A INDÚSTRIA CONSERVEIRA DE SESIMBRA NOS PRIMÓRDIOS DO ESTADO NOVO (1933-1945)
Andreia da Silva Almeida Lisboa, 22 de Dezembro de 2011
4. OS OPERÁRIOS CONSERVEIROS 39
4.1. A Difícil Sobrevivência dos Soldadores 41
4.2.Os Operários do «Cheio» 44
4.3.A Hierarquia do Trabalho Conserveiro do «Cheio» 47
5. AS FÁBRICAS CONSERVEIRAS DE SESIMBRA 51
5.1.A Nero & Cª (Suc) Ldª 53
5.2.Artur Duarte Borges 60
5.3.Pereira, Neto & Cª 63
5.4.Viúva de Joaquim Gomes Covas & Filhos Ldª 66
6. NOS TEMPOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA 73
4. OS OPERÁRIOS CONSERVEIROS
No inicio do século XX, pareciam existir, em Setúbal, quatro tipos de operários fabris inscritos na indústria conserveira, segundo Vasco Pulido Valente: soldadores, mulheres, rapazes e trabalhadores (ou moços) 37. A grande maioria da força de trabalho era constituída pelas mulheres e pelos rapazes (ao todo, 74,9%, em 1911), número cuja tendência seria para aumentar, devido à necessidade desta mão-de-obra para alimentar uma inovação tecnológica, a cravadeira. Os soldadores constituíam cerca de um quarto de toda a população operária 38.
Os empresários costumavam empregar, na sua grande maioria, uma mão-de-obra não qualificada, feminina e infantil. As mulheres constituíam o maior grupo operário da indústria (47%, em 1911), sendo este número reduzido a partir desta data, a favor dos rapazes, mais económicos e fracos do que elas 39. A idade dos rapazes oscilava entre os 8 e os 17 anos. Todavia, os moços e as mulheres entravam nas fábricas entre os 10 e os 12 anos. Quanto aos soldadores, estes não entrariam nas fábricas antes dos 14 anos.
Até 1913, os únicos operários especializados eram os soldadores, que se encarregavam, apenas, da soldagem da lata «em cheio» e «em vazio», sendo praticamente os únicos trabalhadores considerados permanentes. Todavia, a partir desta data, vendo talvez o seu trabalho a rarear, reivindicariam as tarefas de etiquetagem e rotulagem, antes da competência dos «trabalhadores». Estes últimos traziam a folha-de-flandres do armazém para a oficina, ajudavam os soldadores, podiam tratar do processo de cozedura ou fritura e eram responsáveis pela esterilização 40, laborando, alguns deles, de forma permanente na unidade fabril.
Os rapazes, presentes em pequeno número, poderiam ter dois tipos de tarefa: a maioria preparava a folha-de-flandres para a confecção da lata e, no final, procedia à sua limpeza, enquanto os outros auxiliavam os soldadores. Às mulheres cabiam as funções de escorchar e salmonar, engrelhar, azeitar entre outras. Estas duas classes de trabalhadores eram consideradas como temporárias. Estes quatro tipos de trabalhadores que descrevemos constituíam o pessoal básico de uma unidade fabril conserveira. Contudo, os empresários, por vezes, recorriam a outros profissionais, de maneira eventual, como carregadores, latoeiros, carpinteiros, ferreiros, estimulando várias ocupações suas subsidiárias.
38 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 620.
39 Idem, ibidem, p. 621.
40 Idem, ibidem, p.625.
Fig.16: Operárias a passarem as grelhas com o peixe por água corrente na fábrica da Nero & Cª (Suc) Ldª. (Matosinhos, s.d.) [APJN].
O encarregado e o patrão eram, muitas vezes, a mesma pessoa. Contudo, quando tal não acontecia, o encarregado era, indubitavelmente, uma pessoa da confiança do patrão, com capacidade de liderança e autoridade para controlar o pessoal. Normalmente, o encarregado era distante e punitivo, sendo sempre um homem 41. O mestre ou a mestra eram funcionários que haviam iniciado a sua laboração na fábrica desde muito cedo, e que se destacaram pela qualidade do seu trabalho. Normalmente respeitados pelos restantes operários, os mestres faziam cumprir os objectivos de produção impostos pelo patrão, atendendo contudo às necessidades pessoais de cada empregado. Em comparação com o encarregado, o mestre possuía uma função pedagógica e mais próxima do operário, funcionando como uma espécie de intermediário. O mestre podia dirigir mulheres, mas a mestra nunca poderia dirigir operários do sexo masculino.
41 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 63.
4.1.A Difícil Sobrevivência dos Soldadores
Os soldadores de Setúbal e de Sesimbra aprenderam o seu ofício com soldadores franceses, importados pelos industriais de Nantes que se estabeleceram naquela zona durante a transição entre o século XIX e o século XX. Na verdade, existe uma certa unanimidade entre os investigadores no facto de que os soldadores se recrutaram entre os pescadores e os seus filhos, muitos deles não abandonando a sua faina primordial, conciliando, quando não havia trabalho em terra, actividades no mar. Para além da pesca, os soldadores eram, também recrutados entre os trabalhadores das salinas, da indústria corticeira, trabalhadores agrícolas e camponeses, a quem o ritmo sazonal da indústria conserveira convinha, no sentido de poderem conciliar as actividades. Para além destes, os soldadores eram, ainda, recrutados de uma massa de migrantes procedentes de várias regiões do país 42.
Na verdade, a meio da primeira década do século XX, grande parte dos soldadores tinham-se tornado num grupo estável, dedicados exclusivamente ao seu ofício fabril. O acesso à classe era precedido por um período de aprendizagem, geralmente dividido em duas fases: uma primeira e breve fase teórica e uma segunda e longa fase prática. Durante os dois meses de instrução, os aprendizes não tinham qualquer remuneração, só vindo a ganhar o mesmo do que os profissionais após cerca de dois anos de serviço efectivo. Era, da mesma forma, bastante frequente, a transmissão de saberes de pais para filhos.
O trabalho do soldador não era fácil. Soldar a lata «em cheio» ou «em vazio» era um trabalho de grande responsabilidade, pois se a lata não ficasse estanque, fenómeno conhecido como «lata rota», o responsável tinha de pagar uma multa. No início do século XX, as suas ferramentas pertenciam-lhes: o ferro de soldar, que funcionava a gás da Companhia, e as outras ferramentas específicas, como as borrachas, o cachimbo ou ocarina, e as limas 43. A unidade fabril nem sequer fornecia os aventais de lona, essenciais para a protecção contra os ferventes pingos de solda, ou toalhas, indispensáveis para a limpeza e a protecção do operário da gordura que por vezes escorria, quando trabalhava «em cheio». O empresário apenas fornecia o essencial: a solda e a mesa de soldar, munida com o seu torniquete, condutas de gás e oxigénio e a ventoinha, que conservava o oxigénio a uma temperatura segura 44.
