A INDÚSTRIA CONSERVEIRA DE SESIMBRA NOS PRIMÓRDIOS DO ESTADO NOVO (1933-1945)

Andreia da Silva Almeida Lisboa, 22 de Dezembro de 2011

1. SESIMBRA: DÁDIVA DO ATLÂNTICO 10

2. O ALVORECER DA INDÚSTRIA CONSERVEIRA 15

3. O PROCESSO DE FABRICO DAS CONSERVAS DE PEIXE 23

3.1. O Processo de Fabrico do «Cheio» 23

3.2. O Processo de Fabrico do «Vazio» 30

1. SESIMBRA: DÁDIVA DO ATLÂNTICO 

Resguardada e defendida por altas falésias de uma beleza impressionante, tendo como pano de fundo a Serra da Arrábida, ergue-se, imponente e singelo, o povoado de Sesimbra. A sua origem remonta aos tempos medievais, como testemunha o seu castelo, fortificação de origem muçulmana, que domina a falésia. Ao longo dos séculos, os habitantes deste burgo foram abandonando a zona mais alta da região, preferindo fixar-se junto à baía, não resistindo ao apelo do mar. É, de facto, o mar, o mar de um azul etéreo e brilhante, que molda há séculos a mente e a vida das sucessivas gerações que têm habitado este local.

A baía de Sesimbra, escavada por entre as arribas da serra, constitui um porto de abrigo de ventos e correntes marítimas de noroeste. Inserida numa posição meridional da Península de Setúbal, Sesimbra ainda hoje é considerada como um local de geografia ímpar, por um dos maiores geógrafos portugueses do século XX, Orlando Ribeiro. No seu artigo intitulado A Arrábida: Esboço Geográfico, publicado pela revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, durante a década de 1930, o autor considera Sesimbra como um pedaço do Mediterrâneo num território afincadamente Atlântico, fruto da sua flora diferenciada das regiões vizinhas, da composição do seu solo e subsolo e dos factores locais 1.

1 Cf. RIBEIRO, Orlando – “A Arrábida. Esboço geográfico”. Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 4, 5 (1-2), 1937, pp. 51-131. 

Na verdade, sendo o mar o seu elemento mais presente, Sesimbra é também berço de terras férteis de vinho e pão, frutas, hortas, pinhais, pastos e mel. Todavia, essa Sesimbra, mais afastada do oceano, não é o objecto do nosso estudo, que se concentra geograficamente na vila, a região mais urbanizada do concelho durante o período temporal a que se refere a nossa investigação, o ciclo inicial do Estado Novo, que termina com o final da II Guerra Mundial.

Sesimbra é, muitas vezes, adjectivada de «piscosa», palavra que exprime a abundância de peixe das suas águas, fenómeno que se deve às condições oceanográficas da sua baía. Com um pH superior ao do mar aberto, temperaturas médias estáveis e um relevo marinho pronunciado, as águas costeiras de Sesimbra são ideais para o desenvolvimento de uma flora e fauna característica e diversificada, que serve de alimento a numerosas espécies de peixes, muitas delas aproveitando o estuário para a sua desova, tendo sido esta uma das mais ricas zonas piscícolas da costa atlântica portuguesa 2.

2 CANDEIAS, Alberto – “Estudos de plâncton na Baía de Sesimbra”. Bulletin de la Société Portugaise des Sciences Naturelles, Lisboa, 11 (3), 1939, pp. 11-72. 

Senhora de um oceano fértil em alimento, não é de estranhar que Sesimbra se tenha tornado numa vila piscatória, dependente do mar para a sua sobrevivência. Mas o mar não era apenas a sua fonte de sustento, era também a sua via de comunicação com um mundo distante, que se situava para além das montanhas da serra da Arrábida, belas, mas sufocantes e insulativas. Era, pois, através do mar, que Sesimbra comunicava com outras terras ribeirinhas, até com a longínqua Lisboa, numa época em que as estradas mais céleres eram as marítimas.

E as suas gentes? Quem são esses habitantes de uma vila perdida durante séculos, cuja única ligação ao mundo eram as suas fecundas águas? Pescadores e suas famílias, vivendo do mar e para o mar. Em Novembro de 1896 foi publicada uma obra da autoria de um abade francês, missionário apostólico, S. M. Labborde, que narrava as suas viagens a Portugal e Espanha. Numa dessas viagens, num domingo, dia 15 de Novembro de 1895, Labborde encetaria um passeio de barco junto a Setúbal, na companhia de alguns amigos  3. Durante o passeio, conseguiram distinguir o farol do Cabo Espichel e mais ao longe, uma vila de pescadores, Sesimbra. Labborde, a partir daquela pequena viagem de barco, descreveria as gentes daquela vila como «pouco mais do que selvagens», como o considera na sua obra. Contudo, ele parece aquilatar a população de Sesimbra por uma história que alguém lhe havia contado: dois jovens haviam partido de barco de Lisboa para Setúbal, havendo sido assaltados durante a viagem de regresso, ao largo de Sesimbra. Estes pediram, pois, socorro à vila, mas não obtiveram qualquer tipo de resposta por parte desta povoação. Esta historieta é contada pelo abade, na sua obra, que lhe terá sido possivelmente narrada por um dos seus companheiros de viagem. De qualquer forma, o prelado apelida o povo de Sesimbra de «Tristes gens, indignes du nom d’hommes» 4, por terem negado auxílio aos desvalidos, juízo descabido e originado por uma história sem fundamento.

