A Embalagem de Conservas na Conserveira Pinhais, por Sara Monteiro - CAPÍTULO 01

CAPÍTULO 01

CONTEXTUALIZAÇÃO DA EMBALAGEM DE CONSERVAS DE PEIXE

A conservação de alimentos

O processo de conservação de alimentos por Nicolas Appert

A indústria conserveira

A indústria conserveira em Matosinhos

O porto de Leixões

Os conflitos mundiais e a indústria conserveira portuguesa

A CONSERVAÇÃO DE ALIMENTOS

A necessidade de aprovisionamento, e consequente preservação de alimentos cedo terá sido compreendida pelo homem. 

“Já Hesiodo, que viveu entre os séculos nôno e oitavo antes de Cristo, fala na sua ‘Teogonia’ de carne conservada pelo sal; e Herodoto, pouco mais ou menos da mesma época, também se refere à fruta conservada para o inverno, relatando que Ciro empreendeu as suas campanhas bem aprovisionado com víveres, muitos dos quais conservados em sal”.(Parreira, 1940, p.23)

Antigos métodos de conservação, com o recurso a técnicas simples, como a secagem, a fumagem e a adição de sal ou açúcar, prolongavam a duração dos alimentos pela criação de um meio desfavorável para as bactérias, não conseguindo no entanto erradicá-las. Na realidade as principais causas de deterioração dos alimentos ocorrem por acção do contacto com o ar (oxidação) ou pela falta do mesmo (fermentação) assim como pela putrefacção que consiste na decomposição dos alimentos pela acção de bactérias. “Durante toda a Idade Média e os tempos modernos se conservam os alimentos por processos empíricos, sem que a intervenção da ciência explicasse a razão de ser dos métodos empregados e permitisse a melhoria técnica.” (Parreira, 1940, p.24) 

A destruição das bactérias por via da esterilização dos recipientes aquecendo-os a temperaturas elevadas durante um longo período de tempo e a preservação dos alimentos sem a introdução de novos micro organismos esteve na origem do moderno processo de fabricação de conservas. Este princípio foi utilizado primeiramente por Nicolas Appert em 18021, embora a explicação científica da teoria da esterilização tenha ocorrido somente em 1865 por Louis Pasteur o que levou ao aperfeiçoamentos da técnica, criando também a ciência da microbiologia e o termo ‘pasteurização’. (Tato, 2008) 

1 Muitos citam que a descoberta foi feita em 1804. No entanto, segundo a ‘Association Internationale Nicolas Appert’ (A.I.N.A.) as suas experiências começam em 1795, sendo que este cria a primeira fábrica em Massy em 1802. Logo decidimos por esta data, que entendemos como a data final das suas experiências.

01 Exemplificação de uma ânfora, usadas para transportar e armazenar vinho. (n.d.)

02 Exemplificação de uma embalagem de chá. (n.d.)

03 Exemplificação de uma embalagem de conservas. (n.d.)

O PROCESSO DE CONSERVAÇÃO DE ALIMENTOS POR NICOLAS APPERT

“Em 1822, a ‘Sociedade de Incitações da indústria nacional’, em França, concedia solènemente o título de Benfeitor da Humanidade ao creador do processo das conservas alimentares.” (“Nicolas Appert2 Benfeitor da Humanidade”, 1937, p.1)

Existem várias versões, quanto ao início da conservação de alimentos em recipientes. José Pires (2005) refere que foi na sequência de uma necessidade militar, aliada a um incentivo monetário, que a descoberta de um processo que permitisse a conservação de alimentos terá sido estimulada. Assim, no início das guerras napoleónicas, em 1795, o Governo Francês, ofereceu um prémio de 12.000 francos a quem resolvesse, em condições de salubridade, o problema de abastecimento de um exército em campanha pela Europa.