Os soldadores ganhavam mais do que qualquer outro operário fabril e foram considerados, durante muito tempo, como um grupo de privilegiados que, de um dia para o outro, começou a ganhar bom dinheiro.
Todavia, o trabalho de soldador era um trabalho extremamente doentio e insalubre, estando permanentemente a respirar um ar viciado de óxido de carbono, proveniente da solda. Para não falar da má qualidade do gás que era fornecido às fábricas, que piorava as condições de toxicidade, exalando um péssimo odor. Ainda para mais, devido ao vento, os trabalhadores eram, muitas vezes, obrigados a trabalhar de janela fechada. No verão, época de maior actividade laboral, essa janela fechada fazia sobressair o calor natural, ao qual se juntava o calor da solda, o que tornava as oficinas de soldadores verdadeiras estufas. A janela fechada e o trabalho nocturno faziam acentuar a necessidade de luz artificial que, reflectindo na lata, se tornava nociva 45.
42 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 628.
43 Idem, ibidem, p. 626.
44 Idem, ibidem, p. 626.
45 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 630.
Todavia, no decorrer na primeira metade do século XX, a actividade do soldador foi sendo substituída por um conjunto de maquinaria, atirando muitos profissionais para a miséria e para o trabalho meramente sazonal. Claramente, a indústria conserveira era uma indústria sazonal, na qual os soldadores trabalhavam à empreitada. Uma parte considerável do seu ano de trabalho era passada a trabalharem entre 11 a 13 horas diárias, sem sequer descansarem aos domingos e feriados, pelo menos até 1907. Como não havia trabalho para todos, muitos passavam fome, mendigando pelas ruas das cidades.
Toda esta situação de alarme social era agravada pela doença. A doença profissional mais observada entre a população de soldadores era a tuberculose pulmonar, mercê da aspiração de vapores e gases tóxicos, que os levava quase inexoravelmente a uma morte prematura. A este quadro, ainda se juntavam os traumatismos, golpes, escoriações, picadas com espinhas, a que estavam sujeitos diariamente, cortes que facilmente infectavam pelo contacto com a lata e com o peixe 46.
46 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 630.
Fig.17: Funcionários da Persistente (Sesimbra, s.d.) [APJN/APJA]
4.2.Os Operários do «Cheio»
No processo de fabrico da conserva propriamente dita, existia uma clara divisão sexual do trabalho. O trabalho das mulheres estava ligado, essencialmente, a práticas manuais e artesanais, tarefas nas quais a fábrica assumia-se como um espaço em que a mulher poderia estender as suas habilidades domésticas ao labor conserveiro. Como já fizemos referência, este operariado feminino era o mais abundante nesta indústria, sendo a sua principal força de trabalho. Todavia, tal como acontecia com a classe de soldadores, competia a estas funcionárias a compra dos seus utensílios, nomeadamente pinças e tesouras, que as acompanhavam caso mudassem de local de trabalho. Também, na maioria das vezes, o fardamento era comprado pela operárias, e constituído por um avental, lenço e tamancas 47.
Por seu turno, os operários do sexo masculino que se dedicavam ao fabrico do «cheio» estavam destinados a trabalhos mecânicos, nos autoclaves, fornos e cravadeiras, na produção de energia, nas caldeiras, na leitura de instrumentos de controlo e precisão associados aos fornos de cozimento e de esterilização, e nos temperos de peixe. Na verdade, o trabalho de máquinas era com os homens, força e símbolo da virilidade, direccionado para os trabalhos pesados e perigosos. O trabalho das mulheres era, como já fizemos referências, uma continuidade dos trabalhos domésticos, não existindo uma permeabilidade com os trabalhos dos homens. A divisão sexual do trabalho era de tal ordem que os trabalhos das mulheres eram vedados aos homens e vice-versa.
Todavia, o controlo de qualidade das conservas era do domínio das operárias, trabalho consignado no contrato colectivo de trabalho de 1936 e 1938 como trabalho especializado, especialmente as «visitadoras de lata» e as «batedeiras de lata». Eram também elas que inspeccionavam o fabrico das latas, uma tarefa executada por homens, cujo controlo de qualidade era extremamente importante. Na verdade, era incontornável que a mulher, a este nível, exercia um controlo sobre o trabalho dos homens, possuindo um importante lugar na cadeia de produção. Contudo, apesar da sua importância, este trabalho realizado por mulheres não era remunerado da mesma forma que os trabalhos dos homens, ganhando estas menos 50% do que um trabalhador do «vazio» e o mesmo do que um operário não especializado 48.
O inicio do trabalho, quer de homens, quer de mulheres, na fábrica dava-se, ainda, durante a infância, entre os 8 e os 14 anos. Esta situação, aceite por todos, beneficiava o patronato, através do pagamento de módicos salários, sendo a única opção das famílias mais numerosas, obrigadas a porem os filhos a trabalhar para lhes matar a fome.
A aprendizagem das crianças era quase sempre rápida e bem sucedida, motivada, em grande medida, pela sobrevivência. A miséria que os rodeava, fazia-os aceitar sem pestanejar as duras condições de trabalho nas fábricas de conservas. Esta massa de crianças que se tornaria em adultos analfabetos aprendia por observação e imitação das tarefas dos operários púberes. Este quadro era o ideal para o industrial conserveiro, formando, desta forma, mão-de-obra a custo reduzido e sem qualquer investimento, operários que apenas ficariam habilitados a trabalhar naquele tipo de indústria, tornando-se dependentes dela 49.
47 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 54.
48 Idem, ibidem, p. 55.
49 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 56.
No processo de fabrico da conserva propriamente dita, existia uma clara divisão sexual do trabalho. O trabalho das mulheres estava ligado, essencialmente, a práticas manuais e artesanais, tarefas nas quais a fábrica assumia-se como um espaço em que a mulher poderia estender as suas habilidades domésticas ao labor conserveiro. Como já fizemos referência, este operariado feminino era o mais abundante nesta indústria, sendo a sua principal força de trabalho. Todavia, tal como acontecia com a classe de soldadores, competia a estas funcionárias a compra dos seus utensílios, nomeadamente pinças e tesouras, que as acompanhavam caso mudassem de local de trabalho. Também, na maioria das vezes, o fardamento era comprado pela operárias, e constituído por um avental, lenço e tamancas 47.
