fim da grande guerra. Os tempos são já outros e, como costuma dizer o locutor, «os inimigos do povo terão infalivelmente que desaparecer da face da terra.»
Terminada a audição com o habitual Até amanhã «a Espanhola» desliga o rádio e os homens dispersam-se com novos pensamentos que os incitam a viver…
Com uma nova esperança no coração, o Chico da Júlia chega ao seu quarto.
Antes de se deitar no velho e bolorento enxergão, companheiro de vários invernos, fica uns minutos pensativo, chupando a beata do último cigarro. O seu pensamento voa por cima das quatro paredes estreitas e húmidas, cobertas aqui e além de revistas com gravuras de artistas de cinema meio nuas, em atitudes sedutoras, provocatórias mesmo no seu mutismo, enquanto a vista se perde atrás das espirais do fumo. Apanha um lápis e obedecendo a uma inspiração põe-se a desenhar a forma dum mapa num ladrilho quadrado no chão. Como é analfabeto, marca com cruzes os países que conhece de nome e a sua imaginação situa-os, como imagina, em inábeis divisões. Fecha e abre os olhos, faz um trejeito à boca e diz em voz alta, como se a ressonância lhe enchesse o vasto mundo de novas e perenes esperanças. – Portugal, Espanha, Inglaterra, Alemanha, França, União Soviética…
Cala-se. Detém o pensamento neste país, cuja posição geográfica desconhece.
Com os dedos acaricia um ponto do tosco mapa. A União Soviética fica ali; é aquele país da igualdade, onde toda a gente se olha sem baixar os olhos. Que bom será falar com as pessoas, sejam ricos ou doutores, sem que o seu olhar infunda medo!
Ao invocar essa particularidade dos russos, recorda que nunca olha de frente as pessoas importantes da terra. O olhar destas atemoriza-o, morde-lhe a carne como uma chicotada e faz-lhe sentir ainda mais a humildade de um engraxador.
4 Amâncio seria Amândio e foi um operário de litografia, comunista e revolucionário na sua juventude, que emigrou para o Canadá e regressou a Olhão reformado e com uma situação económica razoável. Nesta fase confessava-se desiludido relativamente aos ideais juvenis.
Na União Soviética é outra coisa, porque lá até um engraxador é gente. Chico começa a dar rédea solta à imaginação, trazendo à memória as palavras do Dr. Ponce 5, o amigo dos pobres que, quando vivia, conversava amigavelmente com os engraxadores e moços do mar, nos bancos do jardim, descrevendo-lhes a realidade e os fins do país soviético.
– Será como ele dizia? Sim, já acredito. O doutor era um homem sério e entendido das coisas do mundo. Não podia mentir.
Ah!, a guerra terá de terminar dentro de algumas semanas, como disse Pessa 6 na noite anterior. A possibilidade de emigrar sedu-lo. Se pudesse fazê-lo, não estaria ali nem mais um instante. Não diria como tantos outros «Eu não voltarei jamais.» Isso não.
Poderia voltar, porque ninguém sabe as voltas que o mundo dá. Mas se o fizesse, não seria com as mãos vazias.
Os olhos elevam-se à claridade amortecida que ilumina a parede fronteiriça até meia altura e fixam-se nas fotografias das actrizes cinematográficas, pregadas às paredes como único ornamento. Há uma ruiva com fato de banho, estendida na praia.
Imagina as intimidades do formoso corpo feminino, mas a sensação do papel interpõe-se entre a realidade e os seus sentidos. Mas logo o vazio deixado pela irrealidade da silhueta recortada dum velho Cinéfilo, é preenchido pela imagem real e dominadora da alemã esbelta e loura que, para seu pesar, vê passar quase todos os dias percorrendo a Avenida, de braço dado com o seu marido, o filho do senhor Famalicão 7, fabricante de marmelada, que acaba de regressar da Alemanha.
Quantas noites já sonhou com essa mulher escultural, crendo tê-la cingida nos braços, até despertar com a roupa húmida, desesperado pela realidade que se sobrepunha ao sonho? Nem ele mesmo sabia; de tantas… tinha perdido a conta… Outras vezes, a imagem dessa bela mulher não o deixava dormir e punha-lhe um frenesim doentio nos nervos. Então levantava-se e, como um possesso, dirigia-se para o Jardim Serra em busca da Dorila 8, uma vagabunda vinda não se sabe de onde, que satisfazia osardores sexuais de todos os jovens da vila. Possuía-a selvaticamente debaixo dos bancos, fechados bem os olhos para não lhe ver o rosto repugnante e idiota, preso à ilusão de que tinha a esbelta alemã nos braços. Depois do orgasmo ficava triste, com asco de si mesmo, sentindo-se repelente como uma rata das fossas.
O coto da vela extingue-se lentamente. Chico estende-se no enxergão sem tirar a roupa. Encolhe-se, tentando evitar o frio cortante. Pensa na mãe, já morta, e no pai, nos problemas que tivera com ele, e acaba por adormecer.
5 Roque Luís Féria Ponce foi Director do Sporting Clube Olhanense e chefe da Secção Central do Tribunal. Foi um homem de esquerda pacato, recordado como idealista e afectuoso com os mais simples. Residia em cima do antigo Café Avenida. Quando faleceu, em 1956, a família ficou surpreendida pela afluência de pobres no seu funeral, que quiseram inclusive carregar a urna aos ombros. Afinal o Dr. Ponce (apesar das funções diferenciadas que desempenhava não era licenciado) distribuía do seu ordenado ajudas a dezenas de necessitados, inclusive aos jogadores mais pobres do Sporting Olhanense! Um seu filho médico, que seguiu este comportamento do pai, faleceu muito cedo, em 1945. Talvez que a personagem deste livro tenha algo de fusão entre pai e filho.
6 Fernando Pessa foi o locutor português da BBC durante a 2ª Guerra Mundial, cuja voz, por isso se tornou muito conhecida em todo o País.
7 O verdadeiro nome era Alexandrino Coquenão, fabricante de marmelada numa transversal da Av. Bernardino da Silva, cujo filho era efectivamente casado com uma esbelta senhora de origem alemã.
8 A Dorila era uma pobre rapariga com um grande atraso mental, de quem muitos se aproveitavam sexualmente. Vivia num espaço fornecido por um grupo de caridade de senhoras de bem, nomeadamente D. Emília Mendonça (esposa do Presidente da Câmara João Carlos Mendonça), D. Mafalda Gaspar e sua irmã, D. Florência Ferro, D. Beatrice Cocco, etc.
IV
Os tripulantes da lancha Deus te guie recolhem o mais depressa que podem as redes vazias e dirigem-se a terra, à proa da embarcação. O vento começa a soprar do sueste, e o mar encrespa-se furioso, obrigando o timoneiro a arrojadas manobras. É uma noite perdida como tantas outras, que nem sequer dá para as despesas de viagem. E, para maior desgraça, pôs-se um inesperado vento ululante aparecido inesperadamente.
A vela agita-se como um fantasma branco no breu nocturno, ameaçando romper-se a cada momento. O mastro verga-se aos uivos do vento, que vai aumentando de intensidade. A fúria do mar recrudesce. A lancha debate-se já entre as primeiras montanhas de água que em trombas vertiginosas, acompanhadas do granizo e chuva, caem sobre os pescadores, querendo sepultá-los. Eles começam a sentir medo, receando um naufrágio, enquanto dolorosas e angustiosas recordações ressurgem na mente.
Olham as ondas rebentando em cachão contra o casco da frágil embarcação que avança indecisa em ziguezague. No horizonte fechado, mal brilha o farol da ilha. A terra está longe.
Quem podia adivinhar tão brusca mudança de tempo?… É certo que o mês de Dezembro sempre fora falso como cão que ladra. Mas, quem ia pensar?… O dia e a noite tão lindos, e agora o amanhecer tão traiçoeiro.
O pobre não tem sorte, é inútil… Estar com Deus ou com o diabo, é igual. Para que lhes serve a imagem de Nossa Senhora da Agonia que trazem pendurada ao pescoço? A verga começa a ceder e, logo depois, a forte ventania fá-la em pedaços com a sua faca invisível. As ondas cada vez mais ameaçadoras, impulsionadas por um demónio marinho, gelam o coração dos pescadores. A proa da embarcação não está agora a mais de dois palmos do nível da água. As esperanças vão fugindo e o naufrágio parece já uma realidade. Estão sós… e abandonados no mar.
Dão-se conta de estarem perdidos na imensidade oceânica. As trombas de água, o vento e a chuva, um inferno iluminado por fugazes relâmpagos como setas de fogo, fazem os humildes pescadores sentirem-se muito diferentes dos homens de coragem como sempre se tinham imaginado. Em volta, nem vestígios de barcos; lá longe, a uma distância que lhes parece inalcançável, o farol faz-lhes sinais como uma realidade indistinta. Como puderam afastar-se tanto da costa? Até parece que em vez de se aproximarem, mais se tinham distanciado. A lancha não avança, detida por um verdadeiro furacão marinho. As ondas golpeiam-na, cercam-na, enquanto os pescadores olham o céu para lá da desmedida massa líquida; o horizonte está negro, horrorosamente negro.
Manuel Domingos lembra-se nesse instante, pelo cenário que o envolve, do Manuel Beirão, do José Sabino, do Francisco Alto e de tantos outros, naufragados em noites de temporal como este. Os seus corpos tinham sido arrojados à praia meio comidos pelos peixes. Esta evocação gela-o ainda mais que o frio da noite, e o medo da morte apodera-se do seu coração.
O velame destroçado incha e range, como um corpo crivado de punhaladas por fortes rajadas de vento. E, de súbito, uma montanha de água, como um tufão infernal, abate-se sobre a frágil embarcação fazendo-a submergir de vez.
Manuel Domingos sente-se arrastado para as profundidades marinhas, mas logo volta à superfície, olhando com uma ansiedade sem limites o oceano revolto. Julga ver, à distância, o casco flutuante da lancha. Quer alcançá-lo, mas não pode. As forças abandonam-no.
O mar arrasta-o para longe. As pernas e os braços paralisam-se-lhe. Dos companheiros, nem sombra… Quer gritar contra o mundo, contra a sociedade corrupta em que viveu, desafogar uma dor antiga que lhe oprime a alma, confessar que matou a sua mulher. Por que sucumbe ele, afogado a tantas milhas da terra? Mas a voz afundase-lhe na garganta, sob a fúria do mar revolto.
Morrer afogado? Que angustioso é morrer afogado à mesma hora em que os senhores e meninos da terra dormem tranquilamente, sonhando com somas fabulosas acumuladas à custa do minguado salário do desmedido trabalho do pobre! Que farão, nestes instantes de desolada tragédia, quando exala os últimos suspiros de vida, os seus antigos sócios? Que sonhos afortunados terão?
Um trago de água sufoca-o, e logo outro e outro mais. A mão da morte arrasta-o para os abismos marinhos. Braceja instintivamente, mas todos os seus esforços são vãos. Sente chegado o seu último instante… Só então, para justificar uma vida quase inútil, lança o pensamento para terra, em direcção ao filho. De todo o coração lhe deseja sorte na vida, para poder fugir quanto antes do pântano em que vive. Que não lhe siga os passos, que fuja e grite o que ele não teve coragem de gritar.
Os pulmões doem-lhe horrivelmente. Sente submergir-se completamente. É o fim. Que a morte ponha termo à sua agonia.
O mar continua encrespado, na sua fúria demolidora contra os penhascos do promontório. Lá longe, no amplo horizonte, a ressonante e descomunal massa líquida continua agitada, varrida pelo vento.
Da lancha e seus tripulantes nada resta à tona do mar revolto.
V
Naquela manhã o Deus te guie não regressa ao porto. Teme-se um naufrágio.
Um salva-vidas da Capitania do Porto contorna toda a ilha, supondo-o abrigado num recanto, mas volta ao pôr-do-sol, desfeitas já todas as esperanças de o encontrar.
Com a chegada da noite invernal, sem estrelas, a notícia do naufrágio espalha-se pela terra com celeridade. Alarmada com a triste novidade, a gente desce até ao porto, olhando o mar enfurecido. As velhas benzem-se recordando outras tragédias e rezam por alma dos náufragos em noites tormentosas. Os moços olham o mar com raiva, os punhos apertados e dispersam-se sem dizer palavra. Só os velhos lobos-do-mar, encurvados pelo peso dos anos ou por um reumatismo prematuro, fazem conjecturas acerca do mar e dos astros.
– É o destino, não há volta a dar-lhe. Uns nascem com estrela e outros nascem estrelados!
Os nomes dos náufragos andam em todas as bocas, enquanto o mar, longe, para lá da barra, continua rugindo ameaçador.
Chico da Júlia desperta nesse dia com mais disposição para lutar pela vida. Tem ouvido dizer que a vida tem duas faces, como a mais insignificante moeda, mas ele só conhece uma, a pior, sem dúvida.
«Há que lutar e ter fé no futuro até que a face oculta se torne visível», pensa. Um entusiasmo viril, como só sentira durante a passagem da sua infância, o embala ternamente numa silenciosa canção de esperança. Nesse dia, a escova de lustre desliza mais depressa sobre os sapatos dos clientes e o pano de lustrar range estrepitosamente, impelido com força pelas suas mãos. Os pensamentos, como relâmpagos, cruzam-lhe o cérebro e precipitam-se para o futuro.
Tão abstraído está nos seus sonhos que não vê aproximar-se o Olhinhos, velho companheiro de fainas. Só dá pela sua presença quando o braço deste lhe rodeia o pescoço numa atitude pouco comum.
– Olá! – murmura, voltando a inclinar-se sobre os sapatos do cliente, quando lhe parece notar algo de extraordinário no olhar do amigo e logo pergunta: – Que tens tu?
Olhinhos não lhe responde mas continua a fixá-lo com um olhar triste em que já assomam as lágrimas. Chico levanta-se, alarmado, pega-lhe por um braço e volta a insistir: – Que tens tu? Que te aconteceu, Olhinhos?
Este decide-se a falar, sem pressa, com a voz embargada pela emoção.
– Mas tu, Chico, não sabes nada?
– Não sei nada, de quê?
– Do teu pai!
– Do meu pai? Que se passa com ele?
– Morreu… Chico. Teu pai morreu afogado!
Chico da Júlia estremece. Abre muito os olhos e fica como petrificado, recusando-se a admitir a realidade que cai sobre ele; depois, com um soluço angustioso, cai no chão. Os seus olhos, como os de uma rês muito ferida, reflectem dor e ternura.
Olhinhos inclina-se sobre o amigo e, com o auxílio do moço do café próximo, que acorrera a ver o que se passa, levantam-no e sentam-no numa cadeira. Lavam-lhe o rosto com água fria e reanimam-no. Depois, cada um vai à sua vida.
Chico fica só, observado a distância pelos olhares inquiridores dos escassos clientes do café, aglomerados à sua volta. Chora copiosamente até ficar seco como um charco chupado pelo sol. Refaz-se do quebranto e serena. É analfabeto, mas compreende… Compreende agora muitas coisas que horas antes não compreendia. O coração já não o fere. Quase não o sente; em seu lugar parece sentir uma bomba, uma bomba cheia de ódio que explodirá um dia.
Um a um, os cadáveres dos náufragos vêm sendo recolhidos. Depois de os ter engolido, o mar arroja-os à praia, de onde, embrulhados em simples cobertores, seguem para o cemitério, cuja terra, como mãe amorosa, os espera para lhes dar sepultura.
VI
A vila está de luto. O naufrágio, de tão tristes e funestas consequências, enluta os bairros pobres. Desde as primeiras horas da madrugada que gente marítima acode ao porto repleto de embarcações, a contemplar o lobo marinho ainda irascível. Todos comentando amargamente o sucedido.
Os naufrágios não surpreendem inteiramente. Todos os invernos, quando o mar se encrespa e a fome acossa os lares pobres, as entranhas do imenso mar arrebatam traiçoeiramente a vida de velhos e jovens pescadores. A gente entristece, angustia-se, mas não consegue odiar o mar que a embala, desde meninos, com canções de vida e esperança, de lendas e epopeias. Ante a tragédia que deixa mulheres e crianças sem protecção, abandonadas à miséria dos sem-família, expostos ao egoísmo e compaixão hipócrita dos poderosos da terra, as gentes da costa compreendem que não é o mar o culpado. O mar é um amigo, seu ganha-pão de muitos anos. O culpado desses naufrágios, dessas angústias sofridas em silêncio, está por cima de suas cabeças, alheio ao seu vegetar, indiferente à sua dor e aos seus problemas.
As pupilas da gente do mar turvam-se, têm visões assombradas, entre o delírio e a realidade. Vêem um enorme polvo asqueroso avançar para os pobres e os enlaça com os seus temíveis tentáculos, chupa-lhes o sangue, o amor e a felicidade. O monstro sopra, ri sarcasticamente e ostenta na cabeça viscosa uma coroa de ouro forjada com o cansaço e o suor dos braços vigorosos dos homens do mar.
Na gente do povo começa a formar-se um pensamento, embrião de ideia, sem orientação, é certo, mas com uma convicção de verdade, uma força de árvore tortuosa cujos ramos crescem ansiosamente em busca do sol. É a nascente dum rio que logo engrossará com os caudais de outras multidões e se tornará poderosa…
O povo aglomera-se na doca para ver de perto os cadáveres que são retirados dos salva-vidas. As mulheres soluçam cadenciadamente e limpam os olhos lacrimosos, enquanto os moços, vestidos de remendos, contemplam a cena com assombro. Os corpos dos mortos, muito rígidos, estão quase irreconhecíveis; unicamente a roupa os identifica. A polícia contém com dureza a avalancha de gente que engrossa constantemente, desejando contemplar uma última vez aqueles rostos tão familiares.
Ouvem-se os gritos desgarrados que cortam a paisagem marítima, como navalhas invisíveis. São as mães e as esposas dos náufragos. A multidão deixa-as passar respeitosamente.
Algumas mulheres, rigorosamente trajadas de negro, irrompem transtornadas pelo desespero e dor até junto dos mortos. Uma delas, ainda bastante jovem, conduz um miúdo pela mão. Detém-se no recinto onde se acham os cinco corpos inertes, passa os olhos em seu redor, numa expressão de desalento e abandono e, num grito transido de sofrimento, cai sobre o cadáver do marido.
A criança, atrás dela, olha amedrontada o corpo desfigurado que exala um cheiro pestilento. Não compreende por que motivo a mãe o abraça cheia de angústia e quase o devora com beijos.
Depois de alguns instantes de doloroso desafogo, a jovem mulher parece serenar e volta-se para o filhinho, chamando-o.
– Vem aqui, Joãozinho. Vem, beija o teu pai… zinho! Vem…
O miúdo permanece imobilizado. Ela pega-lhe pela mão e leva-o junto do morto.
Ele tem medo e rompe a chorar, resistindo aos esforços e desejos da mãe.
Os sulcos de agonia marcados no rosto do náufrago aterrorizam-no. Liberta-se da mão da mãe e foge, refugiando-se no seio da multidão.
Dois funcionários marítimos arrancam dos braços da jovem viúva o cadáver do esposo e junto com os dos companheiros transportam-no para um camião que faz as vezes de ambulância. Este afasta-se para fora da doca, rumo ao centro, e o povo começa a segui-lo até o perder de vista entre as filas de casas baixas, envoltas numa nuvem de pó.
O povo não descansa, como um mar agitado. Nestes dias, as chaminés dos bairros operários não fumegam. Parece que ninguém se recorda disso. Trata-se da última homenagem aos heróis caídos, de solidariedade com a dor dos seus familiares.
Frente ao Compromisso Marítimo apinha-se a gente trabalhadora: velhos lobos-do-mar nos seus trajes pitorescos, já descoloridos pelo uso; mulheres trigueiras de xaile e mantilha; trabalhadores das fábricas e da construção com traje de ganga muito limpo e bem passajado. Também estão os moços de fretes e os engraxadores. Entre eles vê-se o Chico da Júlia de alpercatas e gravata preta. Neste dia não calça os sapatos castanhos, oferta de segunda mão de Pedro do Ó. Algo estranho, que ele não sabe o que é, o impediu de calçar as velhas alpercatas de sola de borracha que antes tinha vergonha de usar. Com ele estão os velhos amigos dos dias de infortúnio: Olhinhos, Bocage, Camões, Tocha o Velho das Barbas 9, e tantos outros, alcunhados pela boca do povo.
Acostumaram-se de tal maneira a essas alcunhas que quase se esqueceram dos seus verdadeiros nomes.
Os mortos, envoltos em lençóis, depois duma curta permanência no Compromisso Marítimo, a fim de se atender à certidão de óbito, voltam a ser conduzidos ao camião envoltos em mantas. É essa a mortalha com que baixam à terra, depois de tanto sacrifício e heroísmo nas lides marítimas para a subsistência da vila; é este o prémio da sociedade ao seu arrojo nunca desmentido. Todavia, eles tão-pouco necessitam de outras mortalhas, nem ainda as que pela sua condição de gente laboriosa lhes correspondem.
Humilde será sua sepultura, como humilde foi seu nascimento.
O camião afasta-se lentamente, a passo de boi, avenida abaixo. A multidão começa a segui-lo. As rudes mãos dos pescadores enrolam as boinas. Todos caminham cabisbaixos, tristes. Ninguém faz comentários. O silêncio é perturbado apenas pelo choro de um ou outro menino e a passagem de veículos ocasionais.
As mulheres envoltas nos xailes, meditam. Já não choram, têm os olhos secos.
Acompanhantes atrasados desembocam das ruas contíguas, como pequenos riachos que desaguam num grande rio, engrossando o funeral. Às janelas dos grandes edifícios da avenida assomam algumas cabeças de gente de bem, de cujas bocas saem exclamações de admiração ante o desfilar silencioso de centenas de operários e pescadores atrás do camião, tributando a última homenagem aos que caíram no seu posto. Meninas ridículas e velhas alcoviteiras, unidas pelo luxo, não escondem o seu assombro: – Credo! Que funeral ordinário e majestoso ao mesmo tempo! Nem o funeral do Dr. João Lúcio foi tão grandioso e impressionante.
– Não se compreende esta gente… tanta consternação por cinco pobres diabos!
O funeral chega à Rua 18 de Junho, tomando a última recta em direcção ao cemitério. No sentido inverso vem um automóvel que a avalancha de gente força a deter-se. O indivíduo que o conduz encara a multidão, toma consciência de que se trata do funeral dos náufragos, mas conserva o chapéu na cabeça. Não tem intenção de se descobrir ante os heróis e mártires que passam silenciosos e dignos, rumo à sua última morada.
9 O Olhinhos ou Focsse , era assim chamado por ter uma doença que lhe dava proeminência aos globos oculares; era operário de litografia, morador no Bairro da Barreta e figura muito popular pelas suas “partes”. O Bocage era um engraxador muito pobre, de quem diziam que tinha umas unhas tão compridas que só poderiam ser cortadas na linha do comboio! Anunciava as fitas de cinema do dia, suportando um enorme boneco armado aos ombros, cuja cabeça passava ao nível dos parapeitos das açoteias! O Camões, assim seria chamado devido a um defeito numa vista. O Tocha era engraxador, originário de uma família de Setúbal e também um dos que anunciava as fitas de cinema do dia. O Velho das Barbas já seria idoso na década de 1940 pelo que não encontrámos agora quem dele se lembrasse.
