A INDÚSTRIA CONSERVEIRA DE SESIMBRA NOS PRIMÓRDIOS DO ESTADO NOVO (1933-1945)

Andreia da Silva Almeida Lisboa, 22 de Dezembro de 2011

6. NOS TEMPOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA 73
7. OS ANOS DA DITADURA MILITAR 82
8. O ESTADO NOVO E A INDÚSTRIA CONSERVEIRA SESIMBRENSE 101
8.1.A Difícil Implementação de um Contrato Colectivo de Trabalho 117
8.2.A Fundação do I.P.C.P. e a Inauguração da Luz Eléctrica 130

6. NOS TEMPOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA 

Durante o período em que durou a I Guerra Mundial, de 1914 a 1918, a indústria de conservas portuguesa conheceu uma fase de grande expansão e a uma enorme valorização dos seus produtos, notando-se um grande crescimento das exportações. Entre 1914 e 1923, este crescimento cifrou-se na ordem dos 190%. Ora, este quadro não é de espantar, tendo em conta que, como já fizemos referência, a indústria de conservas é uma indústria subsidiária da indústria de guerra, se atentarmos ao facto de podermos assemelhar uma conserva a uma ração de combate.

No início do conflito, o governo republicano, durante a presidência de Manuel de Arriaga, na tentativa de auxiliar os industriais conserveiros decretou a instalação de armazéns gerais industriais em Setúbal, Olhão e Lagos 81, onde as conservas poderiam ser apenas depositadas ou warrantadas, isto é, os armazéns, ou a entidade estatal que os detinha, emitiam um certificado de garantia do depósito de mercadorias, que depois poderia ser negociado pelos industriais com as instituições financeiras para, por exemplo, lhes poder ser concedido qualquer tipo de crédito. Contudo, para que esses títulos fossem emitidos eram exigidas aos fabricantes um conjunto de normativas, especialmente a avaliação prévia da mercadoria e assinatura de um termo de responsabilidade que constatasse que as conservas eram fabricadas segundo as regras da arte e que eram próprias para o consumo humano. Se as conservas não estivessem em condições de serem consumidas era estipulado um conjunto de multas. A avaliação das latas era realizada no armazém geral por dois peritos que efectuavam uma prova de soldadura, verificavam o estado do conteúdo das latas, e a sua rotulagem. Se as conservas passassem no exame, a mercadoria era financeiramente avaliada, de modo a ser emitido um warrant 82.

Um ano depois, já durante a presidência de Bernardino Machado, a indústria conserveira foi novamente beneficiada, através do decreto nº. 1972, publicado a 19 de Outubro de 1915. Neste, o governo determinava que as empresas com fábricas situadas em localidades onde não existiam edifícios em condições convenientes para servirem de armazéns gerais, o que obrigava os industriais a despenderem dinheiro para o transporte das mercadorias, poderiam depositar as conservas em dependências contíguas à própria unidade, depósitos ou armazéns dos industriais, próprios ou arrendados, mesmo que situados fora da fábrica 83. Era o que acontecia em Sesimbra.

Perante este conjunto legislativo, a indústria conserveira foi amplamente beneficiada, valendo os seus títulos emitidos pelos armazéns gerais quantias avultadas que muitos bancos não podiam emprestar. O que se observou, na realidade, foi uma prosperidade artificial desta indústria.

Em 1916, Portugal possuía 110 fábricas de conservas de peixe, notando-se um aumento das exportações mesmo após o final da guerra, até 1924.

Em 1925, Portugal possuía 300 fábricas de conservas, quase o dobro das existentes em França (170) 84.

Contudo, após o final da I Guerra Mundial, observou-se uma grande retracção da economia europeia. Os problemas estavam ligados à falta de capital das empresas por retracção do consumo das conservas, muitas delas demorando anos armazenadas nos entrepostos europeus sem serem liquidadas. Durante quatro anos foram praticadas fraudes de vários tipos pelas empresas exportadoras, explorando os industriais, muitos dos quais, tiveram de recorrer à falência 85.

Os industriais que sobreviveram a esta conjuntura, conheceram uma concorrência desordenada entre os seus produtos, bem como um descrédito dos mesmos perante os mercados internacionais, devido a uma diminuição da sua qualidade. De facto, estávamos perante uma crise de superprodução, que levaria a uma diminuição do preço das conservas. Diante de uma efectiva perda de qualidade, começou-se a sentir a concorrência das conservas espanholas de sardinha prensada e em salmoura no mercado italiano. Os grandes armazéns gerais industriais estavam, de facto, carregados de conservas de sardinhas que não conseguiam escoar.

Devido às dificuldades financeiras do pós-guerra, o governo republicano tentou um aumento do imposto de exportação de conservas, que subiu de 1 real e 12 centésimas por quilo, para 10 reais ou 1 centavo. Embora, posteriormente, o Ministério das Finanças concedesse a dispensa do imposto aos industriais conserveiros, o estado não chegaria a aumentar as receitas com a sua aplicação, pois o nível de exportações reduziu entre 1923 e 1926 86.

Perante este conjunto de dificuldades, no dia 12 de Abril de 1919 reuniram-se, em Lisboa, os industriais de conservas para exporem ao governo as suas dificuldades, pedindo aos delegados dos aliados na Conferência de Paz de Paris, que fosse recomendado o consumo das conservas portuguesas nos países submetidos à paz. Tal era, pois, o desespero dos industriais portugueses para executarem um pedido desta ordem! Ora, durante o período de 1914 a 1924, a indústria conserveira conheceu uma grande expansão e um posterior declínio, provocado por uma crise de superprodução, declínio levado ao extremo em 1925 com a valorização do escudo, devido essencialmente a razões externas ligadas com a retracção dos mercados de exportação, constante após a I Guerra Mundial.

Na verdade, apesar de um quadro de ascensão artificial, durante os inícios da década de 1920, as conservas portuguesas foram cobiçadas por alguns países europeus, como foi o caso do governo da recém-nascida Checoslováquia que assinou um acordo comercial com o governo português, em Dezembro de 1922, no qual permitia a importação de 3000 toneladas anuais de conservas de peixe em azeite ou salmoura 87.

A Alemanha foi outro dos países com os quais Portugal estabeleceu um acordo comercial, a 2 de Abril de 1923, no qual o governo de Berlim se comprometia a não cobrar uma taxa aduaneira superior a 30 marcos por 100 kg sobre sardinhas em azeite, de origem e procedências portuguesas, em latas hermeticamente fechadas. Este acordo foi bastante produtivo para o nosso país, observando-se um crescimento da exportação para a Alemanha, no ano seguinte, na ordem dos 180,6% em quantidade e 322% em valor 88.

Como podemos observar, a I Guerra Mundial foi um motor do desenvolvimento da indústria conserveira em Portugal, desenvolvimento esse, sustentado também pelo governo republicano que beneficiou grandemente esta indústria durante o período em que decorreu o conflito. Contudo, o período do pós-guerra foi de grande retraimento dos mercados estrangeiros, contracção que, a princípio pareceu não afectar esta indústria, que conheceu um grande crescimento artificial, mas que, na verdade veio afectar uma indústria essencialmente de exportação. Perante as dificuldades económicas deste período, a I República deixou de beneficiar a indústria conserveira ao aumentar grandemente os direitos de exportação, numa fase em que exportações estavam a baixar.

Na verdade, é ainda antes do inicio da I Guerra Mundial que é fundada, em Sesimbra, a sociedade Paschoal, Nero e Cª, da qual já fizemos referência, e é comprada a fábrica conhecida por Ousille pela empresa dirigida por Arséne Saupiquet. Corria o ano de 1912 e a sardinha, na Bretanha, não abundava. Em 1916, em plena guerra, é inaugurada a fábrica da firma Pereira, Neto & Cª., mais conhecida como A Primorosa. Nesta sociedade, o sócio gerente era Manuel José Pereira, tendo como sócio, na década de 1940, Farinha Nobre 89.

Em Sesimbra, o período que se seguiu à implantação da República foi tudo menos politicamente estável. Se, de facto, a república foi célere a chegar a esta vila, 5 dias depois de ter sido proclamada em Lisboa, o facto é que originou um período de instabilidade camarária. Como Sesimbra possuía duas figuras de dirigentes camarários, o administrador do concelho e o presidente da Câmara Municipal, foram empossados pelas novas comissões administrativas para os dois cargos, Josué Félix Cascais e Lino Correia, respectivamente, conhecidos opositores do regime monárquico 90.

Josué Félix Cascais, entretanto ligado ao partido evolucionista, é destituído do cargo de administrador do concelho em Junho de 1912. A Câmara Municipal, por seu turno, é destituída pelo governo em Março do ano seguinte, por ter cometido certas «irregularidades». No final desse ano têm lugar eleições em Sesimbra, ganhando o Partido Democrático, na pessoa de Virgílio de Mesquita Lopes, e tomando o poder alguns dos antigos apoiantes do regime monárquico: Armando Gomes de Loureiro e o padre Francisco Vieira Real. Os evolucionistas não chegaram a ir a votos, reclamando contra o controle do recenseamento realizado pelos Democráticos. Na verdade, a base de apoio dos evolucionistas eram os pescadores, uma grande massa de população analfabeta, cuja lei eleitoral em vigor, em 1913, impediria de votar 91.

A primeira metade da década de 1920 afectou os sesimbrenses no que dizia respeito a uma das actividades económicas principais do concelho – a pesca – da qual a indústria conserveira era claramente subsidiária. De 1920 data, em Portugal, a utilização de cercos activados por máquinas a vapor.

A pesca de cerco, muito utilizada em Sesimbra para a pesca da sardinha, era uma actividade de pesca em movimento. Pela necessidade de maiores capturas de peixe para alimentar a indústria conserveira, os pescadores procuraram o peixe ao longo da costa. O processo conhecido como «cerco americano», consistia em cercar o cardume no sentido contrário ao seu movimento, por meio de uma rede. A rede era lançada na vertical, mercê de uma fiada contínua de chumbo posta num dos lados da rede (que submerge), e de bóias de cortiça colocadas do outro lado da rede (que se mantêm à superfície), e depois era fechado o cilindro oco da rede por um cabo forte, chamado retenida, que circulava junto ao chumbo, formando um saco. A rede tinha de ser comprida e larga para que desse um bom e profundo cerco.

No princípio, a pesca era feita por barcos a remos ou à vela, os galeões, barcos grandes, pesados, abertos e movidos por remos pesados ou velas. Cada barco tinha 20 remos, cada remo tinha o seu homem, indo e voltando do mar no mesmo dia, trabalhando, por vezes, 20 horas seguidas e, com grande esforço, não podendo abandonar a costa. Era, pois, uma técnica de pesca extremamente depauperante. Com a introdução de cercos activados por máquinas a vapor, os «vapores», este labor veio-se a facilitar para os pescadores. Contudo, estes conheceram o reverso da medalha, pois como o trabalho ficou mais leve, já não eram necessários tantos trabalhadores para os remos, logo esta inovação técnica levou a um drástico aumento do desemprego e a degradação das condições sociais entre os pescadores 92.

81 Cf. DECRETO nº. 808, Diário da República, I Série, nº.154, (28-08-1914), p. 768.
82 Cf. DECRETO nº, 974, Diário da República, I Série, nº. 197, (26-10-1914), pp. 1030-1031.
83 Cf.DECRETO nº. 1972, Diário da República, I Série, nº. 212 (19-10-1915), p. 1.
84 Cf. NEVES, Catarina, op. cit., p. 24.
85 Cf. PORTUGAL. DIRECÇÃO GERAL DO COMÉRCIO E DA INDÚSTRIA – Boletim do Trabalho Industrial, nº. 133, Lisboa, Imprensa Nacional, 1933, p. 140.
86 Cf. RODRIGUES, Joaquim Manuel Vieira – A Indústria de Conservas de Peixe no Algarve (1865-1945). Tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Vol. 1, 1997, p. 160. Texto Policopiado.
87 Cf. PORTUGAL – Acordo Comercial por Troca de Notas entre Portugal e a Checoslováquia assinado em Lisboa em 11 de Dezembro de 1922, Lisboa, Imprensa Nacional, 1938, p. 7.
88 Cf. RODRIGUES, Joaquim Manuel Vieira, op. cit., p. 215.
89 Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo João Aldeia, Correspondência com Fábrica de Conservas Alimentícias A Primorosa.
90 Cf. ALDEIA, João Augusto, op. cit.
91 Idem, ibidem.
92 Cf. QUINTAS, Maria da Conceição – A faina da Pesca [em linha], [Cons. 21 Outubro 2011]. 

Fig.32: Pescadores de Sesimbra aportados na praia (Sesimbra, s.d.) [EFAMS]. 

Fig.33: Pescadores de Sesimbra retirando as redes do mar (Sesimbra, s.d.) [EFAMS] 

Esta inovação, da mesma forma, levou à decadência da utilização da pesca com armações «à valenciana». Desde meados do século XVIII que começaram a surgir em diversos portos do litoral português, tal como noutras paragens, como no Mediterrâneo e nas costas de Nantes e da Bretanha, as armações de pesca «à valenciana».

Em Sesimbra estavam instaladas seis artes «à valenciana», cuja propriedade era dos armadores. Os armadores eram, normalmente, proprietários que vinham de fora da vila e se estabeleceram em Sesimbra. Ao fim de várias gerações, tornaram-se uma elite coesa que monopolizava a propriedade, os cargos de poder municipal e se distanciava, o mais possível, dos pescadores 93. Contudo, voltemos às armações «à valenciana». Estas eram consideradas «aparelhos fixos», por oposição aos cercos, considerados aparelhos móveis, compostos por um sistema de redes que se armavam, isto é, colocavam-se verticalmente no mar, de modo a barrarem o caminho ao peixe e a encaminhá-lo para um local vedado para ser colhido por um grupo de pescadores. Estes panos de rede eram mantidos na vertical com o auxílio de bóias e de fateixas. Sendo uma técnica fixa, dependia da passagem regular do peixe por locais certos, sendo utilizada na captura da sardinha, da sarda, do carapau e da corvina. A armação era colocada perpendicularmente às trajectórias prováveis dos cardumes. A armação deste aparelho era difícil, durando normalmente 3 dias. Iria, depois, permanecer nesse mesmo local, por vezes, durante um ano inteiro, enquanto houvesse peixe 94.

93 Cf. RAMOS, Manuel João, Memórias dos Pescadores de Sesimbra: Santiago de Sesimbra nos Inícios dos Anos Oitenta do Século XX, Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa, 2009, pp. 22-23.
94 Idem, ibidem, p. 60. 

De 21 de Fevereiro de 1920, data o decreto nº. 6406, publicado pelo Ministério da Marinha, durante a presidência de António José de Almeida, que tentava regular o emprego dos aparelhos de pesca da sardinha, numa tentativa de evitar o descalabro entre pescadores e armadores 95. Na verdade, esta legislação não veio obter grandes frutos, graças à influência de grandes grupos económicos que não seguiram os seus pressupostos 96.