Por seu turno, os operários do sexo masculino que se dedicavam ao fabrico do «cheio» estavam destinados a trabalhos mecânicos, nos autoclaves, fornos e cravadeiras, na produção de energia, nas caldeiras, na leitura de instrumentos de controlo e precisão associados aos fornos de cozimento e de esterilização, e nos temperos de peixe. Na verdade, o trabalho de máquinas era com os homens, força e símbolo da virilidade, direccionado para os trabalhos pesados e perigosos. O trabalho das mulheres era, como já fizemos referências, uma continuidade dos trabalhos domésticos, não existindo uma permeabilidade com os trabalhos dos homens. A divisão sexual do trabalho era de tal ordem que os trabalhos das mulheres eram vedados aos homens e vice-versa.
Todavia, o controlo de qualidade das conservas era do domínio das operárias, trabalho consignado no contrato colectivo de trabalho de 1936 e 1938 como trabalho especializado, especialmente as «visitadoras de lata» e as «batedeiras de lata». Eram também elas que inspeccionavam o fabrico das latas, uma tarefa executada por homens, cujo controlo de qualidade era extremamente importante. Na verdade, era incontornável que a mulher, a este nível, exercia um controlo sobre o trabalho dos homens, possuindo um importante lugar na cadeia de produção. Contudo, apesar da sua importância, este trabalho realizado por mulheres não era remunerado da mesma forma que os trabalhos dos homens, ganhando estas menos 50% do que um trabalhador do «vazio» e o mesmo do que um operário não especializado 48.
O inicio do trabalho, quer de homens, quer de mulheres, na fábrica dava-se, ainda, durante a infância, entre os 8 e os 14 anos. Esta situação, aceite por todos, beneficiava o patronato, através do pagamento de módicos salários, sendo a única opção das famílias mais numerosas, obrigadas a porem os filhos a trabalhar para lhes matar a fome.
A aprendizagem das crianças era quase sempre rápida e bem sucedida, motivada, em grande medida, pela sobrevivência. A miséria que os rodeava, fazia-os aceitar sem pestanejar as duras condições de trabalho nas fábricas de conservas. Esta massa de crianças que se tornaria em adultos analfabetos aprendia por observação e imitação das tarefas dos operários púberes. Este quadro era o ideal para o industrial conserveiro, formando, desta forma, mão-de-obra a custo reduzido e sem qualquer investimento, operários que apenas ficariam habilitados a trabalhar naquele tipo de indústria, tornando-se dependentes dela 49.
47 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 54.
48 Idem, ibidem, p. 55.
49 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 56.
O processo pedagógico dos pequenos funcionários das fábricas conserveiras reduzia-se ao «vendo e fazendo», sem haver sequer tempo para retirar dúvidas. Era a mera observação dos gestos dos operários mais experientes que consistia a sua iniciação formativa.
A entrada para a fábrica fazia-se quase sempre através da intercessão de um amigo ou familiar que lá laborava, pessoa essa que se tornava o colega de maior confiança dentro do ambiente fabril, que o protegia e lhe ensinava os códigos e as regras a que se havia de submeter, conjunto de saberes informais adquiridos no local de trabalho. Os moços iniciavam a sua laboração neste ambiente fabril a executar tarefas tais como limpar instalações e tirar o peixe das mouras. As crianças do sexo feminino, por seu turno, começavam por dar peixe para engrelhar, dar grelhas e tirar peixe da moura. Quando atingiam a adolescência, estas meninas-mulheres ascendiam a outras tarefas, como descabeçar, engrelhar e enlatar peixe 50.
As fábricas de conservas eram grandes armazéns de espaço aberto, aquilo a que hoje apelidamos pela expressão anglo-saxónica «open-space». Este espaço, tal como acontece nas empresas da actualidade, favorecia a observação global de todo o processo de fabrico, facilitando a comunicação entre os operários, comunicação essa que se confinava a um conjunto de gestos e sinais, não havendo tempo de sobra para conversas verbais. Este espaço, da mesma forma, permitia que todos os operários, independentemente da sua tarefa, conhecessem todas as fases de produção das conservas, visíveis aos seus olhos. Os únicos funcionários a transmitirem ordens verbais eram os mestres, os encarregados e os patrões.
50 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 58.
Fig.18: Operárias da Pereira, Neto & Cª. (Sesimbra, s.d.) [APJA].
4.3.A Hierarquia do Trabalho Conserveiro do «Cheio»
No interior das unidades fabris existiam três denominações de trabalho que reflectiam uma certa hierarquização de competências: os «trabalhos de mesa», os «trabalhos de pé» e os «trabalhos de máquina».
Os «trabalhos de mesa» eram aqueles que eram entregues aos operários menos qualificados, especialmente as mulheres que, durante o defeso, período em que a fábrica não laborava, especialmente ao nível da cadeia operatória do «cheio», só ganhavam um dia por semana, indo à fábrica fazer limpezas. Para além desta tarefa durante o defeso, eram também considerados «trabalhos de mesa», o «dar peixe», isto é, transportar o peixe entre as diversas fases da produção, o «descabeçar», o «engrelhar» e o «encaixar». Destas tarefas, aquela que era considerada mais fácil e que consistia numa espécie de iniciação dos novos funcionários, era o «dar peixe», ao qual se seguia o «descabeçar», considerado um trabalho sujo visto que era necessário remover e tocar as vísceras do peixe. A esta tarefa seguia-se a de «engrelhar» e, por fim, a função mais difícil e evoluída, a de «encaixar», um trabalho limpo, em contraponto com o «descabeçar» e que exigia alguma responsabilidade perante a qualidade e a imagem do produto final. De facto, estas funções constituíam uma espécie de percurso hierárquico que este pessoal não qualificado se esforçava por percorrer e nele evoluir 51.
Este grupo de operários não especializados constituíam uma massa de trabalhadores que, descontentes com o seu trabalho ou o seu rendimento, não hesitavam em mudar de patrões, procurando emprego noutras unidades.
Fig.19: Operária a enlatar sardinhas na fábrica da Nero & Cª (Suc) Ldª. (Matosinhos, s.d.) [APJN].
Poucas eram as fábricas que possuíam um quadro fixo de operárias, existindo ocasiões em que as mulheres e os moços eram contratados à empreitada, situação que se encontra contemplada nos contratos colectivos de trabalho de 1936 e 1938.
Os «trabalhos de pé» correspondiam a funções especializadas e mais bem remuneradas, realizadas por pessoal efectivo, do que os «trabalhos de mesa». Estes trabalhos incluíam tarefas como «levantar lata», «azeitar», «cravar» e «bater lata». Quando as operárias acabavam o «trabalho de mesa», cuja última etapa era encaixar, estas abandonavam o trabalho e permaneciam as que realizavam os «trabalhos de pé» até ao fim do processo de fabrico. Este alargamento do tempo de trabalho na fábrica fazia com que ganhassem horas extras, vedadas às trabalhadoras de mesa, e no período do defeso auferissem três dias por semana, em vez de apenas um. Este tipo de tarefas permitia, ainda, uma maior liberdade à operária, que tinha tempo para romper o silêncio, comer alguma coisa trazida de casa ou ir à casa de banho com tranquilidade.