Por outro lado, a ‘Association Internationale Nicolas Appert’, alega que Nicolas Appert, tinha interesses comerciais na questão da conservação, que até finais do século XVIII, era realizada pela preservação em álcool, vinagre, gordura ou açúcar, procedimentos dispendiosos que não garantiam a preservação integral dos alimentos. Fascinado pelo fogo, que utilizava diariamente para elaborar os seus xaropes, Appert, apercebe-se que este deve estar na base da conservação.Durante anos, prosseguiu com o seu estudo, experimentando vários métodos baseados no aquecimento de produtos alimentares, instalando para esse fim, em 1795, um atelier em Ivry sur Seine, Frambour.Crê-se que nesta época, ele terá descoberto finalmente que mergulhando os alimentos em água, à temperatura da sua ebulição, quando colocados previamente numa garrafa de vidro espesso, como as de champanhe, lacrados com tampa de cortiça e cera (Brandão, 2010), estes alcançavam a conservação por tempo indefinido. (A.I.N.A., 2010)

Colocando em prática as suas descobertas a uma escala industrial, em 1802, instala nas imediações de Paris, em Massy, aquela que é por alguns considerada, a primeira fábrica de conservas (A.I.N.A., 2010). A fábrica, rodeada por campos cultivados, empregava cerca de 50 funcionários. Nesta fase, trabalhando com recipientes de vidro e continuando a utilizar as garrafas de champanhe, terá requisitado a um vidreiro garrafas com gargalos mais largos que o habitual para facilitar a introdução dos alimentos. (Brandão, 2010) 

Em 1806 ele apresenta pela primeira vez ao público 52 garrafas de conservas, aquando a exposição dos produtos da indústria francesa (…) Na mesma época a marinha testa as suas conservas, e após um retorno positivo, ele decide informar o governo e solicitar um preço pelas mesmas. A 15 de Maio de 1809 ele envia ao ministro do interior Montalivet, uma carta informando a sua descoberta. Na sua resposta, a 11 de Outubro o ministro apresenta-lhe duas opções: ou regista uma patente, ou oferece a sua descoberta a todos e recebe um prémio do governo, ficando, no entanto, encarregue de publicar o seu método de conservação. Nicolas Appert opta pela segunda opção (…) Em 1810 o ministro notifica Appert indicando que a comissão acordou-lhe um preço de 12.000F. Em Junho ele publica o seu livro ‘A arte de conservar durante muitos anos todas as substâncias animais e vegetais’, com uma tiragem de 6000 exemplares. É de mencionar que três edições se seguiram, em 1811, 1813 e 1831, traduções foram também publicadas em países como a Alemanha, Inglaterra, Bélgica e América… (A.I.N.A., 2010, tradução livre)

Existem várias versões sobre o início do enlatamento das conservas. Algumas afirmam que foi o próprio Appert que deu início ao uso das latas de ferro. No entanto, segunda a A.I.N.A. ficamos a saber que em Inglaterra, já se fabricavam recipientes em ferro estanhado. Esta inovação terá sido possível, pois já desde 1810 que em Inglaterra é aplicado o procedimento de Appert, graças a um francês que terá levado para lá a primeira edição do seu livro. O próprio Appert tomou conhecimento desta inovação quando se refugiou em Inglaterra durante a invasão francesa de 1814, época em que o seu atelier em Massy foi saqueado. Apesar de Appert não utilizar o ferro estanhado3 nos seus recipientes, pois em França este material era considerado de baixa qualidade, no seu regresso retoma as suas experiências e aperfeiçoa as suas embalagens, para tal ele mesmo se encarrega de formar os seus empregados. 

Mas, uma outra versão, aponta no sentido de Peter Durand que, em 1810, terá recebido uma patente do Rei George III pela ideia de preservar comida em “garrafas ou outros vasilhames de vidro, potes ou recipientes de estanho, ou outros materiais adequados”. (Brandão, 2010)

Estes métodos terão dado origem, às mais diversas formas de conservar alimentos e estarão na base de muitos dos produtos que passaram a ser conservados industrialmente.

“Uma nova indústria surgia: a indústria do recipiente metálico, que rapidamente se tornou “a lata””. (Pires, 2005, p. 94).

3 Segundo o periódico Conservas de Peixe N.66 Setembro de 1951, sob o artigo intitulado“O 110º aniversário da morte de Appert”, o autor dá-nos a conhecer que as primeiras latas utilizadas pelos ingleses eram de folha de ferro forjado estanhado, e que futuramente a base da folha de flandres moderna (1951) passa a ser o aço. Segundo Joel Teixeira, funcionário na secção de litografia da empresa Rio Caima S. A., a base da folha de flandres actual continua a ser um “aço ferroso”.

04 Nicolas Appert (1749-1841), autor do método de conservação por esterilização

05 «Como é que a França contribuiu para o jantar de hoje» Artigo do New York Times 23.11.1919, publicado em 1920. 

© Collection Viollet. 

A INDÚSTRIA CONSERVEIRA

O procedimento de Appert foi rapidamente disseminado, impulsionando a fundação de uma nova indústria, que segundo Parreira (1940), se tornaria de importância fundamental para todos os países.