A 17 de Agosto do mesmo ano, seria publicado um outro decreto, nº. 6830, que proíbia a pesca por meio de redes ou de quaisquer aparelhos prejudiciais à navegação nos portos artificiais e nas docas. Cabia às capitanias a publicação dos aparelhos proibidos e permitidos, sendo as transgressões passíveis de punição 97. Ainda de Setembro de 1920, data o decreto nº. 6915, que modificaria algumas disposições regulamentares, mas a controvérsia manteve-se ao longo da década 98. As armações «à valenciana» entraram em decadência e foram desaparecendo da costa de Sesimbra.

Do ano de 1921 temos notícia que, entre 1 de Janeiro e 27 de Abril, de Sesimbra, partiram por via marítima cerca de 78 toneladas de conservas de sardinha em lata. Até Maio sairiam do porto de Sesimbra, cerca de 13844 quilogramas desta mercadoria. O exportador era uma empresa conhecida como Brestoise. Mas não só de conservas de sardinha se fazia a exportação de matérias-primas em Sesimbra. Também a folha-de-flandres era amplamente remetida para o exterior. Nesse ano, registou-se a saída de 1500 kg deste material, cujo exportador era José Vieira 99.

95 Cf. DECRETO nº. 6406, Diário da República, 1ª Série, nº. 37, (21-02-1920), p. 286.
96 Cf. QUINTAS, Maria da Conceição –A Faina da pesca, op. cit.
97Cf. DECRETO nº. 6830, Diário da República, 1ª Série, n. 158, (17-08-1920), p. 1.
98Cf. DECRETO nº. 6915, Diário da República, 1ª série, nº. 177, (09-09-1920) p. 2015.
99 Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Nota dos Artigos Exportados por Via Marítima deste Concelho desde 1 de Janeiro de 1921, CMS/F/B/01/Cx.01, nº. 2252

7. OS ANOS DA DITADURA MILITAR 

Como sabemos, desde 1925, a indústria conserveira tinha entrado numa profunda crise, gerada pela situação económica do pós-guerra, pela valorização do escudo, dados que tinham grande impacto no mercado de exportação. Nunca esqueçamos que a indústria conserveira sempre foi uma indústria virada para o exterior, sendo o mercado interno, para estas empresas, quase desprezível. O golpe militar de 28 de Maio de 1926 não veio auxiliar a implementação de políticas nesta área. Se existia, de facto, um movimento de pressão sobre o governo, no sentido de um delinear de uma política de defesa desta indústria, a verdade é que, durante os primeiros anos da ditadura militar não foram tomadas quaisquer medidas em prol de uma das principais indústrias de exportação portuguesas.

Em Sesimbra, os anos de 1926 e 1927 foram marcados por uma grande crise económica derivada da falta de pescado, observando-se graves situações sociais entre pescadores, operários conserveiros e comerciantes.

O jornal regional O Cezimbrense, notícia tal crise determinada pela falta de sardinha, matéria-prima essencial, da qual dependia a subsistência de pescadores, armadores, soldadores, operários conserveiros e comerciantes do concelho. O artigo, assinado por J. d’Oliveira, culpava a utilização desenfreada da pesca com cercos americanos a vapor, restringida pelo Ministério da Marinha, havia alguns anos, pelo desaparecimento da sardinha das águas de Sesimbra 100.

Durante este biénio, observam-se uma série de migrações de dirigentes da indústria conserveira local.

É o caso de Henri Savin, gerente da fábrica de conservas pertencente à empresa de Saupiquet, que regressa de França 101. Note-se que estas empresas de capital francês escolhiam naturais do seu país e não gentes locais para a gerência das suas fábricas. Mas, se os estrangeiros se deslocavam a Sesimbra para ensinar e gerir os operários locais, o contrário também acontecia.

Note-se que a 5 de Junho de 1927, é noticiada a partida de Francisco Marques Pereira, natural de Sesimbra, sócio e gerente da Sociedade Lusitana de Comércio, Ldª, para Marrocos, onde a sua empresa iria estudar a construção de uma estiva para peixe em salmoura 102. Ainda em Agosto do mesmo ano, este empresário mudar-se-á com a sua família para Marrocos, onde haveriam de fixar residência, na região de Safim 103. Contudo, durante o ano de 1930, Francisco Marques Pereira regressa, por tempo indeterminado, à sua terra natal, conforme notícia O Cezimbrense 104.

Perante a visível inoperância governamental da ditadura militar e a crise que se avolumava, os grandes industriais conserveiros portugueses decidiriam reunir-se em congresso. Essa assembleia decorreu entre os dias 11 e 14 de Dezembro de 1927, na cidade de Setúbal sob a designação de I Congresso Nacional da Pesca e Conservas.

Antes, ainda, deste congresso a Associação Comercial e Industrial de Setúbal, julgando conveniente a presença de todas as associações industriais de pescas e conservas do país, para tratarem das bases de um futuro convénio comercial luso-espanhol, haviam remetido um telegrama ao presidente da república, António Óscar Carmona, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e ao Ministro do Comércio 105.

Ainda em Novembro desse ano, O Cezimbrense publica vários pequenos artigos sobre a presença dos industriais sesimbrenses naquele congresso. Segundo eles, Sesimbra deveria ser considerada como um importante centro piscatório 106, dando maior valor à actividade piscatória, do que propriamente à indústria conserveira enquanto actividade económica regional. Nas vésperas do encontro, estiveram em Sesimbra representantes da Associação Comercial e Industrial de Setúbal, ficando bem claro que os delegados representantes de Sesimbra, que iriam participar no congresso, deveriam ser industriais de Sesimbra 107.

Mais uma vez se denota a auto-proclamação da vila Sesimbra enquanto grande centro piscatório e não enquanto centro conserveiro.

Durante o Congresso seriam debatidas várias propostas, entre as quais a necessidade da facilitação da importação de azeites e óleos comestíveis estrangeiros destinados à indústria de conservas, devido à dificuldade na sua aquisição e para que os custos alfandegários não ultrapassassem os 10% do seu valor. A análise de temáticas de interesse geral, das necessidades da indústria da pesca e das causas da crise seriam as principais matérias de agenda daquele congresso. Nas conclusões, o grupo de industriais conserveiros pediam ao governo que implementasse as seguintes medidas:

– Redução dos encargos de reexportação de matérias-primas importadas no regime de drawback; 

– Criação do Crédito Industrial, de modo a prestar auxílio ao industrial em períodos de crise;

– Criação do Crédito Marítimo, de modo a prestar auxílio a pescadores por conta própria;

– Revisão e conclusão de tratados comerciais vantajosos para as exportações;

– Remodelação do sistema de Armazéns Gerais e Industriais;

– Anulação da taxa consular sobre as matérias-primas essenciais à indústria;

– Criação de um Conselho Consultivo pela Direcção Geral das Indústrias de forma a regulamentar e fiscalizar a indústria de conservas antes da exportação, de modo a verificar a qualidade do produto a fim de evitar o seu descrédito no exterior;

– Limitação do número de fábricas e proibição da fabricação de conservas de sardinhas cozida e frita, utilizando diversos molhos, durante o período de defeso nas áreas de localização das fábricas;

– Investimento na área da oceanografia económica, alargando as águas territoriais;

-Substituição dos motores a vapor pelos de combustão interna, estimulando a construção de embarcações em Portugal;

– Criação de serviços de previdência e assistência;

– Criação de orfanatos, escolas e casas de pescadores;

– Realçar a importância da conservação do peixe pelo gelo.

Estas conclusões emanadas pelo I Congresso Nacional da Pesca e das Conservas reflectiam um conjunto de necessidades veiculadas pelos industriais conserveiros. A questão do respeito pelo «defeso» era essencial, pois permitiria a diminuição dos stocks armazenados e seus encargos. Da mesma forma, permitia a manutenção da qualidade das conservas, pois a utilização de peixe magro diminuía a qualidade da conserva e aumentava os custos de produção, já que era necessária uma maior quantidade de azeite e óleo, rapidamente absorvidos pelo peixe, na sua preparação. Dessa forma, a necessidade de uma fiscalização severa era imprescindível 108.

Outro dos problemas com os quais a indústria se debatia era o da inconsciente proliferação de fábricas, muitas delas em condições altamente precárias, fenómeno denominado de sobreequipamento. Este elevado número de fábricas levaria a um fenómeno de superprodução e a uma concorrência desleal entre os diversos empresários. Face a tal, o preço das conservas era obrigado a diminuir, diminuindo, muitas vezes a qualidade do produto. Esta quebra na qualidade do produto, sentida pelos mercados de exportação, abria portas a um processo de concorrência com produtos provenientes de outros países, com menor qualidade, e originaria, ainda, uma descapitalização das empresas. Neste âmbito, não era de estranhar que o grupo de industriais que emanaram as conclusões do congresso defendesse a concentração ou a extinção de unidades fabris inviáveis, bem como um condicionamento do sector.

No ano seguinte, é criada pelo governo, através de portaria publicada a 12 de Março de 1928, uma Comissão de Pesca e Conservas 109.

Perante a crise que subsistia e este apelo dos industriais da área, o governo de José Vicente de Freitas, empossado a 27 de Abril de 1928 publicará dois importantes decretos. O decreto nº. 15489, de 18 de Maio de 1928 proibia o estabelecimento de novas empresas, individuais ou colectivas quer para o exercício das pescas por artes móveis de cercar a bordo, quer para o das conservas de peixe, bem como a alienação ou modificação das existentes, enquanto não fosse publicada nova regulamentação 110.

Um mês depois da publicação do diploma anterior, a 9 de Junho, seria divulgado novo decreto, desta feita o nº. 15581. Este último manteria a proibição do registo de propriedade nomeadamente de galeões, cercos ou traineiras destinados à pesca de cerco, bem como a alteração desses equipamentos. Do mesmo modo, manter-se-ia a proibição para o estabelecimento de novas empresas de fabrico de conservas e a alteração das existentes, proibição que se alargava à constituição de novas fábricas conserveiras 111. De facto, cada vez mais, nessa primavera de 1928, Portugal se aproximava de uma política de condicionamento industrial, conforme era, aliás, a vontade da nata de industriais conserveiros, de acordo com as conclusões do I Congresso Nacional da Pesca e Conservas.

Ainda durante o mês de Outubro desse ano, a indústria sesimbrense seria agraciada com um prémio na Exposição do Rio de Janeiro, obtendo medalhas de prata e ouro. Duas das indústrias conserveiras da vila ganhariam o mais destacado prémio, nomeadamente a Sociedade Lusitana de Comércio Ldª e a empresa Artur Duarte Borges. Os vinhos de A. Pólvora, nessa competição, conquistariam, por seu turno, a medalha de prata 112.

Na verdade, apesar dos esforços levados a cabo pelo governo de José Vicente de Freitas para travar a crise no sector conserveiro e das pescas, o ano de 1928 foi de grande crise para os sesimbrenses. Tal é comprovado pela reunião levada a cabo em Novembro desse ano, na Escola da Vila Amália, sessão presidida pelo Dr. Abel Gomes Pólvora. Tal assembleia, reunida para debater uma solução que permitisse à indústria conserveira e das pescas a saída da situação de crise, elegeria uma grande comissão com representação de todas as classes, que voltaria a reunir-se no domingo seguinte, nos Paços do Concelho 113.

No domingo seguinte, a mesma assistência de 1000 populares reclamaria contra a afronta dos cercos e vapores de arrasto que, transgredindo as leis, continuavam a laborar na costa de Sesimbra, «… reduzindo à miséria uma população de 15.000 habitantes.»114  Os habitantes pediam, pois, ao poder político que tomasse providências rápidas e enérgicas «…para não continuar este monstruoso atentado à vida deste honrado povo piscatório, que vê os seus lares invadidos pela fome.»

Como podemos comprovar, a legislação publicada pelo governo nesse ano, da qual já fizemos referência anteriormente, não teve grande aplicação na prática, pelo menos em Sesimbra. Em artigo ainda datado do ano de 1928, os sesimbrenses queixam-se da Capitania do Porto de Setúbal, por «…escarnecer da sua miséria», ao contrário do Ministro da Marinha que acudiu aos pescadores de Sesimbra, «… num gesto nobre e justiceiro»115.

100 Cf D’Oliveira, J. – «A Crise Económica de Cezimbra», O Cezimbrense, 24 Abril 1927, p. 1.
101Cf. «Gerente da Sociedade Arsène Saupiquet regressa a Cezimbra», O Cezimbrense, nº. 10, 29 Outubro 1926, p. 3.
102 Cf. «Sociedade Lusitana de Comércio constrói estiva de peixe em salmoura em Marrocos», O Cezimbrense, nº. 45, 5 Junho 1927, p.3.
103 Cf. «Sociedade Lusitana de Comércio amplia fábrica de conservas em Marrocos», O Cezimbrense, n.º 55, 14 Agosto 1927, p. 3.
104 Cf. «Francisco Marques Pereira», O Cezimbrense, nº. 184, 2 Fevereiro 1930, p. 4.
105 Cf. «A Crise da Indústria da Pesca e das Conservas», O Cezimbrense, nº. 66, 30 Outubro 1927, p.2.
106 Cf. «I Congresso Nacional da Pesca e Conservas», O Cezimbrense, nº. 70, 27 Novembro 1927, p. 2.
107 Cf. «I Congresso Nacional da Pesca e Conservas», O Cezimbrense, nº. 72, 11 Dezembro 1927, p. 2.
108 Cf. RODRIGUES, Joaquim Manuel Vieira, op. cit., p. 208.
109 Cf. DECRETO nº. 15489, Diário da República, I Série, nº. 113 (18-05-1927) , p. 1178.
110 Idem, ibidem, p. 1178.
111 Cf. DECRETO nº. 15581, Diário da República, I Série, nº. 136, (09-06-1928) , p. 1372.
112 Cf. «Industrias Sesimbrenses premiados na Exposição do Rio de Janeiro», O Cezimbrense nº. 116, 14 Outubro de 1928, p. 3.
113 Cf. «Em defesa da Classe Piscatória e da Indústria Conserveira», O Cezimbrense, nº. 121, 18 Novembro 1928, p. 2.
114 Cf. «A Crise da Pesca em Sesimbra», O Cezimbrense, nº. 122, 25 Novembro 1928, p. 1.
115 Cf. «Caso Grave», O Cezimbrense, nº. 127, 30 Dezembro de 1928, p. 1. 

Fig.34: As deficientes condições sociais e habitacionais da população sesimbrense são patentes nesta fotografia (Sesimbra, s.d.) [EFAMS]

 

Fig.35: Stand do Consórcio Português de Conservas de Peixe Patente nas Festas de Lisboa de 1934 (Lisboa, 1934, retirado de BASTO, A. et al., op. cit.). 

A dificuldade, para a indústria conserveira, na obtenção de matéria-prima, excedia a necessidade do pescado. Outros elementos essenciais a esta indústria eram o azeite e a massa de tomate, essenciais para a elaboração da conserva. Tal, originaria uma actividade comercial sua subsidiária, como é o caso da patente pela firma Fonseca & Vieira, um «armazém de azeites», como se auto-intitulava, situado em Sesimbra, na Rua João de Deus.