«Visitar e bater lata» eram trabalhos de alta responsabilidade, elementos fulcrais do controlo de qualidade executado pelas operárias de pé. A existência de uma lata rota poderia fazer retornar um lote inteiro. «Azeitar» era um trabalho que tinha como principal função a poupança de azeite, líquido caro e racionado durante os tempos da II Guerra Mundial. Tal acontecia antes da entrada, em meados do século XX, de equipamentos mecânicos, as azeitadeiras, munidas de torneiras e tapetes rolantes 52.
Os trabalhos com máquinas eram, quase sempre do domínio dos homens. Diríamos «quase sempre» do domínio dos homens, porque a cravadeira, essa grande inovação técnica introduzida nas unidades conserveiras portuguesas durante a primeira década do século XX, no seu período inicial e mecânico era, de facto, do domínio do operariado do sexo masculino. Todavia, com a passagem de uma fase mecânica para uma fase automática, o trabalho na cravadeira foi passado para as mãos femininas, durante a década de 1920, trabalho que passou a ser menos exigente fisicamente, entregue a uma mão-de-obra mais barata. Contudo, o que se observa, principalmente através das fontes fotográficas é que as máquinas eram, de facto, um território masculino e que as mulheres nunca conseguiriam roubá-lo aos homens.
51 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 63.
52 Idem, ibidem, p. 64.
5. AS FÁBRICAS CONSERVEIRAS DE SESIMBRA
Como já anteriormente assinalámos, durante os finais do século XIX, existiu um desenvolvimento da indústria conserveira na Bretanha francesa, desenvolvimento esse que originou uma captura exacerbada de peixe naquelas águas, provocando um rápido esgotamento desse recurso natural, essencial para a laboração daquela indústria. De modo a garantir a sobrevivência das suas fábricas, muitos industriais franceses deslocalizaram as suas empresas em direcção a locais onde a sardinha era abundante.
Um desses industriais foi F. Delory, do qual já fizemos referência. Em Novembro de 1880, este abriu a sua primeira unidade fabril em Setúbal e, mais tarde, abriria uma outra em Sesimbra, que ficaria a ser conhecida como a Ouisille. Apesar de conhecer um grande desenvolvimento, a indústria conserveira francesa era um meio pequeno, em que todos os industriais se conheciam. Era, na verdade, comum a troca de administradores entre empresas, como o facto de administradores de uma empresa possuírem acções de outra 53. Em 1912, os Établissements F. Delory, de Sesimbra, eram geridos pelos irmãos Georges e Auguste Ousille, que a haviam transformado em sociedade anónima em 1892. Daí, esta conserveira ser conhecida, em Sesimbra, pelo nome dos seus administradores.
Em Novembro de 1876, o industrial francês, Arséne Saupiquet abriu duas fábricas de conservas de sardinha na Bretanha, iniciando a actividade dos Établissemens Saupiquet. A estratégia deste empresário visava a criação de produtos de grande qualidade, a preços elevados, dirigidos para o segmento mais abastado de consumidores. Em 1891 é criada uma nova sociedade, a Societé Anonyme des Anciens Établissements Saupiquet, com 1.150.000 francos de capital inicial, que incluía um banqueiro, François Rousselot, representante do crédito da empresa. Arséne Saupiquet era o director responsável pela produção 54, cuja especialidade era a conserva de sardinhas em azeite.
Foi Saupiquet que desenvolveu o conceito de latas de abertura fácil com uma chave, depois conhecido por sistema Supiquet. De facto, o sistema era tão inovador que, sem demora foi copiado pelas outras empresas, suas concorrentes. São inúmeros os processos de casos de imitação fraudulenta deste sistema levantados pela empresa de Saupiquet, conforme podemos constatar no boletim de propriedade industrial francês, La Propriété Industrielle 55.
Em Dezembro de 1912, a Societé Anonyme des Anciens Établissements Saupiquet, comprou aos Établissements F. Delory fábricas e terrenos em Portugal, nomeadamente em Sesimbra e Portimão, e em Espanha, dando início a uma expansão internacional, cujo responsável terá sido Arsène Saupiquet. Nas vésperas da I Guerra Mundial, a Saupiquet possuía 20 fábricas: 16 em França, 2 em Portugal (Sesimbra e Portimão), 1 em Espanha e 1 na Argélia.
O exemplo da fábrica de Saupiquet é apenas uma prova de como, no inicio do século XX, a zona de Sesimbra e, principalmente de Setúbal, constituíam um pólo de atracção para industriais portugueses e estrangeiros. Se Setúbal continuou, durante o decorrer do século XX como um importante pólo conserveiro, Sesimbra depressa diminuiu o seu furor industrial, a este nível, embora nunca deixasse de possuir fábricas de conservas. Note-se, ainda, que antes da construção da fábrica de conservas Ousille, havia sido construída aquela que é considerada uma das primeiras unidades a laborar em Sesimbra, a fábrica da Companhia Nacional de Conservas, construída entre 1880 e 1890. Essa primeva unidade de produção empregava cerca de 50 pessoas, na sua maioria mulheres e crianças 56.
De facto, o período conturbado de crise após a I Guerra Mundial e a Grande Depressão levaram ao encerramento de muitas fábricas de conservas em Sesimbra. A concorrência desenfreada e as más gerências, o rareamento de peixe e as dificuldades financeiras fizeram-se sentir e o número de fábricas foi, a pouco e pouco, decrescendo, chegando, nos tempos áureos, a existirem 14 fábricas 57. Outros acidentes foram também causa do encerramento de unidades fabris, como o incêndio que deflagrou na fábrica da Companhia Nacional de Conservas, a 12 de Julho de 1902 que, cerca de um ano antes havia recebido as primeiras máquinas de soldar da zona de Setúbal. Esta catástrofe, curiosamente, levou à fundação do Corpo de Bombeiros Voluntários da Sesimbra, no ano seguinte, a 12 de Agosto de 1903 58.
Contudo, no âmbito deste trabalho, abordaremos com maior especificidade as três principais conserveiras da cidade, especialistas em conservas de sardinha e atum em óleos e tomate: Nero & Cª. (Suc.) Ldª, Artur Duarte Borges e Pereira, Neto e Cª. Estudaremos, ainda, a única empresa sesimbrense dedicada às conservas pelo frio, a Viúva de Joaquim Gomes Covas & Filhos, Ldª.