Todos notam e sentem na própria carne o insulto premeditado desse estranho que, como um intruso, se cruza no caminho. Todos notam o desdém estampado no seu rosto; todos sentem ganas de gritar como sinal de protesto, mas não gritam. A rebelião é ainda um pássaro sem penas, de asas débeis, que não pode voar.
Quando o funeral está a ponto de passar e o cavalheiro do automóvel se dispõe a reiniciar a marcha, ouve-se entre a multidão uma voz ainda jovem, mas firme e convicta: – Um momento, senhor Silveira! Não sabe que é um dever respeitar os mortos, ainda que sejam os de condição humilde? Vamos, senhor Silveira, descubra-se. Tire o chapéu!
As pessoas detêm-se, aprovando as justas palavras, e os olhos procuram com gratidão quem acaba de falar. Vêem o Eduardo, o filho da Etelvina. Surpreendido pelo inusitado olhar do jovem ainda imberbe, o senhor Silveira, poderoso e conceituado comerciante da terra, que não está acostumado a que qualquer plebeu lhe dirija palavra em semelhante tom, sai do carro e de maneira rápida e autoritária avança para ele: –
Cuidado, velhaco, porque te vou fazer engolir as tuas palavras. Se me julgas da tua laia, farei ver-te que estás enganado.
– Tire o chapéu, não seja mal-educado! – replicou Eduardo.
– Tire o chapéu! Tire o chapéu! – reclama em coro a multidão.
Colérico, o senhor Silveira avança ameaçador para Eduardo, mas logo uma mão anónima e potente o derruba, fazendo-o cair por terra e atirar para longe o chapéu.
Os acompanhantes do cortejo fúnebre, que se tinham atrasado por causa do incidente, aligeiram o passo para alcançar o camião, que já transpõe as portas do cemitério. Sob os velhos ciprestes está aberta uma sepultura de grandes dimensões, verdadeira vala comum. A terra, cavada recentemente, mole da humidade, mostra aqui e além pedaços de ossos que fazem meditar nas misérias e grandezas da existência.
A pedido do coveiro, alguns voluntários sobem ao camião e trazem os mortos. O vento sopra na direcção dos circunstantes, levando-lhes o cheiro fétido dos cadáveres, já em decomposição. Vários circunstantes de sentidos mais vulneráveis e delicados, tapam o nariz com um lenço. Mas todos esperam, sem se afastarem, que termine a cerimónia fúnebre. Um a um, os mortos, envoltos em mantas amarelas que nunca conheceram lavagem, descem à sepultura, amarrados por cordas. As mulheres benzem-se, soluçando, e os homens, ainda os mais rudes, sentem-se profundamente emocionados.
Há lágrimas em quase todos os rostos. A cena é comovedora. Os primeiros torrões, lançados pelas mãos de familiares e amigos, começam a cobrir os defuntos; depois, a pá do coveiro inicia, lesta, a quotidiana tarefa. O pranto contido, mal irrompe, transborda como um rio saído do seu leito. Lamentações de angústia cortam o ar e os corações.
O Chico da Júlia tem a consciência de que uma barreira eterna o acaba de separar do pai. Excitado por esse sentimento, como que possesso, salta sobre a tumba já completamente coberta de terra: – Pai! Já não nos vemos mais! – Volta-se para a multidão, com os punhos cerrados: – Mataram-nos. Mataram-nos os poderosos da terra!
Empurraram-nos para a morte depois de lhes tirarem os direitos e de lhes roubarem o pão da boca. Todos sabemos quem são e onde estão os assassinos. Já o sabia o Dr. Ponce, antes de morrer. Até agora eu não compreendia, mas vejo-o como os dedos das mãos e claro como a água. Um mar de verdades me inunda, mas afogo-me porque não sei nadar. Se eu soubesse explicar esta engrenagem, este labirinto, como o fazia o Dr. Ponce… Mas não sei. Não sei, não, e tenho vergonha e raiva de não o saber!
Terminada a cerimónia fúnebre, o povo começa a retirar-se. Já as primeiras pessoas se acercam da saída do cemitério, quando inesperadamente se ouve o estrépito de cascos de cavalo. A Guarda Nacional Republicana montada penetrava alvoroçadamente de sabre desembainhado na mansão dos mortos, cercando a multidão de operários e pescadores.
– Que ninguém se mova! – ordena o tenente de vistoso uniforme e atitudes rápidas. – Onde está o filho da Etelvina? Onde? Ah, não respondem? Que se apresente imediatamente à autoridade. Vamos, que se apresente esse comunista, esse velhaco. Ao ouvir chamá-lo comunista, o jovem Eduardo estremece. Recorda-se do José da Mónica 10. Silveira, o cavalheiro do automóvel, seguramente que o tinha denunciado.
Tudo o indicava. E agora, que fazer? Ele não é comunista, nem sequer conhece os mais rudimentares princípios dessa doutrina. Mas como prová-lo? Quem o acreditará?
Surpreendido ante o imprevisto acontecimento, hesita. Um dos guardas descobre-o,
10 José da Mónica foi um olhanense proprietário de uma embarcação que se distinguiu por ter salvo muitos combatentes anti-fascistas andaluzes durante a Guerra Civil espanhola, transportando-os para o Norte de África. Por esta razão foi preso e assassinado pela polícia política portuguesa na década de 1940.
desmonta do cavalo e corre para ele, apontando-o: – Aqui está o tipo, caladinho que nem um rato!
Segura-o brutalmente por um braço e sacode-o.
– Não ouviste o senhor tenente chamar-te, filho da puta?
Uma jovem viúva desperta da horrível dor sofrida, olha o guarda arrastando barbaramente o jovem e sente um ímpeto de cólera subir-lhe à cabeça, enquanto um ódio terrível sacode o seu corpo vacilante.
Guiada pelo instinto, gritando vingança, quase cega pela perturbação, abalançase sobre o guarda, gritando: – Assassino! Larga-o, assassino!
O guarda detém-se um instante, indeciso, diante da jovem enlutada, que avança para ele, mas logo a esbofeteia. O sangue aflui ao rosto da jovem. Deixa de ver o guarda e a sua vítima, para só ver o horizonte negro onde se agiganta o inimigo. Os seus dedos agarram a cabeça do esbirro, fazendo-o rebolar com estrépito por entre as sepulturas.
Prendendo-o, agarra-lhe os cabelos e o rosto, para, com um gesto de demência, introduzir-lhe os dedos nos olhos.
O guarda grita de dor e em vão tenta desprender-se dos dedos de ferro que, como pinças, lhe furam as órbitas. Os companheiros do guarda vêm em seu auxílio carregando sobre a multidão indefesa, distribuindo espadeiradas à direita e à esquerda, contra velhos, mulheres e crianças. O tenente atira o cavalo sobre a jovem viúva, derrubando-a violentamente, mas ela reage indiferente às feridas e golpes produzidos pelas patas da besta. Continua afundando os dedos nas órbitas do guarda, até sentir uma massa viscosa e sangrenta empapar-lhe as mãos. Dois guardas vêm em auxílio do companheiro, apanham a mulher pelos ombros, puxam-na pelos cabelos soltos e golpeiam-na selvaticamente. O tenente vocifera enfurecido: – Larga-o, cabra! Larga-o ou arrancamos-te a pele!
Ela já não o ouve; perdera os sentidos, exausta, abatida pelos golpes cruéis dos esbirros. As suas mãos largam a presa e caem inertes, como as garras de uma águia morta.
O cemitério ficara deserto. A multidão debandara e os guardas saem, por sua vez, conduzindo o companheiro cego, para ser urgentemente hospitalizado. Fica ali inanimada, sem aparentar sinais de vida, a jovem viúva, para quem o mundo se desmoronara.
As primeiras sombras da noite baixam sobre o campo mortuário, e com ela uma chuvinha desoladora. Ao contacto das gotas de água, a jovem abre os olhos com dificuldade, faz gestos de inquietação e chama pelo filho: – Joãozinho!
Depois começa a delirar. Dos seus lábios fechados sai um ténue fio de vida que a noite fria e húmida vai apagando. Como uma vela que arde até ao fim, assim se vai dissipando, em convulsões de delírio, uma vida humana marcada pelo infortúnio.
Agitada pelo vento como bandeira enrolada, a formosa cabeleira mistura-se com a terra e as flores, como uma primavera assassinada.
VII
Quando a guarda a cavalo acometera satanicamente contra a gente que, poucos minutos antes, formara o cortejo fúnebre, Eduardo fugira entre a multidão atemorizada.
Quisera voltar atrás, defender aquela mulher que o arrancara das mãos do guarda, mas em vão.
Sentira-se arrastado por uma imparável corrente humana, como uma formiga levada pelo vento. O barulho dos cascos dos cavalos misturava-se com os gritos dos agredidos pelas espadas da lei. Adiante do Eduardo correm centenas de pessoas em tropel. Ouve uma mulher gritar:
– Ai! Deus me valha! Já não posso com ele!
Nos braços trémulos sustem um miúdo. Eduardo reconhece-o. É o filho da viúva que o defendera.
Dê-mo! – grita à mulher.
Toma-o nos braços. O menino soluça, chamando a mãe. Eduardo procura acalmá-lo.
– Não chores. Logo verás a tua mãezinha!
Aperta-o contra o peito e recomeça a correr para o centro da vila. Ao contacto com aquele corpo infantil, sente-se mais homem, mais dono de si. Pela primeira vez na vida pode ser útil a alguém, sem que o repelem ou exclamem: «Aí vai o filho da Etelvina!» O coração palpita-lhe ansioso, parecendo-lhe que cresce como uma flor que se abre quando surge a alvorada.
Detém-se cansado, com o menino ao colo, diante da escada de madeira podre que dá para o seu quarto. Põe o miúdo no chão, vendo-o sorrir, e prepara-se para lutar com o inimigo invisível das suas noites de insónia.
– Tu és filho de uma prostituta!
Eduardo sente no seu ombro a mão dessa sombra argamassada de preconceitos e egoísmo, símbolo de uma sociedade corrompida e brutal que, como um mar revolto, também provoca naufrágios. Parece que a escada de madeira corroída e enegrecida pela chuva, que tem por diante, se eterniza. Não consegue subi-la; os degraus multiplicam-se;
alarga-se o corrimão. Baixa os olhos vencido. Sente febre, delira. Tem a sensação de que milhões de olhos estão postos nele, que milhões de bocas sorriem ironicamente à sua volta. O fantasma volta a fustigar-lhe a cara: – Tu és filho da Etelvina, a prostituta!
Levanta os olhos com raiva, as faces abrasam-se-lhe.
Os insultos recebidos diariamente, durante anos e anos consecutivos, ressoam-lhe no cérebro, repercutem-se-lhe no sangue rebelde, agitam-se como um chicote sobre o seu corpo flagelado.
O fantasma volta sempre com o seu tom monótono e torturador: – Filho de prostituta!
Inquieto, o menino que leva nos braços recomeça a chamar pela mãe, num choro convulsivo. Aquela vozinha infantil dá coragem a Eduardo, enche-o de coragem.
Eduardo sobe a escada com o jovem órfão pela mão, empurra a porta do seu pequeno quarto onde vive na mais completa desordem, e entra. O quarto é, como todos os quartos dos pobres, húmido e sem ventilação, tendo como mobiliário um velho leito de ferro. É uma recordação da sua mãe, dos tempos em que ela era jovem e virgem… e tinha sonhos de futuro.
O menino, cansado, adormece profundamente. Eduardo põe-no ternamente na cama, e senta-se num banco tosco. Sente fome; o estômago contrai-se-lhe. Mexe numa caixa com recortes de jornais em busca de alguma côdea de pão, mas não acha nada.
Vivem-se tempos difíceis, e a miséria, como aos demais da sua igualha, não o abandona. Talvez nas algibeiras tenha alguns centavos. Rebusca bem, mas nada… Está liso. Que fazer?
Um pensamento rebelde volta a insinuar algo que ele pretende esquecer. Sente-se parado na encruzilhada, mas lembra-se logo que é um jovem sem passado. A vista ora inquieta, ora serena, detém-se no órfão que dorme o sono dos justos. Tem de entregá-lo à mãe. Que lhe terá acontecido? Estará em liberdade, ou presa? Em qualquer dos casos, deve estar inquieta sobre o paradeiro do filho. Não sabe onde mora, mas isso é o menos… Perguntará, claro. Talvez lá para o Mundo-Novo 11… Mas é cedo para sair.
O melhor é esperar o anoitecer, com seu manto protector dos pobres.
A Guarda Republicana deve andar a procurá-lo, com certeza. Esses seres, de sentimentos embrutecidos e consciência de chumbo, carcereiros do povo, não perdoam.
O estômago volta a atormentá-lo, num trabalho irregular de máquina sem combustível. São as consequências dos tempos difíceis. A guerra ainda não acabou.
Depois o homem viverá com menos sacrifícios e mais alegria. Assim presume a boa-fé do povo.
11 O Mundo-Novo é um bairro situado a poente da Rua Almirante Reis que cresceu no início do séc. XX quando muitos imigrantes do Mundo Novo, ou seja, da América do Norte, regressaram à terra natal.
Aos ouvidos de Eduardo chega o ruído de passos pesados que sobem a insegura escada de madeira. Levanta-se sobressaltado, mas não tem tempo de reagir. A porta do quarto, impelida por um violento pontapé, abre-se e no umbral surgem ameaçadoras as figuras de dois guardas-republicanos.
– Olá, passarão! Apanhámos-te no covil!
Agarram-no sem que ele oponha resistência.
– Toca a andar. Vamos! E de quem é esse miúdo?
Eduardo não responde, olha bem de frente os captores e resolve não dizer palavra. Um dos guardas enfurece-se.
– De quem é esse miúdo, filho da puta? Vou-te partir a tromba, se não me respondes.
Eduardo é um homem sem passado. Faz-se desentendido. Fora de si, o guarda esbofeteia-o.
– Não queres falar, hein! Já veremos essa valentia no quartel, onde conversaremos mais devagar…
O outro pega no menino, que torna a chorar, assustado.
– Cala-te, piolhoso. Ainda tens as fraldas pegadas ao cu e já rabeias como um lacrau. Praga maldita!
Saem, batendo a porta com raiva.
Quando desponta a alvorada, o povo estremece ao som estrepitoso das sereias das fábricas e dos barcos. A gente laboriosa invade as ruas e a doca, numa onda de vida.
Olhão já não é a aldeia de pescadores de outrora, de horizontes estreitos, mas uma vila majestosa, cujo nome de há muito ultrapassa as fronteiras nacionais.
Graças ao espírito de sacrifício de seus filhos, alcançou a maioridade com o título de Vila da Restauração, conquistado quando despertou sobressaltada numa manhã cinzenta e sangrenta.
Enquanto os Olhanenses dormiam, os Franceses invadiram-na à traição, como o ladrão que esfaqueia a vítima pelas costas com o desígnio de roubá-la. Os Olhanenses não se intimidaram perante as águias napoleónicas. Era um desafio de vida ou de morte.
Os bárbaros invasores não poderiam apoderar-se de uma comunidade cimentada ao longo de séculos. Olhão pertencia-lhes. Amavam-na como às meninas dos olhos. E não eram um rebanho de cobardes, mas gente de coragem.
Que Napoleão conquistasse a Áustria, a Itália, a Rússia, a Espanha, toda a Europa com ou sem excepção de Inglaterra, podiam admiti-lo; agora Olhão, não. Olhão não cairia em seu poder. Ali, nunca o seu olhar de lince perscrutaria o horizonte, nem os seus pés profanariam a terra amada. E cumpriram o seu propósito.
Olhão não figurava no mapa-mundo, nem sequer no de Portugal. Diziam que era terra de mouros, onde à noite pairavam ainda almas sarracenas de sete séculos de ocupação árabe… Não obstante isso, coube a Olhão o primeiro grito de revolta contra os franceses, e de Olhão partiu o caíque rumo ao Brasil, levando à família real, lá refugiada, a notícia da expulsão napoleónica.
Olhão expulsou os franceses, foi ao Brasil numa frágil casca de noz, dedicando-lhe José Agostinho de Macedo o poema «Novo Argonauta». Teve também filhos eminentes como Joaquim Lopes e Estêvão Afonso, mas nada tornou a vila mais conhecida do que a indústria de conservas de peixe. E toda a população o sabe, porque graças a ela e aos seus pescadores, a fome ainda não destruiu as gerações que a fizeram crescer e multiplicar-se durante as guerras mundiais.
José Gago desperta sobressaltado, levanta-se como uma mola da almofada, e leva instintivamente a mão ao coração, fixando os olhos sonolentos na direcção da janela meia aberta, como se procurasse algo cujo nome lhe não vem à memória.
Mexe um dos braços em busca de uma posição mais cómoda, mas parece sentilo desarticulado do corpo. Um gosto amargo e esquisito sobe-lhe do estômago à garganta. Tosse, como protesto contra o silêncio, com a intenção de chamar alguém que o ajude a levantar-se e a abrir completamente a janela que dá para a rua. Precisa respirar o ar puro e húmido da manhã e de ouvir os pregões matutinos das camponesas que, àquela hora, montadas nos seus burros e mulas, invadem a vila para vender as suas frutas e hortaliças no mercado.
Tenta mover-se, mas uma vontade estranha o entorpece, e já não é, como antes, uma só indisposição passageira, mas cresce desmedidamente até se transformar num mar de angústia onde naufraga.
José Gago quer a todo o custo livrar-se dessa obsessão que se enraizou no cérebro. Mas tudo é inútil. Amedronta-o a morte que não vê, mas que sente.
Jamais havia pensado que chegaria a apunhalá-lo o problema biológico da morte.
Nunca tivera tempo de pensar no seu destino individual, tão absorvido andava nas questões quotidianas que desonestamente resolvia a seu favor.
Será a morte para ele a mesma que tragou o Manuel Domingos nas suas entranhas, o seu ex-companheiro de muitos meses de trabalho?
Havia-o esquecido, como um caminhante esquece um outro com quem um dia se cruzou, crendo não haver nada de comum nos seus destinos.
Quem havia de dizer que um homem que sobe na sociedade, escalando posições como um alpinista escala montanhas, tem o idêntico destino de morrer como um obscuro mineiro que, como toupeira, vive em galerias subterrâneas quase sem luz? Não haverá uma tábua de salvação para ele? Não, não há. O mar da morte é igual para todos; não há náufrago que logre salvar-se.
José Gago pensa no dinheiro amontoado no seu cofre e depositado nos bancos.
Fecha os olhos e sente náuseas, mas o pensamento, obcecado, não vê senão notas roxas, azuis, verdes, de todas as cores, até transformar-se em talhadas de carne sangrenta e nauseabunda, em sangue dos operários famintos e tuberculosos, condenados a trabalhar para ele até à morte; em lágrimas das operárias por ele violadas e depois deitadas à rua.
As notas de banco misturam-se com o sangue e as lágrimas num imenso oceano onde bóiam cadáveres, de tornozelos envolvidos em grilhetas.
É o mar da morte. Ali está o Manuel Domingos; ali estão as centenas, milhares de mãos que o ameaçam. Como escapar? Como fugir? Ah, se tivesse um filho!
A luz diurna começa a mostrar-lhe o quarto, e com ela volta a realidade quotidiana.
A vista pousa num vulto familiar, adormecido a seu lado. Fica-o contemplando com ternura, quase com amor. Só agora, depois de quinze anos de vida matrimonial, reparava nele.
A claridade do dia, resplandecente, assenta na metade nua do corpo da mulher adormecida, ressaltando-lhe a obesidade prematura, fonte de uma maternidade frustrada.
Vê nela uma terra pedregosa, árida, gretada, sedenta, cujos desejos não acham eco nem repercussão. Sempre a tratou com indiferença, fazendo-lhe sentir ainda mais a inutilidade da sua existência. Ele queria filhos, muitos filhos, mas ela não lhe dera nem um. Viu-a desesperar-se pedindo a todos os santos que lhe dessem a graça de conceber.
Ela implorava, mas tudo fora inútil. A sua esterilidade era um facto consumado. No entanto, continua revoltando-se contra o que ela mesmo sabe ser já uma certeza, e consulta livros desde os processos primitivos de fecundação do tempo de Hipócrates, até aos métodos modernos de fecundação artificial dos nossos dias.
José Gago nunca a confortara na sua tragédia biológica; nunca tinha, para ela, palavras que lhe enchessem o vazio da sua vida; mas agora, quando também ele sofre, compreende o seu drama.
Sente-a junto a si; a presença dela impõe-se-lhe cada vez mais, como se o calor do seu corpo, ainda tentador, o atraísse. Contempla-a em silêncio, como se assistisse à sua própria autópsia.
José Gago procura serenar-se, voltar de novo a ser dono de si mesmo, mas, coisa estranha na sua vida, uma angústia cavada profundamente no peito leva-o a uma análise de consciência. Sente o passado abater-se inteiramente sobre ele; sente-se um desses pedregulhos que arrojava quando era criança, dos cerros ao fundo dos precipícios e que se perdiam em estrondos rotundos.
Os lugares onde passara a infância desfilam pela sua memória, e vê-se outra vez rapaz, rodeado de rostos e vozes familiares. Ali está a mãe para acariciá-lo e dar-lhe conselhos com a melhor das intenções, com olhos bondosos e expressivos, ali está também o Tio Joaquim das Ovelhas, de sorriso bonacheirão, sempre pronto a contar-lhe as suas aventuras e desventuras no Brasil; ali estão ainda os animais seus amigos: o cão Carocho, que lhe seguia os passos, agitando a cauda e lambendo-lhe as mãos. O gato Carolas, astuto e guloso, que lhe havia comido o pintassilgo; a burra Joana e tantos outros que o filme da sua existência registava. Vê-se crescer, vestir as primeiras calças compridas, compradas na loja A Africana, fazer-se homem, começar a trabalhar como aprendiz de soldador e sonhar com a emigração, como fizera o Joaquim das Ovelhas, com a diferença de que não voltaria pobre, mas rico, carregado de ouro, e então livraria a mãe da miséria, que era o seu pão diário.
No entanto, o seu desejo de emigrar acabara por extinguir-se. O menino converteu-se em homem e com ele novas ambições nasceram.
Aqui, José Gago sente o passado barrar-se-lhe em nuvens de incompreensões e vê todas as sombras familiares afastarem-se dele, envoltas em opacos véus negros, para penetrarem em silêncio nas suas tumbas. Ainda quer recordar as feições da mãe mas não consegue. Os seus traços fisionómicos, que ele esquecera, fogem, como as ondas do mar para lá da ilha.
Novos períodos da sua vida ressurgem-lhe no ecrã da memória, sobrepondo-se ininterruptamente. Tem presente a Etelvina, a dos cabelos de oiro, seduzida pelas suas promessas, pedindo-lhe que não a abandonasse e reconhecesse como seu, o filho que ia nascer. Vê-a depois dobrada pelo peso da maior desilusão da sua vida de jovem seduzida e abandonada, a transpor o umbral da porta da fábrica e perder-se para sempre no remoinho humano da rua.
O seu coração fora duro e vaidoso, albergue de preconceitos sociais, mas agora está débil, temeroso, diante das recordações desses fantasmas do passado que na sua consciência o perseguem. É como uma rocha de granito que a humidade do mar acaba por corroer.