As primeiras fábricas de conservas pelo nôvo sistema estabeleceram-se perto de Paris, de Londres, de Francfort sôbre o Mena, de Darmstadt, assim como na Irlanda e na Escócia. Em Nantes, em 1824, cria-se a primeira fábrica de sardinha em azeite, e em 1828 em Douarnenez já existia outra. Os frânceses propagam em seguida, a nova técnica: em 1841 monta-se a primeira fábrica na Noruega sob a direcção de um cozinheiro francês; é um missionário, também francês, quem fabrica as primeiras conserva japonêsas, em 1871.

Nos Estados Unidos produziam-se conservas de salmão, lagôsta e outras dêsde 1819; mas é apenas em 1875 que, no Maine, se enlatam pela primeira vez os peixes que apareceram nas costas daquêle estado americano, e são diferentes da sardinha europêa, embora sejam impròpriamente desejadas como ‘sardinhas’. (Parreira, 1940, p.25)

Quanto ao desenvolvimento da indústria de conservas de peixe em Portugal, segundo Atalaya (1980), a sua origem teve por base a situação geográfica privilegiada do país, que com a abundância de peixe ao longo dos 860 quilómetros de costa continental, sobretudo sardinha e atum, cedo levou a que fosse procurada uma solução para os excedentes da pesca. Assim, à conservação através do sal seguiu-se a conservação por esterilização de Appert, introduzida em Portugal em 1865. 

Foi neste mesmo ano que surgiu a primeira fábrica de conservas no país, em Vila Real de Santo António, direccionada à preservação de atum. Quinze anos depois, em 1880, segue-se uma fábrica de preservação de sardinha em Setúbal, por iniciativa de um industrial francês, que iniciou este empreendimento neste território, devido à falta de peixe sentido nas costas da Bretanha. (Parreira, 1940). Ainda nesse ano iniciaram actividade fábricas de conserva de sardinha em Espinho e no Algarve. 

Desde então a indústria desenvolveu-se rapidamente por forma que, em 1884, existiam 18 instalações industriais atingindo, em 1886 o número já significativo de 76 fábricas, ocupando cerca de 5.000 operários, com uma produção estimada de 10.000 toneladas destinadas, quase exclusivamente, aos mercados externos. (Atalaya, 1980, p.2) 

Para melhor perceber o panorama geral da indústria no país, a análise realizada por Sebastião Atalaya, Director de Serviços do ‘Instituto Português de Conservas de Peixe’ (I.P.C.P), na década de 1980 dentro do nosso conhecimento, prova-se essencial. Assim, segundo ele, desde a sua implementação a indústria vai crescendo, o número de fábricas vai aumentando bem como o volume de exportação, atingindo em 1911 as 20.000 toneladas e em 1919 cerca de 40.000. No entanto, em 1925 a indústria entrou em crise, a quantidade de exportação desce para 31.500 em 1926, e o número de fábricas ronda as 400 unidades. A partir desta data esta quantidade de fábricas vem a decrescer até 1939, com 175 unidades de ‘azeite e molhos’4 progredindo até 1964 com 181 fábricas, ano em que tendo em conta as 87 salgas existentes no país, se atingiu uma produção de 85.633 toneladas. 

A indústria conserveira, constituída por unidades de conservas de peixe em azeite, molhos, salgas, congelados e conservas diversas, espalha-se ao longo da costa continental e, presentemente, (1980) estão em laboração 83 fábricas do sector de azeite e molhos, 33 salgas, 50 peixe congelado e 6 de conservas diversas. (Atalaya, 1980, p.3)

4 Expressão utilizada por muitos escritores para se referirem a conservas pelo método de esterilização, de modo a diferiencia-las das conservas por salga ou salmoura.

06 Espécimen de um recipiente em vidro para conservas da autoria de Nicolas Appert. (n.d.)

07 Embalagens de Appert, fabricadas em 1892. Os legumes são alojados em frascos de vidro espesso fechados por uma rolha de cortiça, forrada por uma cápsula metálica

Assim, tendo sido uma indústria iniciada no sul do país, podemos perceber que houve uma proliferação pelo continente, nomeadamente junto à costa, destas unidades fabris, que chegaram a rondar as 400 unidades, onde se destacam os centros de Matosinhos, Setúbal, Portimão e Vila Real de Santo António, com uma maior concentração de unidades transformadoras. O intenso aparecimento e constante crescimento de fábricas rapidamente atingiu o seu limite, atingindo as cerca de 400 unidades, como já foi mencionado, em 1926, descendo, cinquenta e quatro anos depois, em 1980, para as 172 unidades. Também inferimos que se trata de uma indústria dirigida à exportação, factor que se mantém na actualidade. 