53 Cf. NEVES, Ana Catarina Palma, op. cit., p. 23.
54 Idem, ibidem, p. 20.
55 Cf. La Propriété Industrielle: Organe Officiel du Bureau International de L’Union pour la Protection de la Propriété Industrielle, 31 Maio de 1896, pp. 73-74; Annales de la Propriété Industrielle, Artistique et Litteraire, quarante-deuxième anée, Tome XLII, nº. 1-2 Janvier-Février, 1896, pp. 126-132.
56 Cf. ALDEIA, João Augusto – Sesimbra Repúblicana, [em linha], [Cons. 1 Novembro 2011]. Disponível em WWW: http://www.osesimbrense.com.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=584:sesimbra-republicana&catid=20:efemerides&Itemid=42
57Cf. BERNARDO, Hêrnani de Barros – Monografia de Sesimbra, Sesimbra, Câmara Municipal de Sesimbra, 1941, p. 240.
58 Cf. ALDEIA, João Augusto, op. cit..
5.1.A Nero & Cª (Sucessores) Ldª.
A fábrica Nero & Cª (Sucessores) Ldª. foi uma das conserveiras mais emblemáticas de Sesimbra, constituindo uma espécie de berço das restantes que haveriam de ser fundadas naquela vila. As suas raízes remontam à firma Paschoal, Nero & Companhia, fundada em 1912, e cuja laboração se iniciaria a 15 de Junho desse ano, por Amadeu Henrique Nero, José Joaquim Pascoal, Artur Duarte Borges, Manuel Caetano da Silva e Leandro da Silva Pereira.
Esta empresa tinha um capital social de 2 mil escudos e era dividida em 5 quotas iguais de 400 escudos. A 22 de Janeiro de 1917, observa-se a saída de José Joaquim Pascoal, e a empresa passa a ter a designação social de Borges, Nero & Cª. O capital social da empresa mantém-se, passando a ser dividido por 4 quotas de 500 escudos.
Com a saída de Artur Duarte Borges, a 17 de Agosto de 1918, que iria fundar uma conserveira com o seu nome, esta empresa passaria a ser denominada Nero & Cª. A firma manteria o mesmo capital social, só que este seria repartido de uma forma diferente: 2 quotas de 666 escudos e 67 cêntimos e 1 quota de 666 escudos e 66 cêntimos, esta última pertencente a Leandro da Silva Pereira 59.
A 6 de Agosto de 1920, seria feita nova escritura para aumento de capital, que passaria dos anteriores 2 mil escudos para 15 mil escudos, repartido por 3 quotas de 5 mil escudos.
A 21 de Janeiro de 1928, Amadeu Henrique Nero compraria as quotas dos seus dois sócios, pelo valor de 9 mil escudos a cada um, passando a ser detentor de todo o activo e passivo da empresa que, contudo manteve a mesma designação social.
A 15 de Junho de 1932, é extinta a Nero & Cª e constituída uma nova empresa, a Nero & Cª. (Sucessor) Ldª.60, cujo capital social era de 50 mil escudos e contava com 4 sócios: Amadeu Henrique Nero (com quota de 20 mil escudos), Milton Albuquerque Freire da Cruz (com uma quota de 10 mil escudos), Caetano Joaquim dos Reis (com uma quota de 10 mil escudos) e João Lobato Diniz (com quota de 10 mil escudos) 61. Amadeu Henrique Nero era, pois, o sócio maioritário. Pensamos que Caetano Joaquim dos Reis, seu sócio, era um dos membros do Integralismo Lusitano, tendo sido presidente, na década de 1920, do Sindicato do Empregados do Comércio 62. Outro dos sócios do industrial sesimbrense, cujo herdeiro, em entrevista, não soube especificar qual, era também um dos sócios da Casa Africana, empresa dedicada ao comércio de vestuário, que ainda está de portas abertas na actualidade.
59 Entevista a José Nero, herdeiro e seguidor do seu avô e actual proprietário das Conservas Nero (Lisboa, 11 Dezembro 2011).
60 Cf.« Nero & Cª (Suc.) Ldª», O Cezimbrense, nº. 309, 26 Junho 1932, p.3.
61 Entrevista a José Nero, herdeiro da Nero & Cª (Lisboa, 15 Dezembro 2011).
62 Cf. CRUZ, Manuel Braga da, «O Integralismo Lusitano nas Origens do Salazarismo», Análise Social vol. XVIII (70), 1982, p. 145.
Fig.20: Secção de corte e descabeço da Nero & Cª (Suc) Ldª, (Sesimbra, s.d.) [APJN].
Fig.21: Meio de Transporte Típico do Peixe, em Sesimbra, utilizando um Burro. Foi este tipo de transporte preconizado pela empresa Nero & Cª (Suc) Ldª, que lhe deu o epíteto de «fábrica do burro» (Sesimbra, s.d.) [EFAMS].
Através do seu pacto social, esta sociedade previa que, em caso de morte ou interdição de um dos três sócios de Amadeu Henrique Nero, os herdeiros ou representantes destes receberiam a quota e lucros constantes no balanço à data do óbito ou sentença, ficando impedidos de continuarem a sociedade. Em caso de morte ou interdição de Amadeu Henrique Nero, os seus herdeiros ou descendentes ficariam a gerir a sociedade. E foi assim que, paulatinamente, a empresa veio parar às mãos do filho de Amadeu Henrique Nero, Amadeu Rodrigues Nero, embora este tivesse vindo a adquirir a quota de um dos sócios do seu pai.
Quando o filho do industrial sesimbrense adquiriu a quota de um dos sócios da empresa, esta passou apenas a contar com dois sócios: o pai, Amadeu Henrique Nero, representante maioritário, e o filho, Amadeu Rodrigues Nero, representante minoritário.
Após a morte do patriarca, o seu filho passaria a ser herdeiro de 98% da empresa, sendo a sua viúva legatária dos restantes 2%. Após a morte de Amadeu Rodrigues Nero, a sua quota ficou indivisa para os seus herdeiros, entre os quais José Nero que, ainda hoje, continuam o mesmo ofício da produção industrial de conservas de peixe 63.
A empresa de Amadeu Henrique Nero, situada na Rua Manuel de Arriaga, era também conhecida, em Sesimbra, pela fábrica A Persistente, e popularmente famosa como a «fábrica do burro», por utilizar um burrico no transporte do peixe desde a lota à unidade fabril.
O nome de A Persistente estava ligado a uma característica da família Nero: a persistência. Na verdade, a família Nero era proveniente de Sardenha, tendo emigrado para Portugal em busca de peixe para exportar, de modo a alimentar uma indústria de prensados de sardinhas salgadas ou polvo seco, por volta do século XVII 64. Na verdade, era habitual as fábricas serem conhecidas por nomes que nada tinham a ver com a sua designação social. José Nero, herdeiro e seguidor do seu avô, Amadeu Henrique Nero, admite que o epíteto de A Persistente, não foi muito marcante, pois era mais fácil pronunciar o nome «Nero», sendo a fábrica mais conhecida na vila como a «fábrica do Nero».