Em anúncio publicitário colocado n’O Cezimbrense, ainda durante o ano de 1928, este «previne o comércio de mercearia e fábricas de conservas que tem em armazém maças de tomate da nova fabricação, óptima qualidade a preço convidativo»116. Porém, através de anúncio publicitário, no ano de 1930, sabemos que esta empresa mudaria de instalações, passando a localizar-se na Rua Cândido dos Reis, nº. 100 117.

Para além do azeite, outra das matérias-primas essenciais a esta indústria era a folha-de-flandres, fundamental para confeccionar as latas e para a cadeia de produção do «vazio». Grande parte da folha trabalhada pelas conserveiras portuguesas era importada da Alemanha, produzida pela Stalhunion Export, em Dusseldorf. Esta empresa era considerada a maior organização alemã produtora de folha-de-flandres e uma das maiores do mundo. O seu agente em Lisboa era a empresa Alberto Soares Ribeiro 118.

Note-se que, ainda, no ano de 1928, durante o mês de Abril, ascende a Ministro das Finanças António de Oliveira Salazar. O seu objectivo político centrava-se no alcançar de uma estabilidade financeira. Na verdade, o conjunto de medidas levadas a cabo pelo governo de José Vicente de Freitas resultou efectivamente.

Entre 1928 e 1931, as exportações de conservas de sardinha cresceram em quantidade (31,8%) e valor (21,6%). Em Outubro de 1929 eclodiria, nos E.U.A., a crise que viria ser conhecida como A Grande Depressão, não se fazendo, contudo, sentir na indústria conserveira portuguesa durante os dois anos seguintes. No Relatório da Conta Geral do Estado de 1929-1930, Salazar referia-se à lentidão das repercussões da crise de 1929 em Portugal, talvez mais sentida no ano de 1930, bem como à baixa taxa de desemprego operário 119.

Todavia, para os sesimbrenses, o biénio de 1929-1930 continuava a ser de crise.

Segundo noticia d’O Cezimbrense, o comércio e a indústria locais não tinham dinheiro para pagar as suas contribuições, cabendo ao governo, segundo o articulista, prorrogar o prazo até que a situação melhorasse. Este vai mais longe e aconselha, como forma de atenuar a carência, o inicio dos trabalhos no porto de abrigo e da projectada estrada marginal 120. Na verdade, a construção de um porto de abrigo era uma das obras públicas mais desejadas pelos sesimbrenses, pelo seu contributo essencial para a indústria pesqueira. Contudo, durante décadas, os sesimbrenses bateram-se pela sua construção, que só aconteceu após a II Guerra Mundial.

Mais uma vez, a causa da crise que Sesimbra viveria durante este período era apontada aos cercos a vapor, que continuavam a assediar a costa daquela vila, levando-lhe o peixe 121. Na verdade, durante o ano de 1929, a escassez da sardinha, também a sul, levou muitos armadores dos cercos algarvios a deslocarem a sua actividade para os mares de Lisboa e Setúbal 122, o que provavelmente poderá ter contribuído para a fome generalizada sentida em Sesimbra.

De facto, a falta de sardinha tinha-se vindo a intensificar, em Sesimbra, desde 1925, originando uma completa desorganização da vida económico-financeira da vila, afectando o comércio e a indústria do concelho.

A indústria conserveira não conseguia desenvolver-se por falta de matéria-prima, enquanto as armações não conseguiam manter os seus aparelhos de pesca no mar, porque os honorários provenientes da pesca não eram suficientes para pagar os materiais e aos operários. Os desempregados avolumavam-se, sendo a culpa, mais uma vez, atribuída à pesca intensiva que os cercos a vapor efectuavam na costa, modalidade de pesca que havia quase exterminado a sardinha 123.

Ainda durante o ano de 1930, realizar-se-ia a I Exposição Regional do Distrito de Setúbal, que contaria com a presença da indústria sesimbrense. Um mês antes da abertura da Exposição, a 25 de Junho, a comissão central organizadora do evento, acompanhada pelo governador civil de Setúbal, visitaria Sesimbra «… em missão de propaganda.» 124

Esta exposição seria inaugurada a 27 de Julho e encerrada a 15 de Setembro do ano de 1930. A data escolhida para a sua abertura coincidiria com a inauguração da luz eléctrica na cidade de Setúbal.

No Catálogo Oficial da Exposição, podemos encontrar alguns dos motivos que levaram à sua concretização: a comemoração de um acontecimento ímpar para o desenvolvimento da cidade – a inauguração da luz eléctrica – e o estabelecimento de uma marca do desenvolvimento, quatro anos depois da cidade se ter tornado capital de distrito. Uma obra «…altamente patriótica e significativa de quanto pode o localismo inteligente e perseverante…»125.

A exposição resultava, pois, num esforço conjunto do Estado, da cidade e dos concelhos que compunham o distrito. O espaço utilizado seria os terrenos do Parque das Escolas, local amplo, indicado para o certame, que ocupava uma área superior a 52.000 m2.

A I Exposição Regional compunha-se das seguintes secções: industrial, agrícola, pecuária e artística.

Da autoria de Able da Silva Pascoal, arquitecto da Câmara Municipal, ergueram-se pavilhões para Setúbal, Palmela, Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines. Os concelhos do Almada, Seixal e Sesimbra participariam conjuntamente, ocupando um único pavilhão, tal como aconteceria com o grupo de concelhos de Alcochete, Moita, Barreiro e Montijo. Para além destes pavilhões seriam construídos outros com carácter acentuadamente comercial, divididos em duas secções: regional e nacional. Os jornais «Diário de Notícias», «O Século» e a «Voz» fariam, também, erguer os seus próprios pavilhões. À inauguração assistiriam as mais altas figuras do estado. Foi presidente da sub-comissão local de Sesimbra para esta exposição o Capitão Preto Chagas. Sesimbra fez-se, ainda, representar pela empresa de conservas de peixe de Artur Duarte Gomes 126.

Constituindo uma linha política para a indústria de conservas desde 1928, o governo da Ditadura Militar publica, em 1931, os decretos nº. 19.354 e nº. 19.409 com o objectivo de generalizar a toda a actividade industrial o controlo estatal, também conhecido como condicionamento industrial.

O primeiro tornava dependente de autorização ministerial a instalação de novos estabelecimentos industriais ou a reabertura dos que estivessem paralisados, a montagem ou substituição de maquinismos de que resultasse aumento da produção, a passagem destes estabelecimentos para a posse de estrangeiros e suspendia a concessão de patentes de introdução de novas indústrias e novos processos industriais 127.

O segundo diploma aprovava o regulamento sobre o condicionamento das indústrias 128.

Dessa forma, pretendia-se refrear a competição económica entre as empresas, assegurar níveis de concentração monopolista e a sobrevivência de pequenas e médias empresas, reforçando a capacidade de intervenção do estado na economia. Tratava-se, pois, de uma concepção intervencionista, corporativista, proteccionista e nacionalista da actividade industrial 129.

António de Oliveira Salazar, num estudo publicado a 7 de Dezembro desse ano frisaria que a indústria conserveira se desenvolvera ao acaso, estimulada pela simplicidade da técnica e pelo baixo preço das instalações, muitas vezes rudimentares, facilmente financiada, sem uma orientação superior e sem qualquer regulamentação legal. Estas seriam, pois, as causas da proliferação de fábricas e empresas sem condições financeiras nem instalações industriais, sem posição no mercado visível para não serem exploradas por intermediários. Esta era, pois, a situação da indústria conserveira preconizada pelo futuro Presidente do Conselho 130.

Ainda durante o ano de 1931, através do Decreto nº. 20342, o governo da Ditadura Militar criaria o Conselho Superior de Economia Nacional, subdividido nos seguintes Conselhos:
Conselho Nacional de Agricultura,
Conselho Nacional de Comércio,
Conselho Nacional da Indústria,
Conselho Nacional das Colónias e
Conselho Nacional do Trabalho 131.
Esta acção consistia numa modalidade inicial de estruturação de instituições corporativas de representação da Nação portuguesa.

O ano de 1931 continuou a ser de grande carestia para a maioria da população sesimbrense. A indústria da pesca continuava em crise, fazendo sua refém a indústria conserveira, sua subsidiária.

No ano anterior, Portugal exportara 864.846 kg de conservas de atum, mais de 4 mil toneladas de conservas de peixe e cerca de 35 mil toneladas de conservas de sardinha 132. Ainda durante esse ano, José Preto Chagas, em entrevista ao Cezimbrense, manifestava-se contra a possível proibição do fabrico de conservas durante o inverno.

Sesimbra possuía, à época, 7 fábricas de conservas e uma enorme indústria de pesca ligada, inexoravelmente, à indústria conserveira. José Preto Chagas opunha-se cabalmente à proibição do fabrico de conservas durante os meses invernais porque tal afectaria gravemente as indústrias conserveira e pesqueira do centro do país, especialmente de Sesimbra. Porque se o norte e o sul do país não possuíam sardinha durante os meses de inverno, em Sesimbra, mesmo nessa época do ano existia boa sardinha, capaz de produzir uma boa conserva, segundo ele, melhor do que as conservas norueguesas de uma espécie de peixe análoga à sardinha, o sprattus 133.

Na verdade, desde finais do século XIX, a Noruega produzia estas conservas, utilizando um peixe, comummente apelidado de brisling, conservas que, erradamente, eram vendidas como conservas de sardinha, ou melhor, «Norwegian Sardines».

Na verdade, a verdadeira sardinha, cujo nome científico da espécie é «Clupea Pilchardus», não aparece em águas norueguesas, sendo os raros espécimes aí encontrados tratados como achados raros e exóticos 134.

José Preto Chagas considerava, pois, que a sardinha de inverno era matéria-prima de qualidade para o fabrico de conservas com molhos de escabeche e tomate. A proibição de fabrico de conservas durante o inverno, em Sesimbra, seria ainda mais prejudicial pela restrição à pesca de albacoras, uma espécie essencial para a indústria conserveira, pescada entre Janeiro e Abril, exclusiva daquele local. Da mesma forma, os meses invernais eram também férteis na pesca do carapau e da cavala, sendo altamente prejudicial para os pequenos pescadores a proibição da sua pesca. Perante tal ameaça, os industriais sesimbrenses reunir-se-iam junto da Comissão Administrativa da Câmara que, alertada, telegrafaria ao Ministro das Finanças 135.

No ano seguinte, a 5 de Julho de 1932, tomava posse o 8º governo da Ditadura Militar, presidido por António de Oliveira Salazar, o primeiro civil a ocupar o cargo desde 1926.

Um mês depois seriam publicados os decretos nº. 21621 e nº. 21622, que instituíam o Consórcio Português de Conservas de Sardinha (C.P.C.S.), organismo cujo objectivo era regulamentar e disciplinar a indústria de conservas. Com estes dois diplomas procurava-se resolver duas questões: proteger a qualidade do produto fabricado e regulamentar uma política de exportação a adoptar com os mercados externos. O C.P.C.S. era uma instituição de interesse público, dotada de personalidade jurídica, que impunha a sua autoridade a todos os industriais e exportadores, obrigados à inscrição no consórcio, tendo poder para lhes aplicar multas e sanções. Era constituído por um Conselho de Administração, órgão superior do organismo, um Conselho de Gerência e Delegações situadas nos centros industriais 136.

O decreto nº. 21621 regulamentava, sobretudo, a indústria de conservas de sardinha, pretendendo dar-lhe uma organização de que, até então, carecia.

Uma das questões que preocupava os sesimbrenses era a implementação de um defeso na indústria das conservas, que proibia a sua laboração durante os meses invernais, como observámos na entrevista a José Preto Chagas, dada a O Cezimbrense em Dezembro de 1931. Todavia, com a publicação deste decreto, o defeso na indústria conserveira seria irremediavelmente estabelecido, como forma de garantir a qualidade do produto exportado. Como o articulado do decreto indicava «…a exportação de sardinha de má qualidade, o chamado peixe de inverno tem prejudicado gravemente a reputação das nossas conservas no estrangeiro. Resolve-se a dificuldade pelo processo que pareceu mais simples e que corresponde à natureza das coisas, proibindo o fabrico nos meses em que a sardinha está mais magra e imprópria para a conserva»137.

Contudo, no que dizia respeito à indústria pesqueira, não existiam estabelecidas quaisquer restrições. De acordo com o artigo 4º, ficava proibido o fabrico de conservas de sardinha e espécies similares durante quatro meses por ano. No caso de Sesimbra, pertencente ao Departamento Marítimo do Centro, a proibição estendia-se de 15 de Janeiro a 15 de Maio de cada ano. Qualquer industrial que infringisse esta disposição ficava com o fabrico suspenso em todas as suas fábricas durante um período não inferior a dois meses e nem superior a quatro meses. Em caso de reincidência estes prazos eram duplicados.

Para a exportação de conservas passava a ser necessário um certificado de qualidade, que serviria de garantia de qualidade do produto nos mercados externos. Para terminar com a concorrência desenfreada entre industriais portugueses foi estabelecido um «preço mínimo». A questão do crédito facultado aos fabricantes continuava a seguir o mesmo modelo de «warrants», embora os armazéns gerais criados durante a I República passassem a ser coordenados pelo C.P.C.S 138.

Deste modo, as conservas eram classificadas como: «Extra-Fina», «Extra», e «Bom-corrente».

A conserva «Extra-Fina» era a conserva em azeite ou molho similar produzida com peixe fresco e gordo, de igual tamanho e primeira escolha, bem enlatado apresentando carne branca levemente rosada, espinha facilmente descartável, cobrindo o molho perfeitamente o peixe.

A conserva «Extra» era quase semelhante à anterior permitindo, contudo, pequenos defeitos.

Por fim, a conserva «Bom-corrente» abarcava peixes com alguns defeitos resultantes da operação de fabrico, embora o nível de exigência continuasse bastante alto 139.