Ainda quanto aos centros conserveiros do país, de acordo com Atalaya (1980), é no norte, nos centros de Matosinhos e Póvoa de Varzim que se verifica um maior número de indústrias, com respectivamente, 26 fábricas no primeiro caso e 9 no segundo, de conservas em azeite e molhos. No entanto, geograficamente o poder desta indústria, nem sempre foi assim distribuído. Fernandes (n.d.) explica que apesar da primeira geração, que situa entre 1880 e as primeiras décadas de novecentos, se ter caracterizado pela produção predominante na região centro (os centros portuários de Lisboa, Setúbal, Sines, Peniche, Nazaré) e na região sul do país (Lagos, Portimão, Olhão e Vila Real de Santo António), foi a partir de meados da década de trinta que se começou a estabelecer uma clara hegemonia na região norte, em parte devido à sentida escassez de sardinha nas costas mais a sul.

Este novo dinamismo centrou-se em Matosinhos e foi assegurado pelo porto de Leixões, primeiro porto de pesca do país. A cidade de Matosinhos passa então a ser considerada, a partir de 1937, como o principal centro de uma indústria com uma característica maioritariamente exportadora, no limiar da Segunda Guerra Mundial. (Fernandes, n.d.)

08 Lopes, Coelho Dias, fundada em 1899, foi na época denominada ‘Real Fábrica de Conservas de Matosinhos’, tendo sido, na realidade, a primeira fábrica de conservas em molhos Matosinhense.

A INDÚSTRIA CONSERVEIRA EM MATOSINHOS

O desenvolvimento industrial do concelho de Matosinhos, ocorrido a partir dos finais do século XIX, deve-se, como aconteceu nos restantes centros conserveiros do país, à sua localização geográfica, no litoral, mantendo uma proximidade com um grande centro urbano, o Porto, à abundância da matéria-prima e à facilidade existente na exportação do produto. (Cordeiro, 1989)

Segundo Tato (2008), a indústria conserveira era uma actividade exercida no concelho de Matosinhos já desde 1880, à base da salga ou salmoura, à qual se seguiu a conservação por esterilização, denominada por muitos como ‘conservas pelo azeite e molhos’. 

As primeiras fábricas de conservas no concelho são a Lopes, Coelho Dias (1899) e a Brandão Gomes (1903), filial da fábrica de Espinho com o mesmo nome cuja fundação data 1894. “Estas constituíram sem dúvida duas das mais importantes unidades industriais portuguesas daquele sector, facilmente testemunhado pela capacidade, qualidade e diversidade da sua produção, organização empresarial e apetrechamento tecnológico, e ainda, pela sumptuosidade das suas instalações fabris.” (Cordeiro, 1989, p.20) Assim, até aos inícios da I Guerra Mundial a moderna indústria conserveira em Matosinhos estava praticamente reduzida a estas duas unidades fabris, que beneficiavam da inexistência de concorrência na região. 

É importante mencionar que demos relevância a material referente à indústria de conservas de peixe, dado o tema em estudo, mas não podemos esquecer que o método de Appert não era válido somente para estes alimentos. Na realidade, a primeira geração de fábricas de conservas, como foi o caso da Lopes, Coelho Dias e a Brandão Gomes, não se limitaram ao fabrico de peixe, detendo conservas variadas, como de carne e vários vegetais. Produziam também molhos, picles, azeite, vinagre entre outros produtos. Esta primeira geração de fábricas apresentava esta característica particular, que não vai surgir em nenhuma das unidades que se vão constituir futuramente. (Cordeiro, 1989) 

“As dificuldades provocadas pela concorrência no comércio de exportação, o aumento dos custos de produção, e uma lenta resposta do mercado nacional, obrigaram a uma especialização da produção na conserva de peixe, especialmente das espécies mais abundantes.” (Cordeiro, 1989, p.23) Por esta ordem de ideias, as unidades industriais que surgem no pós-guerra vão dedicar-se exclusivamente ao fabrico de conservas de peixe, acabando por suceder o mesmo às duas fábricas já existentes.