3 Cf. LABBORDE, S. M. – Souvenirs de mon Voyage en Espagne, en Portugal, Labéque, Imprimerie Relieure, Novembre 1896.
4 Idem, ibidem, p. 16. 

Não sendo de crédito a descrição do abade francês, a questão mantém-se: quem eram, pois, os habitantes de Sesimbra? Recorramos a fontes oficiais. Segundo o Censos de 1900, nesse ano, Sesimbra pertencia, ainda, ao distrito de Lisboa e possuía 9.047 habitantes. Deste universo, 52% (4.709) eram homens e 48% (4.313) eram mulheres. Destes, 91% (8.270) eram naturais do concelho, 4,1% (371) eram de outro concelho do mesmo distrito, 5,5% (405) eram de outros locais de Portugal e 0,06% (6) eram estrangeiros. A grande maioria da população, quanto ao estado civil, era constituída por homens (31,8%) e mulheres (26,8%) solteiros. Esta população era marcadamente analfabeta, independentemente do sexo. A densidade populacional era baixa, de 44 habitantes por km2  5.

5 PORTUGAL: MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS E FAZENDAS – Censo da População do Reino de Portugal no 1º de Dezembro de 1900, Lisboa, Imprensa Nacional, 1905, p. 40. 

Através da análise destes dados podemos concluir que, no dealbar do século XX, a população de Sesimbra era pequena, essencialmente masculina, constituída, na sua grande essência, por autóctones e uma minoria de estrangeiros. Na verdade, apenas 5% da população era proveniente de outros locais do nosso país, pelo que indicia que os movimentos migratórios eram ténues no início do século XX. Era, pois, uma população marcadamente jovem, como podemos concluir pela percentagem de homens e mulheres solteiros, e analfabeta. Não possuímos indicadores a esse nível, mas adivinhamos uma forte taxa de mortalidade, especialmente entre a população masculina, dedicada essencialmente à pesca. Este quadro populacional era o ideal para satisfazer a mão-de-obra necessária para a indústria pesqueira, enquanto actividade económica, mas também para uma nova indústria que começava a dar os primeiros passos em Sesimbra, a indústria conserveira.

Entre o advento do século XX e o início da I República, observou-se um acréscimo da população sesimbrense. Em 1911, Sesimbra possuía 10.672 habitantes, registando-se um crescimento na ordem dos 1625 habitantes. Tal corresponde a um aumento de população de cerca de 18%, inferior, contudo, ao que se verificou, durante o mesmo período temporal em Setúbal, cerca de 27%, concelho que registou um surto demográfico de grandes dimensões devido ao desenvolvimento da indústria conserveira, que também se havia instalado em Sesimbra. Do ponto de vista da distribuição por sexos, registava-se, tal como na década anterior, uma maioria expressiva de homens. A grande maioria dos habitantes de Sesimbra continuava a ser natural do concelho (90,54%), mas desta vez observava-se a presença de 5,1% de (548) pessoas do mesmo distrito, mas de outro concelho e 4,2% (447) provenientes de outras regiões de Portugal. Na verdade, parece que o desenvolvimento da indústria conserveira não desencadeou, em Sesimbra, grandes movimentos migratórios, constituindo uma actividade profissional essencialmente focalizada para os habitantes do concelho, constituindo uma alternativa ou um complemento à pesca. Da mesma forma, aumentava para mais do que o dobro o número de estrangeiros: 0,16% (17) estrangeiros, o que se poderá explicar pela chegada de capitalistas e dirigentes fabris, essencialmente franceses, que vinham tratar de negócios e formar os operários portugueses. Mantém-se o padrão demográfico constituído, na sua abrangência, por homens e mulheres solteiros e analfabetos  6.

Fruto do aumento da população e da sua urbanização, observa-se o aumento da densidade populacional para 55,6 habitantes por km2   7, o que corresponde a um aumento de 26,4%, em relação à década anterior.

6 Cf. PORTUGAL: MINISTÉRIO DAS FINANÇAS – Censo da População de Portugal no 1º Dezembro de 1911, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913, pp. 14-15.
7 Cf. PORTUGAL: INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA – X Recenseamento Geral da População, Lisboa, INE, 1964, p.110. 

Como podemos verificar, durante os primeiros anos do século XX, a fixação e o desenvolvimento da indústria conserveira em Sesimbra influenciou efectivamente a população daquele local, incrementando-a, estimulando movimentos migratórios e a sua urbanização, embora de uma forma circunspecta. Se podemos considerar que Sesimbra ensaiou um crescimento demográfico moderado mercê do processo de industrialização levado a cabo pela indústria conserveira, a sua cidade vizinha, Setúbal, capital de distrito, conheceu violentas alterações demográficas, económicas, sindicais e laborais, que a tornaram, a médio prazo, a principal cidade portuguesa produtora de conservas. O que tentaremos investigar, ao longo das páginas seguintes, é o desenvolvimento da indústria de conservas de Sesimbra durante o início do Estado Novo, até ao período final da II Guerra Mundial, de 1933 a 1945, desenvolvimento modesto e delicado ao lado de um «gigante» da indústria conserveira, a cidade de Setúbal.

2. O ALVORECER DA INDÚSTRIA CONSERVEIRA 

A indústria de conservas baseava-se no princípio de que a aplicação de um aquecimento suficientemente elevado e durante um determinado tempo a um alimento, isto é, o processo de esterilização, conseguia destruir as bactérias que se poderiam formar. Se um alimento tratado por este processo se conseguisse isolar do meio ambiente, de modo a não contactar com microrganismos, então estaríamos perante um processo de conserva alimentar. Foi Nicolas Appert que, em 1810 experimentou, pela primeira vez este processo, embora a esterilização só fosse cientificamente explicada cerca de uma década mais tarde, graças aos trabalhos de Pasteur.

Em 1823, O. Durand patenteava, no Reino Unido, um processo de conservação dos alimentos em que, em vez de os depositar em recipientes de vidro, como indicava Appert, armazenava-os em caixas de folha. A partir desta data, novas fábricas de uma indústria pueril e florescente começaram a fixar-se junto das principais cidades europeias: Paris, Londres, Frankfurt…

Foi em Nantes, cidade francesa situada na Bretanha, junto à foz do rio Loire, no ano de 1824, que foi criada a primeira fábrica de conservas de sardinhas em azeite. Quatro anos depois, abriria uma outra fábrica em Douarnenez  8, também na Bretanha francesa, na região da Finisterra. Todavia, porquê a escolha da região da Bretanha para o desenvolvimento desta indústria? A resposta está ligada a factores de localização estratégica, uma região com o clima temperado e abundância de peixe, sobretudo sardinhas, espécie considerada ideal para a conserva, sendo pequena e fácil de enlatar.

8 Cf. PARREIRA, Henrique – «A Evolução de uma grande indústria», in BARROS, Leitão (dir.) – O Livro de Ouro das Conservas Portuguesas de Peixe, Lisboa, IPCP, 1938. 

O sucesso desta indústria deveu-se ao enorme estímulo proporcionado pelo Estado francês, que viu nela uma importante forma da expansão imperialista, numa época em que o espírito bélico de Napoleão se fazia sentir por toda a Europa. Contudo, se a França foi o grande berço do desenvolvimento desta indústria, depressa esta começou a propagar-se pelo Velho Continente.

Em 1841 fundava-se a primeira fábrica de conservas na Noruega, dirigida por um cozinheiro francês.

Em 1871 seria, também, um missionário francês que produziria as primeiras conservas no Japão.

Nos Estados Unidos, no Estado do Maine, em 1875, seriam pela primeira vez enlatados os peixes capturados naquela costa. A indústria conserveira de atum nos EUA estava concentrada na Califórnia, tendo sido implantada em 1911 e conhecendo um grande incremento devido à I Guerra Mundial. A partir dessa época, a produção e o consumo do produto naquele país viria a aumentar. Mais de metade das conservas aí fabricadas eram preparadas com atum importado do Japão, em óleo de semente de algodão 9.

Ao observarmos a evolução da indústria conserveira, podemos concluir que esta é subsidiária da indústria de guerra. A história prova-o. Pensemos no conceito de um alimento fácil de transportar, que não perde as suas qualidades nutritivas e é altamente energético e nutriente. É exactamente este o princípio das rações de combate. Foram, pois, as guerras que propiciaram o enorme desenvolvimento desta indústria em todo o mundo. As guerras com a China, em 1894, e com a Rússia, em 1905, foram um factor preponderante de impulso do desenvolvimento desta indústria no Japão 10.

Em Portugal, desde 1865 que existia uma fábrica de conservas de atum em azeite em Vila Real de Santo António. A primeira fábrica de conservas de sardinha começaria a laborar em Setúbal, a 16 de Novembro de 1880, estabelecida por um industrial francês, de Lorient, cidade francesa, também situada na Bretanha, Fréderic Delory 11. De facto, nestes anos de transição entre o século XIX e XX, a cidade de Setúbal deixou de ser uma comunidade rural e piscatória, transformando-se num centro fabril, estimulado pela indústria conserveira e pelas actividades económicas dela subsidiárias, como a pesca  12.

Todavia, por que razão os industriais franceses começariam a fixar as suas fábricas de conservas em Portugal? Na verdade, além da costa da Bretanha, a sardinha era uma espécie que povoava as costas portuguesa, espanhola e marroquina. Note-se que a sardinha é um peixe migratório que, durante o inverno, migra para se reproduzir, regressando às costas europeias durante o verão. Este período de tempo invernal, de Janeiro a Março, quando não existe sardinha na costa portuguesa, é denominado de «defeso natural». Contudo, para além da existência de um defeso natural, existe uma irregularidade quanto à quantidade de sardinha pescada anualmente, alternando períodos de abundância e de carestia  13. Entre 1880 e 1887, devido ao crescimento da indústria conserveira na Bretanha e à pesca predatória nas suas costas, como forma de alimentar aquela indústria, observou-se a primeira grande crise de sardinhas naqueles mares. Consequentemente, por falta de matéria-prima, metade das fábricas aí existentes encerraram.