63 Entrevista a José Nero, herdeiro da Nero & Cª (Lisboa, 15 Dezembro 2011).
64 Cf. BARROS, Mariana Correia de, «Conserva-me se Puderes». Time Out, 5 Abril 2011 [em linha], [Cons. 28 Outuvbro 2011]. Disponível em WWW: http://www.timeout.pt/news.asp?id_news=6805.
Durante o ano de 1938, encontramos referência ao início da fabricação da marca «Atum Catraio» pela empresa de Amadeu Henrique Nero, que colocaria publicidade ao produto no jornal regional de Sesimbra.
Conforme dita o reclame publicitário, aquele atum era uma bela conserva em finíssimo azeite, uma verdadeira especialidade.
Conforme nota José Nero, para além da marca Catraio, que era sua pertença, a Nero & Cª (Sucessores) Ldª, produzia, também, a marca Atum Catraio, marca de grande prestígio, que pertencia a uma outra distribuidora.
Para além destas duas marcas, a empresa também produzia conservas de sardinha com a marca Porthos. Esta marca sofreu grandes alterações a partir da década de 1960, tendo sido copiada em Espanha e na Turquia para depois ser vendida a países do Médio Oriente, onde a marca era líder de mercado.
Numa das cópias efectuadas em Espanha, o nome foi alterado para Abou-chanab que, em árabe, significa «homem das barbas», como eram conhecidas aquelas sardinhas na Síria.
Abou-chanab cópia marca Porthos
Para além desta marca, A Persistente produzia, ainda, a marca Rone, em homenagem a um dos trabalhadores da empresa, marca que era comercializada apenas em Sesimbra. Este empregado era uma espécie de homem de confiança do patrão, que vestia a camisola da empresa sendo, por tal, apelidado por toda a vila de «Nero». Contudo, Amadeu Henrique Nero não gostou da comparação, pelo que decretou que o fiel empregado não se chamaria «Nero», mas «Rone», isto é, o nome «Nero» escrito de forma inversa. Pelo que a lata de conservas correspondente a esta marca exibia a figura do trabalhador 65. Temos, ainda, a indicação que esta fábrica produzia, da mesma forma, a marca Gremium. 66.
No que diz respeito às condições físicas da fábrica, não temos nenhum registo que as descreva. Todavia, temos a indicação de que, nos primórdios, a fábrica também produzia conservas de aves. Através de alguns registos fotográficos existentes, pertencentes à colecção particular de José Nero, podemos constatar que a fábrica possuía uma secção de corte e descabeço do peixe, pelo menos três autoclaves para a esterilização das conservas, uma sala de enlatamento onde ainda não eram utilizadas mesas forradas com pedra mármore, uma secção de enchimento de latas com azeite e de cravação, onde existiam, pelo menos duas cravadeiras.
José Nero aponta, ainda, a existência de lavadoras de latas e uma caldeira a vapor não conseguindo, no entanto, especificar o número de trabalhadores que existiam na fábrica. Segundo ele, existia, ainda, um armazém onde eram produzidas as latas vazias, ao lado de «..uma casinha que servia de escritório…», virados para a Rua D. Afonso Henriques 67.
De facto, temos informação de que a Nero & Cª (Suc.) Lda, possuía fabrico manual de latas para conservas de peixe em molhos, conforme consta no Inquérito à Indústria de Vazio das Fábricas de Conservas de Peixe e à Indústria de Latoaria Mecânica 68. Tal inquérito aponta-nos a maquinaria existente nesta unidade industrial para o fabrico do «vazio», durante o ano de 1941. Para tal, esta empresa possuía 3 balancés, topos ou abatages que serviam, como verificámos anteriormente, para o corte e cunhagem dos fundos e dos tampos das latas. Possuía, também, 3 rebordadeiras a pedal e de mesa, que serviam para fazer os rebordos no corpo das latas. Uma prensa de cortar e cunhar e 2 máquinas de colocar borracha faziam, da mesma forma, parte do património industrial desta empresa 69.
Por volta da década de 1940, o peixe, em Sesimbra, começou a diminuir, tendo em conta o problema da concorrência entre a pesca por arrasto e a pesca com as antigas artes de Sesimbra, tema que abordaremos mais adiante. Amadeu Henrique Nero estava, nessa altura, preparado para deslocalizar a sua fábrica para Setúbal, onde encontrava maiores facilidades pois, no passado, a sua família havia aí possuído unidades de salga de peixe, as chamadas «estivas».
Contudo, segundo relato de José Nero, um primo de Amadeu, Augusto Soromenho, que tinha uma fábrica em Setúbal e a havia transferido para Matosinhos, incentivou-o a também mudar para o norte, convencendo-o que seria ali que ganharia «muito dinheiro». E assim aconteceu, começando a Nero & Cª (Sucessores) Ldª, a laborar em Matosinhos, a 11 de Novembro de 1944.
65 Cf. Entrevista a José Nero, herdeiro da Nero & Cª (Lisboa, 15 Dezembro 2011).
66 Cf. ADGPA, Fundo do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro, Actas de Direcção, 1937, Reunião nº. 45, 17 Abril 1937.
67 Idem, ibidem.
68 Cf. COSTA, Avelino Poole da, op. cit, pp.56-57.
69 Idem, ibidem, pp. 56-57.
Fig.22: Antiga lata de conserva de «Atum Catraio» [APJN]
5.2.Artur Duarte Borges
Como havíamos verificado, Artur Duarte Borges foi sócio de Amadeu Henrique Nero na empresa Paschoal, Nero e Cª. Contudo, terá abandonado a sociedade a 17 de Agosto de 1918, para fundar, no mesmo ano, uma nova empresa, a Artur Duarte Borges, também conhecida, entre os sesimbrenses, como a fábrica das conservas Bella Vista, situada no Bairro do Calvário, na Rua Heliodoro Salgado. Esta fábrica, ainda durante a vida do seu fundador seria agraciada com duas medalhas de ouro na Exposição do Rio de Janeiro de 1923 e de 1928.
Com a morte de Artur Duarte Borges, proprietário da fábrica de conservas Bella Vista, houve necessidade de se executarem partilhas entre os filhos. Pelo que foi constituída uma nova sociedade por quotas de responsabilidade limitada, por escritura de 23 de Dezembro de 1942, entre Deodoro Ramos Borges, Artur Ramos Borges e Isolino Ramos Borges, filhos do falecido, que se passaria a designar Artur Duarte Borges (Filhos) Ld.ª. A nova empresa seria sediada em Sesimbra e para ela seriam transferidas a fábrica de conservas, incluindo o edifício e terreno anexo 70.