09 Representações de embalagens de alguns produtos comercializados pela Lopes, Coelho Dias. A variedade de conservas, característica das fábricas mais antigas, está presente nos títulos de rótulos como: ‘conservas pecego’, ‘queijo da serra da estrela’, ‘massa de tomate’, ‘rola’, ‘lombo de porco’, ‘robalo’, entre outros.

O PORTO DE LEIXÕES

“No século XIX vai-se dar em Matosinhos a maior construção de engenharia, no panorama nacional, o Porto de Leixões” (Galego citado por Couto, 2012, p.18)

Cleto (1998) in ‘Porto de Leixões’, começa por explicar a origem do nome Matosinhos antes designado por Matesinus, dando-nos a conhecer uma possível explicação para o topónimo baptizado pelos romanos aquando a sua ocupação do território. Assim, composta por ‘Mate’ que deriva de ‘Amato’ personagem mitológica, filho de Hércules, e por ‘sinus’ que por sua vez significa recorte no litoral, côncavo na costa, um porto de abrigo natural. Esta explicação parte do conhecimento de que os romanos tinham por hábito baptizar locais de interesse geo-estratégico com nomes de divindades, heróis ou até mesmo imperadores. Depreendemos que o local já há muito era conhecido pela sua geografia que fornecia um porto de abrigo natural mesmo antes da construção do Porto de Leixões, estando desde cedo ligado à região de Matosinhos. 

Na verdade foi na condição de porto de abrigo e não como catalisador da indústria piscatória que o porto de Leixões foi edificado, pois não era fácil, particularmente à burguesia portuense, abdicar do porto do Douro.

Durante séculos a cidade habituara-se a desenvolver a sua actividade comercial de uma forma particularmente privilegiada, quase cúmplice, com o rio. (…) É nas suas zonas ribeirinhas que encontramos as principais estruturas económico-comerciais da cidade. E tal é válido para todo o século de Oitocentos. A bolsa, a alfândega, a feitoria inglesa, as sedes e armazéns das principais empresas comerciais do burgo… E, na segunda metade do século XIX, em nítida articulação com os cais fluviais, é também a fixação industrial que vai moldar e estreitar uma vez mais a ligação da cidade com o seu rio. Neste contexto, seria possível à burguesia do Porto de então aceitar, de uma forma pacífica, a transferência do seu mundo comercial e portuário do Douro para Leixões?A resposta foi a de um retundante não. (Cleto, 1998)

No entanto, os perigos mantinham-se e os acidentes sucediam-se. Foi somente em 1852, após o naufrágio do vapor ‘Porto’ onde faleceram 66 pessoas que o governo nomeia uma comissão a fim de encontrar propostas à resolução do problema, onde Leixões se mostra como a solução promissora para a construção do porto de abrigo. “Passados 32 anos, em 1884, foi fixada a primeira pedra que daria origem ao Porto de Leixões” (Couto, 2012, p.18)

10 Construção da doca nº1 do porto de Leixões. (n.d.)

11 Postal do porto de Leixões, anos 60.

Segundo Cleto (1998) em Fevereiro de 1895 estavam dados por concluídos os trabalhos da construção do porto de abrigo, persistindo ainda a necessidade de o transformar num porto comercial. 

O número de navios que, como vimos, ainda durante a sua construção se socorreu de Leixões, cresce de uma forma esmagadora desde então. Os 409 navios entrados no porto em 1893 ascenderiam, dez anos depois, a 665. Duas décadas mais tarde, em 1913, o seu número mais do que duplicara (876 navios). E em 1926 o Douro já só movimentava 22% do tráfego do conjunto portuário. (Cleto, 1998)

O apego aos ancoradouros do Douro resiste e só com a edificação de barragens de aproveitamento hidroeléctrico no rio, é que no século XX é condenada a sua navegabilidade. “O Douro, como porto comercial, desapareceria durante as duas décadas seguintes. E até embarcações características, como os barcos rabelos e os rabões carvoeiros, são transformados em elementos turísticos e decorativos.” (Cleto, 1998)

O porto ainda carece de transformações de modo a estar a par das exigências da sua condição recentemente adquirida. Os trabalhos persistiram, apesar das interrupções geradas pela I Guerra Mundial e subsequente falta de recursos financeiros, o porto entra terra adentro invadindo o estuário do Leça e em 1932 foi iniciada a construção da doca nº1 inaugurada em Fevereiro de 1940. 