De modo a continuarem a prosperar no seu negócio, alguns destes industriais decidiram migrar para zonas onde a sardinha ainda era abundante, como acontecia na costa portuguesa, fixando aí as suas fábricas. Foi o que aconteceu com Fréderic Delory, animado pelas notícias que lhe dera um capitão de navio sobre a abundância de sardinha nesta costa  14. Este é apenas um pequeno exemplo que explica a razão da deslocalização de algumas fábricas sediadas na Bretanha e, da mesma forma, o aparecimento de novas fábricas em diversas regiões da costa portuguesa, como é o caso de Sesimbra.

9 Cf. «Conservas de Atum nos EUA», O Cezimbrense, nº. 669, 14 Abril 1939, p. 2.
10 Cf. PARREIRA, Henrique, op. cit.
11 Cf. QUINTAS, Maria da Conceição – «Associações Patronais» [em linha] [Cons. 12 Outubro 2011]. Disponível em WWW: http://mcquintas.paginas.sapo.pt/indexb9.html
12 Cf. VALENTE, Vasco Pulido – «Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)». Análise Social, vol. XVII(67-68), 3º-4º, 1981, pp.615-616.
13 NEVES, Ana Catarina Palma, Empresas e sistemas de informação em perspectiva histórica: a fábrica Saupiquet em Setúbal (1960-1980). Tese de mestrado apresentada à Universidade de Évora, 2006, p. 19.
14 Cf. OUIZILLE, Hubert – Les conditions économiques des industries sardiniéres française et portugaise, Paris, s.n., 1926. 

Devido, pois, à natureza da sua matéria-prima, o peixe, a indústria conserveira caracterizava-se como uma indústria de carácter estacional, existindo um período de 150 dias em que a actividade era mais intensa, correspondente à época da sardinha de verão. Para além disso, esta era uma indústria de exportação, que se caracterizava, contudo, pela sua irregularidade, devido às flutuações da pesca. O peixe mais utilizado era, como já referimos, a sardinha, constituindo cerca de 95% da produção total. Todavia, outras espécies podiam ser aproveitadas nesta indústria como o atum e seus similares (atuarro, cachorreta, albacora, bonito melva e sarajão), similares de sardinha (biqueirão, carapau, chicharro, boga, cavala e espadilha), além de certos moluscos e crustáceos.

A sardinha tem um crescimento rápido. O seu poder de reprodução é bastante grande, expelindo cada sardinha 6000 ovos. A desova, cuja época vai de Janeiro a Junho, efectua-se em fundos baixos e arenosos e numa extensão que não ultrapassa 20 milhas da costa, sendo um monopólio natural de três países: França, Espanha e Portugal. Um dos mais curiosos aspectos deste peixe é o seu carácter migratório, considerando-se uma espécie nómada. De facto, como já verificámos, da movimentação dos cardumes depende a localização das fábricas e a regularidade da produção. As causas de tal migração são atribuídas a várias razões como a temperatura das águas, as condições do plâncton, a direcção e a velocidade dos ventos e das correntes, a navegação costeira intensiva, o exercício permanente e abusivo da pesca, entre outras. Em Portugal, a partir da década de 1920, verificou-se que no norte do país o peixe começou a ser mais abundante do que no sul. Esse facto era talvez explicado pelas diferentes técnicas de pesca. No norte sempre foi mais utilizada a traineira, caracterizada pela rapidez de movimentos e por ter um raio de acção apreciável. No sul, a técnica mais utilizada era o cerco, com uma rede mais extensa, com movimentos mais lentos e menor campo de acção 15.

A sardinha é constituída, em média, por 66,5% de água, 20% de proteínas, 10,5% de lípidos e 2,5% de substâncias minerais. O seu valor nutritivo é bastante salientável, apresentando cerca de 222 calorias por 100 gramas. Cerca de 64,33% do total de sardinha pescada entre Março e Dezembro de 1940 seria utilizada para aproveitamento industrial, o que sublinha a importância da indústria conserveira enquanto mercado de escoamento da indústria pesqueira, mais importante do que o mercado correspondente ao consumo humano 16.

Para além da sardinha, as conservas de atum constituíam um mercado apetecível para as exportações. O atum (scomber thynus) tem uma zona de distribuição própria, no território português, sendo pescado, sobretudo, no Algarve, em virtude dos movimentos migratórios que a espécie, tal como a sardinha, realiza periodicamente. O atum dirige-se para o Mediterrâneo nos meses de Abril a Junho (atum de direito), de forma a proceder à desova, possuindo nessa altura elevada percentagem de gordura, sendo maior o seu valor. Em Julho e Agosto regressa ao Atlântico (atum de revez), mas é menos apreciado e menor o seu valor, pois está magro.

O atum é rico em vitaminas A e D. Em 100 gramas de alimento fresco existem 2500 unidades de vitamina D e 1100 de vitamina A. O que se utiliza na indústria é, sobretudo, o atum de direito, que se presta a diferentes fabricos, consoante a região de onde a carne é extraída. O porto de Sesimbra era conhecido, durante o ano 1937, por ser fértil em atuns da espécie Bonitos ou serrajões. Em Abril desse ano haviam sido pescados 2.777 atuns, no mês seguinte 19.943 e, durante o mês de Setembro, 1.824 espécimes 17.

