A INDÚSTRIA DE CONSERVAS DE PEIXE NO ALGARVE (1865 - 1945)

Joaquim Manuel Vieira Rodrigues

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – Lisboa 1997

A DESCOBERTA DO PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS ALIMENTOS

Nicolas Appert: «Benfeitor da humanidade»

A procura de conservação dos alimentos foi algo que preocupou os homens desde há cerca de três mil anos. Os romanos, os povos da Ásia Menor, os gauleses, entre outros povos, utilizaram vários métodos para conservas diferentes alimentos. