A caça à baleia em Setúbal

Texto no livro A indústria das conservas de peixe em Setúbal (2015)

AUTORES: José Manuel Madureira Lopes & Alberto Manuel de Sousa Pereira

Uma pesca, na realidade uma caça, pouco conhecida em Setúbal, é a das baleias. Tudo começou em 1924 quando a Companhia Portuguesa de Pesca de Cetáceos recebeu uma concessão do Governo, por seis anos, para estabelecer uma estação de tratamento de baleias em Tróia, na sua costa Norte, entre as ruínas romanas e o actual cais dos ferry-boats. A estação ficou pronta em Setembro de 1925 mas desde Março que já se pescava, ou melhor, se caçava, baleias ao largo da costa de Setúbal graças ao fretamento de um vapor norueguês, o Professor Gruvel.

Em 1924, já tinham sido capturadas 26 baleias, com comprimentos entre os 12 m e 18 metros. Cada baleia produzia cerca de 4.000 litros de óleo e, no ano de 1925, foram pescadas 160 baleias que produziram 662.700 litros de óleo tendo naquele ano a Companhia exportado, pelo porto de Setúbal, 632 toneladas de óleo. Eram caçados diversos tipos de cetáceos, essencialmente cachalotes e baleias azuis.

Em 1925 já havia três navios na pesca, o Fogo, Musculus e o Sybaldi, todos construídos na Noruega, com uma tonelagem entre as 150 e as 200 toneladas, e o pessoal arpoador era norueguês e o restante português. Com um investimento inicial de 7.000 contos, logo no ano da instalação a Sociedade teve 5.000 contos de receita e, no ano seguinte, foram caçadas 248 baleias que originaram a exportação de 920 toneladas de óleo. As baleias forneciam a carne, semelhante à carne de vaca no sabor e muito óleo, usado na saboaria, nas margarinas e também como óleo de iluminação pública e nas habitações, até à utilização do petróleo. Os ossos serviam para o fabrico de pentes, botões, cabos e outros utensílios domésticos e os resíduos, depois de tratados, eram utilizados como adubos e pasta para engordar gado. A baleia era uma autêntico “porco-do-mar” pois tudo era aproveitável.

A estação na Tróia tinha rampas para carregamentos das baleias assim como autoclaves alimentados por caldeiras a vapor, para tratarem a carne e a gordura para o aproveitamento dos óleos. Também tinha uma serra para serrar os gigantescos ossos, um gerador eléctrico privativo e permitia tratar até seis baleias por dia.

A pesca era realizada da seguinte forma. O navio partia de madrugada, de Setúbal, e afastava-se entre 15 a 70 milhas da costa. O vigia, no alto do mastro do navio, descobria ao longe as baleias, dava o alarme e logo o navio se deslocava, a toda a velocidade, para perto dos animais. A cerca de 40 m a 50 m, o arpoador disparava um canhão — colocado na proa do navio — que tinha um arpão, com o peso de 90 kg, com uma granada de pólvora na ponta. Ao entrar no corpo da baleia a granada explodia provocando a sua morte e o arpão, que estava ligado ao navio através de um cabo, impedia a fuga da baleia, no caso de esta ficar apenas ferida com o tiro inicial. Após a morte, a baleia era acorrentada ao costado do navio (operação popularmente designada de braço-dado) e com uma agulha injectava-se ar comprimido no corpo para impedir o seu afundamento até chegar à estação de tratamento. Não se caçava a mais de 70 milhas — a viagem de regresso demorava cerca de 11 horas — porque correr-se-ia o risco de a baleia chegar à fábrica em más condições, inclusive porque a caça era nos meses mais quentes.

Em Setembro de 1927 o ministro da Marinha, comandante Jaime Afreixo, visitou as instalações quando estava a ser tratada uma baleia com 18 m de comprimento e 40 toneladas de peso. Depois houve um almoço no palácio Sotto Mayor, na Caldeira da Tróia, e os discursos habituais. No ano seguinte a empresa, alegando que os impostos oneravam muito as exportações, encerrou as suas instalações na Tróia. Em Maio de 1929, foi publicado um despacho no Diário do Governo (D.G.) a determinar a caducidade da concessão dada à Companhia pois “há mais de um ano que não exerce a sua exploração.”