No que é respeitante aos azeites utilizados nesta indústria, até aos anos 1940 observou-se uma dependência externa desta matéria-prima. A partir dessa altura, a indústria conserveira passou a ser abastecida pela produção nacional, facto para o qual contribuiu o aperfeiçoamento da técnica de extracção e refinação. Esta indústria deveria consumir, na década de 1940, anualmente, cerca de 6.500.000 quilos de azeite de oliveira e óleo de amendoim. A aquisição desta matéria-prima era feita individualmente pelos industriais que possuíam, geralmente, contratos com os produtores.

Como podemos verificar, a indústria conserveira era de vital importância, não só enquanto indústria de exportação, mas também como indústria estimuladora de outras, como a indústria pesqueira e a indústria de produção de óleos e azeites. Alguns autores admitem que a indústria pesqueira era subsidiária da indústria conserveira, pelo menos durante a primeira metade do século XX. Contudo, tal não pode ser considerado linear, pois a realidade nos variados centros conserveiros e portos piscatórios do país se apresentou díspar. No caso de Sesimbra, na nossa opinião, não podemos considerar a indústria pesqueira como subsidiária da indústria conserveira da região, tendo em conta que a grande maioria do peixe capturado naquele porto era canalizado para o abastecimento dos grandes mercados consumidores adjacentes à capital.

15 Cf. BARBOSA, António Manuel Pinto – Sôbre a Indústria de Conservas em Portugal, Lisboa, s.n., 1941, p. 77.
16 Idem, ibidem, p. 86.
17 Idem, ibidem, p. 89. 

3. O PROCESSO DE FABRICO DAS CONSERVAS DE PEIXE 

A indústria conserveira era uma indústria de produção em série, que se desenhava num espaço aberto, onde o conjunto de tarefas se ia subdividindo e complementando. Existiam duas cadeias de operações que se complementavam, o «cheio» e o «vazio». O «cheio» correspondia à fabricação da própria conserva, enquanto o «vazio» correspondia à fabricação da lata, nas unidades que a produziam. A indústria de conservas de peixe era uma indústria sazonal, que apenas laborava quando se encontrava disponível a matéria-prima, isto é, o pescado.

A principal matéria-prima da indústria conserveira era, como sabemos, o peixe, que existia com abundância nas costas de Sesimbra, sendo a espécie mais vulgar e mais apreciada, a sardinha. Depois de longas horas de faina, o pescado era trazido para a lota, onde os fabricantes esperavam pelo leilão. Os industriais tentavam controlar o preço do peixe, tendo em conta que os armadores eram normalmente favorecidos  18. A lota funcionava de manhã e à tarde, sendo os industriais os primeiros a abastecer-se.

18 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 622. 

 

3.1.O Processo de Fabrico do «Cheio»

O pescador ou o armador, a quem pertencia o peixe, começava por pedir um preço alto pelo pescado, consoante o valor que avaliava a sua mercadoria. Se ninguém se mostrasse interessado em comprar por aquele preço, o vendedor começava a reduzi-lo a pouco e pouco até que algum dos clientes esboçasse vontade de fazer negócio. Assim começava a primeira etapa de procedimentos na indústria conserveira.

Comprado o pescado, era necessário transportar o peixe do barco para a fábrica. Para tal, era necessário apanhá-lo do porão, encher com ele os cabazes e transportá-lo até à fábrica, à cabeça, em carroças ou mesmo de burro, como acontecia em Sesimbra. Este trabalho era realizado pelos apanhadores, enchedores e descarregadores, respectivamente 19. O apanhador era o trabalhador que apanhava o peixe no barco e metia-o em cabazes que passava ao enchedor. O enchedor recebia os cabazes e despejava-os nas canastras dos descarregadores. Estes últimos, alguns deles trabalhadores da fábrica, transportavam o peixe sobre um chapéu de abas largas. Esta função era difícil e exigia alguma força e perícia 20.

19Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA – Memória e Identidades Profissionais: Reprodução de Sistemas Sócio-Técnicos. Relatório Científico Final, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, [1999], p. 44.
20 Idem, ibidem, p. 54. 

Quando chegava à fábrica, o peixe era preparado em cru. Era, primeiramente, despejado nas mesas de descabeçar pelos descarregadores, que o transportavam nas canastras. A primeira tarefa das operárias era pôr de parte a sardinha moída, separando a miúda da grande 21 e cortar a cabeça do peixe, tirar-lhe as vísceras com uma faca ou canivete e, depois, voltar a colocá-los na canastra, caso necessitasse de ir à moura. Este trabalho de descabeçar era feito por mulheres, operárias não especializadas, que executavam um trabalho fácil, mas sujo. Logo após a pesca da sardinha, os pescadores, ainda em alto mar, escorchavam-na, isto é, metiam-na em mouras, recipientes cheios de água doce onde se guardava o peixe coberto de sal, um processo designado salmonar. Se este processo não fosse efectuado em alto mar, sê-lo-ia na fábrica. Um operário colocava os cabazes na moura e temperava com sal. Após algum tempo, outro operário especializado ia verificar o tempero e tiraria o pescado da salmoura. Esta função era uma função extremamente importante, de muita responsabilidade, sempre confiada aos homens, que conheciam as proporções correctas de sal a adicionar. O transporte do peixe da moura até à mesa de engrelhar era efectuado por moços e raparigas 22.