116 Cf. «Fonseca & Vieira», O Cezimbrense, nº. 121, 18 Novembro 1928, p. 2.
117 Cf. «Fonseca & Vieira», O Cezimbrense nº. 223, 2 Novembro 1930, p. 7.
118 Cf. «Stahlunion Export», O Conserveiro, nº. 24, 31 Agosto 1936, p. 2.
119 Cf. RODRIGUES, Joaquim Manuel Vieira, op. cit., p. 208.
120 Cf. «Continuação da Crise em Sesimbra», O Cezimbrense, nº. 183, 26 Janeiro 1930, p. 4.
121 Cf. «A Crise da Pesca em Sesimbra», O Cezimbrense, nº. 184, 2 Fevereiro 1930, p. 2.
122 Cf. RODRIGUES, Joaquim Manuel Vieira, op. cit., p. 208.
123 Cf. «A Crise de Cezimbra», O Cezimbrense, nº. 202, 8 Junho 1930, pp. 1, 4.
124 Cf. «Exposição Regional de Setúbal», O Cezimbrense, nº. 205, 29 Junho 1930, p.4
125 Cf. EXPOSIÇÃO REGIONAL DE SETÚBAL, Catálogo Oficial da I Exposição Regional do Distrito de Setúbal, Lisboa, Flama, 1930, pp. 3-5.
126 Idem, ibidem, p. 9.
127 Cf. DECRETO nº. 19354, Diário da República, nº. 38, Série I, (14-02-1931), pp. 311-312.
128Cf. DECRETO nº. 19409, Diário da República, nº. 52, I Série, (04-03-1931).
129 Cf. RODRIGUES, António Simões, História de Portugal em Datas, [s.l.], Círculo de Leitores, 1994, p. 318.
130 Cf. BERNARDO, H., op. cit., p. 244.
131 Cf. DECRETO nº. 20342, Diário da República nº. 221, I Série, (24-09-1931), pp. 2099-2107.
132 Cf. ROSA, Humberto Paiva – «A Indústria da Pesca», O Cezimbrense, nº. 279, 29 Novembro 1931, p.
133 Cf. «A indústria das Conservas: Entrevista a José Preto Chagas», O Cezimbrense, nº. 283, 27 Dezembro 1931, p. 2.
134 Cf. PEREIRA, Hélio Paulino – Aspectos da Indústria de Conservas de Peixe em Portugal, Lisboa, Sociedade Progresso Indústrial, 1967, p. 10.
135 Cf. «A indústria das Conservas: Entrevista a José Preto Chagas», O Cezimbrense, nº. 283, 27 Dezembro 1931, p. 2.
136 Cf. DECRETO nº. 21621, Diário da República, nº. 201, I Série, (27-08-1932), pp. 1793-1797.
137 Idem, ibidem, p. 1794.
138 Idem, ibidem, p. 1795.
139 Idem, ibidem, p. 1795. 

 

Fig.35: Stand do Consórcio Português de Conservas de Peixe Patente nas Festas de Lisboa de 1934 (Lisboa, 1934, retirado de BASTO, A. et al., op. cit.).

Seria o Decreto nº. 61622 que fundaria, na sua essência, o C.P.C.S. As suas principais atribuições eram a fiscalização e a orientação da produção, de modo a garantir a qualidade do produto e melhorar as condições de fabrico. Para além disso, este organismo responsabilizava-se pela execução de propaganda nos mercados externos de consumidores e pelo estabelecimento de organizações de venda onde fosse julgado conveniente.

Proporcionar aos industriais créditos de modo a regular o exercício da sua actividade e assegurar, ao operariado desta indústria, a devida assistência eram outras das atribuições deste consórcio. Na verdade, o governo de António de Oliveira Salazar, parecia preocupar-se com o operariado e com a melhoria das suas condições de vida, especialmente quando decretou um diploma que obrigava ao encerramento das unidades conserveiras durante quatro meses de inverno. Prevendo um agravamento social provocado por esta medida, criou um «Fundo Operário», para o qual contribuía uma taxa de exportação. Em cada centro industrial seria constituída uma comissão de fabricantes que estudaria a melhor forma de dar colocação e trabalho aos operários da indústria, procedendo ao cadastro do pessoal. A partir das verbas recolhidas pelo fundo, o C.P.C.S. poderia criar bairros operários, escolas, cantinas e serviços de saúde, tudo em abono da melhoria das condições de vida do operariado 140.

O condicionamento da indústria de conservas de peixe seria formalmente legislado através do Decreto nº. 21623, publicado a 27 de Agosto de 1932 141. Apesar destas medidas de dirigismo estatal, para os sesimbrenses, o ano de 1932 foi um ano de continuação da crise que já se fazia sentir. O defeso para a indústria de conservas, que José Preto Chagas achava altamente prejudicial para Sesimbra, seria irremediável. Durante o mês de Abril desse ano, uma comissão delegada dos pescadores, acompanhada pelo Governador Civil do distrito protestou perante o Ministro da Marinha, mais uma vez, contra as infracções cometidas pelos vapores de arrasto, pedindo o alargamento dos limites estabelecidos no decreto 16351 142, que impedia a utilização de redes de arrasto nas embocaduras do Tejo e do Sado proibindo, ainda, o emprego de novos tipos de redes sem autorização prévia 143. Sem qualquer margem para dúvida, o ano de 1932 foi de grande crise para a pesca de Sesimbra. Ainda em Outubro desse ano, temos notícia do desaparecimento do carapau desta costa e o impedimento da pesca da sardinha devido aos cercos 144.

No que diz respeito à indústria conserveira de Sesimbra, o ano de 1932 marcaria a constituição de uma nova sociedade.

O conserveiro Amadeu Henrique Nero fundaria, como já verificámos, com outros três sócios, uma nova empresa denominada Nero & Cª, (Suc.) Ldª., uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada, através de escritura lavrada a 16 de Junho desse ano145, ainda antes da publicação do Decreto nº. 21623 que, como já verificámos, implementaria decididamente o condicionamento da indústria conserveira portuguesa.

Em Dezembro de 1932, esta empresa conserveira seria agraciada com a medalha de prata dos expositores do concelho de Sesimbra, na II Exposição Regional de Setúbal, juntamente com a Societé Arséne Saupiquet 146. Contudo, em Fevereiro de 1936 seria alterado o seu pacto social 147. O facto é que, até 1937, a Nero & Cª, (Suc.) Ldª., seria a única empresa da indústria conserveira sesimbrense que funcionaria com mais regularidade, orientando a sua exploração para o mercado americano 148.

O último ano da Ditadura Militar seria, na verdade, um pouco conturbado para a indústria conserveira.

Vários países europeus, como era o caso da França, começavam a aumentar os direitos de importação dos produtos portugueses, dificultando a sua colocação no mercado 149. Por outro lado, os espanhóis possuíam o direito de exportar peixe para Portugal, sem limite de qualidade ou quantidade, enquanto os portugueses não podiam exportar para Espanha por ali haver um direito proibitivo, facto que indignava um articulista de O Cezimbrense 150.

Da análise destes factos históricos, podemos concluir que os seis anos de «transição», mais conhecidos como Ditadura Militar, foram anos de crise para os industriais e para o operariado sesimbrense. A indústria pesqueira foi constantemente assediada pela utilização de técnicas móveis, embora existisse legislação proibitiva, predadoras das espécies de peixe essenciais à indústria conserveira, como era o caso da sardinha. Contudo, o povo sesimbrense soube sempre lutar, fazendo-se ouvir na defesa dos seus direitos, tendo tido sempre representatividade, como a que se observou nesse importante congresso para o desenvolvimento de uma política conserveira durante o Estado Novo, que foi o I Congresso Nacional da Pesca e das Conservas.

Se, por um lado, a crise foi uma realidade patente, por outro, notaram-se alguns desenvolvimentos na vila de Sesimbra, durante esta época. De facto, observou-se um crescimento de empresas subsidiárias da indústria conserveira, como foi o caso da firma Fonseca & Vieira, um armazém de azeites que aproveitava a publicidade no único jornal que circulava na vila para vender o seu stock de azeites e tomate. Parece-nos que este negócio floresceu pois, dois anos após ter colocado o anúncio no jornal, em 1930, mudou de instalações.

De facto, era por vezes difícil para as fábricas conserveiras obter matérias-primas para a sua fabricação. Como já verificámos, o azeite era, muitas vezes, importado. Conforme notícia O Cezimbrense, em 1936, entraram no porto de Sesimbra 161 bidões de azeite de proveniência espanhola, com o peso total de 121.597 kg, procedente de Málaga e Sevilha. Este azeite tinha como destino a indústria conserveira de Setúbal 151.

Na verdade, não podemos esquecer que as conservas de Sesimbra eram conservas de qualidade. Comprova-o os prémios que receberam, na Exposição do Rio de Janeiro, em 1928, e nas Exposições Regionais do Distrito de Setúbal de 1930 e 1932. A qualidade dos profissionais conserveiros desta vila era também, atestada pela sua migração para outras paragens, no sentido de formar outros profissionais.

Foi o caso por nós abordado do sesimbrense Francisco Marques Pereira, que se fixou na cidade marroquina de Safim, enquanto sócio e gerente da Sociedade Lusitana de Comércio, alargando o seu negócio. Durante este período, Sesimbra não esteve longe da inovação tecnológica, como comprova a inauguração da fábrica de gelo da firma Viúva de Joaquim Gomes Covas & Filhos, mudança que apenas viria a beneficiar, sobretudo, a indústria pesqueira.

140Cf. DECRETO nº. 61622, Diário da República nº. 201, I Série, (27-08-1932), pp. 1797-1803.
141 Cf., DECRETO nº. 21623, Diário da República, nº. 201, I Série, (27-08-1932), pp. 1803-1804.
142 Cf. «Reclamações Justas», O Cezimbrense, nº. 297, 3 Abril de 1932, p.2.
143Cf. DECRETO nº. 16351, Diário da República, nº. 10, I Série, (12-01-1929), p. 84.
144 Cf. «Decadência da Pesca», O Cezimbrense, nº. 324, 9 Outubro 1932, p. 1.
145 Cf. «Constituição da Sociedade Nero & Cª, Suc, Ldª», O Cezimbrense, nº. 309, 26 Junho 1932, p. 4.
146 Cf. «Industriais Cezimbrenses premiados na Exposição Regional de Setúbal», O Cezimbrense, nº. 334, 18 Dezembro 1932, p. 3.
147 Cf. «Nero & Cª, Suc., Ldª», O Cezimbrense, nº. 499, 16 Fevereiro 1936, p. 5.
148 Cf. BERNARDO, H., op. cit., p. 241.
149 Cf. «Aumento dos Direitos de Importação», O Cezimbrense, nº. 310, 3 Julho 1932, p. 2.
150 Cf. «Peixe Fresco – Sardinha Prensada», O Cezimbrense, nº. 328, 6 Novembro 1932, p. 1
151 Cf. «Importação do Azeite Espanhol», O Cezimbrense, nº. 497, 2 Fevereiro 1936, p. 1.

8. O ESTADO NOVO E A INDÚSTRIA CONSERVEIRA SESIMBRENSE 

A 11 de Abril de 1933 seria promulgada e entraria em vigor a Constituição Política da República Portuguesa, terminando o período conhecido como «Ditadura Militar». Era o início do Estado Novo, legitimado pela sua Constituição. Esta definia o Estado, que se dizia «Novo», como uma república unitária e corporativa, sendo o corporativismo, um dos princípios fundamentais deste diploma.

António de Oliveira Salazar pretendia «construir o Estado social e corporativo, em estreita correspondência com a constituição natural da sociedade. As famílias, as freguesias, os municípios, as corporações em que se encontram todos os cidadãos, com as suas liberdades jurídicas fundamentais, são organismos componentes da Nação e devem ter, como tais, intervenção directa na constituição dos corpos supremos do Estado; eis uma expressão mais fiel do que qualquer outra do sistema representativo»152.

Com a ascensão do corporativismo seria rejeitado um modelo de sociedade centrado no cidadão e sublinhado um outro modelo, constituído por grupos, através dos quais se exercem direitos políticos e é permitida a inserção na vertente administrativa e legislativa da Nação. Estes grupos de cidadãos, reunidos em corporações, deveriam ser representados numa Câmara Corporativa, Câmara com poderes reduzidos a pareceres sobre propostas ou projectos de lei.

Apesar da cartelização corporativa do sector conserveiro, o ano de 1933 traduziria uma grande derrocada ao nível do volume e do valor das exportações. Devido a dificuldades aduaneiras, cambiais e de outras naturezas que quase todos os países colocaram à entrada de produtos estrangeiros, as exportações desceram, cifrando-se nas 29.274 toneladas.

Esta diminuição acentuada da exportação de conservas, devida a causas endógenas, mas também exógenas, foi uma prova de que a corporativização não se inseriu numa política industrial coerente, mas constituiu apenas uma medida para proteger o país dos efeitos nefastos do caos económico que alastrava pelo mundo 153. Note-se que nesse ano, os E.U.A. conheciam o auge da Grande Depressão, com cerca de 25% da população americana no desemprego.

Em Janeiro de 1933, seria publicado um decreto que permitiria que as embarcações de pesca de sardinha que, por efeito da crise de consumo e de preço tivessem de interromper a laboração, pudessem ser matriculadas para outras pescas sem pagamento de licenças 154.

A crise, em Sesimbra, continuava. Em Fevereiro de 1933, realizava-se uma outra reunião no salão da Vila Amélia, das forças económicas do concelho, à qual assistiriam aproximadamente 1000 pessoas de todas as classes, com o objectivo de tentar resolver os problemas com que a vila se deparava 155. Também os pescadores sacadeiros sentiriam na pele a crise causada pela pesca de arrasto. Por tal, entregariam na Presidência do Ministério e no Ministério da Marinha uma representação 156. A pesca de sacada tinha lugar na baía de Sesimbra. Os pescadores lançavam uma rede a partir de dois barcos, uma rede que se afundava para atrair o peixe através de engodo, quando a pesca era diurna, ou alumiando-se, quando a pesca era nocturna. Quando a quantidade de peixe na rede era considerável, «sacava-se» para a superfície 157. A resposta ao apelo dos sacadeiros ou não existiu ou não foi satisfatória, pelo que, em Janeiro de 1934, estes voltariam a entregar nova reclamação aos poderes públicos 158.

Pedro Amarante, num artigo de O Cezimbrense, alertava os operários de Sesimbra para apelar ao Consórcio Português de Conservas de Sardinha, para que reclamassem um subsídio durante o «defeso», o período em que as fábricas de conservas eram proibidas de laborar, auxílio semelhante àquele que era recebido pelos conserveiros de Setúbal. O articulista referia-se atento aos problemas dos trabalhadores, que não deveriam calar a sua voz, como aliás já era tradição entre os sesimbrenses 159.

Na verdade, a crise do ano de 1933 e a nova política de condicionamento industrial do sector conserveiro fariam as suas vítimas. A Fábrica Nacional de Conservas colocaria a sua propriedade à venda, em Junho desse ano 160.

Em Novembro de 1935, a Câmara Municipal de Sesimbra adquiria o edifício desta fábrica, pertença de Martins Gomes, para adaptar parte deste à criação de escolas 161.

Em Fevereiro de 1934 iria à falência a Sociedade Lusitana de Comércio, cuja fábrica, situada em Santana, e os bens a ela pertencentes seriam penhorados por auto movido contra ela pela firma Joaquim Henriques Totta, Ldª.162

Para além dos conserveiros, de quem trata este estudo, Sesimbra possuía um secador de peixe. José Gaspar Teixeira assumia-se como secador de várias espécies de peixe, bem como preparador de peixe destinado à seca, peixe que deveria ser cuidadosamente limpo de todos os detritos. Para tal, este empresário possuía um secadouro num amplo terreno anexo ao seu armazém 163.

Noutro artigo datado de 1935, encontramos os maiores elogios ao empresário sesimbrense, considerado como um «verdadeiro técnico de secagem de peixe», não só pelos métodos higiénicos com que preparava as espécies mas também pelo seu processo de seca. Com o método preconizado por José Gaspar Teixeira, o peixe não se conservava ao sol até à sua completa cura, como acontecia com outros profissionais, pois corria-se o risco do sol requestar o peixe. Por isso, o peixe seco por este técnico sesimbrense ficava branqueado como qualquer bacalhau, razão pela qual os seus stocks facilmente se esgotavam 164.

