O peixe

Os conserveiros de Setúbal (1887-1901)**

Vasco Pulido Valente*
Análise Social, vol. XVII (67-68), 1981-3.º-4. °, 615-678

* Universidade Católica Portuguesa.
** O estudo que a seguir se pode ler foi feito com a colaboração da Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura. A ideia original, a concepção e a definição do método são do autor. A Sr.a Dr.a Margarida Pereira de Moura fez a investigação preliminar e escreveu a primeira versão. O autor, depois, reviu a investigação e escreveu a segunda versão e a versão definitiva, que aqui se apresenta (e que contém partes da primeira). Toda a responsabilidade científica é do autor.
O estudo agora publicado está incompleto. Das quatro «classes» de conserveiros de Setúbal trata apenas três: soldadores, «mulheres» e «rapazes». É omisso a respeito dos «trabalhadores», Pensou-se, no entanto, que, mesmo assim, teria algum interesse a sua divulgação parcial.

II

A principal matéria-prima da indústria de conservas, o peixe, existia com abundância nas costas de Setúbal. As espécies mais vulgares eram a sardinha, a cavalinha, o biqueirão ou anchova, o carapau e o chicharro.

Acabado o trabalho, os barcos pertencentes às armações e aos cercos traziam o pescado para o Cais de Nossa Senhora, onde se fazia a lota. Como qualquer pessoa, os fabricantes esperavam pelo leilão 11.

11 Os industriais tentaram várias vezes controlar o preço do peixe, porque o sistema da lota favorecia os armadores. Em 28. de Junho de 1896, O Distrito descrevia o conflito nos seguintes termos: «Na Associação dos Lojistas e Industriais tem sido tratada a questão do preço da matéria-prima na indústria das conservas.
Os fabricantes pretendem pôr-se de acordo para taxarem o preço de cada canastra de peixe, que neste caso deve só ser conforme às espécies. Por outro lado, os armadores contrapõem o proveito que têm na liberdade da lota, onde a alta compensa a baixa de preços.

O dono do peixe, ou quem o substituía (provavelmente, a troco de uma pequena percentagem dos lucros), declarava o preço mais alto por que avaliava a mercadoria e, se ninguém se mostrava interessado, reduzia-o pouco a pouco, até que um dos compradores potenciais gritasse «chiu», concluindo automaticamente o negócio.

As barcas vendiam-se por inteiro e a lota funcionava de manhã e à tarde, sendo, por regra, os industriais os primeiros a abastecer-se. A quantidade e a qualidade da oferta decidiam do nível dos preços.

Frequentemente, logo que apanhavam a sardinha (ou outra espécie), os pescadores escorchavam-na e metiam-na dentro de moiras (recipientes cheios de água doce em que se guardava o peixe coberto de sal), que preparavam ainda nos barcos.

Quando chegava à fábrica, as mulheres punham de parte a sardinha moída, separavam a miúda da grande e, se as operações atrás referidas (escarchar e salmonar) ainda não haviam sido feitas, encarregavam-se elas disso.

A seguir tiravam-lhe bem o sal, lavando-a em alguidares e também com agulheta, se tinham água em pressão, o que nem sempre sucedia nas empresas de menor dimensão e menos recursos.

Procedia-se depois ao chamado engrelhamento do peixe, que consistia em colocar as sardinhas em tabuleiros de arame estanhado —as grelhas—, de modo que os líquidos pudessem escorrer. Em cada tabuleiro arrumavam-se cerca de 200 sardinhas, com muito cuidado para não ficarem com vincos.

Vinha então a secagem. Colocavam-se as grelhas em carros que se moviam sobre carris ao longo da oficina. Quando estava bom tempo, expunha-se o peixe ao ar livre, em padiolas. Se não, empurravam-se os carros por compridos corredores, por onde continuava a via férrea e onde havia uma ventoinha accionada a vapor.

Seca a sardinha, passava-se à cozedura ou à fritura, conforme o tipo de conserva, visto que a pior se cozia e a melhor se fritava. Em ambas as operações participavam apenas homens, vulgarmente conhecidos por trabalhadores ou moços.

A cozedura efectuava-se metendo os carros, um a um, num cofre de ferro de 2 metros de altura e levava, à temperatura de 100°C, entre cinco e quinze minutos.

Uma caldeira própria produzia vapor, que penetrava no cofre ou estufa por válvulas que só se abriam uma vez este hermeticamente fechado. Para a fritura assentavam-se as grelhas, que se iam tirando dos carros, sobre caixilhos metálicos existentes no interior de um tanque, com água no fundo e, por cima da água, óleo. E fritava-se introduzindo vapor no tanque ou caldeira, que fazia o óleo subir e ferver. Os restos de óleo queimado exportavam-se para fins industriais.

Tanto a cozedura como a fritura exigiam trabalhadores experimentados, porque a sua duração óptima variava com a espécie de peixe e o respectivo estado de conservação. Da caideira, as grelhas transferiam-se para tabuleiros de folha inclinados e daí para grelheiros, para eliminar o excesso de óleo que embebia a sardinha.

Após o que se principiava a enlatagem. As mulheres sentavam-se em bancos baixos, perto das latas vazias. Tiravam a sardinha da grelha, cortavam-lhe a cauda e as barbatanas e arrumavam-na dentro da lata, na mesma disposição em que aparecia. A porção que não se aproveitava era guardada em vasos de madeira para vender às fábricas de guano.

Havia dois processos de arrumar: arrumar em branco, quando o ventre branco da sardinha ficava para fora; e arrumar em azul, quando ficava para fora o dorso azul. O primeiro processo originava uma conserva mais fina.

As latas já com peixe atiravam-se para uma caixa grande, em que cabiam algumas dezenas delas, o pio, que a seguir se enchia de azeite, com ou sem condimentos, como calda de tomate, pickles, cravo-da-índia e folha de louro. A operação demorava habitualmente perto de três horas.

Em 1907 foi publicado um decreto fixando em 13 % do peso das latas «contendo conservas de peixe e preparados em óleos comestíveis e calda de tomate o peso líquido dos referidos óleos»12.

12  Colecção Oficial de Legislação Portuguesa, ano de 1907

Uma medida que se destinava a evitar a degradação do produto, impedindo que os industriais poupassem no peixe, substituindo-o por azeite e outros temperos.

Nas empresas pequenas, por causa da falta de espaço, enchiam-se as latas de azeite cada uma por sua vez e deixavam-se estar uns minutos em tabuleiros para recolher o azeite que transbordava e que, geralmente, se tornava a usar.

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