A vida de José Gago fora uma porta que se fechara para Etelvina, a menina de cabelos de oiro, como costumava chamar-lhe. Ele ficara por dentro, ela por fora. Dentro havia o calor da cozinha, a comodidade de um lar bem mobilado; fora, o frio e a chuva, a fome e a miséria. Etelvina sobrevivera estoicamente, apoiada no ódio nascido contra o homem que a vilipendiara, na ansiedade de educar o filho nascido sem pai. Sobrevivera durante algum tempo, resistindo à chuva e ao frio, mas a sociedade acabara por a fazer estatelar-se no lodo das fossas das ruas. Enfrentara os canalhas que cuspiram sobre o seu formoso corpo, dando-lhe outro itinerário. Já não era só a operária seduzida, mas também uma mulher pública, a companheira acidental e mercenária de todos.
José Gago havia-a esquecido quase absolutamente. Apenas se dera conta que ainda vivia quando a encontrara casualmente com o filho que, perante a lei, se obstinava em não reconhecer como seu.
Deixara de encontrar Etelvina pelas ruas, mas sucede-lhe com frequência cruzar-se com o filho. Estes encontros casuais gravam-lhe profundos sulcos na sensibilidade, como o arado na terra. Diante do filho sente-se tímido e baixa os olhos. Vê nele um rio, com um leito em que tem medo de fixar-se, como se tivesse diante dos olhos um retrato da sua humilde adolescência. O retrato, tirado e ampliado pela imaginação, anima-se de vida e apunhala-o.
Quer esquecer o passado, pôr de lado todas as reminiscências proletárias dos antigos tempos, mas – compreende bem agora – não consegue. O passado, como fio de água entre as rochas, infiltra-se no presente.
O cadáver do fantasma por ele estrangulado, sigilosamente, nas costas da sociedade, ressuscita, reencarnado no filho da Etelvina, olhando-o duma maneira estranha. Aquele olhar duro, insinuante, como a vida de quem nasce dentro duma prisão sem frestas, fulmina-o, fazendo-o soltar exclamações incoerentes e instintivas que a garganta dificilmente silencia.
Não pode tolerar esse olhar mudo, mas tão significativo, reflectido na sua consciência.
José Gago desconhece-se ou, pelo contrário, volta a reconhecer-se. O industrial dinâmico e sorridente, sem problemas filosóficos, que a alta sociedade da terra tão bem conhece e aprecia, desaparece, e deixa em seu lugar um ser débil e torturado por dolorosas meditações.
A sensação de medo afunda-se ainda mais na consciência. Então, pela primeira vez na sua vida, sente a desolação da saudade… O mundo parece-lhe, nesse instante, um imenso deserto, onde se encontra perdido; e o dia assemelha-se a uma noite infinita, onde a sua alma de Judas voga perdida, sem mão amiga que o guie. O rosto arde-lhe.
Deve ser a febre…
Uma indisposição física, aliada à mental, fá-lo dobrar-se sobre o corpo da mulher ainda adormecida, e num gesto de ansiedade, como um garoto aterrorizado, abraça-a fortemente pela cintura, com gritos frenéticos de histerismo: – Adelaide!
Adelaide!
IX
O Dr. Dias12 toma-lhe o pulso, ausculta-lhe o coração, examina-lhe a língua e faz o seu diagnóstico: não é nada de cuidado, apenas uma passageira indisposição, ocasionada por excesso de trabalho intelectual. Uns dias de repouso, um pouco de regime na comida e tudo voltará à normalidade.
Os receios da Dona Adelaide quanto ao bom funcionamento das faculdades mentais de seu marido são infundados, conclui o Dr. Dias.
O doente é um homem de negócios, os números, como teclas, martelam-lhe no cérebro e, como é natural, acabam por lhe debilitar um pouco a mente. Ao retirar-se, dando por terminada a visita médica, o Dr. Dias, com o seu costumado ar paternal, aconselha-lhe uma ou duas horas de distracção de espírito.
José Gago deve ler as poesias de João Lúcio13, principalmente do Meu Algarve, onde se exaltam as belezas naturais duma província privilegiada, com as suas amendoeiras floridas e as suas mouras encantadas. Essa leitura far-lhe-á bem, decerto. O homem tem, muitas vezes, necessidade de elevar o espírito para além deste pobre mundo de Cristo e esquecer-se da sua condição mundana, para vaguear por alturas siderais.
Graças ao carinho e desvelo de sua mulher, e também às atenções de Deolinda, sempre tão solícita, José Gago acaba por serenar-se e retornar à calma habitual, chegando quase a esquecer-se do acontecido e a rir-se da sua debilidade. Unicamente para não afligir a mulher que lhe faz seguir a pés juntos os conselhos do médico, acede a passar as tardes no terraço, sentado numa cadeira de braços, lendo o poeta João Lúcio.
No entanto, aquele género de leitura não satisfaz o conceituado industrial. O lirismo encomiástico de João Lúcio não o sensibiliza e dá-lhe a impressão de um mundo de coisas remotas e estranhas que a sua inteligência não consegue compreender. Como leitura de distracção, prefere os folhetins da Gazeta de Notícias, lidos nos momentos de ócio entre baforadas de fumo e o sabor de algum finíssimo licor.
Enfastiado com a monotonia sentimental do autor do Meu Algarve deixa cair o livro sobre a mesita, acendendo um cigarro e aguardando aborrecido a chegada da esposa. Quando esta aparece, seguida pela serviçal com o chá e as torradas de pão com manteiga, pede-lhe o último número do jornal.
– Como? – estranha ela. – Já acabaste de ler o livro que…?
– Não me interessa esse livro – interrompe ele, decididamente. – Quero leitura que me fale de coisas plausíveis, de negócios, de factos e problemas. Estou saturado de viagens, rosas e versos à lua. Eu vivo na terra e desejo tratar com a realidade, não quero andar nas nuvens.
– Mas o doutor aconselhou…
– Que sabe o doutor, mulher, senão dizer tolices! Vamos, traz-me o jornal… !
– Está bem – diz ela – mas antes bebe o chá, que está belíssimo.
– Bem, seja!
Como um garoto esperando depois dum prolongado enfado, José Gago saboreia o chá de limão e devora o pão torrado. A doença abre-lhe o apetite. Sente uma fome devoradora que, contra sua vontade, lhe faz lembrar a fome crónica dos dias da sua distante infância. Lembranças que o fazem sorrir, com um sorriso de animal feliz e bem alimentado. A mulher entrega-lhe o jornal. Antes de o abrir acende de novo um cigarro.
Olha a primeira página do quinzenário, e lê o título do artigo de fundo: A DERROTADA ALEMANHA. Continua lendo algumas linhas ao acaso. Os alemães estão perdidos, não há a menor dúvida. Foi menos mal ele ter o bom sentido comercial de se não comprometer inteiramente com nenhum dos países beligerantes. Que se passará com o Fagundes, o Bombarda e outros fabricantes germanófilos da terra? Por sorte, ele está livre. Vendera conservas a ingleses e alemães simultaneamente. Estar bem com Deus e com o diabo foi sempre o seu lema, factor decisivo do seu triunfo.
Os dedos cheios de anéis, onde brilham rubis e diamantes, folheiam o jornal.
Com uma olhadela inquisitiva, corre as páginas de cima a baixo. Detém-se na quarta, na secção «Notas e Comentários». Começa a ler os sucessos do Sporting Clube Olhanense 14 no campeonato de futebol da primeira divisão, passando depois aos factos da vida mundana e social. As notícias necrológicas horrorizam-no e causam-lhe malestar.
Continua baixando os olhos através da página, até deter-se sobressaltado no
14 O Sporting Clube Olhanense foi uma grande equipa de futebol, tendo alcançado em 1924 o título de campeão nacional de futebol.
seguinte comentário em letras garrafais: COMUNISTAS A SOLDO DE MOSCOVO. E lê. «Um grupo de comunistas, cujos desígnios são por nós bem conhecidos, cometeu, na passada quarta-feira, um vil atentado contra as autoridades nomeadas pela graça de Deus, e ao mesmo tempo, contra o bom nome da nossa terra.
«Aproveitando-se do funeral dos náufragos, cujas almas o Todo-Poderoso se dignou receber no seu reino, o bando de agitadores e sabotadores pagos pelo Kremlin para desacreditar o nosso patriotismo, tentou explorar, em proveito das suas vis maquinações, o sentimento exaltado do bom povo católico, doido pelos nefastos acontecimentos.
«Alertado em boa hora sobre os propósitos comunistas, o tenente Meireles, acompanhado por alguns dos seus subordinados, acorreu, a cavalo, ao cemitério, transformado num comício político por parte dos agitadores. Longe de atender à ordem de detenção dada pelo senhor tenente, os alteradores da paz mortuária, desrespeitando as regras estabelecidas, confundidos com a multidão, soltaram estrondosas vivas a
Estaline, czar vermelho de todas as Rússias, enquanto atacavam selvaticamente a pontapés um guarda que havia desmontado para cumprir as ordens do seu superior e que sofreu lesões de certa gravidade na cara.
«Este abnegado servidor da ordem foi salvo da fúria desalmada dos manifestantes mercê da valentia dos seus companheiros que, sem olhar a sacrifícios, se lançaram demoradamente sobre os conspiradores, logrando desbaratá-los.
«Entre a multidão apenas houve uma vítima: a esposa de um dos náufragos, que talvez numa intenção de suicídio, se arrojou para debaixo das patas dos cavalos, onde encontrou morte instantânea.
«As autoridades da terra buscam afanosamente os chefes do bando. Até agora só conseguiram deter o menor Eduardo Lopes, engraxador de profissão, fanático pela Rússia Soviética, que até ao fecho da presente edição não pronunciou uma só palavra».
José Gago interrompe a leitura. O coração volta a atraiçoá-lo. Os seus pensamentos redemoinham à roda do rapaz que a Gazeta cita como comunista convicto.
Ultimamente, ainda que contra os seus desejos, começara a interessar-se por ele. «Por que será?», interroga-se sem convicção. «Ele é teu filho. Ele é o renovador da obra que tu destruíste».
Inquieto, com as faces ligeiramente alteradas, recomeça a leitura:
«Amanhã será entregue à PIDE (secção de Faro) onde será submetido a prolongado e minucioso interrogatório.
«As autoridades empenham-se em descobrir e extirpar este movimento subversivo, contrário às nobres tradições do nosso povo».
Deixa cair o jornal e fica ensimesmado. Sua mulher, que volta a fazer-lhe companhia, nota-lhe o enervamento.
– Que tens, José? Sentes-te mal?
– Não. Não é nada – responde, tentando serenar-se.
– Más notícias, não é verdade? Bem diz o Dr. Dias… Mas tu porfias e sais-te sempre com a tua… Os diários são os diários. O papel consente tudo… José Gago nem a ouve; está submerso em angustiosas reflexões. Aquele rapaz, quase um menino, é seu filho… Tudo o comprova. Até o espírito rebelde que o anima é o eco da juventude do seu sangue corrompido… Um é a mocidade, outro a velhice, mas são carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue. Que fazer por ele?
O raciocínio emaranha-se-lhe. Seu filho ilegítimo, seu único filho corre perigo.
A PIDE, com os seus métodos de tortura, matá-lo-á lentamente nas masmorras políticas e, então ele, um dos maiores industriais da terra, ficará mais só do que antes. Que fazer?
Poderá salvá-lo? Sim, ele pode fazê-lo. Mas, por que preço? A desonra? Aquela mancha que até de si mesmo quisera ocultar, cairia no domínio público. Toda a gente saberia que o filho da Etelvina, a rameira, era também seu filho. E sua mulher, que diria? Sim, que diria ela, a quem sempre ocultara essa passagem do passado? Poderia ser que aceitasse com normalidade aquele facto consumado. Mas, a sociedade? Oh! essa nunca.
Ainda que o filho fosse filho de outra mulher… Mas não o era. Etelvina, a que tivera cabelos de oiro e os tem hoje de uma cor misturada de lodo e neve, era a mãe solteira de Eduardo.
Saberá o jovem preso quem é seu pai? Terá a mãe divulgado o nome daquele que a lançara ao escárnio do mundo? Sim, possivelmente a alguém o fez, talvez ao próprio filho. E se este sabe, deve odiá-lo como a um monstro e amaldiçoar o seu nome.
José Gago, mortificado por visões acusadoras, leva as mãos aos olhos, deixando as cair depois inertes sobre os joelhos, e põe-se a olhá-las angustiosamente, como se fossem algo desprezível, semeador de miséria, lágrimas e dor.
X
Manuel Charrinho acorda sobressaltado ao tocar o despertador. Esfrega os olhos que lhe ardem e insiste em fechá-los. Tem sono. Só dormiu quatro horas, quando necessita dormir oito ou nove. Gostaria de ficar mais uns minutos gozando da mornice agradável dos lençóis, mas a vida não lho permite. Já não há estrelas no céu. Ressurgem as primeiras claridades do dia.
Tem que apressar-se, pois àquela hora já os barcos devem vir rumo a terra. Salta da cama e veste a roupa de todos os dias, que exala o peculiar cheiro a suor; lava os olhos com a água de uma chávena e sai. De caminho detém-se diante da Livraria Capela para olhar os décimos e vigésimos da lotaria, passando com os olhos vertiginosamente por uma fila de números.
Todas as semanas gasta vinte escudos em jogo com a esperança de algum dia ser favorecido com a sorte grande, mas nem um centavo lhe sai. A sorte, até então, não quis nada com ele, mas… que diabo!… continua persistindo… Se conseguisse um lagarto de dois rabos, seria outra coisa. Deixá-lo-ia de noite preso num monte de areia, e de manhã iria ver o número que na ânsia de escapar, o bicho teria desenhado com os rabos.
Recomeça a caminhada, sempre sugestionado pela lotaria, pensando que se os dois últimos vigésimos adquiridos saíssem premiados com o primeiro ou segundo prémio, poderia abandonar definitivamente aquela vida, de se levantar às quatro e cinco da madrugada e, como um negro, trabalhar todo o dia com o bote, regressando a casa à entrada da noite. Tudo isso para enriquecer os donos dos barcos, vapores e fábricas, enquanto ele andava pobre como Job. Ah! se obtivesse umas quantas notas, compraria logo a taberna da Batateira em trespasse, e sem demora acabaria aquele servir de besta de carga.
Já perto da doca entra na taberna do Arroja, para tomar um cafezinho à espanhola, com um tição dentro da chávena. Sai com o estômago mais confortado e dirige-se para o porto, onde se acham já os outros apanhadores de peixe: o Zé, o João, o Enjeitado, o Orelha-Torta e outros. Todos olham na direcção da ilha com o seu manto azul, salpicado de branco. Já se vêem os primeiros barcos de arrasto. Interrogam-se uns aos outros para se certificarem melhor de uma esperança que se vai transformando em realidade, e dispersam-se. Manuel Charrinho percorre algumas ruas a passo apressado, detem-se à porta da casa do Joaquim Rasgado, o comprador da fábrica Estrela Algarvia.
Bate à porta, tosse, e aguarda. Quando esta se abre, saúda Matilde, assoma a cabeça na direcção da casa de entrada e grita: -Senhor Joaquinito! Vem aí o Touro Azul com dois barcos e a chata; o Ás-de-Paus traz dois barcos, e o Parte-Pedras três.
Ele sabe, como todos os homens do mar, que estes vapores têm outros nomes – os verdadeiros – com que estão registados na Capitania do Porto, mas aqueles com que os baptizou a sábia boca do povo têm mais sonoridade, são mais populares.
Joaquim Rasgado boceja, estica os braços frouxos e blasfema contra o ter que levantar-se todas as manhãs à mesma hora. Para justificar a sua indignação, põe-se a recordar uma cena teatral da revista Charro Alto, Peixe Gordo, há tempo estreada no cinema-teatro da vila: – Às cinco me levanto, às seis tomo o café, às sete saio de casa, às oito entro na fábrica.
A vida decorre-lhe invariável, como os ponteiros de um relógio que rodam automaticamente numa circunferência. Sente ganas de se estender outra vez na cama e mandar ao diabo o mar, a fábrica e o José Gago, mas compreende que tem de apressar-se.
Além disso, tem ordens confidenciais para comprar todo o pescado possível sem pensar no preço. A fábrica é agora um sorvedoiro, não há pesca que chegue. Tão-pouco tem outro remédio senão o de sacrificar o sono da manhã.
Bebe, apressado, o café com leite preparado pela criada e sai, batendo com raiva a porta da rua. Acende um cigarro, aspira avidamente o fumo e sorri sem querer. A vida vai-lhe correndo bem, não tanto como ele desejaria, mas… bastante bem. Não passa um dia em que não se ganhe três a quatro notas das grandes. Se continuar assim, dentro de alguns anos poderá retirar-se daquela cansativa faina de comprador de peixe. Já tem algum dinheiro seu no banco, uma horta de que, infelizmente, não pode desfrutar por falta de tempo, e dois prédios novos nas principais ruas da terra. A vida não o trata mal, claro que não… Mas já está enfastiado de barcos e peixe.
Se não fosse por aquela santa guerrinha dos alemães contra os ingleses, nunca teria possibilidade de se livrar de uma existência de sacrifício. Mas que fazer? A vida é assim, por mais voltas que se lhe dê. Sempre sofreram uns para a felicidade dos outros.
Chega à doca, desce a escada de cimento e salta para o primeiro barco de peixe ali atracado. Os compradores observam a sardinha acumulada no porão, acotovelando-se.
Um deles começa a contar com voz cantante: – 99, 98, 97… 89, 88… 79, 78. Joaquim Rasgado levanta o braço e retira-se. Todos ficam de boca aberta. Um guarda-fiscal da doca tira um caderno de registo, e anota: Estrela do Mar dez contos.
Manuel Charrinho e o Orelha-Torta correm com os botes, rumo ao barco. Os seus músculos têm a transparência das ondas e as vozes fazem eco até longe.
XI
Algemado como um perigoso delinquente, Eduardo caminha no meio de uma patrulha da Guarda Republicana, rumo à estação do caminho-de-ferro. Caminha pálido mas dono de si mesmo, indiferente aos insultos com que a cada momento o tratam os guardas.
A cena, pouco comum, atrai a atenção dos transeuntes. Nunca se viu na terra um rapaz algemado entre guardas a impeli-lo para diante, aos empurrões. Os velhos param estupefactos e os moços seguem o Eduardo e a patrulha numa demonstração de solidariedade para com o jovem preso. Este anda com dificuldade. As pernas entorpeceram-se-lhe naqueles dias de prisão rigorosa em que mal pôde mover-se. Uma dor aguda introduz-se-lhe por baixo dos joelhos, dando impressão de agulhas que picam os ossos. Quer deter-se um pouco para respirar e recuperar energias, afugentar as horríveis e estranhas dores, mas sente atrás de si os pesados e ruidosos passos da patrulha. Vacila um momento, sem saber se ande ou se pare. Um violento empurrão chama-o à realidade. Cambaleia e estatela-se no chão. As dores nas pernas, como uma onda, invadem-lhe todo o corpo. Indignado, com o sangue palpitante de ódio, um ódio que pede vingança, tenta erguer-se quando um pontapé aplicado por um dos guardas o atira de novo ao chão.
Surpreendidos por tanta maldade, os transeuntes detêm-se a presenciar a triste cena, fazendo os mais desfavoráveis comentários contra a selvajaria dos guardas, sem ousarem intervir, por receio das consequências. Os engraxadores que o seguem sentem o sangue juvenil rebelar-se e levantar-se em uníssono num clamor de protesto:
– Larguem-no, cobardes! Larguem-no, malvados!
Esbofeteados no seu amor-próprio pelos insultos da «pata-descalça», os guardas voltam-se para a onda de curiosos que os observam e de onde saem as vozes que os zombam. Os moços descalços e esfarrapados, enfrentam decididamente a patrulha, confundindo-se na multidão.
Um dos guardas empurra novamente o Eduardo, forçando-o a andar. Mas, surpreendentemente, uma pedra arremetida por mão anónima atinge o guarda no olho esquerdo, fazendo-o soltar um irreprimível grito de dor. Uma gargalhada, secundada por muitas outras, ressoa como resposta ao castigo. Furiosos, os guardas ameaçam a multidão, apontando-lhe as espingardas e obrigando-a a dispersar.
A alguns metros dos curiosos, dos guardas e do preso, vem rodando, lentamente, um automóvel conduzido por um homem de pequena estatura. Uns grandes óculos negros tapam-lhe parte da cara, tornando-o irreconhecível. Parece indiferente ao que se passa na frente do carro, mas na realidade toda a sua atenção se concentra naquele jovem que, sem palavras nem gemidos, resiste estoicamente à brutalidade dos guardas.
Sente desejo de sair do carro, esbofetear a patrulha e aclamar o jovem como um herói.
Mas não ousa fazê-lo, ainda que o deseje. Compreende que é simultaneamente actor e espectador dum autêntico drama.
José Gago pára o automóvel no jardinzinho próximo da estação, e fica observando o movimento dos passageiros que vão e vêem.
Eduardo é metido num vagão celular com destino a Faro, à vista do grande industrial. Este vê um vagão cinzento, e sabe que lá dentro está um pedaço de si mesmo.
Sabe-o vivo, mas em perigo, e não ousa ir em seu auxílio para o arrancar do pântano onde o querem sepultar. Mas quem está no pântano? Ele ou o filho? Ele, sem dúvida ele! Não sabe que decisão tomar, sente-se como um fruto corrompido: o fruto da traição.
O silvo da locomotiva acelera-lhe o ritmo do coração. O comboio põe-se em movimento, levando o preso, acompanhado pelos seus guardas e pelo pensamento do José Gago.
O industrial levanta a vista na direcção da estação, onde ficou o eco do silvo da locomotiva como um chicote para lhe excitar a imaginação, mas baixa-a de seguida, sentindo um profundo estremecimento percorrer-lhe o corpo. Junto ao gradeamento que separa a estação do jardinzinho, descobre um vulto envolto num xaile velho. Não se ouvem os soluços, mas compreende-se que soluça, pelos estremecimentos do débil e frágil corpo. As suas mãos, enfraquecidas e brancas de tuberculose, agarram-se com frenesim e angústia às grades de ferro que são arame farpado de um campo de concentração que a separa da vida e do amor.
José Gago tarda a ver nas grades de ferro o arame farpado dos campos de concentração, mas logo as associa aos milhões de vítimas.
A silhueta da mulher velada começa a crescer para ele em atitude ameaçadora. Já não é o vulto mesquinho de momentos antes, mas uma figura gigantesca, justiceira e ameaçadora, que levanta o dedo e aponta para ele, é a cólera das futuras multidões. José Gago tapa os olhos com as mãos, enquanto os lábios se contraem num rito de desespero.
Sacode a cabeça sonolenta, aturdida, e a silhueta gigantesca e ameaçadora logo se dissipa. No seu lugar surge outra vez o vulto humilde da mulher anónima da rua, chorando, envergonhada, a sua dor.
O industrial apercebe-se do drama que semeou, num afã de riqueza, prazer e poder. Sente-se vazio e desprovido de ideias, não atinando com uma resolução que o livre daquela angústia. A cabeça volta a girar-lhe e submerge-se num estado de espírito próximo da demência.
Prime o acelerador do carro, agarra o volante com ansiedade e lança-se pela avenida, preso a um pensamento confuso que adquire um grande significado na sua mente transtornada. Detém-se junto do átrio da igreja, abre a porta do carro e, como se caminhasse ao encontro da salvação, penetra no templo. Tacteando, ofuscado pela obscuridade que a luz desmaiada das velas do altar não dissipa, caminha para o Cristo estático e macilento, crucificado num tosco lenho, até ao fundo do altar. Ajoelhado, com escassa melena caída sobre a orelha, de uma afectação ridícula, José Gago une as palmas das mãos e eleva um olhar suplicante ao crucificado. Move os lábios em busca de uma oração que não sabe, enquanto tenta concentrar-se numa fé que não possui. Mas o filho de Deus, crucificado pelos homens, não o escuta, permanece inerte, submerso no seu sonho milenário.