A expansão do porto continua e a zona envolvente foi alvo de um rápido desenvolvimento, atraindo pescadores de outras regiões e favorecendo deste modo a indústria conserveira. De acordo com Cordeiro (1989), após o primeiro pós-guerra, o “surto industrial” atinge consideráveis proporções com a progressiva instalação de novas fábricas conserveiras no concelho de Matosinhos. Apesar da construção do porto de Leixões, da existência de unidades industriais de apreciáveis dimensões, como as fábricas de conservasLopes, Coelho Dias e Brandão Gomes, foram estas novas unidades fabris que promoveram a expansão industrial da região.

OS CONFLITOS MUNDIAIS E A INDÚSTRIA CONSERVEIRA PORTUGUESA

É nas vésperas da Primeira Grande Guerra que Portugal ocupa o lugar de principal produtor mundial de peixe, destacando-se a exportação de atum e sardinha. (Cordeiro, 1989) A guerra acabou por ter um efeito promotor da indústria de conservas, gerando condições anormais de procura, resultando num aumento de consumo do produto, factor que gerou o crescimento de unidades fabris. Porém, o aumento quantitativo da produção foi aliado a uma diminuição da qualidade dos produtos. Assim, muitas das empresas que surgiram neste período para satisfazer a enorme procura, viram o seu encerramento prematuro, por não conseguirem garantir o mínimo de requisitos necessários que lhes permitissem sobreviver, uma vez terminado este período excepcional.

Durante este período, a indústria portuguesa de conservas adquiriu uma dimensão para a qual não estava devidamente preparada. Grande parte dos problemas com que se vai defrontar já na década seguinte resulta das condições como se processou o crescimento do sector no período da guerra e nos anos que lhe seguiram. (Cordeiro, 1989, p.28)

Segundo Cordeiro (1989), é neste período que se verifica a deslocação da indústria para o norte do país, nomeadamente em Matosinhos. O desaparecimento de peixe das costas algarvias aliado ás dificuldades que a indústria do centro de Setúbal começa a sentir, vítima do ‘boom’ verificado durante o período de guerra, são os responsáveis pelo rápido desenvolvimento da indústria em Matosinhos. Podemos ainda fixar o ano de 1924 como o início da primeira grande crise da indústria, tendo como principal causa a diminuição da absorção dos mercados externos, levando em alguns casos à elevação de barreiras alfandegárias, devido à adaptação económica dos países envolvidos na contenda. Procurando resolver a situação, em Dezembro de 1927 realiza-se em Setúbal o I Congresso de Pescas e Conservas, onde foram abordadas as várias vertentes que ameaçavam o sector tendo sido reclamada a intervenção do Estado na regularização da situação, resultando no condicionamento da actividade do sector, delimitando o estabelecimento de novas fábricas de conservas de peixe. 

Anos depois, sem que a indústria conseguisse estabilizar, dá-se a Grande Depressão de 1929, que apesar de não ter surtido efeitos graves em Portugal, como terá gerado noutros países, se fez sentir em 1931, tendo mostrado sinais de recuperação logo no ano seguinte. 

Reconhecendo a influência negativa, ainda que limitada, dos efeitos da Grande Depressão sobre o sector da indústria conserveira, as dificuldades existentes para a resolução dos problemas com que aquela se defrontava residiam mais nas características estruturais do sector, do que da situação provocada pela crise. Estas características resultavam em grande parte da expansão do sector durante o período da I Guerra Mundial e do que imediatamente se lhe surgiu, ou seja de uma situação de sobreequipamento industrial. (Cordeiro, 1989, p.29) 

12 Imagem ilustrativa do centro industrial de Matosinhos em 1937, após a I Guerra Mundial, que demonstra o crescimento e aglomerado de unidades fabris.

De acordo com o estudo realizado na época, pelo ministro das finanças, Oliveira Salazar, a estas problemáticas sobrepõem-se a falta de organização do sector exportador, que agravado pela restrição de mercados atingidos pela crise de 1929, gera uma forte concorrência entre os industriais, levando-os a comercializar os seus produtos a baixos preços, descredibilizando a mercadoria junto do consumidor. Assim, uma das medidas do Estado Novo consistiu em equilibrar e controlar não só o sector, com a política do condicionamento industrial já mencionado, como também a componente exportadora.De encontro a estes ideais, tentando por fim à concorrência desmedida, são criados decretos para regularizar o sector e é criado oConsórcio Português de Conservas de Peixe. É de mencionar ainda, a iniciativa empresarial privada realizada alguns anos antes, por quatro das principais empresas conserveiras de Matosinhos, a Lopes, Coelho Dias, a Pinhais, a Lopes da Cruz e a Dias Araújo, que se juntaram em 1926 para tentar fazer face à crise que se instalou em 1924. O agrupamento denominava-se União de Conserveiros e constituiu segundo Cordeiro (1989) a afirmação da capacidade da iniciativa empresarial privada para a resolução dos seus próprios problemas. Este agrupamento foi, no entanto, obrigado a dissolver-se aquando a publicação do decreto que criou o Consórcio em 1932. 