No ano de 1934, temos informação de que o defeso de fabricação de conservas começava a 1 de Fevereiro 165. Foi este, na verdade, o primeiro ano em que os operários conserveiros de Sesimbra começariam a receber o subsídio durante o defeso, outorgado pelo Consórcio Português de Conservas de Sardinha. Os valores dessa remuneração eram de 12 escudos para os homens, 7 escudos para as mulheres e 5 escudos para os menores de 16 anos166. Contudo, as dificuldades económicas continuavam a grassar nesta vila. A falta de peixe naquelas costas mantinha-se. As classes piscatórias não conseguiam arrancar do mar o seu sustento. O comércio e a indústria estavam paralisados e Sesimbra agonizava. O capitão Preto Chagas, presidente da câmara e administrador do concelho, conseguira, contudo, que o comissário do desemprego lhe desse a quantia de 10 contos para acudir à miséria que lavrava no seio de algumas famílias. Até o Cardeal Patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, enviaria uma quantia ao pároco de Sesimbra, Acrísio de Almeida, para socorrer os mais desfavorecidos 167.

Fig. 36: A «Comissão de Sesimbra» em visita ao jornal O Século: José Sanches, Júlio Baptista, José Preto Chagas, José Manuel Morais, Eduardo Rocha (Lisboa, 1934) [DGARQ, EPJS/SF/001/001/0031/22131]. 

152 Apud CANOTILHO, Mariana, «A Constituição Portuguesa de 1933», in Os Anos de Salazar: A Constituição do Estado Novo, nº. 2, s.l., Planeta DeAgostini, 2008, pp. 6-29.
153 Cf. RODRIGUES, Joaquim Manuel Vieira, op. cit., p. 234.
154 Cf. «A Crise na Indústria da Pesca», O Cezimbrense, nº. 339, 22 Janeiro 1933, p. 1.
155 Cf. «A Crise em Cezimbra», O Cezimbrense, nº. 341, 5 Fevereiro de 1933, p. 1
156Cf. «A Questão da Pesca e a Crise de Cezimbra; Palavras Oportunas: A Questão da Pesca», O Cezimbrense, nº. 376, 8 Outubro 1933, p. 2.
157 Cf. RAMOS, Manuel João, op. cit., p. 57.
158 Cf. «Os Sacadeiros», O Cezimbrense, nº. 390, 14 Janeiro 1934, p. 5.
159 Cf. AMARANTE, Pedro, «Cezimbra, o Operariado e a Mocidade», O Cezimbrense, nº. 351, 16 Abril 1933, p.6.
160 Cf. «Fábrica Nacional de Conservas», O Cezimbrense nº. 361, 25 Junho 1933, p. 4.
161 Cf. «Antiga Fábrica Nacional de Conservas», O Cezimbrense, nº. 486, 17 Novembro 1935, p. 2.
162 Cf. «Falência da Fábrica de Conservas», O Cezimbrense, nº. 393, 4 Fevereiro de 1934, p. 5.
163 Cf. «Peixe Seco», O Cezimbrense nº. 384, 3 Dezembro 1933, p. 4.
164 Cf. «Peixe Seco», O Cezimbrense, nº. 464, 16 Junho 1935, p. 1.
165 Cf. «Defeso das Conservas», O Cezimbrense, nº. 397, 4 Março 1934, p. 1.
166 Cf. «Defeso das Conservas», O Cezimbrense, nº. 399, 18 Março 1934, p. 2.
167 Cf. «Notas Ligeiras: A Pesca», O Cezimbrense, nº. 401, 1 Abril 1934, p. 3 

Ainda durante o ano de 1934 seria constituído o Sindicato Nacional dos Operários da Indústria de Conservas do Distrito de Setúbal, nos termos do decreto-lei nº. 23.050, que reorganizava os sindicatos nacionais. Este sindicato representaria todos os indivíduos de ambos os sexos, maiores de 18 anos, que exerciam quaisquer profissões inerentes à indústria de conservas na área do distrito de Setúbal. Este organismo corporativo era, assim representativo dos operários conserveiros de Sesimbra, nele inscritos ou não, na defesa dos seus interesses profissionais, nos aspectos morais, económicos e sociais 168.

Numa entrevista ao jornal O Cezimbrense, o industrial conserveiro Manoel José Pereira, sócio fundador da Pereira, Neto & Cª, conhecida como A Primorosa, dava a sua opinião sobre a situação pela qual a vila de Sesimbra passava. Segundo ele, as dificuldades económicas sentidas não eram uma novidade, resultando de uma certa tendência psicológica do povo e das elites para se arrastarem em melodramas em vez de tomarem atitudes firmes. Para sustentar esta opinião, Manoel José Pereira daria o exemplo da indústria conserveira. Para este industrial, a indústria de conservas de Sesimbra só havia conseguido atingir um nível de «…desenvolvimento medíocre…» após variadas lutas, sempre com críticas demolidoras por parte de algumas facções. E, mesmo assim, alguns bravos conseguiriam triunfar!

O comércio e a indústria locais seriam alvo de crítica por parte do entrevistado, tendo em conta não haverem possuído iniciativa, até àquela data, para formarem uma associação comercial e industrial, por pensarem que tal organismo não teria qualquer préstimo senão o de defender interesses individuais. Para além destas críticas formais à indústria conserveira e ao comércio de Sesimbra, o industrial defendia que seria essencial para a vila, em termos económicos, a conclusão do molhe do porto de abrigo para uma maior intensificação da pesca. Defende, ainda, a criação de um centro de cultura técnica, de forma a tornar mais eficaz e a dinamizar a pesca 169.

A crise na pesca de Sesimbra seria de tal ordem, a escassez de peixe era tal que, durante o ano de 1934, os industriais conserveiros da vila começariam a comprar sardinha pescada pelos cercos americanos 170.

Os operários marítimos, empregados nas armações de pesca na costa de Sesimbra, por intermédio do Sindicato Nacional dos Pescadores do Distrito de Setúbal, acompanhados pelo Governador Civil e pelo Dr. Júdice da Costa, delegado do Instituto Nacional do Trabalho, decidiriam entregar ao Ministro da Marinha uma exposição solicitando o auxílio do Estado para atenuar a crise económica com que se debatiam as classes piscatórias de Sesimbra 171.

Seria, também, durante o ano de 1934, que o Consórcio Português de Conservas de Sardinha continuaria a sua missão de propaganda externa e interna, estando presente em vários certames portugueses e estrangeiros. Foi o caso das Festas de Lisboa desse ano, onde o Consórcio se faria representar com uma curiosa e ligeira construção.

168 Cf. SINDICATO NACIONAL DOS OPERÁRIOS DA INDÚSTRIA DE CONSERVAS – Estatuto do Sindicato Nacional dos Operários da Indústria de Conservas do Distrito de Setúbal, Almada, Tipografia Central, 1940, pp.3-4.
169 Cf. COSTA, Silva – «Por uma Cezimbra Maior», O Cezimbrense, nº. 400, 8 Abril 1934, pp. 1, 6.
170 Cf. «Crise na Pesca», O Cezimbrense, nº. 426, 23 Setembro 1934, p. 3
171 Cf. «A Questão Económica de Cezimbra», O Cezimbrense, nº. 431, 29 Outubro 1934, pp. 3, 5.

Fig.37: Imagem do Stand do C.P.C.P. instalado na Praça do Comércio (Lisboa, 1934, retirado de BASTO, A, et al, op. cit.) 

Fig.38: Grande Afluência da População de Lisboa para a Degustação das Conservas (Lisboa, 1934, retirado de BASTO, A, et al, op. cit.).

Fig.39: Funcionárias, envergando trajos regionais, preparam as sandes para os visitantes (Lisboa, 1934, retirado de BASTO, A, et al, op. cit.).

Fig.40: Funcionários do C.P.C.P. responsáveis pela Prova de Degustação nas Festas de Lisboa de 1934 (Lisboa, 1934, retirado de BASTO, A, et al, op. cit.).

Ainda durante este ano seria promulgada a nova regulamentação do horário de trabalho nos estabelecimentos comerciais e industriais, através do Decreto 24402. Segundo ele, a jornada diária de trabalho não poderia ser superior a 8 horas. Contudo, os empregados de escritório só deveriam trabalhar 7 horas. Este período de trabalho poderia ser reduzido ou aumentado por preceito legal ou decisão corporativa quando as circunstâncias o impusessem, em casos excepcionais e de interesse público.

Na indústria, o dia de trabalho não poderia começar antes das 7 horas da manhã nem terminar depois das 20 horas. Este período de trabalho deveria ser interrompido pelo menos por um período de descanso que não poderia ser inferior a uma hora nem superior a duas, após 4 ou 5 horas consecutivas de trabalho. O presente decreto estabelecia, ainda, o direito do trabalhador a um descanso semanal que só excepcionalmente poderia deixar de ser ao domingo. Se tivesse forçosamente de trabalhar ao domingo, o trabalhador teria direito a uma folga nos três dias seguintes e a receber o dobro do salário constante para esse dia 172.

172 Cf. DECRETO nº. 24402, Diário da República, nº. 199, I Série, (24-08-1934), pp. 1617-1621. 

Segundo, ainda, o presente decreto, a idade mínima de admissão nos estabelecimentos comerciais e industriais seria de 12 anos completos para ambos os sexos. As mulheres e os menores de 16 anos só poderiam trabalhar antes das 7 horas da manhã e depois das 20 horas com autorização prévia do I.N.T.P. e somente em casos excepcionais 173.

De facto, o que parece ter acontecido foi que a regulamentação do horário de trabalho na indústria de conservas, estabelecida com os sindicatos conserveiros e inspirado neste decreto, não foi cumprida nem respeitada. Segundo ela, o regime de trabalho do vazio era permitido excepcionalmente até ao limite de 10 horas mediante requerimento ou em caso de grande urgência. Em caso algum, seria permitido o trabalho dos soldadores durante a noite.

Noutra vertente, o pessoal do vazio, com excepção dos soldadores, pessoal das máquinas e outros especialistas poderia completar no cheio o limite de horas de trabalho permitido ao respectivo pessoal. Mas, o que de facto acontecia era que o pessoal do vazio terminava as suas 8 ou 10 horas de trabalho na manufactura, e o industrial dava ordens, caso a fábrica tivesse peixe, para fazerem serão, passando a trabalhar no cheio até às 22 ou 23 horas 174. Nesta perspectiva, parecia que as leis referentes ao horário de trabalho não eram tidas em conta pelos industriais conserveiros, que não temiam as multas a que poderiam incorrer, talvez mercê de uma fraca fiscalização.

Outra das medidas implementadas no início do Estado Novo seria emanada pelo Diário do Governo do dia 10 de Outubro de 1935. Este diploma inseria um despacho do sub-secretário de Estado das Corporações e Previdência Social determinando não ser permitido a partir do dia 20 daquele mês, o trabalho de mulheres e crianças nas fábricas e secções de vazio para conservas de peixe, no que respeitava ao trabalho com máquinas 175.

«Mais uma justiça do Estado Novo», era intitulada a notícia publicada n’ O Conserveiro. O que questionamos é se esta medida seria uma forma de proteger as mulheres e as crianças, ou uma forma de as afastar de um trabalho sempre requerido pelos homens e para o qual as mulheres começavam a ganhar terreno.

O C.P.C.S., fundado em 1932, tinha apenas previsto a agremiação dos industriais e simples exportadores de conservas de sardinha e de peixes com semelhante tratamento industrial. Contudo, verificou-se, dois anos após a sua implementação, que seria útil estender esta organização de modo a abranger a indústria e o comércio exportador de todas as outras conservas de peixe, cuja importância não justificava uma organização autónoma. Assim, pelo Decreto-lei nº. 24947, de 10 Janeiro de 1935 seria criada a União dos Industriais e Exportadores de Conservas de Peixe, também designada Consórcio Português de Conservas de Peixe (C.P.C.P), sendo esta última denominação subsidiária da anterior, justificando-se pelo prestígio no estrangeiro da sua antecessora 176.

O Consórcio Português de Conservas de Sardinha seria extinto pelo mesmo decreto, que criaria os Grémios de Exportadores e os Grémios dos Industriais de Conservas de Peixe do Norte, do Centro, de Setúbal e do Sul, nas áreas geográficas correspondentes. No seio desta organização, os industriais de Sesimbra ficariam representados no Grémio dos Industriais de Conservas do Centro. A União e os Grémios eram organismos corporativos de funcionamento e administração autónoma, com personalidade jurídica e com funções de interesse público 177.

As atribuições do C.P.C.P. vinham na linha do seu antecessor e eram: o exercício de funções políticas conferidas aos organismos corporativos; dar pareceres e informações aos Governo sobre assuntos relacionados com as suas funções; orientar e fiscalizar a produção e o comércio de conservas; fixar preços mínimos de exportação; condicionar, limitar ou suspender temporariamente a exportação e estabelecer cotas de rateio; fazer a propaganda dos produtos portugueses no mercado estrangeiro; regular o exercício da actividade dos seus associados, protegendo-os contra práticas de concorrência desleal, promover a melhoria da qualidade de vida dos operários conserveiros dos seus agremiados, ajustando contratos colectivos de trabalho e cooperando na criação de instituições sindicais de previdência, destinadas a proteger os trabalhadores na doença, na invalidez e no desemprego involuntário, garantindo-lhes a pensão de reforma; praticar todos os actos que visassem ao aperfeiçoamento e defesa da indústria e do comércio conserveiro 178.

O Decreto-lei nº. 24947 instituiria, também, um fundo de Previdência Social para cooperar na fundação progressiva de instituições corporativas de previdência destinadas a proteger as pessoas que viviam desta indústria, na doença, na invalidez, no desemprego involuntário, garantindo-lhes uma pensão de reforma. Todavia, os operários desta indústria só poderiam lograr dos benefícios deste fundo se se encontrassem inscritos nos respectivos grémios de industriais, exercendo uma actividade normal na indústria 179. A 16 de Março de 1935, o governo iria regulamentar e especificar as instituições reconhecidas como sendo de previdência social 180.

Note-se a construção de uma escola para os filhos dos operários, a chamada Escola do Sindicato Nacional dos Operários da Indústria de Conservas. Ou a criação de uma Colónia de Férias para os filhos dos conserveiros, como a que existia em Setúbal, na propriedade da Comenda, junto da Praia da Ajuda 181. Não esqueçamos, ainda, as dezenas de bairros construídos para os operários em vários centros conserveiros, de norte a sul, como era o caso de Setúbal.

Do fundo de Previdência Social lograria, por exemplo, a operária conserveira sesimbrense, Manuela de Jesus, casada e de 31 anos que, vítima de um sinistro enquanto trabalhava, seria notificada pelo juiz do Tribunal do Trabalho para se apresentar perante ele, no dia 18 de Fevereiro de 1943, a fim de receber a quantia de 1222,71 escudos, importância em que fora fixada a remissão da pensão de que era beneficiária 182. Outro dos beneficiados seria Joaquim Fonseca Ramos, solteiro, de 31 anos, operário da indústria de conservas, residente na vila Argés, sinistrado a 1 de Fevereiro de 1939 ao serviço da empresa Nero & Cª 183.