Para despertar a atenção de Cristo, José Gago arrasta-se de joelhos a seus pés, para lhe implorar a graça divina. Uma beata velha, ajoelhada à sua frente, volta a cabeça e lança-lhe uma olhadela carregada de censura e zelos. Ele simula não a ver, porque não quer mais nada do que a bênção dos céus. Ergue o olhar para a cúpula da igreja e vê a abóboda negra, coberta aqui e além de negras teias, onde se agitam feias aranhas. Os insectos, de oito patas e sem asas, com o seu volumoso abdómen e a sua minúscula cabeça, amedrontam-no e o seu olhar fixa-se outra vez em Cristo, a quem implora perdão pelos seus pecados e resignação para a sua dor. Mas as aranhas, como uma tentação do demónio, interpõem-se entre eles.
E de súbito, José Gago transforma-se num desses imundos insectos, deixando a condição de bípede para caminhar compassadamente a oito patas. Já não é um homem, nem sequer um Judas, como aquele que vendeu o cepo com que esculpiram Jesus Cristo, nada resplandecente, de aspecto triste e melancólico. Transforma-se num gigantesco aracnídeo de abdómen disforme e viscoso, que o povo persegue e procura esmagar debaixo dos pés.
Não podendo suster aquela angústia, aquele mundo de fantasmas que avança contra ele, perde inteiramente o domínio dos nervos e num grito lançado contra o estático Cristo, estatela-se ao comprido no solo frio da igreja, chorando convulsivamente.
XII
Eduardo não pode escapar a um ligeiro estremecimento quando vê fechar-se sobre ele a porta de ferro e fica sozinho entre as sombrias paredes do calabouço, amarelecidas pelo bolor, cobertas de inscrições.
Quando ouve o ranger dos gonzos e o estrépito da chave na fechadura e se silencia a voz avinhada do carcereiro, que o tratou por passarão, tem a impressão de haver caído no fundo de um poço. Uma pesada escuridão ofusca-lhe a vista. Tacteando, procura encostar-se à parede, por cuja superfície vai escorregando a mão na direcção dogradeamento da porta. Dali enxerga uma ténue faixa de luz.
A um canto acha-se um banco de cimento incrustado no chão. É todo o mobiliário do cárcere para onde o arremessaram. Com o corpo doído pelos maus-tratos recebidos, senta-se no tosco banco. As palavras ditas pelo polícia da Secreta ao carcereiro, martelam-lhe o cérebro.
– Ponha-o rigorosamente incomunicável, à ordem da PIDE.
Um ar pesado, com cheiro a mofo, fere-lhe o nariz, fazendo-o sentir-se ainda mais privado de liberdade.
Ama a liberdade como a menina dos seus olhos, ainda que o não saiba definir.
Por isso sente-se estremecer diante da ideia de ficar para sempre ali encarcerado, a apodrecer. Apesar de tudo do que tem ouvido acerca das torturas infligidas aos presos políticos, não tem medo.
Que pretendem? Prevê, pelo interrogatório a que já fora submetido em Olhão, que procuram enredá-lo numa hipotética conspiração, de cujo significado não tem a menor ideia.
Não sabe precisar devidamente de que o acusam e qual o fim que lhe destinam, mas sabe, isso sim, que na sua pessoa é perpetrada uma injustiça. A simples convicção de que está inocente dá-lhe forças para desfazer qualquer possível desânimo passageiro e fazer brotar em si uma chama de ódio contra todos os carcereiros do mundo.
Agora está preso. E antes? Foi livre alguma vez? Não, nunca o foi, apenas mudou de cárcere. O actual tem grades de ferro e é de tamanho mais reduzido. O de antes não as tinha ou, se as tinha, eram invisíveis. Mas, por que será que só agora, preso, se dá conta que nunca desfrutou de liberdade? A boca não encontra as palavras adequadas para responder, mas o raciocínio compreende a causa. E essa causa agiganta-se numa segurança agora sentida, multiplica-se em dezenas de promessas que, como efeitos dessa mesma causa, lhe abrem sulcos profundos na mentalidade inculta, como em noite escura as estrelas luminosas. Sem se dar conta, busca a origem do mundo das pequenas grandes coisas e, parcialmente o encontra. No entanto, uma inquietação, cuja força prevê mas desconhece, atrai-o com o mesmo imã com que o mar atrai a corrente caudalosa dos rios.
O ranger da porta, que se abre, desperta Eduardo do solilóquio, mantidos pela inteligência ainda retardada.
A sombra do carcereiro desenha-se na penumbra, empunhando uma lanterna e vê-lhe a boca num débil sorriso que não chega a ser sarcástico.
– Ah! estás muito caladinho. Vem aqui, vem! Vamos ver o senhor chefe Gouveia, porque ele tem muito interesse em conhecer-te e falar-te. Não o conheces, não é verdade?
– Não! Quem é? – indaga Eduardo.
– Já terás ocasião de saber, quando o conheceres. Posso-te assegurar-te, que jamais o esqueceram todos os que têm tido ocasião de travar conhecimento com ele. Ele tem um olho, uma maneira de falar, e, sobretudo, umas mãos! São santas, segundo dizem os entendidos. Até fazem falar os mudos e andar os cegos. Tu mesmo poderás comprovar. Vem, segue-me…
Eduardo transpõe a porta da prisão que o carcereiro empurra e segue-o através de um corredor estreito, iluminado a luz eléctrica.
– Cuidado, não fujas. Ainda que o tentasses, não conseguirias. As portas estão todas vigiadas.
O carcereiro moveu o molho das chaves a seu cargo. Depois de alguns passos andados, deteve-se subitamente. Os seus olhos piscos, gastos pela ausência do sol naquele ambiente escuro, e os lábios, miúdos, fundem-se numa cara aparentemente maciça, para se abrirem ao falar, em voz baixa, quase sussurrante:
– Quem és tu, moço? Qual a tua família?
– Não tenho família.
– Ah! és órfão. Tanto pior… ou tanto melhor, porque nestas coisas são sempre os pais quem mais sofre. Eu sou pai, moço. Por isso me vês aqui com esta gente. A consideração que têm por mim é a mesma que sente um dono por um cão. Admiras-te?
É assim mesmo, moço!
– E por que não se vai daqui, então?
– Para onde, moço? Morria de fome junto dos meus. Esqueces-te que há barriga?
Batendo com a mão aberta na barriga, continua: – Ela é rainha, temo-nos de inclinar perante a sua soberana vontade. Mas… vamos. Basta de conversa…. Ouve!
Duma coisa te quero avisar. Quando o senhor chefe te interrogar conta-lhe tudo, ponto por ponto. Será melhor para ti. Provavelmente, ele tomará em consideração a tua idade e o teu arrependimento. Quando o vejas apertar os dedos sobre as costas da cadeira, é sinal de que está irritado. Deves acalmá-lo, falando o mais possível.
Desembocam noutro corredor, quase paralelo, donde se vê uma galeria de gabinetes numerados, com duas sentinelas da Polícia de Segurança Pública, que se cruzam constantemente.
Detêm-se diante do número 8. O carcereiro estica o pescoço, compõe o nó da descolorida gravata e segurando o preso por um braço, bate com os nós dos dedos na porta. Uma voz de um homem acostumado a mandar, ordena: – Entra!
O carcereiro roda o puxador e introduz Eduardo no gabinete.
– Senhor chefe, aqui o tem! Parece um pouco tímido, mas bem-disposto.
– Bem, bem! Queira retirar-se e aguardar.
O chefe Gouveia é um homem corpulento, tipo pugilista, rosto oval e olhos incisivos, penetrantes, bem conhecido pelas suas tendências fascistas e como torturador, matéria em que se especializara nos campos de concentração hitlerianos, durante a sua permanência no paraíso nazi. Quando vê o jovem detido, levanta-se preguiçosamente, enfia as mãos nos bolsos e fica a contemplá-lo com um olhar sádico, sacudindo a cabeça.
– És tu o famoso comunista de Olhão?
Eduardo olhava-o sem dizer palavra, atento aos trejeitos do rosto do seu interlocutor.
– Vem para mais perto de mim. Senta-te aí nessa cadeira. Eu também me sento.
Vês? Agora vamos conversar. Espero que sejas sensato e respondas com verdade a todas as perguntas que eu faça. Vamos então ver: a que organização clandestina pertences? Quem são os teus chefes?… Vamos lá, depressa.
Eduardo sente-se perturbado, sonolento, sem palavras.
– Então? Não ouviste o que te disse? Vamos, fala. Vê que eu sou teu amigo. Se fosse outro em meu lugar…
– Não compreendo nada do que me pergunta. Não sei sequer do que está a falar – murmura Eduardo com voz fraca.
– Como não sabes de nada? Então, quem organizou a manifestação contra as autoridades que fizeste no cemitério da tua terra? Quem te encarregou de desafiar a autoridade?
– Ninguém, senhor! Não houve nenhuma manifestação. Foi tudo espontâneo, imprevisto. Se a guarda não tivesse investido contra a multidão, nada se teria passado.
– Ah! Já sei! Pretendes encobrir os cabecilhas. Mal lhes despontam os dentes e já sabem mentir. Muito bem… 0 chefe levanta-se, acende um cigarro e consulta o relógio de pulso.
– São agora dez e vinte e cinco… Dou-te cinco minutos para desembuchares. Se passado esse tempo não abrires a boca, quer dizer, se insistires na tua obstinação, até vais cantar!
O silêncio interpõe-se entre o polícia e o preso. Divide-os distintos conceitos de liberdade e de vida.
O chefe devora o cigarro, enquanto observa o andar monótono do relógio. Os seus lábios adquirem um aspecto elástico de borracha apertada.
Eduardo, por sua vez, contempla os sapatos rotos que tem calçados, em contraste com os do interrogador. São de verniz, sem uma arranhadela. São sapatos de quem só sabe pisar; ao contrário, os seus são os da permanente vítima pisada, agredida.
Ele é débil sem nada para se defender; o outro é forte, tem do seu lado a lei e as armas dadas pela lei. Sente-se ameaçado por aqueles sapatos lustrosos.
Um dia, tudo mudará. Esta ideia anima-o, incita-o a não ter medo.
O chefe consulta pela última vez o relógio; atira ao chão com raiva incontida a ponta do cigarro, e levanta-se da cadeira. O seu corpo atlético projecta-se sobre o do jovem preso, envolvendo-o com a sua sombra, como querendo absorver toda a luz.
– Falas ou não falas?
Pega-lhe num braço e sacode-o bruscamente.
– Fala, responde ao que te pergunto: Quem são os cabecilhas da organização… ?
– Já disse tudo. Já disse toda a verdade, não houve nada…
Uma bofetada interrompe-o. Sente a boca ferida e, depois, um fio de sangue correr pela cara abaixo. À sua frente, agressiva, a silhueta do torturador.
Pela segunda vez, sem uma palavra, a mão do polícia ergue-se e abate-se sobre a cabeça da vítima, fazendo-a cair para debaixo da secretária. Não ouvindo sequer um gemido, o braço musculoso do verdugo levanta o jovem e aproximando bem a cara dele à sua, numa expressão de cólera e de ódio, grita-lhe: – Vamos! Fala, bicho! Fala ou rebento-te!
Aquela mão gorda, adornada de anéis, aperta-lhe fortemente o braço como se fosse um torno.
Eduardo sente uma dor aguda e uma necessidade imperiosa de gritar, mas num gesto de raiva e impotência morde a língua enquanto os olhos se levantam decididamente até ao torturador, num desafio. Verdugo e vítima ficam um breve instante imobilizados, olhos nos olhos. Depois, o polícia, com outro bofetão, atira-o ao solo, onde fica inanimado.
– O quê?… Tu desmaias como uma menina? Ah! Ah! Ah! Vais desmaiar a noite toda!
Faz soar a campainha. Quando o carcereiro aparece, ordena-lhe: – Leva-o e dá-lhe um duche frio. Creio que lhe fará bem.
Diante do carcereiro, Eduardo volta aos sombrios corredores, mas desta vez, cambaleando de sonolência. Fecham-se-lhes os olhos, evidenciando um profundo cansaço. Agarra-se às paredes do estreito corredor para não se desequilibrar. A luz eléctrica, como uma obsessão, fustiga-lhe a cabeça e provoca-lhe náuseas.
O carcereiro resmunga com a sua voz vinhosa, mas ele não o ouve. As palavras confundem-se-lhe com o tilintar do molhe de chaves e os passos cadenciados. Eduardo recompõe-se com dificuldade para seguir a sombra que o vigia, mas logo voltam a parar na frente de algumas portas pintadas de cinzento, com inscrições de grandes letras negras que ele não entende. O carcereiro impele uma das portas com o pé e entram. Um cheiro a mofo e a vapor mete-se-lhe no nariz, aumentando-lhe ainda mais as náuseas.
Ensaia alguns passos no interior do compartimento e cambaleia, indo apoiar-se no batente de uma porta.
Dói-lhe a cabeça e sente a cara afogueada. À sua volta tudo gira confuso. O estômago agita-se-lhe como o fole do ferreiro. As náuseas sobem-lhe à garganta. Leva as mãos à cara e começa a vomitar, até cair de bruços, inanimado como uma pedra.
Sempre monologando, o carcereiro, muito dono de si mesmo, vai buscar um balde cheio de água junto de uma torneira e tranquilamente, como quem não tem pressa, coloca-o perto de Eduardo.
– Parece que não seguiste os meus conselhos, rapaz – exclama. – Disse-te que ao senhor chefe Gouveia não lhe agradam as brincadeiras. Não fizeste caso, não é verdade?
Agora tens a prova de que eu tinha razão em avisar-te. Mas… vamos! Isso é contigo.
Conversa para quê? Dás-me dó, é certo, mas eu defendo o meu pão e o dos meus filhos.
Ah!, quem nunca foi pai… Vamos… Desculpa isto, rapaz.
Pega no balde e despeja-o bruscamente no corpo do preso. A água fria desperta Eduardo do sono profundo em que estava submerso, para voltar à cruel realidade, ao pesadelo que vivia.
Abre os olhos, cujas pálpebras lhe pesam horrivelmente, e num grito instintivo de ódio e desespero grita: – Assassinos! Canalhas!
Com o balde oscilando nas mãos, o carcereiro fita-o, entre perplexo e irónico.
– Não te exaltes, rapaz. Acalma os nervos. Se não sabes, fica sabendo que não te oiço, que não te posso ouvir, porque me puseram tampões nos ouvidos. Além disso, não tens razão para te afligires muito. Espera mais um pouco e tudo isto terminará entre nós.
Faz de conta que este que aqui está não sou eu, mas uma sombra, um autómato. Há que saber filosofar, tirar as conclusões mais favoráveis para tranquilizar a nossa consciência.
Aguarda…
Vai encher de novo o balde, enquanto Eduardo tenta levantar-se com o desejo de fugir daquele antro tenebroso, mas mal pode pôr-se de joelhos. A cabeça pesa-lhe como se fosse de chumbo. Parece ter febre.
O carcereiro empunha outra vez o balde, segredando-lhe ao ouvido:
– Ouve uma coisa. Estamos sós, ninguém nos vê. Eu atiro a água para este lado e tu gritas… Gritas bem forte, entendes? É para que te oiçam e se convençam de que te estou a dar o duche. Vamos, sê razoável, grita!
– Não; não gritarei. Eles não terão o prazer de voltar a ouvir-me gritar.
– Ah! Tu és assim orgulhoso. Não agradeces os meus favores? Tanto pior para ti.
Não queres gritar sem duche, pois gritarás com duche, já que cumpro as ordens que me dão.
– Não, não gritarei – repete Eduardo. – Nem sequer com o duche. Hei-de demonstrar-lhe que não tenho medo.
– Ah, não? Então toma!
Um novo balde de água acaba por empapar o preso até aos ossos. Um frio anormal começa a invadi-lo, voltando outra vez os vómitos que lhe diminuem cada vez mais as debilitadas forças. O carcereiro cala-se, parecendo agora ter pressa em terminar a sua missão. Pega-lhe pelo colarinho da camisa e arrasta-o como um fardo até ao calabouço, onde o deixa sem sentidos, mergulhado num profundo sono cheio de pesadelos.
Os gonzos da pesada porta rangem outra vez e Eduardo volta a ficar enterrado na obscuridade da sepulcral masmorra.
XIII
José Gago fecha-se no seu gabinete de trabalho, não permitindo que alguém lá entre, nem que seja a sua mulher, a qual não percebe a atitude do marido. Por várias vezes ela chama-o, debalde.
Alarmada, chora lágrimas de desalento e de terror, como nunca o fez, e, silenciosamente, sem que ele pressinta, vai pôr o ouvido na porta, tentando assim adivinhar a contrariedade que o preocupa. Ouve-o a falar sozinho, em voz baixa, como se falasse a algum empregado para lhe fazer uma observação ou dar lhe uma ordem.
Imagina-o depois a gesticular e a andar agitado de um lado para o outro, no interior do gabinete. Para confirmá-lo, espreita pelo olho da fechadura. As suas suposições justificam-se. José Gago parece possesso; está irreconhecível, transfigurado, com os cabelos em desalinho e a gravata tirada. Vocifera contra algo invisível, fala de um filho e de um testamento, descarregando socos sem conta na secretária e acusando-se como culpado do seu estado de espírito.
Dona Adelaide recua horrorizada diante do quadro anormal que acaba de presenciar. – Que fazer, meu Deus? – interroga-se. – Estará meu marido louco?
Esfrega as mãos, angustiada. Sente necessidade de confiar as suas preocupações a alguém, para aliviar o peito do peso que a oprime, mas teme cair no ridículo e no desagrado do marido que possivelmente a julgará boba e estúpida – adjectivos sempre comuns na sua boca -, como tenta fazê-lo quando ela provoca a sua irritação.
Refugia-se no seu quarto e chora, sozinha, aquela angústia que a tortura, à espera, mas sem convicção, de que o marido abandone o gabinete de trabalho.
A tarde passa-se rapidamente, sem que José Gago pare as suas gesticulações, alheio à chegada da noite.
Dona Adelaide não pode dormir. Quando Deolinda se retira para o seu quarto, na açoteia, recomeça ela a vigilância do marido que, envolto nas trevas, não se lembra de acender a luz. Procura uma vez mais, do outro lado da porta, convencê-lo a sair, rogando-lhe com voz soluçante que saia porque ela se sente angustiada. No entanto, ele continua sem ouvi-la desde o fundo da sua tragédia e permanece surdo diante das súplicas.
Amanhece… A luz difusa da alvorada anuncia a presença do novo dia. Só então Dona Adelaide, que se deixara adormecer de cansaço, se dá conta que o marido passou a noite no escritório. Chama por ele outra vez, mas ninguém responde.
Ansiosa, desesperada, bate com os punhos na porta, na intenção de a derrubar.
Como não consegue, chama aflita a Deolinda que vem à sala.
– Vem cá. Ajuda-me a abrir esta porta. Não, deixa-a. É melhor chamar o Joaquim Neto. Diz-lhe que venha depressa.
Enquanto a serviçal, surpreendida, corre os cantos da casa em busca do homem encarregado da limpeza, Dona Adelaide ajoelha-se junto à porta, agarra-se ao puxador e mistura orações e soluços.
– José! – volta a chamar. – Não me mates. Deixa-me entrar, quero ver-te, falar-te.
Não ouvindo resposta, entra num pranto mais intenso.
Sufocada e desgrenhada, com as faces roxas, regressa a Deolinda, seguida por Joaquim Neto.
– Que se passa, Dona Adelaide? – indaga o empregado.
– Ai Joaquim! Abre-me esta porta depressa.
– Para quê, Dona Adelaide?
– Abre-me a porta, que o resto é comigo.
– Está bem. Como quer que abra?
– De qualquer maneira. Mas abre-a, por favor.
Joaquim Neto cospe nas mãos calosas de homem rude, pega o puxador e mete o ombro contra a porta. Esta resiste alguns instantes, mas acaba por ceder e homem e porta são projectados para o interior do gabinete.
Ouve-se um grito imperceptível, uma espécie de grunhido cavernoso, e o vulto de um homem completamente nu sai correndo pelo corredor fora.
Dona Adelaide deixa escapar um gemido! E com um suspiro fundo cai invadida por um pranto convulsivo. Por sua vez, a servente, vítima de um pânico indescritível, começa a gritar, dando rédea solta ao histerismo que a invade. Os seus gritos chegam à rua, atraindo a atenção e a curiosidade das pessoas que passam e se detêm a indagar o ocorrido.
Joaquim Neto segue o patrão, que nu e enlouquecido, se refugia na cozinha, vociferando contra hipotéticos fantasmas, fechando-lhe a porta. Joaquim volta então para junto de Dona Adelaide, cujo rosto apresenta agora um aspecto cadavérico.
– Que podemos fazer, Dona Adelaide? Chamar um médico, não é verdade?
– Sim, Joaquim. … Chame com urgência o Dr. Dias.
Entretanto, Deolinda, aterrorizada pelo que acaba de presenciar, sai porta fora e vê-se na rua cercada por vários curiosos que a acometem com perguntas.
– Que sucede? Alguma desgraça?
– Sim, uma grande desgraça! O senhor José Gago anda nu pela casa e grita, grita que nem um demónio… Ninguém me tira da cabeça que esteja louco. Acudam à Dona Adelaide, salvem-na das garras dele. Chamem, chamem as autoridades.
– Mas que lhe fizeram, para estar assim louco como você diz?
– Não sei. Serão os negócios, possivelmente. Antes não dormia, sonhava, sonhava… com tanto dinheiro, e agora vejam o resultado. Está louco. Que medo tive quando o vi sair correndo, completamente nu. Com aqueles grandes cabelos, até parecia um macaco. Que medo!
Sentindo a falta da criada perto de si, Dona Adelaide estremece. Adivinha que ela está na rua relatando à vizinhança o que acaba de presenciar. Um ímpeto de raiva e desespero, um desejo de rebentar-lhe o nariz a socos, apodera-se dela. Levanta-se da cadeira com o rosto transtornado por uma histérica indignação, difícil de conter, e corre em direcção à escada, exclamando: – Deolinda! Deolinda!
Surpreendida pelos gritos da patroa, a criada interrompe o relato e responde: – Estou aqui, Dona Adelaide!
– Vem cá, grande desavergonhada. Vem aqui que te vou arrancar a língua venenosa que tens. Fecha essa porta, velha alcoviteira.
Deolinda treme. Sobe receosa a escada de mármore.
– Dona Adelaide, Dona Adelaide. Diga, minha senhora…
Esta pega-lhe num braço e sacode-a violentamente.
– Torta! Víbora! Com que então fostes espalhar a minha desgraça. Fostes espalhar a dor desta casa, que te matou a fome, vestiu e calçou, pelas gentes da rua para que todos saibam da minha desgraça. Fostes dizer-lhes, decerto, que meu marido está…
Miserável! Vai-te! Vai-te desta casa!
E Dona Adelaide deixa-se cair sobre a alcatifa do corredor, desfeita em lágrimas e lamentos, de punhos fechados. Deolinda tenta inclinar-se sobre ela.
– Dona Adelaide, que tem? Sente-se mal? Ai! eu vou preparar-lhe um chazinho, sim? Eu vou…
– Vai-te! Não quero nada… nada. Só quero que te vás daqui para fora. – Mas para onde, Dona Adelaide?