Quanto às medidas do Consórcio para estabilizar o mercado externo, este decreta a fixação de preços mínimos e estabelece fortes sanções punitivas, no entanto, segundo Cordeiro (1989, p.36) “a arte de iludir estes objectivos nunca deixou de ser cultivada”. A resistência à fixação dos preços mínimos deu-se tanto por parte de industriais como daqueles que se assumiam exclusivamente como exportadores. 

A sua implementação obrigava os industriais, principalmente aqueles que não mantinham continuidade de vendas, que não formavam clientela, que não acreditavam marcas e que fabricavam produtos de fraca qualidade, a produzir melhor, a conceituar e valorizar os seus produtos nos mercados externos. Dito de outro modo, actuava não só como agente fiscalizador, como libertava também a indústria de concorrências desleais e ruinosas. No entanto o ambiente ‘livre-cambista’ que nos anos vinte se vivia principalmente nos centros de Setúbal e do Algarve, onde se concentravam as empresas economicamente mais débeis e cuja sobrevivência era incompatível com a aceitação do ‘preço mínimo’, criava uma situação de permanente desrespeito pelo seu cumprimento. (Cordeiro, 1989, p.35,36) 

Com o deflagrar da II Guerra Mundial (1939 – 1945), dá-se o mesmo efeito que a guerra precedente, há uma grande procura das conservas portuguesas, sendo que até 1946, segundo Cordeiro (1989) a demanda excedeu ou igualou a oferta. As condições excepcionais geradas mascararam os problemas que a indústria sofria, protelando as dificuldades até 1947, tendo no entanto, gerado uma grande acumulação de lucros para certas empresas. 

13 Frases publicitárias das conservas portuguesas. Revista ‘Conservas’ Nº43, Julho 1939.

Como consequência, o sector conserveiro vai aproveitar esta conjuntura para, pela voz da Associação Industrial Portuguesa (A.I.P.), reclamar a alteração da política económica até então seguida. Numa espécie de balanço de cerca de quinze anos de organização corporativa do sector, publicado em 1946 num artigo da revista da A.I.P., o autor critica o excesso de intervenção estatal resultante do regime jurídico do condicionamento da indústria de conservas, afirmando já não existirem razões que o justifiquem. Esta, devia-se apenas à manutenção de medidas de emergência que naquele momento já não correspondiam à situação que se vivia na indústria… (Cordeiro, 1989, p.37) 

Podemos concluir que tendo a indústria adquirido lucro na duração do conflito mundial, encontrava-se em posição de exigir a readaptação da legislação que a condicionava a fim de se poder reestruturar para a situação do pós-guerra. Pois segundo Tavares (1999) a legislação do condicionamento industrial já mencionada, além de condicionar a fundação de novas fábricas também impedia a possibilidade de alteração das já existentes. Assim, a indústria conserveira exigia uma maior liberdade de iniciativa aliada a uma imposição de concorrência nos mercados externos. 

Por outro lado, é importante referir, que certas nações envolvidas na contenda, decidem investir na economia do país, ainda no decorrer da guerra, desenvolvendo assim os seus próprios sectores de pesca, montando uma indústria conserveira que não se limita em alguns casos à produção interna, iniciando-se na exportação. Segundo Cordeiro (1989), nestes países a importação das conservas portuguesas teve um grande declínio, chegando a ser proibida ou sujeita a restrições alfandegárias, como foi o caso da Inglaterra, a França, a Suiça, a Holanda e a Suécia, mercados que consumiam cerca de 80% da produção portuguesa, “(…) as transformações políticas resultantes da II Guerra Mundial traduziram-se na perda para a nossa indústria conserveira de importantes mercados na Europa de Leste, como os da actual Rep. Democrática da Alemanha, Polónia, Checoslováquia e Roménia.” (Cordeiro, 1989, p.38) 