Na verdade, vários eram os acidentes de trabalho que se registavam entre os operários da indústria conserveira. Outro exemplo é aquele veiculado pelo jornal O Conserveiro, de José Marques, internado no Hospital de São José, operário da fábrica de conservas pertencente à firma Nero & Cª que «… há dias, quando trabalhava na prensa de toutiços foi atingido por uma violenta pancada que lhe fracturou o braço esquerdo»184.

De facto, em 1935, Portugal tornara-se no país que mais produzia e exportava conservas de peixe, no mundo. A missão de propaganda inerente ao agora C.P.C.P. fazia-se sentir logo no ano da sua fundação, com a presença do Consórcio na Exposição Internacional de Bruxelas de 1935, como forma de desenvolver e tornar mais remunerador o comércio das conservas no estrangeiro 185.

174 Cf.«Horário de Trabalho», O Conserveiro, nº. 2, 15 Setembro 1935, p. 1.
175 Cf. «Mais uma Justiça do Estado Novo», O Conserveiro, nº. 4, 16 Outubro 1935, p.2.
176 Cf. DECRETO-LEI nº. 24947, Diário da República, nº. 8, I Série, (10-01-1935), pp. 132-141.
177 Idem, ibidem, p. 133.
178 Idem, ibidem, p. 133.
179 Idem, ibidem, p. 137.
180 Cf. LEI nº. 1884, Diário da República, nº. 61, I Série, (16-03-1935).
181 Cf. Obra do Estado Novo, O Conserveiro, nº. 61, 15 Agosto 1938, p. 4.
182 Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal do Trabalho, Processo 296/1943, CMS/J/02/CX. 01, nº. 4075.
183 Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal do Trabalho, Processo 823/1939, CMS/J/02/CX. 01, nº. 4075.
184 Cf. «Notícias de Cezimbra», O Conserveiro, nº. 72, 30 Janeiro 1939, p. 4.
185 Cf. COUTINHO, Luiz de Azevedo – «Portugal, Exportador de Conservas», in O Livro de Ouro das Conservas de Peixe, Lisboa, IPCP, 1938. 

Fig.41: Cartaz promocional das exportações de conservas portuguesas para o mundo (retirado do Livro de Ouro de Conservas Portuguesas de Peixe, op. cit.).

 

No ano de 1935, em Sesimbra, o defeso da conserva da sardinha terminava a 31 de Maio, após quatro meses de cessação de laboração das fábricas 186.

Nesse ano, a firma Pereira, Neto & C.ª, com sede naquela vila, começava a fabricar conserva de atum em azeite, em latas de 5 quilos. De facto, a firma recebera 18.000 quilos de atum proveniente das colónias, que, depois de fabricado, iria ser exportado para os mercados estrangeiros 187. Na verdade, enquanto umas conserveiras sesimbrenses pareciam prosperar, outras encerravam as suas portas. Se esta empresa explorava o mercado das conservas de atum, as empresas que apenas fabricavam conservas de sardinha agonizavam. A sua escassez nos mares de Sesimbra levou ao encerramento da fábrica da Societé Arsène Saupiquet, fundada havia mais de duas décadas. Este encerramento colocaria no desemprego dezenas de operários. 188 

Quadro1: Produção (em quilos) das três grandes conserveiras sesimbrenses, entre 1934 e 1937 (retirado de PORTUGAL: IPCP, Lista Alfabética dos Industriais de Conservas, Lisboa, IPCP, 1940). Neste quadro podemos perspectivar que, para o horizonte temporal em questão, a Persistente era a empresa que mais produzia, em Sesimbra. 

Fig.42: Peixe pronto a ser cozido a vapor, observando-se, ao fundo, os autoclaves (Matosinhos, s.d.) [APJN] 

De facto, a questão da pesca em Sesimbra continuava limitadora da actividade industrial conserveira. Devido ao fraco abastecimento de peixe provocado pela ineficácia do funcionamento das armações valencianas naqueles mares, facto que dificultava não só a vida económica das empresas como dos operários nelas empregados, os armadores dirigiram uma exposição às autoridades marítimas ao abrigo dum decreto solicitando autorização para as suas artes poderem apanhar petinga, sardinha miúda não inferior a 8 cm, para alimentação dos operários, da população e para isco da pesca do alto. A petição dos armadores foi, contudo, indeferida. Mas os cercos americanos continuavam a pescar e a fazer transportar para os mercados peixe miúdo com as dimensões acima citadas 189.

De outro ponto de vista, Sesimbra começava a entrar na era do desenvolvimento. Uma das grandes necessidades da indústria daquela vila era, naturalmente a falta de energia eléctrica, que havia chegado a Setúbal em 1930. Seis anos depois era tempo da pequena vila de pescadores reiterar o seu direito à electricidade. Por isso, em Fevereiro de 1936 estaria naquela vila o delegado da Sociedade de Electrificação Urbana e Rural, Pires Guerreiro, a fim de reunir com os proprietários das fábricas existentes em Sesimbra e inquirir das possibilidades de consumo de energia a fornecer para a laboração da indústria local 190.

186 Cf. «O Defeso da Conserva de Sardinha», O Cezimbrense, nº. 463, 9 Junho 1935, p. 1.
187 Cf. «Conserva de Atum», O Cezimbrense, nº. 463, 9 Junho 1935, p. 2.
188 Cf. «Indústria de Conservas», O Cezimbrense, nº. 475, 1 Setembro 1935, p. 3.
189 Cf. «A Pesca», O Cezimbrense, nº. 483, 27 Outubro 1935, p. 1.
190 Cf. «Electrificação de Cezimbra», O Cezimbrense, nº. 497, 2 Fevereiro 1936, p. 4. 

Ainda durante o ano de 1936, a questão da remuneração dos operários conserveiros durante o defeso de laboração das fábricas mantinha-se polémica. Salazar estabelecera nesse ano com o C.P.C.P. uma modalidade nova para auxiliar os operários da respectiva industria durante os 4 meses de «defeso». Segundo essa nova modalidade, só teriam direito a subsídio aqueles trabalhadores que durante os 8 meses de trabalho atingissem 600 horas, de modo a que não auferissem subsídio aqueles que acidentalmente trabalhavam naquele sector. O Sindicato Nacional de Operários da Industria de Conservas do Distrito de Setúbal entendeu, então, que deveria auxiliar os operários que não atingissem aquele limite de horas e pediram autorização ao C.P.C.P. para cada operário poder oferecer parte do subsídio recebido a favor daqueles que não tinham direito. Este pedido foi deferido e o C.P.C.P. ainda se ofereceria para cobrir a diferença entre a importância reunida pelo sindicato e a soma necessária para socorrer os operários sem subsídio 191. Mais, ainda, durante o mês de Fevereiro de 1936, o C.P.C.P. estabeleceria um subsídio destinado às operárias conserveiras grávidas 192.

Na verdade, o C.P.C.P. mostrava-se bastante activo, não só ao nível da regulamentação laboral dos trabalhadores, como também ao nível da fiscalização. Ainda em 1936, por despacho do Ministro do Comercio e da Industria seria aplicada uma multa de 200 contos a 1 firma portuguesa que havia exportado para Inglaterra um lote de 9.900 latas de sardinhas impróprio para consumo, ficando a referida firma proibida de negociar em conservas durante 2 anos 193.

191 Cf. COSTA, Augusto da – «Coisas Novas», O Conserveiro, nº. 12, 15 Fevereiro 1936, p.3.
192 Cf.« Instantâneos», O Conserveiro, nº. 13, 29 Fevereiro 1936, p. 1.
193 Cf. «Conservas de Peixe», O Cezimbrense, nº. 505, 29 Março 1936, p. 1. 

8.1.A Difícil Implementação de um Contrato Colectivo de Trabalho 

Facto também ele inédito constituiu o início das negociações do Contrato Colectivo de Trabalho dos Operários Conserveiros entre o organismo máximo dos industriais, o C.P.C.P., os sindicatos conserveiros e o I.N.T.P 194.

O Contrato para os operários conserveiros do distrito de Setúbal só seria assinado a 1 de Dezembro de 1936195. Contudo, os operários de Sesimbra não se encontravam abrangidos por este Contrato, tendo em conta que não pertenciam ao Centro de Setúbal, mas sim ao centro de Lisboa, pelo que, continuariam sem qualquer regulamentação. Na verdade, a implementação destes contratos não foi fácil por parte dos industriais. Ainda em Abril de 1937, temos notícia da chegada de inúmeras queixas, de norte a sul do país pelo incumprimento dos contratos colectivos de trabalho por parte dos empregadores 196.

Só a 30 de Outubro de 1937 é que os operários conserveiros sesimbrenses souberam estar abrangidos pelo Contrato Colectivo de Trabalho assinado, havia pouco tempo, entre o Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro e o Sindicato Nacional dos Operários Conserveiros do Distrito de Setúbal. De facto, Sesimbra não sabia por qual dos contratos se havia de guiar, «… parecendo que esta localidade não fazia parte de Portugal.»197 Contudo, na mesma notícia em que O Conserveiro presta estes esclarecimentos adverte que, apesar de a lei ser bem expressiva na aplicação de penalidades contra os infractores, constatava-se que naquele centro não eram ainda concedidas todas as regalias que o contrato estabelecia.

Na verdade, o Contrato Colectivo de Trabalho assinado em 26 de Agosto de 1937 não iria perdurar para os operários sesimbrenses. Em Julho de 1938, sabia-se da existência de discussões para a assinatura de um novo Contrato Colectivo de Trabalho, que passaria a abranger os centros de Almada, Seixal e Sesimbra. Com a assistência dos delegados junto dos Grémios de conservas, do delegado do I.N.T.P., da direcção do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro, do presidente do Sindicato Nacional dos Operários da Industria de Conservas do Distrito de Setúbal e da direcção de Almada do mesmo sindicato, realizar-se-iam em Lisboa várias sessões, onde tentariam discutir em definitivo os projectos e contra-projectos do novo contrato 198.

196 Cf. «Instantâneos», O Conserveiro, nº. 37, 15 Abril 1937, p. 1.
197 Cf. «Desde Sezimbra», O Conserveiro, nº. 48, 30 Outubro 1937, p. 3.
198 Cf. «Organização Corporativa: Conserveiros de Almada, Seixal e Cezimbra», O Conserveiro, nº. 60, 20 Julho 1938, p. 1. 

 

Fig. 43: Trabalhadoras, algumas delas descalças, da Nero & Cª, em Sesimbra (Sesimbra, s.d.). [APJN] 

Esta nova organização industrial e o fortalecimento do espírito corporativo proporcionariam, pois, a assinatura de um Contrato Colectivo de Trabalho, onde seriam afixadas várias regulamentações como as das categorias profissionais, das condições de admissão do pessoal, da disciplina e horário de trabalho, do descanso semanal, férias, períodos de garantia na doença e serviço militar, regime de trabalho e salários, casos de paralisação da indústria e das penalidades para a inobservância dos Contratos.

O pessoal era classificado em duas categorias profissionais: pessoal efectivo e pessoal auxiliar. O pessoal efectivo era constituído pelos operários maiores de 18 anos que faziam parte do quadro da fábrica, as operárias e menores que trabalhavam com máquinas ou ferramentas, e um número de operárias equivalente à percentagem mínima de 16% do pessoal feminino que trabalhava na fábrica, incluindo-se as operárias especializadas. O pessoal auxiliar era constituído pelos operários menores de 18 anos, os operários que provinham de outras fábricas encerradas definitiva ou temporariamente e as operárias além da percentagem estabelecida para pessoal efectivo 199.

Segundo o Contrato, que possuía algumas variações de acordo com os diversos centros conserveiros, o industrial só poderia admitir pessoal masculino além do que constava no quadro apenas se o Grémio e o Sindicato reconhecessem essa necessidade e mediante uma aprovação do delegado do I.N.T.P. O pessoal admitido deveria possuir a respectiva caderneta profissional e estar em pleno gozo dos seus direitos sindicais.

A idade mínima para admissão cifrava-se nos 14 anos, dando-se preferência aos menores filhos de famílias de operários. Com excepção dos soldadores, todos os operários tinham a obrigação de executar quaisquer serviços que lhe fossem indicados, tendo os operários que durante 30 dias e com carácter de permanência substituíssem outros de classe superior o direito de, no fim daquele prazo, pertencerem à categoria do operário substituído.

Às operárias proibia-se a execução de trabalhos violentos tais como carregar peixe aquando da sua entrada na fábrica, meter carros nos fornos, transportar mais do que uma grelha para a secção de enlatar, trabalhar com cravadeiras não automáticas, pregar caixas, lavar tanques de esterilização, trabalhar em máquinas que não fossem as de meter borracha, estanhadeiras, soldadeiras, rebordadeiras- tamponadeiras, rebordadeiras de mesa horizontal, máquinas de revisar lata, cravadeiras automáticas, máquinas de azeitar e azeitadeiras de folha, soldar tiras ou latas, …200

O regime normal de trabalho era de 8 horas, interrompido por 1 hora de descanso após 4 ou 5 horas de trabalho seguido. Em regra, o trabalho iniciava-se às 8 da manhã, mas poderia ser às 7 nos meses de Junho a Setembro, quando havia mais trabalho. O regime extraordinário de trabalho no «vazio» só era permitido excepcionalmente até ao limite de 10 horas devendo, para tal, ser obtido deferimento num requerimento entregue ao delegado do I.N.T.P. O trabalho dos soldadores só era permitido até ao pôr-do-sol. Em contrapartida, o trabalho do «cheio» só poderia ir até ao limite máximo de 13 horas em 3 períodos separados por 2 descansos de 1 hora cada, representando um total de permanência de 15 horas na fábrica 201.

Como motivos de despedimento justificado encontravam-se a recusa à execução de ordens de serviço, a embriaguez e os actos e as palavras que provocassem escândalo, a inaptidão para o trabalho, a indisciplina e a insubordinação, o mau comportamento moral e civil, a discussão de carácter político ou social, o abandono do trabalho por prisão, a recusa de prestação de serviços em categorias diferentes, a falta repetida de pontualidade nas horas de entrada para o trabalho sem motivo justificado. O dia de descanso semanal era, em regra, aos domingos, sendo excepcionalmente permitidos, nesse dia, todos os trabalhos, excepto os do «vazio» 202.

Quanto às férias, o pessoal do quadro efectivo tinha direito a uma semana, que seria remunerada pelo salário correspondente a 48 horas de trabalho, desde que durante o ano o operário tivesse comparecido ao trabalho sempre que para ele houvesse sido chamado e que estivesse ao serviço da indústria há pelo menos 12 meses.