O engrelhamento do peixe consistia em colocar as sardinhas em tabuleiros de arame estanhado, as grelhas, de modo a que os líquidos pudessem escorrer. Cada tabuleiro continha cerca de 200 sardinhas, arrumadas com cuidado para não ficarem vincadas 23. Esta função era efectuada por mulheres, operárias não especializadas, uma tarefa fácil que, contudo, exigia algum desembaraço. O peixe engrelhado era, depois, lavado por uma operária. Depois do engrelhamento vinha a secagem. As grelhas eram colocadas em carros que se moviam sobre carris ao longo da fábrica. Se houvesse bom tempo, a sardinha era seca ao ar livre, em padiolas. Se não, a sardinha era seca em corredores onde existia uma ventoinha accionada a vapor 24.

Após a secagem passava-se à cozedura ou à fritura, conforme o tipo de conserva. A pior conserva cozia-se e a melhor fritava-se 25, durante o inicio do século XX. Neste processo, normalmente, só laboravam homens, operários efectivos e especializados, conhecidos por trabalhadores ou moços, desenvolvendo um trabalho de grande responsabilidade por requerer afinada atenção aos tempos de cozedura. A cozedura efectuava-se, metendo os carros, numa espécie de estufa de ferro com 2 metros de altura, mais tarde substituído pelo autoclave, produzindo uma caldeira o vapor que penetrava na estufa através de válvulas, mantendo o pescado à temperatura de 100º, entre 5 a 15 minutos. Era, depois, necessário arrefecer o peixe, colocando as grelhas em mesas.

21 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 622.
22 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 44.
23 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 622.
24 Idem, ibidem, p. 623.
25 Idem, ibidem, p. 623. 

Fig.3: A primeira operação consistia no descabeçamento e na remoção das vísceras do peixe na Fábrica Nero & Cª (Suc) Ldª. (Matosinhos, s.d.) [APJN].

Fig.4: Fornos autoclaves da Nero & Cª(Suc) Ldª. (Sesimbra, s.d.) [APJN]. 

Fig.5: Operárias da Primorosa a encherem as latas de conservas com atum (Sesimbra, s.d.) [APJA]. 

Fig.6: Latas empilhadas após o processo de cravação, na fábrica da Pereira, Neto & Cª. (Sesimbra, s.d.)[APJA]. 

Para a fritura, as grelhas eram retiradas dos carros e assentes sobre caixilhos metálicos existentes no interior de uma caldeira que continha água no fundo e, por cima dela, óleo. Ao introduzir vapor na caldeira, que fazia o óleo subir e ferver, iniciava-se o processo de fritura. Este trabalho necessitava da assistência de trabalhadores altamente experimentados, visto o tempo óptimo de fritura variar conforme a espécie piscícola e o estado de conservação. Após a fritura nas caldeiras, o peixe contido nas grelhas era transferido para tabuleiros de folha colocados de forma inclinada e daí para os grelheiros, onde era eliminado o excesso de óleo 26, e onde arrefecia.

Após estes dois processos alternativos, era iniciada a enlatagem. As mulheres posicionavam-se junto às mesas de enlatar, perto das latas vazias. Tiravam as sardinhas das grelhas, cortavam-lhe a cauda e as barbatanas, tentando acondicioná-la, ou arrumá-la, nas latas, equilibrando o seu tamanho. O trabalho de enlatagem era, normalmente, realizado por uma mulher, operária não especializada, que desempenhava uma tarefa fácil, mas que exigia alguma noção de preceito. Vasco Pulido Valente observa a existência de dois processos de arrumar a sardinha: o arrumar em branco e o arrumar em azul 27. O «arrumar em branco» acontecia quando o ventre branco da sardinha ficava para fora, o que correspondia a uma conserva de melhor qualidade, enquanto o «arrumar em azul», dava-se quando era o dorso azul da sardinha que ficava assim localizado.

Após este processo, a lata era vistoriada por uma funcionária especializada, de modo a controlar a sua qualidade, verificando se a lata estaria em óptimas condições de fabrico. Depois, a lata era transportada em pilhas em direcção às mesas de azeitar, num processo denominado de «levantar lata», efectuado por operárias especializadas, capazes de levantar cerca de 30 latas simultaneamente. O trabalho de azeitar, isto é, o enchimento da lata com azeite, com ou sem condimentos, como a calda de tomate, pickles, cravo-da-índia e folha de louro era, durante os primeiros anos, efectuado por uma operária especializada, a «azeitadeira», numa operação que demorava cerca de 3 horas. Mais tarde, algumas fábricas passaram a utilizar máquinas semi-automáticas ou automáticas para auxiliar a execução deste processo.

26 VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 623.
27 Idem, ibidem, p. 623. 

O próximo passo consistia em esterilizar a conserva, segundo o método Appert. Primeiro, colocavam-se os tampos nas latas, fechavam-se e isolavam-se do meio ambiente com o auxílio de uma cravadeira mecânica ou automática. Após este procedimento, uma operária, denominada de «visitadeira», inspeccionava a lata, verificando se não tinha rupturas. Esta operária especializada, segurava a lata com as mãos percorrendo com os dedos as costuras da cravação, de modo a verificar se a caixa estava hermeticamente fechada. Este trabalho era importantíssimo porque uma lata rota correspondia a uma conserva estragada. Por fim, procedia-se à esterilização propriamente dita, nos cofres de esterilização, onde eram colocadas as latas por um operário, permanentemente atento ao autoclave 28.

28 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 45. 