Após a morte do seu fundador, aproveitando os lucros relativos às exportações durante a II Guerra Mundial, os seus filhos e herdeiros realizaram alguns melhoramentos na fábrica. Se no início da sua laboração, a fábrica da Bella Vista era um barracão de madeira, após as obras, passou a ser um pavilhão de alvenaria num só pavimento com 1000 m2.
A fábrica seria equipada com uma nova caldeira, novas máquinas cravadeiras e grandes depósitos para azeites e óleos, com os respectivos filtros. Na secção de enlatar, existiam numerosas mesas com tampos em pedra mármore, onde as operárias, trajadas de batas brancas e de lenços brancos na cabeça, à laia de touca, executavam as suas rotineiras tarefas. A secção de cravagem seria modernizada com duas novas máquinas cravadeiras. A secção da salga estava equipada com um bom depósito e pios em cimento. Para o bem-estar dos trabalhadores, esta fábrica possuía quatro casas de banho 71.
Fig.23: Operários conserveiros – secção de cravagem (s.l.; s.d.) [ADGPA]
Na parte norte do edifício da fábrica da Bella Vista situavam-se os grandes armazéns onde eram reunidas as conservas antes de seguirem para o exterior. A fábrica possuía, ainda, uma casa anexa onde se fabricava adubo, aproveitando-se os restos e os detritos do pescado que sobrava da laboração da conserveira. Essa fábrica de adubo estava equipada com quatro tanques, dois deles para recolha de detritos do peixe e outros dois para receber o óleo extraído por duas prensas potentes.
Do ponto de vista da fabricação do «vazio», temos dados constantes no Inquérito à Indústria de Vazio das Fábricas de Conservas de Peixe e à Indústria de Latoaria Mecânica 72 que esta empresa possuía, também, fabrico manual de latas para conservas de peixe em molhos. Como equipamentos para a produção das latas, a fábrica da Bella Vista possuía 2 tesouras de guilhotina manuais ou a pedal, que serviam para aparar a folha-de-flandres e aparar as tiras, 2 balancés, topos ou abatages, para o corte e a cunhagem dos fundos e tampos, 1 fieira e vincadeira, sendo 10 o número de ferros das bancadas dos soldadores 73.
Na enorme cave do edifício, havia sido construído um poço, onde nascia água pronta para acudir a qualquer emergência, especialmente quando falhava o abastecimento público. O escritório da fábrica possuía uma boa disposição, exibindo a fotografia do fundador, o velho Artur Duarte Borges, segundo a opinião do jornalista sesimbrense João da Luz que, durante o ano de 1945 encetou na visita às duas conserveiras sesimbrenses, de modo a poder escrever dois artigos no Sesimbrense intitulados «Sesimbra Industrial»74.
70 Cf. «Artur Duarte Borges (Filhos) Ldª.», O Cezimbrense, nº. 862, 24 Janeiro 1943, p. 3.
71 Cf. LUZ, João da – «Sesimbra Industrial», O Cezimbrense, nº. 972, 22 Abril 1945, p. 2.
72 Cf. COSTA, Avelino Poole da, op. cit, pp.56-57.
73 Idem, ibidem, pp. 56-57.
74 Idem, ibidem, p. 2.
5.3.Pereira, Neto & Cª.
A Fábrica de Conservas Primorosa, como era mais conhecida, foi fundada em 1916 por Manuel José Pereira e os seus sócios. Em 1945, a sociedade era formada, apenas, por Abel da Silva Neto, Farinha Nobre e Faustino Simplício. Esta conserveira era, também, conhecida, entre os sesimbrenses, como a «fábrica da Caveira», por se encontrar junto ao cemitério, situada na Rua D. Sancho I.
Por volta do ano de 1944, com os lucros recorrentes das exportações, A Primorosa encetou um conjunto de grandes melhoramentos na sua fábrica de conservas de peixe em azeite, uma quase «reconstrução» da mesma, como consta n’O Cezimbrense.
Na secção de enlatar trabalhavam 93 operárias, cuja farda eram batas e lenços brancos na cabeça, laborando em cima de mesas revestidas a pedra mármore. Na secção da salga de peixe existiam dois grandes tanques de cimento revestidos a azulejos brancos e inúmeros pios de cimento, as moiras. Existia, também, uma caldeira com filtro industrial, da marca Valvalete, que trabalhava com água calcária, o que era uma grande inovação, visto que evitava que fosse todos os anos picada para lhe retirar o calcário. Existiam, ainda, três autoclaves para a esterilização das latas e um enorme depósito subterrâneo, em vidro, para o azeite. Existiam, ainda, duas máquinas na secção de cravação 75.
Para a higiene e para o bem-estar da população operária daquela fábrica, seriam construídas 3 casas de banho: uma para os operários, outra para as operárias e uma terceira para os patrões, apetrechadas com dois balneários com duches. No centro da fábrica existia, ainda, um marco fontenário, uma espécie de repuxo onde todos poderiam beber água a qualquer momento. O piso térreo era repleto de armazéns para recolha da mercadoria, combustíveis e sal.
No piso térreo, a Pereira, Neto & Cª. possuía uma casa para a fabricação de adubo, aproveitando os detritos do peixe, onde se observavam pios em cimento e duas prensas. O ambiente era limpo, não se notando odor algum a adubo. No mesmo nível, existia uma cisterna para a captação de águas da chuva. O telhado possuía canalizações em tubagem de Lusalite, que conduzia a água para o grande receptáculo. Por seu turno, a elevação da água da cisterna era feita por um pequeno motor.
O escritório da empresa era situado no piso superior. Segundo o jornalista João da Luz, o espaço era bem mobilado, com três secretárias, uma estante e uma boa máquina de escrever. As paredes, até certo ponto, eram forradas de corticite. Em frente à fábrica, situava-se um grande armazém construído para albergar pilhas de caixas de conservas, simetricamente colocadas e formando alas, por onde se transitava e se verificavam os lotes 76.
75 Cf. LUZ, João da – «Sesimbra Industrial», O Cezimbrense, nº. 978, 15 Abril 1945, p. 2.
76 Idem, ibidem, p.2.
Fig.24: Fábrica de Conservas A Primorosa, vista frontal (Sesimbra, 1937) [EFAMS]
Fig.25: Perspectiva da vila de Sesimbra, podendo-se avistar as instalações de A Primorosa (Sesimbra, s.d.) [EFAMS]
5.4. Viúva de Joaquim Gomes Covas & Filhos Ldª.
Foi em 1927 que Sesimbra assistiu ao nascimento de uma inovação tecnológica.