As férias seriam gozadas no período do defeso. Aos operários efectivos doentes, quando o seu número não era muito elevado, seria garantido o seu lugar e o direito de salário da sua classe, excepto se houvesse existido uma incapacidade física ou se as condições do pessoal dependente do mesmo patrão se tivessem modificado em conjunto. A duração do período de doença era variável entre 3 e 6 meses. A assistência social praticava-se com as verbas do Fundo de Previdência Social que se dividia num fundo de 85% destinado a custear obras de assistência conjuntas e num outro fundo de 15% que os Grémios utilizavam autonomamente. Em geral, os grémios possuíam um serviço gratuito de assistência médica, ao qual os operários e os seus filhos menores poderiam recorrer para consultas e tratamentos, oferecendo, por vezes, os medicamentos 203.

No que dizia respeito aos salários, o Estatuto do Trabalho Nacional, no seu artigo 24º, estabelecia que o ordenado tinha, em princípio, limite mínimo, correspondente à necessidade de subsistência do trabalhador. Contudo, este não estava sujeito a regras absolutas, sendo regulado pelos Contratos Colectivos de Trabalho e pelos regimentos corporativos em conformidade com as necessidades normais de produção das empresas e dos trabalhadores e do rendimento do próprio trabalho 204.

Para a indústria conserveira, os salários, embora obedecendo aos preceitos do Estatuto fixavam-se de acordo com a capacidade técnica e económica das empresas e com as necessidades essenciais dos trabalhadores. Em 1941, um operário conserveiro sesimbrense poderia auferir vários tipos de salários de acordo com as suas funções baseadas numa divisão sexual do trabalho. Os soldadores, sempre homens, eram aqueles que auferiam um maior salário: 16 escudos. Logo a seguir a estes situavam-se os Trabalhadores ou Moços, homens, operários efectivos e especializados, que auferiam entre 12 a 16 escudos. No final da lista de remunerações encontravam-se as mulheres que, como operárias especializadas ganhavam entre 8 a 9 escudos, e enquanto operárias auxiliares auferiam 7 escudos e 20 centavos205. Nunca as mulheres desta indústria ganhariam mais do que os homens.

Os valores dos salários auferidos pelos trabalhadores sesimbrenses coadunavam-se, pois, com os salários auferidos pelas classes de trabalhadores abrangida pelo Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro, um dos mais mal pagos a nível nacional. Na verdade, em termos salariais, existiam dois blocos distintos: o de Matosinhos e Setúbal, o mais bem pago, e o do Centro e Algarve, de nível mais baixo, conforme o seguinte quadro:

Quadro 2: Valores salariais dos operários da indústria conserveira por dia e por centro em 1941 (adaptado de BARBOSA, António Manuel Pinto, op. cit., p. 142). 

Na verdade, desde que seria assinado o primeiro Contrato Colectivo de Trabalho, os operários conserveiros sesimbrenses começaram a fazer ouvir o seu coro de protestos. Durante o ano de 1938, abrir-se-iam uma série de processos. Em Outubro desse ano, uma série de operários, Guilhermina Rosa, Luiza Baeta, Adelaide Baeta, Jaquelina da Conceição, Eugénia Maria Cruz, Matilde Carapinha, Catarina da Conceição, Teresa Baeta, Mariana da Conceição, Afonso dos Santos, funcionários da empresa Artur Duarte Borges, tentavam uma conciliação com o seu patrão no que dizia respeito ao Contrato Colectivo de Trabalho, sendo intimados para se apresentarem em tribunal, numa acção em que eram «… autores e réus…»206.

Ainda nesse mês, outro grupo de operários, desta feita da empresa Nero & Cª., Maria Júlia Zegre, Luiza da Conceição, Solange da Silva, Florinda Inocência Pereira, Adelina da Conceição Marques, Emílio Zegre Neto, Emília Marques, Judite da Conceição, Cremilda Evangelista Farinha, Abel Zegre Neto, José Ribeiro, moveriam um processo ao seu patrão por este não cumprir o Contrato Colectivo de Trabalho 207. Também a firma Pereira, Neto & Companhia seria notificada, na pessoa do seu responsável, para estar presente em tribunal, a 22 de Outubro de 1938, por ter transgredido as disposições da cláusula 19ª do Contrato 208.

Como pudemos verificar, praticamente todas as empresas da indústria conserveira sesimbrense foram notificadas por transgressão do Contrato Colectivo de Trabalho. A conserveira Nero & Cª., na documentação remanescente, regista grande número de infracções. Para além das que já observámos, o seu representante seria notificado para comparecer em tribunal a 29 de Abril de 1938209 e a 1 de Novembro de 1940 210.

Num outro processo, o Tribunal do Trabalho ordenava ao Presidente da Câmara que fosse notificada a firma Nero & Cª com sede naquela vila, na pessoa do seu legal representante para comparecer no tribunal no dia 8 de Junho pelas 14 horas a fim de ser julgado em processo de transgressão por se achar incurso no art. 3º e seu parágrafo único do Contrato Colectivo de Trabalho firmado entre o Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro e o Sindicato Nacional de Operários da Indústria de Conservas do Distrito de Setúbal, transgressão verificada em 22 de Fevereiro de 1941. O transgressor deveria ser avisado de que poderia constituir advogado e apresentar até 3 testemunhas na audiência de julgamento 211.

Também o jornal O Conserveiro denunciava algumas irregularidades nas fábricas conserveiras de Sesimbra. Na sua edição de 30 Janeiro de 1939, narrava a história de algumas operárias da Pereira, Neto & Cª. Segundo ele, aquela firma adquirira, havia dias, alguns atuns tendo, contudo, mandado chamar para os trabalhos de preparação do peixe somente uma parte do pessoal, trabalho dado às operárias sazonais, como já verificámos anteriormente. As restantes operárias, uma das quais se empregava naquela casa havia mais de 16 anos, não recebera nenhum sinal de aviso para comparecer na fábrica, havendo sido prevenidas, apenas, no dia seguinte. Outras só tarde se aperceberam da necessidade de comparência no local de trabalho por estarem doentes. O que, na verdade, aconteceu foi que, apesar de terem justificado assim a sua falta, o patrão não admitiu as operárias ao serviço tendo-lhes mesmo declarado que ia mandar as respectivas cadernetas para o grémio 212.

O mesmo jornal, na mesma edição narra, também, irregularidades na empresa Artur Duarte Borges. Esta havia, da mesma forma, comprado atum e, sem motivo razoável, admitira para os trabalhos de corte e preparação do peixe três homens estranhos à indústria aos quais, segundo parecia, dita o jornal, havia pago de «maneira curiosa». Ainda conclui que «… o procedimento de ambas as firmas além de representar um grave prejuízo para os interesses dos operários e para as relações de harmonia e de disciplina que devem manter-se entre patrões e trabalhadores, é digno de reprovação»213.

O Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro, ao qual pertencia a indústria sesimbrense, era sediado em Lisboa, na Rua do Alecrim, nº. 10, 2º. O presidente da Assembleia Geral era Luiz Cordeiro, representante da empresa Santos & Ferreira Ldª. Os secretários eram Casimiro Lúcio de Oliveira, da firma Sociedade de Conservas de Peniche, e Eduardo Abecassis, da empresa Conservas Praia do Sol. O presidente da direcção era Joaquim Agostinho Fernandes, da firma Algarve Exportador Ltdª. Os vogais eram Alfredo Augusto de Almeida, da empresa La Paloma, e Bernardino José Borges, representante da B. J. Borges. Os centros conserveiros que constituíam este Grémio eram, para além de Sesimbra, Lisboa, Cascais, Seixal, Ginjal, Porto Brandão, Trafaria, Peniche, Nazaré, Madeira e Açores 214.

De facto, notou-se de entre os industriais de Sesimbra, nos primeiros anos, uma certa falta de vontade no cumprimento do Contrato Colectivo de Trabalho.

As actas da direcção do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro são disso prova. Durante o ano de 1937, a direcção do Grémio debatia o incumprimento destes industriais no pagamento dos subsídios de férias do pessoal auxiliar, por alegarem má situação financeira que não permitia pagar sequer ao pessoal efectivo. Contudo, o Grémio resolvia dar cumprimento à cobrança dos subsídios que aqueles industriais deveriam pagar durante o defeso forçando, se necessário fosse, a um desconto sobre os abonos semanais. Sobre a questão do não pagamento das férias aos empregados, o Grémio decidira consultar o Delegado do Governo questionando a possibilidade de despensa dos industriais do pagamento dadas as condições especiais do local, especialmente na aquisição acidental da matéria-prima não permitindo um trabalho regular, o que poderia permitir um regime diferente dos outros centros mais consentâneo com as suas possibilidades 215.

Perante tal, a Direcção decidia suspender «… de vez os abonos para férias do pessoal auxiliar por terem passado já seis semanas sem que os industriais tenham tido trabalho que lhes seja permitido descontar as importâncias já abonadas»216. Na mesma reunião é acordado um auxílio à empresa Nero & Cª (Suc.) Ldª por ter já fabricado as latas da marca Gremium 217.

Em Setembro do mesmo ano, o Grémio toma conhecimento do ofício do Sindicato Nacional dos Operários da Indústria de Conservas do Distrito de Setúbal, em que o sindicato participava aos Delegados do I.N.T.P. de Setúbal sobre o não cumprimento das cláusulas dos Contratos Colectivos de Trabalho por parte dos três industriais conserveiros de Sesimbra 218. Em Janeiro de 1938, o Grémio decidia, pois, convocar os três industriais, de modo a poderem resolver os problemas com o Contrato Colectivo de Trabalho 219. Contudo, o Grémio resolveria que estes industriais, de acordo com o debatido no Conselho Geral onde, provavelmente, estiveram presentes, deveriam amortizar a sua dívida através do pagamento de 1 escudo e 50 centavos por cada caixa, na base da capacidade que lhe havia sido atribuída e que constava nos registos do I.P.C.P., através do levantamento da parte livre que possuíam no Fundo Corporativo ou através da venda do material que possuíssem 220.

Em Março de 1938, o Grémio tomaria conhecimento de uma carta enviada pela firma Nero & Cª (Suc.) Ldª na qual remetia uma declaração assinada por 13 operários, 8 soldadores e 5 trabalhadores, dando o seu acordo quanto ao seu despedimento mediante a indemnização de 450 escudos. Tal declaração seria enviada ao Delegado do Governo, de modo a que este fizesse o necessário junto das estâncias competentes 221.

Novamente em Junho do mesmo ano, o Grémio toma conhecimento de uma carta da mesma empresa, na qual se informa que esta seria novamente intimada a comparecer no Tribunal do Trabalho, em Setúbal, presumindo-se tratar, ainda, do incumprimento da cláusula 19ª do Contrato Colectivo de Trabalho. Tal informação seria transmitida ao Delegado do Governo, Dr. Melo Machado, que estaria na presença do Ministro do Comércio e da Indústria, que prometeria dispor para que os industriais de Sesimbra não voltassem a ser incomodados pelo mesmo motivo, tendo sido pedida a sua interferência nesse sentido 222.

Os delegados de Setúbal do I.N.T.P. informariam que a notificação que a Nero & Cª (Suc) Ldª havia recebido seria motivada por uma queixa dos operários que requeriam o pagamento dos salários segundo a 19ª cláusula do Contrato Colectivo de Trabalho. Tal facto impediria a interferência do Sub-Secretário das Corporações que não poderia se contrapor às decisões judiciais. Por tal, efectuaria-se uma sessão de conversações, tendo os delegados do I.N.T.P. declarado empregar os seus esforços no sentido da execução de um acordo que impedisse a chegada a julgamento 223.

Mais uma vez, obtemos a prova de que a implementação de um Contrato Colectivo de Trabalho não foi fácil para os industriais de Sesimbra que, a todo o custo, tentaram dissuadir as autoridades e os seus operários da sua implementação. A grande polémica parecia constar da cláusula 19ª, referente à disciplina do trabalho. Segundo esta cláusula, os industriais deveriam garantir a todo o pessoal efectivo o mínimo de 48 horas de trabalho ou salário em cada período de duas semanas ganhando, pelo menos, o salário mínimo fixado no Contrato.

Alegando deficiente situação financeira, os industriais de Sesimbra forçaram o não pagamento das horas mínimas de trabalho aos seus operários, o que resultaria numa onde de reivindicações por parte destes, como pudemos observar. Estes factos provam, pois, que apesar de uma vontade do Estado Novo em legislar os regimes e as condições de trabalho dos operários desta indústria, pelo menos durante o período inicial, existiram claros entraves por parte dos industriais na implementação destas novas medidas, não constituindo o centro de Sesimbra uma excepção.

199 BARBOSA, António Manuel Pinto, op. cit., pp. 133.134.
200 Idem, ibidem, p. 135.
201 Idem, ibidem, p. 136.
202 Idem, ibidem, p. 137.
203 Idem, ibidem, p. 138.
204Cf. INSTITUTO NACIONAL DO TRABALHO E DA PREVIDÊNCIA, Organização Corporativa: Estatuto do Trabalho Nacional e mais Textos Fundamentais, Lisboa, Sub-Secretariado de Estado das Corporações e Previdência Social, 1938, p. 26.
205BERNARDO, Hernâni, op. cit., p. 248.
206 Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal de Trabalho, Processo 5/1938, CMS/J/02/Cx.02, nº. 4075.
207 Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal de Trabalho, Processo 6/1938, CMS/J/02/Cx.01, nº. 4075.
208 Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal de Trabalho, Processo 4/1938, CMS/J/02/Cx.01, nº. 4075.
209Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal de Trabalho, Processo 213/1938, CMS/J/02/Cx.01, nº. 4075.
210Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal de Trabalho, Processo 3/1940 C.I.T., CMS/J/02/Cx.01, nº. 4075.
211Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, Correspondência com o Tribunal de Trabalho, Processo 9/1941 T., CMS/J/02/Cx.01, nº. 4075.
212 Cf. «Notícias de Cezimbra», O Conserveiro, nº. 72, 30 de Janeiro de 1939, p. 4.
213 Cf. «Notícias de Cezimbra», O Conserveiro, nº. 72, 30 Janeiro de 1939, p. 4.
214 Cf. «Grémio dos Industriais de Conservas do Centro», O Conserveiro, nº 45, 31 Agosto 1937, p. 39.
215 Cf. ADGPA, Fundo do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro, Actas de Direcção, 1937, Reunião nº. 42, 7 Abril 1937.
216 Cf. ADGPA, Fundo do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro, Actas de Direcção, 1937, Reunião nº. 45, 17 Abril 1937.
217 Idem, ibidem
218 Idem, ibidem, Reunião nº. 81, 28 Setembro 1937.

219 Idem, ibidem, Reunião nº. 104, 19 Janeiro 1938.
220 Idem, ibidem.
221 Idem, ibidem, Reunião nº. 118, 11 Março 1938.

222 Idem, ibidem, Reunião nº. 147, 12 Junho 1938.
223 Idem, ibidem, Reunião nº. 148, 19 Junho 1938. 

8.2. A Fundação do I.P.C.P. e a Inauguração da Luz Eléctrica

Como já verificámos anteriormente, o C.P.C.P. agrupava quatro grémios de industriais (do Norte, do Centro, de Setúbal e do Sul) e um grémio de exportadores. Contudo, verificou-se que os objectivos de ordem puramente corporativa não foram atingidos. Os grémios não adquiriram vida própria e a União, o organismo superior, ao concentrar demasiadas atribuições, dificultava a distribuição de funções e o desenvolvimento do espírito corporativo. Impunha-se, pois, um ajustamento destes organismos.