A criada, por sua vez, rompe num pranto convulsivo, patético, que aumenta a sua fealdade de cinquentona.
– A Senhora, Dona Adelaide, sabe que eu não tenho ninguém no mundo. Sou só e se me manda embora terei de recorrer à caridade pública. Com esta idade já ninguém me dará trabalho. Pobre de mim!
– Odeio-te! Odeio-te! Ouviste? Quero que te vás agora mesmo. Leva todos os teus trapos e desaparece da minha vista. Na minha casa não há lugar para alcoviteiras.
– Está bem, eu vou, Dona Adelaide.
Dirige-se ao seu quarto, recolhe lentamente as suas roupas e objectos – recordações de solteirona –, metendo-os numa velha maleta. Fica um momento imóvel, contemplando as paredes adornadas com estampas de santos e Cristos crucificados que lhe deu o Padre Calado durante as suas confissões. A alvura dos lençóis e o cheiro a alfazema acariciam-lhe os sentidos, debilitando-lhe os nervos, retendo-a. A realidade parece-lhe agora um daqueles pesadelos das noites de inverno, martirizando-a. No entanto, quando despertava e se convencia de que tudo era um sonho, sentia um inefável alívio invadir-lhe o corpo e a alma.
Agora, não. Agora está ali indecisa, desejando que a crueldade daquele momento não passe também de um pesadelo. A voz cruel da patroa fá-la decidir-se, recordando que vive e não sonha. Fecha a porta do quarto ao mesmo tempo que sente as lágrimas e os soluços redobrarem de intensidade.
– Adeus, Dona Adelaide. Se eu morrer, reze um padre-nosso pelo descanso da minha alma. Promete?
– Levas tudo?
– Sim, Dona Adelaide, levo tudo o que me pertence. Como vê, é bem pouco – responde Deolinda, apontando-lhe a maleta.
Começa a descer a escada em direcção à porta da rua, ao mesmo tempo que tenta limpar as lágrimas rebeldes, com um lenço.
Do topo da escada, Dona Adelaide olha-a, silenciosa, estática.
As lágrimas de dor e cólera secaram-se-lhe, deixando-lhe por baixo dos olhos dois sulcos roxos. Já no último degrau da escada, prestes a abrir a porta, a velha criada, sempre lacrimosa, volta-se para dizer um último adeus à Dona Adelaide.
Então, os lábios desta, movem-se como se quisessem dizer algo importante.
– Deolinda, vem cá. Não me abandones. Não vês que estou só… sozinha! Vem, sobe.
As duas mulheres – patroa e criada – abraçam-se misturando as suas lágrimas.
Um toque de campainha vem despertá-las das suas expansões sentimentais. Alguém chama.
– Acalma-te, Deolinda. Tenhamos serenidade. Vai ver quem é, mas não abras a porta a ninguém, sem me dizeres.
A criada desce a escada. Abre o postigo engradado e averigua quem é. Volta-se para Dona Adelaide, exclamando:
– É o Dr. Dias.
– Ah! Que suba… depressa.
Esboçando uma leve cortesia, o doutor pergunta:
– Mas, que se passa? Que tem o senhor Gago?
– Parece que está louco, doutor. Que desgraça, meu Deus. Ali está na cozinha. O Joaquim Neto fechou-o à chave.
Bem. Vocês fiquem aqui. Eu e o senhor Neto vamos vê-lo.
O homem da limpeza abre a porta. Chamam. Ninguém responde. Entram e buscam o industrial com o olhar. Refugiado contra o fogão, este fita-os como um animal acossado.
– Ah! Meu amigo e senhor Gago, está aí. Muito bem. Andávamos a procurá-lo, sabe? Não tenha medo, sou eu, não vê? Ajude-o, senhor Neto.
Este estende uma mão ao patrão, e pega-lhe suavemente pelo braço, mas tira-a subitamente com um gemido de surpresa e de dor, porque o industrial crava-lhe incisivamente os dentes na mão. Depois solta um bramido monstruoso, sai correndo pelo corredor, indo refugiar-se no seu quarto. O doutor empalidece. Acaba de compreender qual é o grau de demência do seu velho cliente. Dirige-se a Dona Adelaide, pedindo-lhe licença para telefonar. Enquanto aguarda a comunicação pedida, Dona Adelaide pergunta-lhe: – É grave o estado do meu esposo, doutor?
– Efectivamente é algo grave. Mas tranquilize-se; não se trata de um caso perdido, segundo creio.
– Que pensa fazer?
– Internar o seu esposo quanto antes…
– Como, doutor? Não há outro meio de cura sem ser interná-lo?
– Infelizmente, não. Sinto muito, mas é assim. Seu esposo tem uma loucura perigosa. Não viu como ele mordeu o senhor Neto?
– Sim, doutor, mas a que se deve a demência do meu marido?
– Escute, minha senhora. Ainda não lhe posso fazer afirmações definitivas, mas talvez não erre muito se lhe disser que é a sífilis a verdadeira culpada.
– Ai, meu Deus!
– Alô, Alô – exclama o doutor acentuando bem o seu francesismo. – Aqui é o Dr. Dias, e aí quem fala? Ah! o subchefe, verdade? Como vai? Eu bem, obrigado. Sim… é isso. Oiça, trata-se de um caso pouco comum, que requer urgência. O senhor Gago está louco. Sabe quem é, não? Muito bem. Traga um carro, um colete-de-forças e sete agentes… Entendido? Menos não… sim… é muito perigoso … Acaba de morder um homem, imagine…
Coloca o telefone no descanso. A seu lado, a esposa do industrial olha-o com assombro. As palavras ouvidas cravam-se-lhe profundamente nos nervos. Não se pode conter. Com os soluços subindo-lhe outra vez à garganta, corre para Deolinda, abraça-a como procurando uma protecção que ninguém lhe pode dar, na sua desgraça.
Minutos depois a campainha da porta, soa de novo. A criada vai levantar-se, mas o doutor diz-lhe que fique fazendo companhia à senhora, e ele mesmo vai abrir a porta.
Sete homens uniformizados com o subchefe à frente seguem o senhor Dias e penetram no corredor, dirigindo-se ao quarto onde o louco esta fechado.
Abrem a porta e entram uns atrás dos outros. Debaixo da cama de casal, assoma o rosto alucinado do demente. Tem os cabelos desgrenhados e empapados em sangue, com pequenas feridas na cabeça.
Um dos polícias – o mais corpulento – puxa-lhe os cabelos. José Gago solta alguns gritos ininteligíveis que fazem eco em toda a casa, e agarra-se fortemente ao travesseiro da cama. Um tufo de cabelos fica preso nas mãos do agente que tenta manietá-lo.
A boca do louco está repleta de espuma. O olhar incerto dá-lhe um aspecto de pânico e desespero, de raiva e de dor. O mesmo agente consegue enrolar-lhe uma corda à volta do pescoço. Puxa por ela violentamente, pondo os olhos da vítima quase fora das órbitas, enquanto a língua se lhe dependura angustiosamente da boca, embora continue agarrado ao travesseiro, gesticulando e soltando sons sem nexo. Três agentes pegam-lhe nas mãos – que como garras se cravam na madeira – na intenção de abri-las e despegá-las.
Após muitos esforços conseguem-no, e José Gago é atirado para o meio do quarto.
Com um salto de que ninguém o suporia capaz, ergue-se e tenta morder e arranhar os que lhe estão mais perto, mas já o cassetete do subchefe o golpeia na cabeça, derrubando-o.
– Ai! Não lhe batam! – implora a mulher que acode aos seus gritos. Amarram-no fortemente com todo o cuidado, e como um fardo levam-no para o automóvel, rodeado de alguns curiosos. Entre estes está um velho operário despedido pelo José Gago, depois de que os seus braços perderam o vigor e a ligeireza dos anos juvenis. No seu rosto baila uma expressão de assombro, os lábios abrem-se-lhe para proferir em desabafo: – Deus é grande!
E assim, pelos caminhos tenebrosos da loucura, desaparece a vida do industrial José Gago.
XIV
O desejo de emigrar vai-se convertendo numa obsessão para o Chico da Júlia, levando-o a não evitar esforços nem sacrifícios para alcançar os seus fins. A primavera já se anuncia por hortejos e jardins, como dia de sol com novas esperanças.
No fundo do mealheiro acumulam-se já os primeiros tostões. São ainda bem poucos, sem dúvida, mas a eles se juntarão outros mais, assim que acabem aqueles insípidos dias de chuva, sem clientes. Quando o sol voltar a brilhar e desaparecer a lama das ruas, ele voltará a ter sapatos para engraxar. Correrá de manhã à noite pelos cafés e bancos da avenida, gritando: – Graxa! Engraxa-se bem e barato.
Actualmente engana a fome de fim de inverno com cinco tostões de pão e um mundo de esperanças. Às vezes sente uma fraqueza física relaxar-lhe os músculos e provocar-lhe febre, mas não dá importância. É debilidade de inverno com barriga e sem pão, como dizem os lobos-do-mar. Já passará, porque também o inverno passa. Tudo passa. É questão de saber esperar. Na sua vida já se passou muita coisa: a morte da mãe, do pai e até a ilusão pela alemã branca e loura, que desapareceu numa curva de estrada do seu destino.
Para seu mal, porém, a ligeira tosse provocada pelos primeiros frios de Inverno transforma-se numa tosse convulsa com hemoptises, que lhe causam dores e náuseas.
Precisaria de tomar um xarope para acalmá-la, como insinuara um cliente. Mas quê? Parvoíce. Passará. Tudo passa. Não irá explodir-lhe o peito por causa dela. Já bastam os cinco tostões do pão que come. Cinco tostões já são um roubo aos seus sonhos de emigrante. Além disso, os pobres não tomam remédios nem consultam médicos. É a lei da sociedade; há que respeitá-la.
No meio destas reflexões, Chico recorda-se das palavras que um dia ouvira ao Dr. Ponce, quando era vivo e decifrava do jornal as palavras cruzadas à porta do Avenida: lá virá o tempo em que não haverá mais pobres, em que todos os seres humanos serão iguais perante a lei e terão os mesmos direitos e deveres.
Sim, tudo é possível. De facto, o mundo dá muitas voltas, como os palhaços do circo. Quem sabe se ele chegará um dia a essa imensa terra longínqua de que falava o doutor, onde brancos, negros e amarelos se chamam irmãos!…
Tocha, vadio de pés de lixa, como é conhecido na vila, já lhe falou dum barco de seis metros que está à venda no estaleiro. Se o pudesse comprar, que bom seria! Com uns duzentos ou trezentos escudos cada um, entre dez ou doze, teria o suficiente para que a embarcação fosse sua. O pior era o Inverno; mas a Primavera já se anuncia no horizonte e nas amendoeiras dos arredores da terra.
Certa manhã, porém, o Chico da Júlia não pôde levantar-se. O corpo pegou-se ao enxergão, retendo-o. As forças abandonaram-no, deixando-o entregue aos trágicos pensamentos do seu cérebro desvanecido. A cabeça pesa-lhe como chumbo e perde todo o estímulo físico. Fecham-se-lhe os olhos. Deixa-se estar na quietude morna do quarto triste, esperando alguma coisa que não sabe o nome, mas adivinha escondida em qualquer rincão. Uma sacudida tosse violenta, seguida de uma nova hemoptise, fá-lo contorcer-se e apertar o peito com as mãos. Reabre os olhos e pousa-os naquele cavaleiro de couraça de ferro de um cartaz das lâmpadas eléctricas que pregou na parede. A debilidade invade-lhe as pálpebras e fecha os olhos novamente, mas o cavaleiro, de lança em riste, agita-se-lhe na imaginação. O cavalo escava o chão, impaciente, mas o cavaleiro sustém firmemente as rédeas.
A febre fá-lo delirar. O cavaleiro de armadura bronzeada prepara agora uma emboscada. Contra quem? Contra ele? Sim, contra ele! A morte disfarçada de cavaleiro espera-o. Estará assim tão doente?
E os tostões do mealheiro? E a ânsia de emigrar? Tudo perdido. Recorda-se da mãe e das palavras com que previa a sua própria morte. A voz dela parece-lhe vir agora do além-túmulo, através das gretas da porta descalafetada: «Chico, alimenta-te bem.
Nunca tires do estômago para guardar. Chico, quando eu morrer, calça-me os meus sapatos pretos e veste-me o vestido de felpa dos tempos de solteira. A terra deve estar fria e os mortos estão tão sós».
Agora compreende melhor as palavras daquela santa, porque as mães são sempre umas santas. Como poderá esquecê-las? A doença que neste dia o impede de ir engraxar sapatos é como uma torrente subterrânea cuja existência se ignora. Ela atravessa montanhas, cruza fronteiras e vai de geração em geração, minando raízes e semeando podridão.
Como escreveu Alves Redol, «a vida do pobre é a história mais triste do mundo». Chico da Júlia entrega-se aos seus sonhos, esquecendo-se que o homem não pode viver só de esperanças. A sociedade tuberculizara-o e atirara-o à sepultura, enquanto ele acreditava que ia percorrer os grandes e largos caminhos do mundo.
Quando se convencera do engano, era tarde de mais. Ainda tentava retroceder, mas o cavaleiro da armadura de bronze e de lança em riste impedia-lhe a passagem.
Informado pela vizinhança do estado do seu inquilino, o dono da casa ordena que seja expulso do quarto, como medida preventiva contra um eventual contágio entre os inquilinos dos demais aposentos. Amparado pelo Tocha e pelo Olhinhos, o Chico da Júlia vai sentar-se num banco da Avenida. Está transfigurado e treme de frio e febre. O sol não aquece, encoberto por uma nuvem.
Um mundo de miúdos trapeiros que andam às beatas de cigarros, rodeiam-no sem compreenderem bem o que se passa…
Tocha e Olhinhos não sabem que fazer, mas compreendem ser necessário fazer alguma coisa.
– E agora, Tocha, que fazemos?
– Que vamos fazer? Chamar a autoridade, avisar a gente. Não o vamos deixar aqui abandonado, para morrer como um cão.
– Isso não, Tocha. Os pobres também têm alma.
– Têm alma, têm. E olha que nem os deixam morrer tranquilos. Jamais esquecerei o que o Ratazana fez ao Chico. Se pudesse, transformava-me em formiga para roer-lhe o coração.
– Se tem coração, deve ser mais duro que uma pedra…
– Sabes escrever números grandes como os dos jornais que vende o Bocage?
– Sim, Tocha! Todos não, mas alguns sei.
– E tens papel?
– Não, mas compraremos. Tenho aqui um cruzado. E tu, quanto tens?
– Quanto tenho? Nada. Estou mais seco que um bacalhau! Olha, Olhinhos, não precisamos papel. Vamos pedir aos donos das vendas alguns cobres, expondo-lhes o caso do Chico. Só se tiverem entranhas de feras é que não nos atenderão.
– Sim, Tocha. Mas pensa que é necessário levar antes o Chico a qualquer parte.
Se fica aqui mais tempo, morre. Será um espectáculo muito triste.
– Bem, então tu que corres mais do que eu, vai avisar o chefe da polícia. Conta-lhe tudo com cara triste, estremece-lhe o coração com palavras sentimentais. A ver o que ele diz.
– Sim, vou e voltarei depressa.
Olhinhos, também conhecido por «Pé Leve», desata a correr pela Avenida fora, rumo à esquadra, enquanto o Tocha torna a confortar o Chico, dizendo-lhe que alguma coisa hão-de fazer por ele já que o Ratazana o expulsou do quarto.
O ar húmido da tarde fria provoca os habituais «ataques» de tosse no pobre engraxador tuberculoso, arrancando-lhe os últimos alentos de vida. Alguns transeuntes detêm-se um momento, mas logo temerosos daquela crua realidade, não têm coragem de a encarar e seguem o seu caminho. Só os miúdos andrajosos, meio inconscientes do drama social que o Chico encarna, cantam e assobiam como um bando de pardais.
O Olhinhos acaba por regressar com o rosto encarniçado de tanto correr.
– Viste-o? Que te disse o chefe da polícia? – pergunta, ansioso, o Tocha.
Um encolher de ombros é a primeira resposta do Olhinhos. Depois vocifera, colérico: – Que mil raios o partam! Se o Ratazana tem coração de pedra, aquele deve têlo de ferro! Praga maldita!
– Mas que te disse? – insiste o Tocha.
– Que me havia de dizer? Que não pode fazer nada, muito menos levar o Chico para sua casa. Que acabaram com o hospital para fazerem uma casa do povo e não sei que mais.
Tocha tira a boina e coça a cabeça num gesto de confusão. – A quem vamos agora falar, Olhinhos?
– A ninguém, Tocha.
– Então não vamos pedir alguma coisa para ajudar o Chico?
– É inútil, Tocha. Ninguém dará nada. Aposto a cabeça. A gente do nosso pano só tem piolhos, fome e frio, e às vezes, quando o Sol aquece, um pouco de esperança.
– Tu recordas-te do que dizia o Dr. Ponce? «O Sol quando nasce é para todos».
– Sim – murmurou o Olhinhos, levantando os olhos semicerrados para o segundo andar do Avenida. – Parece que o estou vendo.
– Dizem que tinha o mesmo mal que o Chico.
– Dizem. A morte não respeita ricos, nem pobres, nem doutores. Mas para onde levamos o Chico? Está-se a fazer tarde.
– Sabes, Tocha? Estou pensando. Deixa-me ver… E se o levássemos para a casa do Ferrinho 15…?
– Do Ferrinho? Mas se é um tipo com casas de moças e vícios de mulher. Que dirão as pessoas?
15 O Ferrinho era conhecido como um pederasta pobre mas assumido e relativamente tolerado na vila. Vivia num armazém da actual Rua 1º de Maio.
– Já sei, Tocha. O mundo dirá muita coisa. Mas que queres tu? Talvez seja a única casa da terra que dê abrigo para que o Chico morra tranquilo. Além disso, segundo dizem, o Ferrinho também está tuberculoso. Por isso nada perderá com o hóspede…
– Está bem, Olhinhos. Vamos…
Os dois amigos levam o melhor possível o companheiro de infortúnios e ilusões para casa do Ferrinho que, não obstante ser um degenerado pederasta, mostra-se solidário na desgraça com aquele condenado atirado pela sociedade à roda do destino.
Encostado a um velho enxergão, semelhante ao seu, que o Ratazana quis queimar, Chico da Júlia vê o cavaleiro da bronzeada armadura e cavalo cor de lua do cartaz das lâmpadas eléctricas acercar-se-lhe, dizendo: «Não tenhas medo. Venho buscar-te para o mundo da eternidade».
Perde a visão e submerge-se no abismo.
XV
Eduardo é interrogado assiduamente pelo chefe Gouveia que deixou de adoptar para com ele a sua hipócrita expressão doce, para rugir como uma fera, vociferar como um bárbaro e agredi-lo a bofetões e pontapés a cada negativa, como um sádico e profissional torturador com muitos anos de ofício.
Aos seus coléricos interrogatórios, obstina-se o preso em responder como anteriormente. «Não sei nada», «Estou inocente».
O ódio ao verdugo diminui-lhe a dor física até suprimi-la. Então, olha-o de frente, bem ao fundo dos olhos. Já não sente medo, nem o terror provocado pelas torturas que lhe debilitam o corpo. O antro sepulcral onde o enterraram vivo é asfixiante, mas ele resiste.
Depois de alguns meses de incomunicabilidade naquele calaboiço escuro de Faro, Eduardo é transferido para uma cadeia política de Lisboa, reservada a vários presos sem julgamento.
Ali, entre caras barbudas, olhos tristes e corpos sujos, cobertos de farrapos e piolhos, inicia-se para Eduardo uma nova etapa da sua vida. Como as tarimbas são poucas em relação ao número de encarcerados, todos compartilham as suas camas em grupos de três e dois. Entre os presos há um que fala com acentuação latino-americana.
Os seus olhos pardos de míope, brilham atrás duns óculos que nunca abandona. Passa os dias lendo pedaços de jornais antigos. Quando não lê, escreve, à falta de papéis, em pedaços de madeira arrancados das tarimbas, ou troca impressões com os ocasionais companheiros de infortúnio, sobre os mais diversos problemas da vida. Eduardo, que é o mais jovem dos presos, não o entende. Parece-lhe que o outro fala de coisas inacessíveis ao seu parco entendimento. Não obstante isso, os seus gestos, que acompanham sempre as palavras, como para lhes dar maior convicção, cativam Eduardo. «Quem será?» interroga-se. «Deve ser instruído, visto que quando fala todos guardam silêncio e o escutam com atenção, ficando presos a tudo quanto diz».
Em pouco tempo, quase sem se dar conta, Eduardo sente nascer-lhe um sentimento de respeito e amizade por aquele homem sempre de olhos vivos e rosto risonho. Um dia, surpreendentemente, ele dirige-lhe a palavra: – Quem és tu, rapaz?
Porque estás aqui?
Eduardo fala quanto pode acerca de si. Diz-lhe quem é e quais os motivos que ali o levaram – Ah! Muito bem. Olha, a princípio, quando entraste, tomei-te por um espião.
Por esse motivo não falei antes contigo. Desculpas-me, não é verdade? Agora que sei quem és, parece que vamos ser amigos…
– Mas, se eu já sou seu amigo!
– Magnífico! Então vamos conversar, mas… com uma condição: não falaremos de nós nem do que nos rodeia. Falaremos das coisas que se passam fora destas paredes pelo mundo fora. Devem ter-te maltratado muito, não é verdade? O teu aspecto não engana. Isso passa-se com todos! Mas o ritmo dos acontecimentos vai mudar. Vem, senta-te aí.
Os dois presos sentam-se frente a frente sobre os cobertores das tarimbas. Nos olhos míopes do amigo do Eduardo, brilha uma pequena chama de alegria.
– Tu estás preso há pouco tempo, segundo creio. Sendo assim, talvez possas contar-me algo sobre a marcha da guerra. Como vai a guerra? Quem vai ganhando?
Imagina a minha ansiedade por saber tudo. Há quatro anos que estou preso, sem notícias, com o mundo fechado para nós. Conta-me tudo o que souberes.
– A guerra, – tartamudeia Eduardo, – vai direita ao fim. Na altura em que fui preso ouvi dizer que os russos estavam às portas de Berlim, com os alemães já vencidos.
Sabe, eu mal sei soletrar, por isso não pude ler os jornais que contam tudo.
– Vais aprender a ler bem comigo. Aqui temos tempo para tudo.
– Quase todas as noites escutava a BBC de Londres no rádio da «Espanhola», no largo da Palmeira. Depois das emissões, ouvia os comentários dos operários desempregados no jardim da terra. Os alemães estavam perdidos e a guerra ia para o fim.
À medida que o rapaz fala, os lábios do seu amigo abrem-se num franco sorriso.
A alegria inunda-o e agita-lhe o coração. O jovem preso descreve no seu defeituoso vocabulário, mas com sentida emoção, os problemas que afectam a humilde gente da sua terra. Fala dos dias de fome, dos sofrimentos e das esperanças dos desempregados, dos sedentos de justiça social. Conta que os operários aguardam o fim da guerra para emigrarem; que sonham com o longínquo país da fraternidade humana de que ouvia falar o Dr. Ponce.
– Emigrar? – interrompe o amigo. – Não devemos pensar nisso. A pátria necessita de nós. Cada qual deve ser um soldado presente e firme para quando soar a hora. Emigrar é desertar. Além disso, no nosso país há lugar para todos. Basta suprimir a desigualdade social e lançarmo-nos na grande tarefa de construir o nosso futuro.