Em Junho de 1943, foi publicado um edital a anunciar que a empresa açoriana Francisco Marcelino Reis pretendia uma licença para montar uma fábrica de preparação de cetáceos na margem direita do rio Sado quase em frente da fábrica de adubos da Société Anonyme de Produits et Engrais Chimiques du Portugal (SAPEC). Tinha um navio baleeiro ao seu serviço e o processo de caça e de tratamento das baleias era igual ao descrito anteriormente. No entanto, o navio desta empresa era mais rápido que os usados nos anos 20 uma vez que chegava a caçar a 100 milhas da costa e, em poucas horas, já estava de regresso às instalações da fábrica.

Em Março de 1944 a fábrica estava já quase pronta, pois sabemos que o barco baleeiro Ruth — com uma tripulação composta por um mestre, um artilheiro e seis marinheiros — tinha caçado uma baleia azul, com 17 m e 57 toneladas, a 13 milhas do Cabo Espichel. Como a fábrica em Setúbal estava ainda a ser concluída a baleia seguiu para Sacavém, para preparação e extracção do óleo.

O jornal A Indústria relembrou que nos anos 20 a fábrica de baleias existente na Tróia, em 1925 tinha caçado 160 cetáceos e, em 1926, caçou 248. As exportações de óleo nos anos de 1925 a 1927, data de encerramento da fábrica, oscilaram entre 632 e 920 toneladas anuais.

No mês de Maio de 1944 um jornalista do jornal O Setubalense acompanhou um dia de caça às baleias. Partiram na alvorada e ao meio-dia avistaram uma baleia com cerca de 24 metros a qual foi arpoadа e afundou-se, com umas 145 braças de cabo. A baleia, que teria cerca de 85 a 90 toneladas de peso, foi injectada então com ar comprimido, para flutuar, o que foi uma operação trabalhosa e algo complicada. Depois, foi rebocada na viagem de regresso que durou cerca de cinco horas para percorrer as 20 milhas até Setúbal. A carne foi vendida a 4$00 escudos (2,10 euros) o kg e usada, principalmente, para fazer bifes de cebolada. O óleo seguiu para a fábrica em Sacavém, para refinação.

Em Dezembro, uma baleia ferida investiu contra o barco, provocando-lhe um rombo e afundando-o, mas a tripulação salvou-se no barco salva-vidas e regressou a Setúbal.

Em 1947 em Portugal foram caçadas 836 baleias das quais 132 no Continente, 109 na Madeira e 565 nos Açores. O maior rendimento da baleia era o seu óleo, embora a carne tivesse valido 3.376 contos naquele ano. Em 1949 os Açores caçaram cerca de 600 baleias, enquanto Setúbal apenas caçou 14. Na época o óleo teve uma produção nacional de 2.186.129 kg, seguido pelas farinhas, tendo Setúbal contribuído com 141.500 kg de farinha, destinados a adubos essencialmente, e vendido 33.847 kg de carne de baleia para o consumo público.

Em Abril de 1958 foi assinada a escritura da criação da empresa Fábrica de Óleos Vegetais de Santa Catarina, Lda., com um capital social de 100 contos, que iria laborar nas instalações da fábrica das baleias e na qual um dos sócios da antiga fábrica, Francisco M. Reis, tinha uma quota. Assim, a fábrica conhecida em Setúbal como “a fábrica das baleias” terminou a sua exploração baleeira passando as instalações para a nova empresa, que laborou até 1993.

Em Janeiro de 1998 foi publicado um anúncio da 1.ª Repartição de Finanças de Setúbal declarando que aceitava propostas para a compra dos bens e equipamentos da fábrica de óleos vegetais de Santa Catarina, em Setúbal. O produto da venda seria para pagar dívidas no valor de 7.451.621$00 escudos à APSS. Em Setembro de 2000, a APSS demoliu as instalações da fábrica e mais tarde, já no séc. XXI, construiu outras para abrigo de embarcações e equipamentos contra a poluição marítima. 

Fotografias presentes no livro, originais do Arquivo Municipal Américo Ribeiro – Câmara Municipal de Setúbal

Laboração na fábrica das baleias 1954. Operação de corte e desmanche.

1947 Barco rebocando uma baleia de “braço-dado”. Canhão arpoador à proa,  cesto de vigia mo mastro e depósitos de ar comprimido á ré.