Seria criado, então, um novo organismo concentrado apenas na coordenação económica. Pelo Decreto-lei nº. 26777, de 10 de Junho de 1936 seria extinto o C.P.C.P. e constituído o Instituto Português de Conservas de Peixe (I.P.C.P.) que só seria extinto em 1986, organismo que viria a ter 40 anos de existência.

O I.P.C.P. era um organismo de coordenação económica com funções oficiais, de funcionamento e administração autónomos e com personalidade jurídica. Os seus objectivos eram: coordenar a acção dos organismos corporativos da indústria e do comércio das conservas de peixe; criar e solidificar uma consciência corporativa entre todos os sectores que congregava; estudar o melhoramento e a defesa das condições de produção e comércio de conservas, orientando-as, fiscalizando-as e condicionando-as; passar certificados de origem e de qualidade; promover e organizar a expansão do comércio das conservas portugueses nos mercados estrangeiros, fazendo a respectiva propaganda; defender o bom nome e a qualidade das conservas portuguesas nos mercados consumidores reprimindo quaisquer fraudes ou transgressões; receber mercadorias dos sócios dos grémios em regime de armazéns gerais 224.

Este organismo entendia uma conserva de peixe enquanto uma conserva de todas as espécies da fauna aquática, com excepção do bacalhau, realizada por qualquer processo de preservação que assegurasse a sua longa estabilidade em perfeitas condições para a alimentação humana. O peixe preservado pelo frio a temperaturas não inferiores a 6 graus negativos não podia ser designado como peixe congelado, nem tão pouco se considerava uma conserva 225.

Por sua vez, a conserva de sardinha em azeite ou molhos passaria a possuir 3 tipos de designações: «Extra», «Fina» e «Bom corrente».

A conserva «Extra» seria confeccionada com peixe gordo e fresco, de igual tamanho, de primeira escolha, sem qualquer defeito nas camadas, sem sinais de grelha, bem enlatado, apresentando carne branca levemente rosada, espinha facilmente descartável, em azeite puro de oliveira, claro e sem gosto a fruto ou em molhos de qualidade «extra», cobrindo o molho perfeitamente o peixe.

A conserva «Fina» era constituída, na primeira camada com peixes de alta qualidade, podendo apresentar nas outras camadas peixes com leves defeitos, apresentando, da mesma forma, uma carne branca levemente rosada e inundada por azeite claro ou molhos de primeira qualidade.

Por fim, a conserva «Bom corrente» era produzida com peixes apresentando pequenos defeitos mercê das operações de manipulação apresentando, contudo, carne branca ou levemente rosada, em azeites claros ou molhos de primeira qualidade 226.

Se, por um lado, fora criado um organismo de coordenação económica, o I.P.C.P., eram necessários organismos corporativos, os grémios de industriais e exportadores. A estes ficavam reservadas todas as funções corporativas, sendo assegurada a sua participação na orientação do próprio Instituto. Assim, pelo Decreto-lei nº. 26775, de 10 de Julho de 1936, que alteraria o estatuto dos grémios, pretendia-se conferir-lhes todos os elementos necessários para que estes se transformassem em verdadeiros organismos representativos dos industriais. Os quatro grémios que conhecíamos no passado, passariam a ser cinco, pelo desdobramento do antigo grémio dos industriais do Algarve em dois novos organismos: o grémio do Barlavento e o grémio do Sotavento do Algarve 227. Os estatutos do Grémio dos Exportadores de Conservas de Peixe seriam alterados pelo Decreto-lei nº. 26776, de 10 de Julho de 1936, passando a obter uma idêntica estrutura à dos grémios dos industriais daquele sector 228.

No que diz respeito a estes organismos, as suas atribuições eram: exercer funções políticas inerentes; prestar ao Governo e ao I.P.C.P. informações sobre a indústria e o comércio de conservas de peixe; proteger os seus associados contra práticas de concorrência desleal, regulando o exercício da sua actividade; conceder crédito aos associados; exercer acção disciplinar sobre os sócios; cooperar com o I.P.C.P. na criação e desenvolvimento de indústrias locais complementares da indústria conserveira, para ocupação do pessoal nos períodos de defeso e na execução de planos de criação de bairros operários; auxiliar o I.P.C.P. nos serviços e nas despesas de propaganda, expansão do comércio e repressão de fraude; proceder à inscrição dos empregados e operários na indústria; promover a melhoria das condições sociais dos funcionários, ajustando com os respectivos sindicatos nacionais contratos colectivos de trabalho; fazer com que os industriais cumpram as determinações do I.P.C.P. 229.

No final desse ano de 1936, o I.P.C.P. começava a executar as suas funções de regulação e fiscalização. A firma de exportadores de conservas de peixe, que laborava em Sesimbra, Luiz Augusto da Fonseca, seria eliminada da lista de exportadores inscritos naquele Instituto 230. Da mesma forma, alguns sesimbrenses começavam a ocupar cargos de alguma representatividade. Era o caso de Joaquim da Silva, sócio da sociedade de conservas La Bretagne, com sede em Setúbal, eleito para o cargo de vogal da Comissão Departamental de Pescarias 231.

O ano de 1937 foi, para Sesimbra, um ano de grandes mudanças. O início do ano seria marcado por um grande temporal que teria um balanço trágico: 9 barcos afundados e muitos outros com sérias avarias. A estrada marginal seria, em parte, danificada. Muitas culturas seriam destruídas, muitas casas abatidas e outras tantas destelhadas e inundadas. Centenas de árvores seriam arrancadas. As comunicações telefónicas e telegráficas seriam interrompidas. Todos estes prejuízos foram avaliados em mais de 600 contos. Tal desgraça veio agravar a situação social dos seus habitantes mais desfavorecidos. Segundo o articulista de O Cezimbrense, a miséria e a fome reinavam em toda a parte. Grupos de crianças deambulavam pelas ruas pedindo para comer. A sopa dos pobres não chegava para alimentar aquelas crianças 232.

Contudo, o ano de 1937 seria, também, o ano em que a electricidade chegaria a Sesimbra, sete anos depois de ter aportado à capital de distrito, Setúbal.

A Sociedade de Electrificação Urbana e Rural, que tinha a seu cargo a electrificação do concelho de Sesimbra, adjudicara os serviços de instalação da via pública à empresa AEG, com sede em Lisboa, serviços que deveriam ficar concluídos no final do mês de Agosto daquele ano 233. Note-se que, nesta época, a vila de Sesimbra já possuía água canalizada e rede de esgotos 234. A luz eléctrica era o único grande melhoramento que a vila necessitava. Esta só foi inaugurada a 16 de Outubro desse ano, quando Sesimbra se engalanou para solenizar a sua chegada, factor importantíssimo para o seu desenvolvimento 235.

O primeiro electricista de Sesimbra terá sido, certamente, o jovem Georges Le Coroller, natural de Sesimbra, mas de nacionalidade francesa, nascido a 14 de Agosto de 1913 236. Em virtude dessa grande evolução tecnológica observada na vila de Sesimbra – a luz eléctrica – seria inaugurado um outro novo melhoramento.

A firma Joaquim Gomes Covas & Filhos iria ampliar, em 1938, a sua fábrica de gelo, introduzindo-lhe câmaras de congelação e conservação de peixes.

Em 1937, o defeso da indústria conserveira de Sesimbra terminaria a 15 de Junho, iniciando-se a época do peixe gordo 237. Entretanto, por portaria do Ministério da Marinha era confirmada a caducidade do local denominado Baleeira Nova, situado na área da delegação marítima de Sesimbra, para a exploração da pesca da sardinha por meio de uma armação fixa à valência dupla 238. A fiscalização da costa parecia mais apurada. A Canhoeira Faro, empregue nessa fiscalização, estaria ancorada na baía de Sesimbra. No Arsenal do Alfeite iniciara-se, havia dias, a construção de duas vedetas armadas, destinadas á fiscalização da costa portuguesa da zona oeste 239.

Ainda durante o ano de 1937, o I.P.C.P. representava a indústria conserveira portuguesa na Exposição de Paris, em colaboração com o Instituto do Vinho do Porto. Ambos os Institutos mandariam construir um pavilhão onde seriam distribuídas sandes recheadas de conservas portuguesas, que pareciam ter alcançado enorme êxito.

Tempo ainda houve para uma festa a bordo de um barco de pesca, o «Senhora dos Navegantes», que navegou pelo rio Sena, durante os dias em que ocorreu o certame 240. O Conserveiro também notícia a grande admiração que os produtos portugueses, levados à Feira de Paris, tinham causado no público internacional, granjeando as mais justas e orgulhosas apreciações à indústria portuguesa 241.

No ano seguinte, em 1938, numa manobra altamente propagandística, o I.P.C.P. publicava O Livro de Ouro das Conservas de Peixe, uma edição de luxo, que contava com a participação de grandes vultos das artes, das letras e das ciências portuguesas da primeira metade do século XX: Raquel Roque Gameiro Ottolini, Jaime Martins Barata, Rodrigues Alves, Raul Brandão, Charles LePierre, Ricardo Jorge, entre outros.

Dirigido e organizado por Leitão de Barros, esta obra seria também publicada em várias línguas: inglês, francês e alemão. Chamando a atenção para a importância das conservas de peixe na alimentação das populações, esta obra pretendia fazer uma abordagem histórica e técnica da indústria pesqueira e conserveira em Portugal, utilizando uma iconografia marcadamente nacionalista, evidenciando a actuação do Estado Novo, entendido como o grande salvador desta indústria de exportação.

Uma clara manobra de propaganda interna e externa, essencialmente para os mercados estrangeiros perceberem que a indústria conserveira portuguesa «…não é nem improvizada nem inspirada em oportunismos industriais242 Subsidiária da indústria pesqueira, entendida como estruturante de Portugal enquanto estado, o Estado Novo procurava legitimar a indústria conserveira na História e Portugal enquanto o maior produtor e exportador de conservas a nível mundial.

Nesse ano, as conservas portuguesas somariam mais participações em eventos internacionais:
em Março, a Feira de Bruxelas;
em Maio, a Feira de Bordéus;
em Setembro, a Feira de Marselha;
em Outubro, a Feira de Lyon.

As manobras de propaganda utilizadas pelo I.P.C.P. eram de diversa índole. Daremos um exemplo. Para assinalar a inauguração da Feira Internacional de Bruxelas e dos magníficos stands do I.P.C.P. e do Instituto do Vinho do Porto que nela se exibiam, Manuel da Fonseca, delegado da Bélgica daqueles dois organismos oferecera no restaurante Savoy, em Lisboa, um banquete em honra de algumas das personalidades mais representativas dos meios económicos daquele país. Em discurso nele proferido, Manuel da Fonseca salientava a revolução económica levada a cabo por Salazar, revolução de natureza corporativa.

O delegado da Bélgica narrava, ainda, a criação de organismos – Institutos – que possuíam dois objectivos essenciais: a orientação, coordenação, disciplina do comércio interno e a propaganda nos mercados externos, instaurando processos nesses mercados contra os autores de fraudes e falsificações. O objectivo era o aumento de exportações, pela melhoria da qualidade dos produtos exportados, graças a uma rigorosa fiscalização 243.

Para além destas iniciativas propagandísticas, de participação em feiras internacionais, o Estado Novo também utilizou o cinema como veículo de transmissão da sua mensagem. Seriam realizados alguns filmes documentais, dirigidos por Leitão de Barros, exibindo aspectos da pesca da sardinha, incluindo canções populares e imagens da costa marítima portuguesa, cujo objectivo era captar a atenção do público internacional para a qualidade das conservas de peixe portuguesas. Neste sentido, seriam feitas versões em várias línguas, português, francês, inglês e alemão. Iniciativa com grande sucesso, segundo dita o Livro de Ouro das Conservas de Peixe, «… [propaganda] em que nada de artificial existe, mas onde o grande consumidor, assim como o importador podem verificar pelo documento o impecável asseio e a alta categoria industrial que, no Portugal Novo atingiu esta indústria244

224Cf. DECRETO-LEI nº. 26777, Diário da República, nº. 160, I Série, (10-07-1936), p. 796.
225 Idem, ibidem, p. 797.
226 Idem, ibidem, p. 800.
227 Cf. DECRETO-LEI nº. 26775, Diário da República, nº. 160, I Série, (10-07-1936), pp. 788-793.
228 Cf. DECRETO-LEI nº. 26776, Diário da República, nº. 160, I Série, (10-07-1936), pp. 793-796.
229 Idem, ibidem, p. 795.
230 Cf. «Indústria de Conservas», O Cezimbrense, nº. 537, 8 Novembro 1936, p. 1.
231 Cf. «Joaquim da Silva», O Cezimbrense, nº. 554, 7 Março 1937, p. 1.
232 Cf. «O Temporal em Cezimbra», O Cezimbrense nº. 550, 7 Fevereiro 1937, pp. 1, 3.
233 Cf. «Iluminação Eléctrica», O Cezimbrense, nº. 568, 13 Junho 1937, p. 1.
234 Cf. «Iluminação Eléctrica», O Cezimbrense, nº. 577, 15 Agosto 1937, p.1.
235 Cf. «A Electrificação de Cezimbra», O Cezimbrense, nº. 587, 24 Outubro 1937, p. 1.
236 Cf. Arquivo Municipal de Sesimbra, Fundo da Câmara Municipal, PVDE – Secção Internacional. Estrangeiros apresentados ao visto residentes no concelho de Sesimbra, CMS/I/014/CAIXA 01, nº 1385.
237 Cf. «Época do Defeso», O Cezimbrense, nº. 569, 20 Junho 1937, p. 2.
238 Cf. «Pesca da Sardinha», O Cezimbrense, nº. 578, 22 Agosto 1937, p. 6.
239 Cf. «Fiscalização da Costa», O Cezimbrense, nº. 577, 15 Agosto 1937, p. 3.
240 Cf. «Propaganda no Estrangeiro Promovida pelo Instituto Português de Conservas de Peixe», in O Livro de Ouro das Conservas de Peixe, Lisboa, IPCP, 1938.
241 Cf. «Instantâneos», O Conserveiro, nº. 41, 15 Junho 1937, p.1.
242 Cf. «Propaganda no Estrangeiro Promovida pelo Instituto Português de Conservas de Peixe», in O Livro de Ouro das Conservas de Peixe, Lisboa, IPCP, 1938.
243 Cf. «As Conservas Portuguesas na Bélgica», O Cezimbrense, nº. 609, 27 Março 1938, p.3.
244 Cf. «Propaganda no Estrangeiro Promovida pelo Instituto Português de Conservas de Peixe», op. cit. 

Fig.44: Frontispício de carácter marcadamente nacionalista exibido pelo Livro de Ouro das Conservas Portuguesas de Peixe. 

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