Emigrar? Eu também emigrei. Fi-lo quando não tinha mais de dez anos. Que adiantei?
– Ah! emigrou? – interrompe Eduardo – Então quem é, e por onde andou?
Conte-mo. Gosto muito de saber.
– Gostas?
– Sim, gosto.
– Está bem. Contar-te-ei a parte mais acidentada da minha vida. O resto não tem importância, posto que só os momentos de acção justificam a existência humana. Aí vai:
Eu era operário petrolífero. E, um dia, um camarada de trabalho apresentou-me o projecto de uma greve geral, pedindo a minha adesão. Vacilei, tendo em conta as consequências que desse acto adviriam para a minha vida particular. A polícia do país, que considerava já como minha pátria, famosa pela sua crueldade, exercia as mais severas represálias contra os grevistas, espancando-os barbaramente e afastando-os do trabalho. Eu era casado, minha mulher, mais nova que eu, não compreendia a luta colectiva.
Queixava-se, isso sim, de que o meu salário era insuficiente mas não estava disposta a arriscar nada, nem ao menor sacrifício. Era individualista por instinto, conservadora por educação. Hoje pergunto-me: «Como pude casar-me com ela? Não sei». Um homem não nasce homem, faz-se…, eu compreendia que era meu dever participar na greve, fazer-me solidário com a causa comum. Mas tinha medo; medo por ela. Temia ser despedido da companhia onde trabalhava e vê-la reduzida à miséria. Ela era então o meu centro de gravidade; eu girava em volta do seu pequeno mundo, sem coragem de libertar-me da sua órbita. Era para mim a única estrela brilhante num firmamento escuro. Cego, eu não via milhares e milhares de outras estrelas que pediam o meu olhar contemplativo, a minha adesão. Tentei livrar-me com evasivas daquele compromisso, aduzindo um indeterminado número de coisas de que já nem me recordo.
Meu camarada olhou-me pensativo e exclamou depois: «Tens medo. Egoísta! Pensas exclusivamente no teu lar sem compreender que a nós te unem laços indestrutíveis. A nossa miséria será a tua miséria, ainda que a tua cobardia te afaste da nossa luta. Tens medo, eu sei… A princípio todos sentimos medo, medo na pele e nos nervos, mas depois…» – Depois quê? – interroguei eu. – Já o saberás. Vem comigo, respondeu-me ele. Esse companheiro levou-me aos subúrbios da cidade, a casa de um espanhol chamado Juan Canadas. Que extraordinária lição me estava reservada! Nunca esquecerei esses instantes decisivos para a minha vida. Quando transpus o umbral da porta, fiquei profundamente surpreendido e emocionado. Diante de mim, num pequeno leito, estava um ataúde com tampa de cristal iluminado interiormente por seis lâmpadas eléctricas. Dentro dele divisava-se um corpo esquelético envelhecido. Mas não se tratava de um morto.
– Não!? – perguntou Eduardo, surpreendido.
– Não. Diante de mim, dentro daquele verdadeiro féretro de aspecto impressionante, encontrava-se o mais extraordinário homem que até hoje me foi dado conhecer. Tinha sido dirigente do Sindicato dos operários petrolíferos, fomentador e organizador de várias greves. Um dia a polícia invadiu o sindicato e atacou o destacado militante operário. Eminente homem de acção, não se entregou sem luta. Disposto a defender heroicamente a vida, lutou com os assassinos uniformizados. Então um dos esbirros atirou-lhe uma máquina de escrever que lhe bateu no peito, deixando-o inanimado, banhado em sangue, inutilizado fisicamente para toda a vida. Aquele ataúde não era mais que um aparelho eléctrico que o ajudava a respirar, atenuando-lhe um pouco o sofrimento físico. Mas aquele homem esquelético, paralítico, estendido na tumba, não pensava nele nem falava do seu sofrimento. Sorria e pensava na humanidade, apertou-me a mão perguntando-me: «Quem és?», «Que fazes?», «Como pensas?». Falava com visível dificuldade. O suor inundava-lhe a cara e a cabeça calva, mas o entusiasmo transfigurava-o e devolvia-lhe a vida que a enfermidade lhe roubava.
Não havia problema referente ao nosso sindicato que não fosse ventilado por ele, com uma precisão matemática. Perante o espírito combativo daquele camarada, senti vergonha de ser como era e de desaparecer. A vida para ele era curta; a sua luta contra a morte iminente já durava três anos, sepultando-o em vida, e aproximava-se do fim. Mas ele não tinha medo; morria pensando nos demais, pensando em mim mesmo, nos meus próprios problemas. Ele estava, no entanto, mais vivo do que eu. A sua mão que, com frequência, apertava a minha, insuflava vida e esperança, confiança nos homens e no futuro. Quando o deixei, já eu não era o mesmo. Havia rejuvenescido e já não tinha medo. Via o mundo mais amplo como antes não tinha visto, com milhões de estrelas.
Então dediquei-me à luta sindical sem desfalecimentos.
Sempre calmo, o companheiro de prisão de Eduardo prosseguia: – Eu mesmo organizei a greve à qual tinha hesitado inicialmente em aderir. Lutámos, sofremos, é certo, mas vencemos. A essa greve seguiram-se outras, umas triunfantes, outras perdidas, mas todas elas bastante significativas e prestigiosas para a classe operária. Fui perseguido, encarcerado, mas nada, absolutamente nada, nem torturas nem sacrifícios, apagaram em mim a chama de fé na vitória do proletariado. Um dia, depois de dois anos de prisão consecutiva, fui entregue ao governo salazarista.
Esta é a minha pequena história. Há quatro anos que estou preso. De prisão em prisão, vim parar aqui. Podem matar-me, mas nunca me dobrarão. A minha vontade, temperada na forja da vida, é de aço, e a minha arma que deve ser também a tua, é mais forte que as deles. A minha arma é a fé no renascimento do homem.
Os dois presos não precisam de mais palavras.
Ficam silenciosos, entregues aos seus mais gratos pensamentos. Eduardo sente aumentar a sua admiração pelo companheiro de calabouço e parece-lhe que o coração se aquece agora a um novo sol nascido para todos os homens.
XVI
Em Olhão há dois clubes recreativos: um dos «Ricos» e o outro dos «Pobres»16.
O primeiro destina-se aos doutores, grandes industriais e comerciantes; o segundo a funcionários públicos de baixa categoria social, aos empregados comerciais e a operários estabilizados. Num e noutro não entram pescadores, descarregadores de cais, vendedores de peixe, padeiros, taberneiros e engraxadores, e as profissões mais humildes em geral. O fundador do clube dos «Pobres», o velho César, manifestara o desejo de que o clube fosse para todos, sem distinção de classes, mas a ordem social impunha «diferenças» até no plano das «diversões».
Chegada de novo a primavera, os homens do mar indagam com olhos angustiados o vasto oceano. Têm os braços caídos ao longo do corpo, como membros inúteis que já não encontram ocupação. No porto, as velhas embarcações registadas na capitania alinham-se num montão de cascos, velas e mastros enegrecidos, cobertos de lodo e limo.
A beira-mar está quase silenciosa; nem um grito de um marítimo, nem o oscilar da água fendida por um remo. Apenas para lá dos estaleiros, com os seus esqueletos de barcos velhos, um compacto bando de gaivotas, em intermináveis voos em busca de peixe, procura ver na superfície marinha os restos das apanhas. O mar está calmo, sem oscilações, como um lago, e os botes por aqui e ali parecem cisnes negros desplumados.
As pessoas andam inquietas, acossadas pelas privações que começam a fazer-se sentir.
Os rostos, habitualmente tão joviais, estão tristes, cabisbaixos. Os cérebros ocultam pensamentos estranhos. As pessoas interrogam-se mudamente umas às outros, temendo proferir palavra. Só sabem dizer: – O mar está seco!
E os seus olhos de rebeldes domados, baixam-se para o chão em expressões desoladas. Está-se em plena primavera, como uma crise de dias de inverno. «O mar está seco!» espalha-se por toda a terra como uma maré avassaladora, e os trabalhadores de terra, os homens das fábricas e da construção, vão à doca presenciar o estranho fenómeno. As suas vozes numa mistura de emoção e terror, juntam-se às dos pescadores: – O mar está seco!
Nessa expressão, arrancada por uma realidade avassaladora à boca do povo,
16 Alusão à Sociedade Recreativa Olhanense, conhecida pela “Recreativa Rica”, e à Sociedade Recreativa Progresso Olhanense, conhecida pela “Recreativa Pobre”.
sintetiza-se todo um mundo de angústias e preocupações. O crepúsculo doura as casas da terra, inundando-as de sombra, mas a gente não dorme: a vigília é de todos.
Só o entusiasmo fenece. Extinguem-se nos lábios das mulheres as canções populares, como já se extinguiram as sirenes das fábricas.
As indústrias fecharam temporária ou definitivamente e o comércio abre as suas portas aos cães a às moscas. Os merceeiros negam-se a dar fiado e o pessoal operário sem trabalho e sem dinheiro invade as casas dos prestamistas Macário e Fernandes, o velho, onde todos se despojam, sem saberem até quando, de tudo aquilo que foi conseguido à custa de sacrifícios.
À noite, assim que as primeiras luzes cintilantes da terra se acendem, mulheres de xaile e mantilha, tapadas como no tempo dos mouros, saem à rua, perseguidas pelo clamor «O mar está seco!». Estendem a mão à caridade, temerosas mas decididas. É a pobreza envergonhada da vila; as mulheres que vêem os maridos voltarem da contemplação do mar, com as mãos vazias, sem esperanças, sem nada; as mães, amantíssimas, que sacrificam tudo para que não haja lágrimas nos olhos dos seus filhos, para que não falte pão às suas bocas.
Os lares onde antes reinava a «paz do pobre», parecem agora um inferno, tornando num eco o adágio popular «Casa onde não há pão, todos clamam e ninguém tem razão…».
Os homens amontoam-se nos bancos das praças públicas, a saborear o sol, aquecendo-se na esperança dum prometedor verão. Sentem-se deslocados do meio onde trabalham; olham preocupadamente as pernas e aos braços, como que a perguntarem: – Para que os queremos?
Os engraxadores e os moços da baixa reúnem-se no Café Portugal, e partem em marcha famintos para os campos. Os camponeses, a quem já chegou o grito aterrador:
«O mar está seco!» vêem-nos chegar e invadir-lhes as hortas e quintas, como uma praga. Algumas vezes tentam impedir-lhe o avanço.
– Piores que os gafanhotos – dizem. – Árvore onde pousam só fica com os ramos.
Travam-se escaramuças, lutas renhidas, pedradas que mais atiçam o ódio do «montanheiro» contra o «melo» 17.
17 O montanheiro é, em Olhão, o homem do campo que vive fora da localidade. Este, por sua vez chama “melo” ao olhanense porque, em homenagem à revolta olhanense de 1808 contra as tropas napoleónicas, o Príncipe Regente D. João VI atribuiu ao nobre mais proeminente da revolta algarvia, D. Francisco de Melo da Cunha Mendonça de Menezes, o título de Marquês de Olhão.
18 Esta personagem só poderia ser o cónego António Baptista Delgado, muito conservador mas também muito culto, com formação universitária em Portugal e Itália, responsável pela criação do Asilo para idosos na vila de Olhão.
O estado anormal de Olhão começa também a preocupar a classe média. As autoridades mexem-se também a procurar uma solução para conter a avalancha do povo que deambula pela Avenida da República.
O padre Calado 18 chama o povo a preces. A gente humilde e temerosa, de toscos tamancos, enche o templo, e as suas vozes suplicantes elevam-se ao Cristo imóvel no altar. Há lágrimas nos sulcados rostos das velhas, comoção na voz dos pescadores, mas Cristo mantém-se rígido, imperturbável na sua cruz. Como o mar, também está seco…
Algumas embarcações querem quebrar o feitiço. Ao cair da tarde, lançam-se ao mar, levando cada pescador uma esperança no coração. Mas voltam vazias na manhã seguinte. Chegam como partiram. De peixe, nem rasto. E já de muito longe, quando vêm contornando a barra, o pessoal da doca sabe do esforço inglório pela falta de gaivotas. Então, como uma praga, saem de todas as gargantas a habitual exclamação: –
O mar está seco!
Pouco a pouco, as lágrimas, como coisa inútil, vão-se secando nos olhos da gente do mar. Em seu lugar surge um fogo alentador, numa insinuação de revolta. Os pensamentos ganham em profundidade o que perdem em altura.
XVII
Enquanto a gente pobre do povo está abandonada à sua sorte, nos braços duma realidade fomentadora de desalento e pessimismo, aguardando com temor e ansiedade o dia seguinte, como o desdobramento da angústia que lhe afoga a respiração, ou a solução de um estado das coisas que não pode perpetuar-se, o velho Dr. Dias e o poeta
Feliciano 19, as duas mais destacadas figuras intelectuais do povo, passam as noites no Clube Rico, rodeados de amigos e admiradores, falando absolutamente de si e da sua obra, talvez esquecidos de que lá fora à sua volta a vida palpita e segue os seus caminhos.
O poeta recita o seu último soneto, dedicado à memória de João Lúcio, o poeta franquista 20, cujo busto está erigido no jardim junto à Escola Primária. Por seu turno o historiógrafo, esquecido da sua medicina e autor de alguns artigos e folhetos sobre Olhão, expõe as suas novas e originais conclusões acerca do moinho da Barreta. Fala minuciosamente numa linguagem culta e académica, historiando a chegada dos pescadores de Ílhavo e a fundação da velha Olhão, o derivativo de Olhão a partir do Olho-de-Água, mais tarde conhecido por Poço das Bombas, devido a um grupo de terroristas radicados em Moncarapacho ter guardado ali o produto de uma fabricação clandestina de explosivos. Depois, vêm os relatos quase intermináveis das vidas do patrão Joaquim Lopes e do doutor Estêvão e da viagem do caíque ao Brasil, levando a novidade da expulsão napoleónica à família real lá refugiada, assim como outros relatos da personalidade do Marquês de Melo e da fundação dos clubes Rico e Pobre.
O doutor Dias consegue atrair integralmente a atenção dos seus admiradores. O drama da gente da terra não entra nos seus pensamentos, a sua descrição do desenvolvimento da vila fica incompleta, como uma peça teatral incompleta por falta dos protagonistas. Para ele, só os factos isolados têm transcendência. A participação colectiva do povo em realizações é um mito para ele. Esquece-se de contar a contribuição das massas laboriosas na criação da indústria de conservas e de peixe. O aparecimento das sacadas, primeiro, e dos cercos e traineiras depois, com as respectivas tripulações, não contam nas perspectivas do Doutor Dias. E, no entanto, foi mercê desses braços de homens rudes, desses homens que a classe dominante esquece, que surgiram as dezenas de fábricas de conserva de peixe que enxameiam a terra de uma ponta à outra.
Historiógrafo e poeta pertencem ao passado, como silhuetas de coisas mortas cuja actuação ficou para trás do tempo. Desenterradores de sombras mitológicas, de um mundo de símbolos negativos, ignoram o homem-vivo, o homem-novo dos nossos dias.
19 O Feliciano seria Adriano Baptista, que viveu em Olhão e notabilizou-se como artista completo: desenhava e pintava maravilhosamente para jornais e revistas, escreveu teatro, poesia, e tocava guitarra com Carlos Paredes e outros gigantes da época.
20 Efectivamente o poeta João Lúcio foi também político monárquico, adepto de João Franco, o ditador escolhido pelo Rei D. Carlos I para dirigir Portugal, e que terminou com o regicídio.
XVIII
Joãozinho é entregue à protecção do padre Calado que o interna num asilo, resguardado por altas e imponentes paredes, quase intransponíveis, que lhe dão um aspecto de presídio e o isolam da paisagem exterior. Ali, nessa monótona prisão sem grades, o Joãozinho recorda sua mãe e também o seu protector, de cuja companhia os guardas o arrancaram.
Como um pássaro enjaulado, perde a vivacidade habitual, tão característica dos meninos da sua idade, para ser invadido por uma mudez taciturna. Sente-se prisioneiro, sem ar, sem luz. Tem necessidade de sol e condenam-no a viver na casa amarela, sempre sombria. Atravessa aquele período em que a vida marca indefectivelmente, com um estigma de crueldade, a infância dos pobres, deixando-lhes no espírito, sulcos fundos que integram a herança psicológica do homem futuro.
O asilo dos meninos é contíguo ao dos velhos, separando-os, apenas, uma porta, que se conserva sempre aberta de dia. Assim, rapazes e velhos confundem-se num só grupo, contrastando a algaraviada de uns com a monotonia dos outros, numa alternativa de primavera e inverno. Entre os velhos há um cego que goza de grande prestigio como contador de histórias. Tem um invejável e inesgotável reportório, desde o conto «Pedro Cem que já teve e hoje já não tem» até breves histórias sobre a rainha Dona Amélia.
Quando o vêem sentado, os moços juntam-se à sua volta e com as vozinhas de pardais engaiolados, pedem-lhe que lhes conte uma daquelas lindas histórias que ele tão bem sabe contar. O cego olha-os com os seus olhos sem luz, pensativo, coça os sovacos. Dá depois uma risada velhaca que deixa ver as gengivas sem dentes e diz: – Bem, moços.
Contarei um conto, mas com uma condição: que me catem os piolhos…
Na sua inocência, os meninos acedem a tão repugnante tarefa com o desejo de não perder a oportunidade de o ouvir.
Passadas algumas semanas de reclusão, Joãozinho acaba por familiarizar-se com o cego a tal ponto, que este o destaca como o seu despiolharizador favorito.
Passam os dias quase inteiramente juntos, separando-se só quando a obesa irmã de caridade surge anunciando as refeições de sangue cozido. As histórias que mais sugestionam a imaginação do Joãozinho são os relatos das viagens marítimas. O mar, que poucas vezes viu, toma para ele um significado de imensidade, sem muralhas!
Quando o cego começa «O mar muito azul e imenso, como uma preciosa toalha estendida sobre a mesa de um poderoso rei», Joãozinho sente-se delirar de entusiasmo.
Só quando o vê calar-se, esgotado pelo esforço físico, fica outra vez cativo do sentimento de ave prisioneira.
Após meses de internato, frios e tristes, como uma prolongada noite escura que só os contos do cego iluminam, Joãozinho assiste ao renascer da primavera, quando regressam as aves migratórias. O velho cego fala-lhe em levá-lo a passear até à Avenida.
– Passei frio. Também se acabou o tabaco. Esta noite vou pedir esmola para a Avenida, respirar o aroma das plantas e ouvir o canto das rãs. Quem sabe se chegarei à outra primavera! Queres vir comigo? Serás meu guia.
– Não nos deixarão sair.
– Irás debaixo da minha capa, para que te não vejam. – Mas vão ver-te a ti.
– Que me importa! Não poderão impedir-me de abrir as portas desta prisão.
Estou cansado deste regime de sangue fervido. Quero ar, luz; quero desentorpecer as pernas. Se vieres comigo, vou contar-te os meus melhores contos sem que precises de catar-me. Mas se não vieres aumento-te a quantidade: vinte piolhos por conto em vez de dez como agora…
Naquela noite, transposto o portão do Asilo, Joãozinho vagueia pelas ruas da vila conduzindo o cego. Este implora, abre a mão, mas ninguém dá nada. Pontas de cigarro no chão, nem vê-las…
– Malditos tempos! Já nem se pode ser cão – queixa-se o cego – Tens a certeza que esta é a Avenida? Há bancos, árvores, cafés e muitos homens?
– Sim, há!
Velho e moço unidos no mesmo drama, na mesma comédia da vida, continuam o seu peditório.
– O mar está seco! Tudo está seco: o coração dos que podem dar e as algibeiras dos que não têm. Pedes no deserto – sentencia uma voz anónima.
– Malditos tempos, já não se pode ser cão – repete o velho.
Aspiram o perfume do jardim, ouvem o cantar das rãs, compreendendo cada qual a seu modo aquela silenciosa mensagem da renovação da natureza. Fatigados, sentam-se num banco para recuperar forças. Ficam silenciosos, embriagados por diversos pensamentos. De repente, o cego exclama:
– Que bem me saberia agora um cigarrinho! Não haverá pontas debaixo dos bancos? Procura bem, João. Tu não calculas o que representa para mim um cigarrinho!
– Não há nada. O chão está limpo.
– João, procura-me um cigarro! Que triste é ser pobre!
O mocinho levanta-se do banco, estende a mão a quem passa, pedindo: – Um cigarro para o ceguinho, meu bom senhor. Tenha pena do ceguinho que não tem para fumar…
Passam alguns homens fumando, mas seguem indiferentes às súplicas da criança. Na esperança de conseguir um cigarro para o seu velho amigo, põe-se a seguilos pacientemente. Quando um deles atira uma beata ainda fumegante para o chão, apanha-a com os pequenos dedos e com ar de triunfo corre para o cego, gritando: –
Toma! Chupa antes que se apague!
Contente, o cego tira algumas fumaças, deleitando-se com o fumo na garganta, até que a beata se desfaz em pedacitos entre os dedos enegrecidos: –João! Queres ouvir uma linda história? É a mais linda da minha vida.
E sem esperar consentimento do pequeno começa: – Naquela noite, a primavera renascia como hoje, e a lua banhava a grande cidade. Lisboa é uma grande cidade, cinquenta vezes maior que a nossa terra.
– Sim, sem exagerar… Mas ouve-me: o coche, puxado por cavalos (não havia ainda automóveis), parou em frente do jardim da Estrela. Ela desceu pegando na orla do vestido. Tinha um ar de bailarina espanhola, com uma rosa a adornar-lhe os formosos cabelos negros. Peguei-lhe ansioso na mão e beijei-a com reverência. Sentámo-nos num banco, muito juntos. Subitamente, após algumas carícias amorosas, ela disse-me: – Teodoro! A vida de uma rainha pode mudar bruscamente. Eu tentei interrompê-la com novas manifestações de amor, mas ela cortou-me a palavra. «Escuta-me primeiro. Eu queria dar-te cem mil réis».
– Era muito dinheiro? – perguntou o Joãozinho, interrompendo-o. – Ui! se era…
Como quinhentos mil escudos hoje… – Então, conte lá outra vez…
Ela voltou-se para mim e disse-me: «Vejo em ti personificada a alma do povo.
Por isso amo-te muito e quero dar-te uma garantia do meu amor». – Cala-te – respondi eu atraindo-a para mim. Sou feliz, muito feliz, sabes? Não quero riquezas. Só quero o teu amor e também esta rosa que adorna a tua formosa cabeleira. E ela respondeu: – Bom, toma-a. Olha que lamentarás a tua decisão – acrescentou ela levantando-se.
«Não, não a lamentarei» – respondi eu. Ela disse-me «Bem, adeus!» e estendeu me a mão que voltei a beijar, vendo-a desaparecer no interior adamascado do coche. Foi a última vez que a vi. Nunca mais a ouvi nem aspirei o seu perfume da Prússia. Só depois compreendi que o amor de uma rainha é fugaz como a vida duma rosa.
Das pupilas do cego deslizam lágrimas rebeldes.
Depois de se ter iniciado no vaguear nocturno pelas ruas da terra, a solidão do asilo começa a tornar-se insuportável para o Joãozinho. Durante o dia aguarda com impaciência a chegada da noite para se escapar com o cego, pela vila fora, numa grata aventura, para só regressar na manhã seguinte, ao cantar dos galos.