A 26 de Junho, era inaugurada a fábrica de gelo da firma Viúva de Joaquim Gomes Covas & Filhos, uma fábrica que viria a beneficiar nomeadamente a classe piscatória, que poderia conservar o seu peixe durante mais tempo. Esta empresa, conhecida, desde a sua fundação, em 1874, até então, pela fabricação de cabos e cordame diverso em cairo, esparto e linho, archotes e linhas de pesca, sendo também um armazém de alcatrão, breu, cairo, cotons para velas, cabos de aço e Manila, anzóis, arames e outros artigos para armações e embarcações de pesca, aventurou-se num novo negócio. Os seus sócios gerentes eram os irmãos Abel e António Gomes Covas, filhos de Maria Margarida Gomes Covas. No dia da inauguração, os dois irmãos mostraram as instalações e o funcionamento do motor e a formação dos blocos de gelo. O dia da inauguração foi um dia de grandes festejos, acompanhados de grandes brindes e, à noite, teve lugar um encantador baile em casa de António Gomes Covas 77.
Em virtude dessa grande evolução tecnológica observada na vila de Sesimbra – a luz eléctrica – em 1938, é inaugurado um novo melhoramento. A firma Joaquim Gomes Covas & Filhos iria ampliar, em 1938, a sua fábrica de gelo, introduzindo-lhe câmaras de congelação e conservação de peixes. Estes melhoramentos iriam beneficiar o desenvolvimento da indústria local, como acreditava o autor do grande artigo da primeira página do dia 4 de Setembro de 1938, publicado por O Cezimbrense. Direccionada para a indústria pesqueira, esta fábrica era modelar no que dizia respeito à higiene com que se efectuava o fabrico do gelo. Para produzir o frio artificialmente era utilizado um compressor, existindo um resfriador e um sub-aquecedor. Esta tecnologia funcionava com amoníaco, que impulsionado com forte pressão, produzia o frio, fabricava o gelo e arrefecia as câmaras onde se congelava e conservava o peixe 78.
77 Cf. «Fábrica de Gelo», O Cezimbrense, nº. 50, 10 Julho 1927, p. 3.
78 Cf. «Importante Melhoramento», O Cezimbrense, nº. 633, 4 Setembro 1938, p. 1, 5.
A execução das câmaras frigoríficas da fábrica do gelo havia sido efectuada por trabalhadores de Sesimbra, nomeadamente o operário pedreiro José David, como relata O Cezimbrense, um exemplo de como os operários daquela vila eram competentes para executar trabalhos incomuns. Para além das câmaras de congelação, este operário ainda executaria o revestimento de toda a tubagem e do aparelho sub-aquecedor, sob a orientação de Loubet da Costa. Outra das preocupações constantes neste empreendimento fora a segurança dos visitantes e dos trabalhadores, como afirmariam os proprietários, Abel e António Gomes Covas, grandes benfeitores da Misericórdia de Sesimbra, ao contribuírem com gelo gratuitamente para esta instituição, desde o início do seu fabrico.
Em 1945, os sócios da empresa encetaram novos melhoramentos, julgando insuficientes as suas instalações e possuindo para tal recursos, pelo que requereram uma autorização ao Instituto Português de Conservas de Peixe. Estes pretendiam ampliar as suas instalações frigoríficas, que passariam a ser compostas por: 3 compressores de amoníaco com a capacidade total de cerca de 100.000 frigorias/hora, com condensadores, tubagens de ligação aos evaporadores e bombas de água; 1 tanque de fabricação de 3.000 quilos de gelo em 14 horas; 1 britador de gelo; 1 tanque de salmoura para congelação rápida de peixe pelo sistema de imersão; 5 câmaras frigoríficas com a capacidade total de 250 m3, sendo uma para conservação de gelo, outra para conservação de peixe, outra para conservação de carne e outros produtos alimentícios, outra para congelação lenta de peixe e outra para conservação de peixe congelado; 1 máquina para fabricação de creme gelado; 1 armário frigorífico para a conservação do creme; vários motores eléctricos com potência total de cerca de 80 HP 79.
O gelo fabricado destinava-se a ser consumido em Sesimbra, principalmente para conservação durante o transporte de peixe destinado a várias regiões do país.
A câmara frigorífica destinava-se à conservação de peixe em períodos em que a pesca era abundante, que seria vendido em épocas de escassez de pescado, o que contribuía para a estabilização dos preços, peixes que se destinavam a várias regiões do país.
A carne e os outros produtos alimentares que lá fossem conservados destinavam-se ao consumo da população local.
O peixe e os moluscos congelados dirigiam-se à exportação, nomeadamente para o continente americano e para as nossas colónias africanas. O transporte era feito em camionetas isoladas ou frigoríficas 80.
79 Cf. ADGPA, Fundo IPCP, IPCP22.02/325, Memória Descritiva e Justificativa.
80 Idem, ibidem.
O pessoal requerido para fazer funcionar toda esta dinâmica era: um maquinista; um ajudante de maquinista; um encarregado do movimento de mercadorias; um mestre de frigorífico e de preparação de peixe e zelador do trabalho do pessoal permanente e sazonal; dois operários frigoríficos. A ampliação seria autorizada a 26 de Fevereiro de 1946.
Inscrita no Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro com o nº. 983, esta empresa teve um período de vida de mais de um século, tendo sido vendida em 1983 a uma firma que pretendia alienar as suas instalações para a construção de apartamentos turísticos. Contudo, até à sua dissolução, ainda na década de 1980, se dedicava à fabricação de gelo e à sua comercialização, fornecendo a frota pesqueira e alugando a câmara frigorífica para a conservação do isco.
Em 1983 tinha 7 operários do sexo masculino, de entre eles, 3 motoristas e 1 encarregado de fabrico. Como pessoal administrativo possuía 3 funcionários, um deles o gerente e sócio da empresa. Contudo, a especulação imobiliária ganharia, nos anos 1980, à permanência de uma indústria centenária.
Fig.26: Aspecto Exterior da Fábrica (Sesimbra, s.d.) [EFAMS]
Fig.27: Maquinaria para Produção de frio (Sesimbra, s.d.) [EFAMS]
Fig.28: A família Covas junto a um Condensador do Sistema Produção de Frio (Sesimbra, s.d.) [EFAMS]
Fig.29: Operário retirando um bloco de gelo (Sesimbra, s.d.) [EFAMS]
Fig.30: Outro aspecto da Maquinaria da Empresa Viúva de Gomes Covas & Filhos, Ldª (Sesimbra, s.d.) [EFAMS].
Fig.31: Operário e Proprietário manobrando um bloco de gelo (Sesimbra, s.d.) [EFAMS].