Posteriormente, procedia-se ao armazenamento, controle de qualidade e expedição da mercadoria. No armazém, a lata era limpa por uma rapaz, o moço, ou uma jovem aprendiza. Depois era batida por uma mulher ou um operário do armazém, um operário especializado que, pelo som, verificaria se estava bem fechada ou «opada» com ar. Por fim, as latas eram encaixotadas por um homem ou uma mulher, de forma limpa e certa, cabendo 25 a 50 latas por caixote. Os caixotes eram, depois, fechados de forma correcta, e depois aramados à volta pelos funcionários do armazém. Por fim, o produto era rotulado e datado e era expedido através de vários tipos de transporte.

Fig.7: Processo de Armazenamento das Latas na Fábrica A Primorosa (Sesimbra, s.d.) [APJA] 

3.2.O Processo de Fabrico do «Vazio»

Até agora, estivemos a tratar do processo de fabrico da conserva em si, o chamado «cheio». Contudo, falta-nos abordar um outro circuito do fabrico da indústria conserveira, isto é, o fabrico das latas, conhecido como o «vazio». Na verdade, no ambiente fabril, existia uma distinta separação entre estas duas cadeias operatórias 29.

Nas fábricas de maior dimensão, o «cheio» ficava normalmente no piso térreo do edifício, cujo fabrico, acondicionamento armazenamento da conserva necessitava de um fácil acesso a matérias-primas e a utilização de águas. Por seu turno, o «vazio» situava-se num andar cimeiro ou numa dependência contígua, visto a sua localização não precisar de ser propriamente estratégica. Na verdade, tudo dependia do tamanho da fábrica e da envergadura do investidor. As grandes fábricas possuíam oficinas exclusivas para a fabricação da lata, apetrechadas com todos os equipamentos necessários para a sua produção.

Por seu turno, nas empresas mais modestas, em que os investidores pressentiam constantemente o risco de falência, observava-se uma retracção do investimento, comprando, muitas vezes, as latas a outros produtores, muitas vezes, apenas na altura em que existia peixe para a laboração. As grandes empresas conserveiras ganhavam com esta situação dos empresários mais modestos, pelo que nos tempos de defeso, quando não havia peixe para executar a linha de produção do «cheio», aproveitavam para continuarem a produzir a lata, para consumo interno e para venda.

Fig.8: Lata para conserva de peixe, em que T corresponde ao tampo, F ao fundo e P à patilha (retirado de COSTA, Avelino Poole da, Inquérito à Indústria de Vazio das Fábricas de Conservas de Peixe e à Indústria de Latoaria Mecânica, s.l., s.n., 1946, p. 9)

Fig.9: Tesoura de Guilhotina da Casa H. Sudry & Filhos, de Nantes (retirado de COSTA, Avelino Poole da, op. cit., p. 25)

As latas eram confeccionadas em folha-de-flandres, material laminado e estanhado, composto por ferro e aço, que chegava a Setúbal em caixotes cintados de ferro. Quando os caixotes que continham a folha se abriam, os rapazes limpavam e batiam as folhas com maços de madeira para obterem uma superfície lisa e regular 30. Em seguida, uma máquina marcava as folhas para a estampagem, cortando-lhes os lados em intervalos certos.

Depois de cortadas, as folhas iam em pilhas para uma estufa, onde perdiam a humidade, e daí seguiam para um prelo que gravava as letras e os desenhos que constituíam a imagem de marca de cada empresa. Eram, depois, transportadas em cestos, para um forno de altas temperaturas, onde recebiam um tratamento que lhes permitia resistir ao forte aquecimento a que estariam sujeitas durante o processo de esterilização. Neste fabrico, para além da folha-de-flandres, podia-se utilizar a folha branca 31, não envernizada, que não era sujeita a estampagem, identificando-se o produto com um rótulo colado antes da expedição da mercadoria.

Após este tratamento inicial, começava-se a confecção da lata, cortando e enformando a folha-de-flandres. As folhas-de-flandres eram cortadas em tiras finas e largas, utilizando-se tesouras de guilhotina ou rotação, impulsionadas à mão, a pedal ou a motor 32. Das tiras largas nasceriam os fundos e as tampas da lata, enquanto das tiras finas construir-se-iam as suas paredes laterais, também conhecidas como «corpos». Nas tiras largas eram, depois, abertos furos, tantos quantos os fundos e as tampas a extrair, enquanto uma espécie de prensa manual de corte e cunhagem separavam-nos e gravavam-lhes alguns relevos.

As tiras mais estreitas enformavam-se num molde – a enformadeira ou dobradeira – e, do mesmo modo que as tiras mais largas, sofriam a acção de cunhagem que, para além de lhe imprimir relevos, lhe revirava os bordos, essenciais para a soldagem das tampas e dos fundos. As tampas ajustavam-se á lata utilizando-se um cinzel e um martelo 33.

No início do século XX, a soldagem ou a soldadura, era feita manualmente por operários especializados, utilizando um ferro de soldar, alimentado a gás. Era esta a última operação da produção do «vazio». Produzida a partir do chumbo e do estanho, a solda unia, em primeiro lugar, o corpo da lata e só depois, o corpo à tampa.