Até que um dia, não obstante os seus desejos, o cego não se levanta. Permanece inerte no seu catre, submerso num sono profundo. Os moços são os primeiros a estranhar a sua dormência e, mais ainda, a falta da sua voz sugestionadora na história de «Pedro cem, que já teve e hoje não tem».
Às primeiras horas da tarde, a notícia da sua morte espalha-se por todo o asilo.
Todos os companheiros de infortúnio – velhos e moços – vêm vê-lo numa última despedida. O cadáver está estendido no chão, envolto num lençol onde passeia uma legião de parasitas.
– Rebentou a piolheira! – dizem os velhos. – Deus nos livre a todos, santos e pecadores…
Ao cair da noite a carreta funerária leva o cadáver do cego, com a alma encomendada a Deus pelo padre, até ao cemitério.
Durante vários dias, o Joãozinho sofre em silêncio a morte daquele velho companheiro, lamentando-se de não voltar a percorrer as ruas. Estas exercem sobre ele uma influência cada vez mais sugestionadora. O apelo da liberdade leva-o a sonhar transpor as grades do cárcere.
Começa a alimentar a ideia de fugir para sempre daquele antro de gente desgraçada, onde até o sol é triste. Sente-se vítima dum pesadelo em que um abutre negro persegue as borboletas brancas. Desperta, volta a adormecer, mas a seguir volta a despertar outra vez, sobressaltado. A noite é propícia. Não há lua, nem se ouve vivalma.
Unicamente o canto dos galos e o ladrar dos cães cortam o silêncio nocturno. Levanta-se da tarimba, olhando com precaução para um e outro lado, não vão os outros moços despertarem e inteirarem-se do seu propósito, deitando tudo a perder. Dirige-se para a porta com pés de lã. Abre-a lentamente, sem se dar ao trabalho de a fechar; sai contornando a muralha até chegar ao portão de ferro. Corre o ferrolho rapidamente, com o coração sobressaltado e ansiosamente pegado a ele, puxa o portão. Vê-se fora do asilo, com a alegria e a loucura de um pássaro que foge da gaiola. O ruído dos próprios passos o sobressalta. Parece-lhe que alguém o persegue. Lança-se para diante, correndo com todas as suas forças e alento.
Naquela hora, as ruas estão desertas. Não sabe para onde ir. É um menino abandonado, e os meninos abandonados não são meninos nem têm destino. Os seus pés descalços e arroxeados pelo frio da noite não param, percorrendo rua atrás de rua. A manhã tarda em nascer, ainda que há muito se oiçam cantar os galos matutinos. Aquele mundo de coisas silenciosas é agora uma revelação para ele, falando-lhe ao instinto, excitando-lhe a imaginação infantil. Naquele mundo silencioso vê renascer a vida, a vida dum aglomerado humano, com novas esperanças e desilusões.
Chega ao jardim João Serra, já seu conhecido. Senta-se no banco onde o cego lhe contara a história dos seus amores com a rainha e, sem querer, verte uma lágrima em sua memória.
Morfeu 21 vem suavemente fechar-lhe as pálpebras, sob o tecto da noite primaveril. Estende-se no banco e acaba por adormecer.
XIX
Calatrava ouve soar as doze badaladas da torre. A voz sonora do sino, que agora tem outra entoação no silêncio nocturno da vila adormecida, chama-o à realidade, despertando-o de estranhas e dolorosas meditações. Compreende que chegou a hora decisiva. Não poderá adiar por mais tempo os seus desígnios. Senta-se na esteira de esparto que lhe serve de cama, atira para o lado a velha manta e fica contemplando a neta adormecida no berço, como uma boneca de trapos, de laço colorida nos cabelos.
Como desejaria eternizar aquele momento! Sente vontade de a beijar, mas contém-se. A vida, ainda que não o tenha abandonado, é certo, já o deixou morto para o mundo, abandonado à intempérie do reino das sombras, qual uma estátua num bosque sombrio. Não pode acariciar nada. A sociedade repele-o do seu seio, dizendo-lhe: «Tu estás a mais no mundo dos vivos».
O corpo converteu-se-lhe numa chaga viva, numa rosa de sangue que dilacera e cresce. A lepra floresceu num corpo de fístulas e pús, comendo-lhe os malares, o nariz e as falanges dos dedos.
Vive só com a neta. Quase não tem família. O filho anda expatriado por terras francesas. Talvez morresse nos campos de batalha, porque de há muito não dá notícias.
É pobre e sapateiro de profissão. As ferramentas jazem agora a um canto da casa. Já não as usa, cantando alegremente, como nos antigos tempos. Quando lhe apareceram no rosto as primeiras chagas, os clientes desapareceram como pássaros assustados. Compreendera então que um micróbio traiçoeiro, herdado dos antepassados, lhe corria no sangue. Ainda deixou crescer a barba numa tentativa de ocultar a horrível e despedaçadora verdade do seu anoitecer, mas foi tudo em vão… A barba enxameada de chagas tornou-se-lhe rala como uma sementeira de raiz apodrecida.
Os clientes nunca mais voltaram. Atrás da sua ausência, vieram a fome, o abandono e o desespero. Durante dias e noites consecutivos, debateu-se com a angústia biológica do homem frente ao problema da morte. Amava a vida, queria viver, mas a sociedade repelia-o e indicava a porta da morte como a única saída possível.
Se protestava contra o desenlace do seu destino, repelindo a senda para onde o empurravam, surgia-lhe a graciosa figura da menina a seu cargo, com um sorriso e uma vozinha infantis, que o deixavam sem resistência.
Finalmente compreende que tem de encarar o seu fim como um facto consumado. A neta a quem tanto quer, não pode continuar a viver com ele. Tem que separar-se dela quanto antes… Caso contrário, terminará por contagiá-la.
A quem a entregará? Não sabe. Não conhece ninguém que a deseje adoptar, e no asilo não internam meninas. Até os ricos evitam ter filhos, e os pobres abandonam os seus. Frequentemente são achados meninos recém-nascidos, já mortos, em caixotes de lixo e retretes públicas. Ele mesmo achara um dia um pequeno estojo, cheio de flores, com os restos mortais dum menino.
Acabava de acordar. Para quê? Para abandonar a neta no poial duma porta, ou num canto dum jardim? Sim, para isso. Não lhe resta outra alternativa. Mas terá procurado bem? Parece-lhe que sim. Chega à conclusão que não lhe restará fazer outra coisa. E se pedisse às pessoas que tomassem conta dela? Não. Para quê? Nem o deixariam aproximar-se. Fugiriam, como se vissem nele uma maldição, uma peste encarnada em figura humana. Além disso, os ricos não têm coração, e os pobres não têm recursos. Ela, ainda que pequenina, seria uma boca a mais em qualquer mesa, e quando crescesse não ajudaria grande coisa a quem a adoptasse, porque as mulheres do povo não conseguem trabalho.
Tem que ser, não há outra solução. Decidido, Calatrava levanta-se, calça as alpergatas e mete-se no gabão. Acende a vela e espreita pelas gretas da porta a rua escura e silenciosa onde só se ouve o sibilar do vento nos fios eléctricos. A luz fere os olhos da pequenita, que desperta sobressaltada.
– Já nasceu o sol, avozinho?
– Não, linda! É a luz da vela, não vês?
– Ui! Ardem-me os olhos. Tenho tanto sono.
– Já te passará. Anda, levanta-te e vai lavar a cara.
– Então já é tarde, avozinho?
– Não, linda. É que hoje vamos passear.
– Já não faz frio?
– Já não. O tio Neves da mula branca foi para a serra. Agora nasce a primavera.
– E as flores também, avozinho?
– Sim, flores de todas as cores, e assim lindas como tu.
– Ui, que bonito vai ser! – a menina bate as palmas entusiasmada. – Agora tirarei a fotografia no jardim ao pé das flores. Vou ficar muito bonita e o papá ficará contente quando chegar. Ele também chega com a primavera, não é verdade?
– Claro que sim. Chega. Mas anda depressa que se faz tarde.
Ditas estas palavras, Calatrava volta-se para a parede, para esconder uma lágrima furtiva, brotada do fundo da sua dor.
Novamente fica silencioso na angústia que parece perpetuar-se, consciente do sentido da sua tragédia, ignorada como um grão de areia perdido no deserto. Desperta-o a voz da neta.
– Estou pronta, avozinho! O meu penteado está bem, não está?
– Muito bem, linda! – tenta responder mas a emoção embarga-lhe a voz.
Decidido, pega-lhe na mão e abre a porta, nervoso. O escuro da vila, mal iluminada, envolve-os à saída.
Começam a caminhar pela rua da Cruz. Ele com pressa; e a menina inquieta.
– Que escuro, avozinho! Que medo!
– Não tenhas medo, vai amanhecer depressa.
Calam-se e vão andando. A vila está adormecida. Raramente algum transeunte nocturno os cruza no caminho.
Quando isso acontece, o homem e a miúda envolvem-se mais no gabão, temendo serem reconhecidos. Atravessam a rua 18 de Junho e chegam ao jardim João Serra. O coração de Calatrava bate ansiosa e angustiadamente, e a noite encobre a cor desmaiada da cara leprosa. Chegou a hora da angustiosa separação. Sentam-se num banco. O perfume das flores recém-abertas incita a viver. A menina está alegre, mas o velho, triste, invadido por um sentimento raro, que só um homem na sua situação pode compreender.
A menina mostra inquietação, desejo de se agitar como uma borboleta ou um pássaro em liberdade. De súbito, exclama: – Avozinho, vou colher uma flor, sim?
Com uma voz cavernosa, subterrânea, com que tenta disfarçar toda a sua dor, Calatrava responde: – Sim, vai. Mas primeiro chega aqui.
Atrai junto a si a neta, como há muito não o fazia, saca da algibeira um papel branco, transparente, e apoia-o no rosto cobrindo o veneno dos seus lábios. Beija-a com ternura, com nostalgia, como só se beija pela última vez. Detém-se na sua expressão amorosa… Parece-lhe que um sapo acaba de beijar uma flor. Os sapos não deixam veneno nem empeçonham as rosas, mas ele pode deixar.
– Olha, linda. Vês além aquela rosa?
A menina com a alegria brilhando-lhe nos olhos põe-se em pontas de pés e olha na direcção indicada pelo braço estendido do avô. – Ah, aquela branca! Sim, que linda!
– Não, aquela não. A outra mais lá, não a vês?
– A encarnada, avozinho?
– Sim, a encarnada, a de cor de sangue. Vai colhê-la.
Com o seu passo miudinho, a menina afasta-se entre as flores. Calatrava vê afastar-se a sua pequena silhueta, como uma visão que se esfuma no horizonte para não voltar mais.
Sente o ímpeto de chamá-la, para lhe dar um último beijo. Mas não, a hora soou.
Recorda-se de uma canção espanhola muito em voga durante as suas viagens pela Andaluzia:
Que bonita! Que bonita, é a minha menina!
Parece mesmo… uma borboleta.
Esquece-se de metade dos versos. Não importa. Soou a hora – repete. Decidido, dá meia volta e retira-se em passos largos que tentam ser firmes, sem olhar nem uma vez para trás. Levanta a gola do gabão até aos olhos e chora, angustiosamente, lágrimas que ninguém pode ver nas sombras da noite.
Percorre ao acaso, rua após rua, mal guiado pelo instinto, como homem perseguido e com medo dos próprios passos. Os senhores da terra dormem àquela hora, com sonhos felizes. Ele é um morto-vivo caminhando, para a sepultura. Na América, diziam, tinham inventado uma maneira de fazer os mortos andarem sós, rumo ao cemitério. Naquela terra quase ignorada do grande mundo, ele é um desses mortos, e a sociedade um desses inventores.
Chega à beira-mar. A água azul, perdida na imensidade dos mares, está fria. Ele não sabe nadar. Não obstante, é esse o caminho a seguir. Não tem outro. Volta-se um instante para a vila e parece-lhe que mil mãos fechadas o ameaçam. Então, fecha os olhos e precipita-se. Ouve-se o ruído dum corpo a cair e a agitar a água. Um grito angustioso rompe a solidão marinha, mas a terra está adormecida, e ele é como uma gota de água caída no oceano.
XX
Completamente adormecido, com o rosto golpeado pela suave brisa primaveril, e refrescado pela humidade da manhã, Joãozinho sonha! Vê a lua e depois as estrelas baixarem do céu, aos saltos, como a gata Mimi do alto dos telhados, a lançar-se sobre ele saudando-o. A lua é a sua mãe; e as estrelas os velhos cegos de todos os asilos do mundo. Julga descobrir entre elas a que corresponde ao seu velho amigo, companheiro e mestre de histórias da vida, fazendo-lhe sinais, pedindo-lhe que chame todos os meninos fugidos dos asilos para escutarem a história do «Pedro Cem, que já teve e hoje não tem».
A lua, muito amarela, envolvida num manto negro, segreda-lhe carinhos, chamando-lhe João-dos-olhos-grandes. Desde que a mãe morreu, ninguém mais lhe disse que tinha os olhos bonitos. Ah, mas a lua é sua mãe! Sorri, estende-lhe os braços e pergunta: – Mãezinha, onde estiveste? Mãezinha, tanto tempo sem te ver.
A lua ensaia um sorriso humano e responde-lhe: – Joãozinho, estou no céu rodeada de anjos e flores. Nunca mais voltarei à terra. Parei um momento para ver-te, mas a alvorada já se avizinha e tenho de partir. Adeus, Joãozinho-dos-olhos-grandes. Aí te deixo uma noiva.
A lua desvanece-se no seio de uma nuvem e as estrelas desaparecem na profundidade do espaço infinito. Diante de Joãozinho surge uma menina de laço colorido nas tranças. Parece-lhe a imagem de um dos quadros que a tia Ana tinha no quarto. Será? Não sabe. Sorri e ela olha-o ansiosa. Ah, aquela é a sua noiva, a noiva do João dos olhos grandes!
Desperta assombrado. Levanta-se do banco e esfrega os olhos com os dedos.
Parece-lhe ouvir chorar. Olha à volta inquieto, mas não vê nada. Estaria sonhando?
Levanta-se completamente e começa a andar, necessitando de desentorpecer as pernas pelo frio da manhã. De repente dá meia volta, girando sobre os calcanhares, como aprendeu no asilo. Ouvia chorar uma vozita infantil. Desta vez não se enganava. Olha para diante e vê sentada sobre a relva uma menina, a mesma que vira nos sonhos. Sente-se estremecer, invadido de maus pressentimentos. Recorda-se do conto da Floripes 22, a menina dos olhos negros, que lhe contara o cego, e sente-se a ponto de chorar, ele também.
22 A Floripes é uma princesa moura encantada que vagueia em Olhão segundo a lenda, e que teria sido abandonada pela sua família, devido à fuga apressada que esta encetou quando os cristãos invadiram o Algarve.
A menina, com os olhos humedecidos, levanta-se e vai ao seu encontro.
Joãozinho tem medo e sente ganas de fugir, mas as palavras do cego cruzam-lhe o pensamento. «O homem é o rei da criação, não tem medo de nada; vence feras, deuses e fantasmas». Olha a menina agora já junto a ele e diz: – Eh, tu! Quem és? És a Floripes, a menina dos olhos negros?
– Não sou. Eu sou a Laurinda do avozinho – responde ela.
– Não me enganas, não. Não me peças que te ponha ao colo, por que eu não o farei.
– Eu sou a Laurinda do avozinho – repete ela. – E que fazes aqui sozinha a esta hora?
– Estou procurando o avozinho.
– Mas onde está ele?
– Não sei. Fui colher uma rosa e o avozinho… não sei, já não está no jardim.
A menina rompe outra vez em soluços.
– Está bem, não chores mais. Procuras o teu avozinho? Olha além ao Céu, àquela estrela. Vês?
– Vejo.
– Pois bem, é o teu avozinho. Aquela outra é o cego do asilo, e a lua amarela, com olhos e boca de gente é a minha mãezinha.
– Ah! E a minha também?
– A tua? Há muito que não a vês?
– Nunca a vi. Eu vim de Espanha, trazida por uma cegonha. – Ah! então a tua mãezinha deve ser aquela estrela grande. E agora, onde vais?
– Vou contigo.
– Então vem. Eu não tenho casa, mas tu és a minha noiva, a noiva de «João-dosolhos- grandes», como diz a lua, minha mãe.
XXI
A terra amanhece em ar de festa. Rebentam foguetes e morteiros, como numa romaria. A gente salta precipitada da cama e vai assomar-se às portas e às janelas, com a sensação do imprevisto, da novidade que alegra os corações.
Pela Avenida da República desfilam grupos populares, empunhando bandeiras e galhardetes. Todos cantam «A Portuguesa», festejando com ansiedade o 7 de Maio de 1945, dia do Armistício. O povo baila nas ruas, delirando de alegria, renascendo das suas misérias e tristezas. Os telégrafos anunciam ao mundo a capitulação incondicional dos alemães e a notícia do fim da guerra com a vitória das Nações Aliadas, corre de boca em boca, inundando os bairros operários em ondas de esperança.
A brisa matutina suaviza os homens dos seus cansaços quotidianos, renova-lhes as forças e o ânimo. Com o grande entusiasmo que os invade, esquecem-se das penúrias e dos problemas da sua dolorosa existência para vibrar intensamente ao som dos acordeões e guitarras.
O povo bebe e espalha alegria que, como uma bendição, chega a todos os lares e alcança todos os corações como rio caudaloso que desdobra e inunda as terras ribeirinhas.
Um grupo de estudantes fala ao povo, tentando explicar o porquê e o significado da vitória dos Aliados. No alto, por cima da multidão, tremulam as bandeiras dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França.
Entre elas há um pau-de-bandeira a descoberto, que chama a atenção do povo.
Alguns homens e mulheres não entendem, perguntando então o que significa e para que é aquela haste. Os mais esclarecidos explicam-lhe: – Aquela é a haste que ganhou a guerra.
Não ousamos arvorar a bandeira, mas trazemo-la no coração.
Um estudante imberbe, de cabelos ruivos e voz sonora, grita, agitando uma capa negra:
– Viva os Estados Unidos!
– Viva! – grita a multidão.
– Viva a Inglaterra!
– Viva!
– Viva a França!
– Viva! …
– Viva o pau.
– Viva! … Vivaaaaa! … Viva a União Soviética – entoam algumas vozes maisdecididas, quebrando vinte anos de silêncio inquisitorial sobre a existência da pátria soviética.
Novos grupos aderem à manifestação, como soldados da paz, e aquele exército civil, sem armas, vai avultando cada vez mais.
O sol surge límpido num céu azul muito vivo, recordando aos homens que sobre os escombros da tirania nasce uma nova era de Paz. Os pescadores parecem haver-se esquecido de que o mar está seco e seus estômagos famintos, os operários das conservas, nos seus trajes de ganga azul, não pensam desesperadamente na legião de desempregados a que a sua profissão os condena.
Todos pensam no instante em que vivem, com o pensamento no futuro. A vida vai mudar, a justiça entrará finalmente no reino dos pobres que não aspiram a riqueza, mas exigem justiça social e mais humanidade. Em pouco tempo, as suas vozes vão perdendo o medo a que os condenaram. Chegou o momento de se fazerem ouvir e exigirem o que de direito lhes pertence. São, assim, uma força unida; representam um todo composto de várias peças… Nem sempre tiveram consciência dessa força, mas agora têm-na. Quem poderá opor-se aos seus anseios de justiça? Que o tentem os tiranos…
A guerra, cujo fim festejam, será uma lição que ninguém deve esquecer. E eles – povo – não a esquecem. Se se constroem cidades, barcos e aviões para a guerra, poder-se-á também erradicar da sociedade os males da doença e da tirania, desfazê-los até aos alicerces e construir o futuro.
Pela primeira vez, a classe operária da vila pensa livremente, sem medo de expor os seus pensamentos. Encabeçados pelos estudantes, empunhando pequenas e grandes bandeiras, os manifestantes tomam o caminho do Estádio Padinha. Uma vez mais interrompem-se os acordes musicais dos acordeões, clarinetes e guitarras, e entoa-se «A Portuguesa».
Heróis do mar, nobre povo
Nação valente, imortal.
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória
Oh pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós
Que hão-de levar-te à vitória.
O gigantesco coro da multidão transfigura-se e arrebata os corações que batem em uníssono:
As armas! Às armas!
Pela pátria lutar,
Contra os canhões, marchar
Marchar!
Calam-se as vozes ao mesmo tempo, comandadas por uma só vontade, por um só sentimento de solidariedade. Os estudantes, rodeados de imensa multidão, detêm-se no recinto do estádio. Entre eles, alguém levanta os braços para pedir silêncio e depois exclama com voz alta: – Povo Olhanense!
O eco do apelo estende-se por todo o campo de jogos.
«Hoje é um dia novo para a história da humanidade. Milhões de almas, espalhadas pelos cinco continentes, festejam o dia da vitória, unidas pelo mesmo ideal de justiça e liberdade.
«Berlim, cidade de pedra, cujos mandatários tinham uma consciência pervertida pelo lodaçal das suas vidas imundas, capitulou incondicionalmente. Acossada por todos os lados, pelas baionetas dos aliados que não lhe deram tréguas, a besta nazi foi abatida no seu próprio covil. Com ela fica sepultado o mundo da tirania mais bárbara que regista a história da humanidade.
«A vontade dos povos foi mais forte e venceu os métodos da brutalidade do fascismo, conseguindo uma vitória que as gerações vindouras apreciarão no seu justo valor. Sabemos bem que, para esta vitória ser possível, os soldados das Nações Unidas não pouparam esforços nem sacrifícios. Atestam-no os mortos e os feridos cujo sangue generoso empapou a terra para que nós pudéssemos ser livres.
O fascismo foi derrotado, é certo, mas a vontade dos povos não está ainda concluída. Cada um de nós deve considerar-se um soldado do novo exército da Paz e estar vigilante. Como erva daninha o fascismo pode germinar entre os escombros e propagar se de novo. Digo-vos isto, porque, como todos sabemos, ainda subsistem governos nazi-fascistas que estão, nestes momentos, assumindo demagogicamente atitudes democráticas. Nós sabemos quais são e não devemos descansar sem que os tenhamos derrotado. Como portugueses e iberos, temos uma grande dívida para com o povo».
– Sim, temos! Abaixo os ditadores! Viva a liberdade! – secundam os manifestantes, delirando de entusiasmo.
«É nosso dever confiar nos aliados, – continua o orador, – mas não descuidemos nossas forças, ignorando a nossa luta. É a nós que compete pugnar para que o nosso país regresse ao caminho da democracia. Queremos eleições livres, liberdade de imprensa, amnistia para os presos políticos; queremos que a voz do povo, a vontade soberana da nação, seja respeitada.
«Povo Olhanense!
«Lutemos unidos contra a tirania, por melhores condições de vida, por um mundo mais digno. Levantemos bem alto nossos braços, e gritemos: Viva a liberdade».
Centenas de punhos se levantam de forma emocionante, e uma voz potente, firme, serena, como o ressoar de um trovão, secunda o orador: – Viva a liberdade!
Vivaaaaa! …
– Vivam os aliados!
– Vívaaa!
– Viva o pau!
–Viva! Vivaaaaa! … Viva o pau que ganhou a guerra! – grita o povo ébrio de alegria, libertado da mordaça que o oprimira longos anos.