Como contra-medida foi criado um novo sistema de vendas, o dos contratos colectivos, sob uma marca única nacional. Esta medida, instituída em 1939, teve como centralizador o Instituto Português de Conservas de Peixe (I.P.C.P). A marca única5 evitou a concorrência, mostrando-se como única junto dos compradores, foi fixado um preço de venda, garantindo um lucro certo e remunerado para o produtor. Foram superados também os problemas de transportes, em virtude dos bloqueios alfandegários, por um lado para a entrega de folha de flandres e por outro para a vendadas conservas portuguesas. “De acordo com o Grémio da Pesca, estabeleceu-se igualmente um preço fixo para a sardinha, e distribuíram-se pelos industriais as principais matérias-primas: folha de flandres, estanho, azeite, arame, pregos, a preços de fabrico, muito inferiores aos do mercado livre.” (Cordeiro, 1989, p.39) Depreende-se assim, que foi em grande parte graças ao estabelecimento deste sistema de vendas que a indústria sobreviveu à II Guerra Mundial.

5 Segundo o artigo intitulado “Marca Nacional”, no periódico Conservas de Peixe N.8 Novembro 1946, o autor escreve que devido à falta de contratos substanciais foi autorizada a exportação livre da marca nacional, o que gerou a venda da mesma a preços díspares. O autor questiona a sobrevivência da marca pois segundo ele, sem a uniformidade dos preços, a marca poderá ser descreditada, o que futuramente resultará no seu desaparecimento.

14 Ilustrações das capas de alguns números, referentes ao ano de 1936, do periódico intitulado ‘Conservas’ (Janeiro 1936 – Setembro 1941), sediado em Matosinhos. De acordo com Gomes (2006), a revista assumia-se como a representante da indústria conserveira nacional, sendo palco para debates de variados temas relacionados com a mesma. Com uma duração de quase seis anos, teve o seu término em plena II Guerra Mundial.

Segundo Cordeiro (1989), nos primeiros anos da década de cinquenta a exportação depara-se com uma crise, verificando uma retração dos mercados tradicionais. Os países da América Central e do Sul proíbem a importação das conservas portuguesas, a França que adquiria a matéria-prima a preços elevados fecha-se também no mercado interno, além destas existiram outros problemas com a Inglaterra e a América do Norte, contudo, em 1952, devido ao levantamento de certas restrições por parte de alguns países o aumento da exportação foi conseguido. Em contrapartida, para entrar nos mercados os produtos nacionais tiveram que reduzir os seus preços. A exportação melhora, mesmo com esta cedência, no decurso de 1953, sendo que 1954 marca o início da recuperação da indústria. 

Para concluir citámos Cordeiro (1989, p.63), “O processo de industrialização marcou profundamente o desenvolvimento económico e urbanístico do concelho de Matosinhos.” 

De modo a comprovar esta afirmação, o auge da indústria conserveira em Matosinhos é composto por 54 unidades fabris dedicadas à conservação pelo método de Appert:

A Boa Nova, A Independência, A Padroense, A Universal, Activa, Adão Polónia, Aguiar, Algarve Exportador, António Luças & Filhos, Aviz, Botelhos, Brandão Gomes, Conservas Alva, Conservas Portugal Norte, Conserveira Portuguesa, Continental, Dias Araújo, Dragão, E.F.E.L., Estrela do Sul, Facole, Garantia, Gargalo, Guedes, Idamar, Interpesca, Iperconser, Joana D’Arc., Judíce Fialho, La Gondola, Lage Ferreira, Litoral, Lopes Coelho Dias, Marques Gomes, Marques Neves, Nero, Nun’Álvares, Oceano, Padrão, Paramos, Pátria, Pinhais, Prado, Rainha do Sado, Ramirez, Record, S. José, Sagrada Família, Sardinal, Selene, SICMA, Unitas, Varina, Vasco da Gama, das quais somente quatro ainda exercem funções, a Conservas Portugal Norte, a Ramirez, a La Gondola e a Pinhais. No entanto, de acordo com Couto (2012), estas produzem uma maior quantidade que todas as 54 fábricas juntas nos tempos áureos da indústria conserveira em Matosinhos.

15 ‘Conservas’ Nº40, Abril 1939, onde uma publicidade da Conserveira Pinhais se apresenta como capa da revista.

CRONOLOGIA DAS FÁBRICAS DE CONSERVA - CENTRO INDUSTRIAL DO NORTE DE PORTUGAL

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