Caso não houvesse peixe, as latas eram limpas e armazenadas: era a soldagem «em vazio». Contudo, caso se estivesse numa época de grande abundância de peixe, as latas chegavam ao soldador, já com o peixe arrumado. Estes começavam por colocar os fundos nas latas e, após prepararem um número suficiente, pegavam no ferro de soldar, também conhecido por «carocha», e soldavam o fundo da lata 34. Era a soldagem «em cheio». Esta opção final de se soldar o fundo da lata faz sentido se pensarmos que o cliente daria maior atenção à parte superior do peixe, visível quando se abria a tampa da lata, pelo que se a parte inferior, contígua ao fundo ficasse um pouco esfolada pela solda, não teria qualquer importância na imagem do produto final. Depois de fechadas pelo processo de soldadura, as latas passavam pelo processo de esterilização, de que já falámos anteriormente, e, após o seu arrefecimento, eram esfregadas com serradura de madeira, de forma a remover possíveis vestígios de gordura.

Fig.10: Duas cravadeiras pertencentes à Fábrica Nero & Cª (Suc) Ldª, de Sesimbra (Sesimbra, s.d.) [APJN]. 

Fig.11: Uma montadeira de tiras para formar e soldar os corpos das latas (retirado de COSTA, Avelino Poole da, op. cit., p. 27). 

A partir da primeira década do século XX começou-se a introduzir uma inovação tecnológica na indústria conserveira: a cravadeira. A cravadeira cravava os tampos das latas, passando o trabalho de soldagem, a este nível, a ser desnecessário, tal como ao nível da montagem de tiras para fazer os corpos das latas, irremediavelmente, substituída por uma máquina, a montadeira. O trabalho de soldar o corpo da lata ao tampo foi, também, substituído por uma soldadeira, ou máquina de soldar. Estas inovações levaram ao despedimento de uma grande massa de soldadores, a um surto de desemprego e a greves e lutas sociais. Esta etapa de modernização era um símbolo de progresso, costumando, a cravadeira, ocupar um lugar de destaque no espaço fabril, ladeada por aparadores, mesas que serviam de apoio à colocação das latas. Apesar de não ser um aparelho de grande porte, a cravadeira evidenciava-se porque era alta e estava localizada num espaço livre e desimpedido, permitindo aos trabalhadores movimentarem-se livremente. A partir dos anos 1920, a cravadeira mecânica seria substituída pela cravadeira automática, passando este trabalho, que anteriormente era executado por homens, a ser executado por mulheres.

Ao longo do decorrer da primeira metade do século XX outros novos equipamentos foram sendo utilizados na indústria conserveira, de modo a simplificar a produção. Foi o caso da estanhadeira, que servia para dar o banho da solda nos topos da folha-de-flandres, litografada ou não, que depois seria cortada nas respectivas tiras.

A estanhadeira circular, por seu turno, serviria para colocar a solda nos rebordos dos corpos. A solda era contida num prato circular com movimento de rotação num estado de fusão devido ao aquecimento efectuado pela parte inferior do prato. Um operário colocava e retirava manualmente os corpos no prato de maneira a cobrir pelo lado de fora o rebordo interior do corpo com uma camada de solda uniforme. Tal conseguia-se porque a estanhadeira possuía na parte inferior do banho, uma placa de nível plana e que se podia regular em altura 35.

29 Cf. CENTRO DE ESTUDOS DE ETNOLOGIA PORTUGUESA, op. cit., p. 45.
30 Cf. VALENTE, Vasco Pulido, op. cit., p. 624.
31 Idem, ibidem, p. 624.
32 Idem, ibidem, p. 624.
33 Idem, ibidem, p. 624.
34 Idem, ibidem, p. 625.
35 Cf. COSTA, Avelino Poole da, Inquérito à Indústria de Vazio das Fábricas de Conservas de Peixe e à Indústria de Latoaria Mecânica, s.l., s.n., 1946, pp.56-57. 

As rebordadeiras-tamponadeiras faziam os rebordos dos corpos e tamponava-os simultaneamente, o que não acontecia com as rebordadeiras que efectuavam, apenas a primeira operação. A máquina de colocar a borracha, por seu turno, servia para colocar as juntas plásticas de borracha no fundo destinado a ser cravado ou no tampo, quando se tratava de lata cravada dos dois lados. Numa máquina com um prato com 6 tampões, que podiam ser rectangulares, redondos ou elípticos, conforme a lata que se desejasse, como a que está representada abaixo, o operário colocava a anilha de borracha e os fundos. Pelo movimento circular do prato da máquina, cada tampão colocar-se-ia sucessivamente debaixo da cabeça da máquina, que estava aquecida, e através de um movimento vertical, o mandril apertava a borracha ao fundo com a pressão necessária. Esta máquina colocava a borracha e simultaneamente fazia um rebordo no tampo para facilitar a cravação posterior 36.

Fig.12: Soldadeira automática para soldar o tampo ao corpo da lata (retirado de COSTA, Avelino Poole da, op. cit., p. 33). 

Fig.13: Estanhadeira (retirado de COSTA, Avelino Poole da, op. cit., p. 33). 

Fig.14: Rebordadeira-Tamponadeira da Casa Lubin & Weiffenbach (retirado de COSTA, Avelino Poole da, op. cit., p. 33).

Fig.15: Máquina de Colocar Borracha (retirado de COSTA, Avelino Poole da, op. cit., p. 34). 

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