Eduardo e o seu amigo Apolinário, postos em liberdade mercê dos acontecimentos internacionais, estavam também desde o primeiro instante apoiando a manifestação do povo olhanense. Quando o estudante dá por terminado o discurso e é levado em triunfo, Eduardo substitui-o na improvisada tribuna.
Sente-se indeciso, mas o olhar de Apolinário dá-lhe força: – Camaradas, amigos: «Chegou a hora de protestar contra as imposições dos poderosos, de nos revoltarmos contra os que até agora nos pisaram e humilharam, negando-nos os mais elementares direitos de cidadãos.
«Basta de atropelos, basta de exploração. Nós somos os construtores da pátria, aqueles que com o esforço do seu braço lhe dão vida e tornam o progresso numa realidade. Até agora ninguém se preocupou com os nossos problemas materiais. Temos fome, mas não nos dão pão; exigimos justiça e empurram-nos para a porta duma prisão.
«Dizem-nos que o mar está seco e abandonam-nos à nossa sorte, condenam-nos a uma miséria ainda mais negra do que aquela em que temos vivido. Mas antes o mar não estava seco; antes era um manancial de ouro que entrava nos cofres dos capitalistas, e a vida do pobre que produzia, qual era? Era a mesma de hoje: miséria e angústia. Por conseguinte, o dinheiro arrebanhado pelos senhores industriais e comerciantes, pertence-nos, é nosso; é o produto do nosso esforço durante muitos anos».
Estrondosos aplausos interrompem o jovem que se cala por um momento, para logo recomeçar: «O momento actual que vive o povo é anormal e não tem justificação de espécie nenhuma. Nos nossos lares – e muitos de nós não têm lar – não há pão, nem dinheiro para o comprar. Que fazer? Devemos actuar, reclamar aquilo a que temos direito. Não podemos deixar-nos sucumbir à fome.
«Na minha opinião, devemos ir daqui, todos juntos, a casa do presidente da Câmara e exigir que se tomem com urgência algumas providências.
«Se nos atender, muito bem; mas se recusar escutar-nos, adoptaremos as necessárias medidas por nossas mãos. Que dizem?».
– Sim, devemos expor ao presidente a nossa angustiosa situação – exclama uma voz fanhosa de mulher.
– Que nos dêem trabalho! – grita um velho pescador.
– Sim, que se criem fontes de trabalho, para não morrermos de fome – secundam outras vozes do povo.
Apolinário substitui Eduardo no uso da palavra aos manifestantes:
– Amigos:
«Devemos juntarmo-nos sem tardar, em frente da Câmara. Mas antes de irmos para lá, temos de reflectir: o momento que vivemos hoje é dos mais significativos para o futuro do nosso país. Ele dá-nos uma grande alegria que ultrapassará a angústia em que têm vivido os nossos corações.
«Saibamos tirar partido dele, não o deixando perder. Seja qual for o resultado das acções que vamos fazer, devemos mantermo-nos unidos, como os dedos da mão, porque só assim formaremos uma fortaleza inexpugnável. Caso contrário, sucumbiremos debaixo das patas do opressor. Levantemos bem alto os punhos e encaremo-lo com serenidade, sem medo, pois de outra maneira não surtirão efeito as nossas reclamações. Vamos! Vamos!».
Estudantes, empregados, operários, pescadores e moços de trabalhos diversos, em grupos compactos, abandonam o Estádio Padinha e seguem para a Avenida da República. A música torna a cortar o ar, excitando a imaginação dos manifestantes, com uma esperança que eles prevêem já como realidade. Novamente se entoa o Hino Nacional:
Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal
Às armas! Às armas!
Contra os canhões, marchar,
Marchar!
Desfraldada a invicta bandeira
A luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira
Portugal não pereceu!
No centro da Avenida, alguém distribui cartuchos de nêsperas pela multidão faminta, que as devora com avidez.
Joãozinho deixa um instante a pequena noiva, e corre a receber dois cartuchos da deliciosa fruta. Comem apetitosamente, atirando os caroços para o ar e rindo com a inocência de pombos saídos do ninho.
Chegam à frente da Câmara. Param. Os estudantes, Apolinário e Eduardo e alguns operários que tomaram a chefia da manifestação, deliberam sobre os meios mais viáveis para interpelar o presidente. Os estudantes, alegando o receio de comprometer os pais, funcionários públicos, desligam-se do compromisso de guias da multidão e misturam-se na massa compacta dos manifestantes.
Constitui-se uma comissão encarregada de se dirigir ao gabinete do presidente, a solicitar-lhe uma audiência. Este, depois de algumas evasivas, nega-se a recebê-los.
Passam alguns minutos de ansiosa expectativa para a multidão aglomerada no largo da Câmara. Vários agentes da polícia aparecem, pondo uma nota de contraste no ambiente.
Vigiam sem ousar intervir, esperando talvez ordens superiores.
Perante veementes reclamações do povo, a janela central do primeiro andar da Câmara abre-se finalmente e a ela se assoma a silhueta amedrontada dum homem gordo, de sobressaídos tecidos gordurosos. Fixa assombrado a vista naquele mar de gente que exige a sua presença, limpa os olhos míopes com um lenço de seda, e numa voz apagada balbucia: – Que querem de mim os senhores?
Há um instante de silêncio embaraçoso. Todos os olhos buscam os companheiros encarregados de exporem o seu problema. É Apolinário quem responde:
– Nós, senhor presidente, estamos aqui para lhe expor a situação em que se debate a classe operária desta vila, que o senhor não deve nem pode ignorar. Devido à grande crise que a falta de pesca ocasiona, os trabalhadores sentem a imperiosa necessidade de pedir-lhe um auxílio imediato que ponha termo à miséria que assola a vila.
– Então vocês vêm pedir esmola?
– Não! – responde indignado Apolinário. – Nós não lhe pedimos esmola, porque isso nos rebaixaria. O que pedimos é mais justiça, mais pão, mais trabalho, melhores condições de vida.
– Pedem-me tanta coisa… Mas, que posso fazer eu por vocês? Seguramente que não vou sentá-los à minha mesa, nem dar-lhes o que me pertence. Era o que faltava!…
– O senhor, senhor presidente, pode e tem o dever de solucionar a crise que afecta centenas de lares. Para isso, basta unicamente ter boa vontade e dignidade.
A ira substitui o medo no rosto avermelhado do presidente.
– Dignidade tenho eu bastante; e não lhes permito que me façam lembrar. Se não a tivesse, já tinha ordenado à polícia que lhes desse um castigo merecido pela vossa ousadia. Vêm pedir-me uma coisa que não está em mim dar, nem me compete resolver.
Eu sou um simples mortal. Peçam-no a Deus – e o presidente aponta o céu à multidão
faminta. – Ele é o Todo-poderoso… O que tudo pode… Bem! Vão-se embora sem perturbar a ordem pública.
Faz o gesto de retirar-se e fechar a janela, mas Apolinário responde-lhe com voz cada vez mais firme: – Não nos afastaremos daqui, enquanto não obtivermos uma solução para o nosso pedido. Os pobres estão famintos e sedentos de justiça. Vêm reclamar o que lhes pertence, o que lhe foi usurpado. Pão! Queremos pão!
– Pão! Queremos pão! – gritam os manifestantes em coro.
– Vê, senhor presidente? Ouve-os? As suas bocas exigem aquilo que lhes negam ao estômago.
– Mas, quem são vocês? São comunistas?
– Somos homens antes de tudo! Homens com estômago, pés e cabeça, como o senhor, senhor presidente.
– Como eu? Basta! Não lhes permito. Retirem-se ou chamarei a polícia.
– Temos fome!
– Comam pedras.
– Não nos retiraremos.
– Como queiram. Saberão as consequências.
O presidente da Câmara fecha apressadamente a janela e recua apoiado na secretária. O povo interroga se, indeciso, inquieto e um pouco desalentado pela atitude do presidente. Apolinário convida a multidão a tranquilizar-se.
– Não percamos tempo em suplicar a quem não nos ouve.
– Ele tem coração de pedra e não sente a nossa dor de mães, nem compreende o drama em que nos debatemos.
– O meu filho não come pão há dois dias.
– Também os nossos – gritam as mulheres levantando os punhos. – Aos ricos não se lhes pede, exige-se-lhes. Exigimos só o que é nosso e eles nos tiraram.
– Tiraram-nos tudo: forças, pão, liberdade, mas ainda não estão satisfeitos!
Agora querem-nos roubar a vida pela fome – exclama um velho descalço e barbudo.
– Sim, eles procuram reduzir-nos à inanição física e moral, mas não puderam arrancar dos nossos corações esta ânsia de justiça que nos agita. Somos pobres de pão, sejamos então ricos de esperança e fá-los-emos tremer. Lutemos. Renasçamos das nossas misérias morais e venceremos. A alguns passos de nós há abundância, amigos.
As nossas casas estão vazias, mas os armazéns dos ricos estão cheios. Nós temos fome; eles comida. Que esperamos? Não existem leis nem preconceitos de ordem moral que nos impeçam de satisfazer as nossas humanas necessidades. Há que optar entre assaltar as padarias e armazéns, ou morrer de fome como cães abandonados. Morrer de fome é um sacrifício inútil, além de uma cobardia. Basta de nos conformarmos com a herança do passado. Somos seres humanos, temos olhos, pés, mãos, cabeça e estômago como eles. Somos iguais, apenas com a diferença de que eles têm a barriga mais avultada.
Vamos, amigos, irmãos, gente, povo! Não esperemos indefinidamente a esmola que o céu nos dá. Vamos com ordem e disciplina, sem atropelar ninguém, mas resistindo aos que nos impeçam o objectivo, buscar aquilo que nos pertence e nos é negado.
O choro duma criança nos braços da mãe interrompe Apolinário. A mulher procura calá-la, embalando-a, mas ela tem fome e busca ansiosamente os seios murchos e vazios.
– Vamos! – gritam em uníssono centenas de vozes.
A multidão faminta obedece a um impulso retido por muito tempo, e precipita-se pelas ruas centrais como a torrente de um rio transbordando do leito.
O povo espalha-se rapidamente, invadindo a vila como um enxame. Temerosos, os comerciantes apressam-se a fechar os seus estabelecimentos. Desde o ano da Pneumónica, há mais de vinte anos, que não se recordam dum levantamento assim.
Confiam na palavra do chefe da polícia, «o Aguardente», como lhe chamam os engraxadores, que o vêem constantemente bêbado, de que a ordem da vila nunca será perturbada; mas como o seguro morreu de velho, tratam de fechar os estabelecimentos.
Esperam, apreensivos, que aquela onda de inquietação passe, como passa a preia-mar que invade as ruas ribeirinhas.
O senhor Adolfo, proprietário das Portas de Ouro23, não abandona o seu estabelecimento. Depois de dar folga aos empregados por todo o dia, corre os ferrolhos e tranca as portas, ficando só, guardando no cofre do escritório todo o dinheiro entrado na caixa registadora. Conta o último maço de notas quando lhe parece ouvir uma pancada na porta principal. Volta-se sobressaltado, como rato surpreendido a meio dum queijo. Quem será? O vento? Passos de gente na rua? Vem aumentar a sua expectativa um novo bater, seguido de outro e outro ainda, mais violentos 24.
O senhor Adolfo fica a tremer de ansiedade. Leva a mão ao peito como querendo suster as pulsações do coração, agora mais agitadas, e depois passa-a pela cabeça calva, excessivamente luzidia. Está parado na porta do escritório, sem atinar com uma decisão.
As pancadas continuam, recrudescem. Abre a boca para perguntar «Quem está aí?», mas permanece mudo. A voz some-se-lhe no fundo da garganta. Torce as mãos carnudas, muito brancas e corre para o telefone arrastando os pés coxos. Uma das pantufas prende-se-lhe no tapete, fazendo-o cambalear. Olha em redor, aterrorizado, com receio de algum agressor invisível. Pega a tremer no telefone e pede um número à telefonista.
– Com quem deseja o senhor falar?
– Com a polícia? Mas se ela não atende ninguém… Não está um único agente no posto.
– Não está?
– Não, senhor. As lojas estão a ser assaltadas e a presença da Polícia, assim como a da Guarda Republicana, é necessária em diferentes pontos da vila. Aí tem a razão por que não atendem.
23 Trata-se de um armazém comercial muito conhecido e sobretudo frequentado por clientes de maiores posses, cujo verdadeiro nome era “Portas de Ferro”, no Largo Patrão Joaquim Lopes.
24 Em 1920 e em 1922 na sequência de greves gerais contra a carestia de vida houve em Olhão tumultos e assaltos a estabelecimentos comerciais sobretudo de produtos alimentícios e padarias. No entanto, não há notícia de que o mesmo tivesse sucedido mais tarde.
O senhor Adolfo poisa o telefone, desanimado. Duas gotas de suor deslizam-lhe pela cara. As pancadas na porta parecem ter acabado. Atento o ouvido, escuta vozes altercadas. São as gentes do mar e das fábricas, as gentes insignificantes, a quem não fia um tostão.
– Que fazem à minha porta? Quererão roubar-me? – interroga-se.
Volta a lembrar-se das notícias comovedoras dos dias da Revolução Bolchevista, que lera em folhetins do Diário da Manhã e sente ainda mais medo. Aquela ralé miúda, gente sem Deus, pode transformar-se num monstro de sete cabeças com os seus levantamentos comunistas – e, então, que será dele? Deus o livre de semelhante praga!
Vem interromper as suas reflexões filosóficas outra pancada na porta, mais violenta que as anteriores. A alvenaria começa a cair das paredes.
O senhor Adolfo vocifera colérico, implora a ajuda de todos os santos e levanta os olhos à abóbada do tecto, onde em dois ganchos se penduram duas abóboras prontas a ser vendidas em talhadas de cinco e dez tostões. Um bocado de alvenaria mais volumosa solta-se da parede, indo desfazer-se contra os vidros das estantes, que se desfazem em bocadinhos.
– Ai, Jesus! Jesus! Santo nome de Jesus!
Corre para a porta para emparedá-la com o corpo, banhado em lágrimas rebeldes que, pela primeira vez, lhe assomam aos olhos, convencido de que é um Cristo da Idade Moderna.
Na rua, um grupo de homens e mulheres famintos forçam a porta com vigas de madeira arrancadas dum andaime ali perto. No grupo estão Eduardo, o Olhinhos e o Tocha.
– Vamos, Tocha! Dá-lhe, que vai – incita o Olhinhos.
– Sim, Olhinhos, tem que saltar! Upaaa… Já está, vês?
A porta chapada de ferro cede, inclina-se e cai com estrondo sobre o balcão.
Ouve-se um estilhaçar de vidros, primeiro, e depois uma voz lamuriosa.
Os assaltantes invadem o armazém e entregam-se ao saqueio.
– Nada de destroços. Levemos unicamente comida – ordena Eduardo. O senhor Adolfo aproxima-se dos assaltantes, falando-lhes com voz doce, mas todos o enxotam como mosca pegajosa. Ninguém o escuta nem atende as suas súplicas.
– Não me roubem! Não me roubem! Se me roubam fico na rua, na miséria.
Tenho mulher e filhos. Vocês querem alguns boiões de conserva ou algumas linguiças?
Pois levem as linguiças, mas deixem-me alguma coisa. Tenham compaixão de mim.
Pega no braço do Eduardo e ajoelha-se, pateticamente, a seus pés.
– Menino, eu dou-te uma recompensa, queres? Dou-te agora cinco escudos e para o Natal compro-te um sobretudo. O próximo Inverno deve ser muito frio, mas tu com um sobretudozinho andarás quentinho. Bem, eu vou buscar-te os cinco escudos, mas vocês deixem-me em paz, sim?
– Não, senhor Adolfo. Não posso aceitar a sua oferta. Eu conheço-o muito bem, como você me conhece. Já não se recorda de quando me punha na rua aos pontapés, chamando-me filho da cabra e da cadela? Tem a memória apagada?
Com um sacão, Eduardo livra-se dele. Os assaltantes comem linguiça e bacalhau crus, ao mesmo tempo que enchem os bolsos.
– Ladrões! Ladrões! – berra o comerciante.
– Enchemos algumas bolsas. Quem sabe o que se irá passar! – aconselha o Tocha.
Alvoroçados, homens e mulheres abrem as bolsas vazias e enchem com algumas latas de manteiga, postas de bacalhau, pacotes de massa e arroz, latas de conservas, biscoitos, etc. Minutos depois, com os seus fardos ao ombro, os assaltantes abandonam o armazém e dispersam-se pela vila.
Apolinário encabeça um outro grupo de assaltantes, constituído na sua maioria por mulheres e velhos, que tomam de assalto a Padaria Baieta, onde enchem algumas bolsas e cestos de pão. Quando abandonam o local, desembocando da rua transversal, quatro guardas republicanos montados em cavalos imponentes aparecem por diante, impedindo-lhes a passagem.
– Alto, ladrões!
– Nós não somos ladrões; somos homens honestos a quem vocês negam o direito de viver. Deixem-nos ir com o pão que a boca dos nossos inocentes filhos reclama – argumenta um velho marítimo.
Joãozinho e a pequena protegida sustêm debaixo do braço, cada um, o seu pão.
Olham-se sorridentes e mostram-nos aos guardas rígidos e firmes sobre os cavalos impacientes.
– Eles têm fome e querem-nos tirar o pão – balbucia o menino, que instintivamente aperta os pães, ainda quentes, contra o peito.
– Larguem o pão! Larguem o pão! – ordena o tenente.
– Não, não largaremos – responde Apolinário. – Há centenas de crianças que o esperam ansiosamente para matar a fome.
– Que comam pedras! – vocifera, colérico, o tenente.
– Têm os dentes muito brandos para fazê-lo. Comam pedras, vocês, que têm os dentes mais duros.
– Insolente! Ensinar-te-ei a respeitar a autoridade.
Desembainhando as compridas espadas, os guardas lançam os cavalos sobre os velhos e as mulheres, ferindo-os barbaramente. Cada qual procura escapar como pode.
Uns apertam-se contra os vãos das portas, outros correm pelas ruas contíguas.
Apolinário tenta defender os dois meninos indefesos das patas dos cavalos e das espadas dos guardas, interpondo-se entre eles.
– Cobardes! Assassinos de velhos e crianças! Miser… – Não pôde concluir a palavra. As patas da besta do tenente derrubam-no, enquanto a espada lhe golpeia a cabeça. Alguns velhos e mulheres, conduzindo as crianças pela mão, alcançam o fim da rua onde nos dias anteriores trabalharam os calceteiros, deixando-a no meio cheia de cascalho e alcatrão.
Abandonando Apolinário sobre o passeio, com a cara e as mãos ensanguentadas, os guardas e o tenente tornam a perseguir os populares em fuga, que se protegem atrás de bidões e quando os vêem aproximar-se, começam a apedrejá-los.
Surpreendidos, os esbirros detêm os cavalos. Então as mulheres, a quem o calor da luta enfureceu, fazem rebolar os bidões de alcatrão e aproveitando uma inclinação do terreno, empurram-nos rua abaixo contra o inimigo. Perante a cilíndrica e inesperada chuva de projécteis, os cavalos fazem piruetas e soltam relinchos, rompendo a galope pelas travessas sem que os cavaleiros os possam controlar.
Não conseguindo suster a sua montada, um dos cavalos é apanhado por uma lata.
O cavalo dá meia-volta, num estridente relincho de dor, e estatela-se no passeio, ferido de morte, arrastando o cavaleiro na queda. Este sente o sangue emudecer-lhe as calças com uma dor aguda, penetrante, na perna direita. O cavaleiro quer tirar a perna presa debaixo do cavalo morto, mas não consegue. A cada movimento a dor aumenta como uma ferida a reabrir-se. Olha angustiadamente em volta, procurando alguém, mas vê-se só. A dor da perna vai crescendo com o resfriamento que o sangue coagulado provoca.
Acostumado a mandar, a insultar e a agredir o povo, o militar implora:
– Socorro! Libertem-me daqui! Não me sacrifiquem mais.
Como resposta às suas súplicas, vê as portas e janelas fecharem-se e os punhos de mulheres e velhos levantarem-se contra ele, ameaçadores.
Joãozinho diz à sua protegida: – Vês, o guarda morreu de fome. Tinha muita fome e nós não lhe demos pão. Que tristeza!
Lá longe soam ainda tiros, ouvem-se blasfémias de homens, gritos de mulheres, choro de crianças.
Eduardo chega correndo. Inclina-se sobre o amigo ensanguentado e levanta-lhe a cabeça para verificar se ainda tem vida. Apolinário abre os olhos turvos pela febre e fixa-os no Eduardo, enquanto a sua mão busca a do amigo como querendo convencer-se da realidade daquele instante. A boca esboça um pequeno sorriso.
– Ah, és tu, meu jovem amigo!
– Sim, sou eu. Está ferido. Espere, vou chamar alguém para me ajudar a levá-lo daqui.
– Não, não vale a pena. Para onde me levariam?.Já não há hospital, transformaram-no numa chamada Casa do Povo. Além disso, eu não viverei muito tempo. A minha morte não terá importância; outros camaradas de maior valor e capacidade já morreram pelo mesmo ideal. Neste momento vêm-me à cabeça os nomes de Rêgo, Ferrer, Firmin Galan, Bento Gonçalves e outros mártires da Ibéria. Ouve…
O rosto contrai-se-lhe num rito de fadiga e dor, a boca abre-se-lhe para expelir sangue, mas torna logo a sorrir.
– Ouve, procura bem o significado das minhas palavras. O povo atravessa uma grande crise, submerge-se num abismo de angústia de que é preciso arrancá-lo. Agora depende de ti, meu jovem amigo, da tua capacidade para a luta, da interpretação que faças dos seus problemas sociais. Ajuda os que precisam de ti. O povo, o único Deus verdadeiro em que acredito, tem grandes possibilidades de vencer a classe opressora.
Nunca duvides da sua força, porque duvidar dela é morrer. Às vezes, a desistência e o desânimo invadem-nos, tentam-nos, mas devemos saber resistir-lhe. Os pequenos incidentes ocorridos hoje demonstram bem que o povo representa uma força avassaladora que já não se deixa vencer sem luta. Mas tem que se saber conduzi-lo. Ele tem falta de líderes que o levem pelos caminhos da verdade, à conquista das suas reivindicações. Percebes o que te digo? Pois bem, sê tu um desses líderes. A vida social da nossa vila começa agora. Actua, não sejas mero espectador. Semeia, cultiva sem descanso e triunfarás. Ainda que a morte te surpreenda, não te atemorizes, nem te detenhas no cumprimento do teu dever. Semeia. Semeia sempre, ainda que a terra te seja pedregosa. Semeia, que a missão do homem é semear. Semeia esperanças neste vale de angústias do povo. Não poupes esforços nem trabalhos. Pensa no futuro social de uma classe operária que já começa a levantar a cabeça para protestar.
Apolinário sente-se desfalecer. A sua voz extingue-se. Aperta a mão do Eduardo numa última mensagem e fecha os olhos. Está morto.
Eduardo desprende-se emocionado da mão do extinto e pousa-lhe a cabeça empapada de sangue sobre a lama do passeio. Fica um momento contemplando-o e, depois, resolutamente, como quem toma uma grande decisão, começa a andar com passo firme, rua fora, no crepúsculo da tarde. As últimas palavras de Apolinário martelam-lhe a memória: «Semeia esperanças neste vale de angústias do povo. Semeia, que a missão do homem é semear».
Sente-se mais humano, mais confiante e dono de si mesmo, como se uma nova luz lhe iluminasse o caminho.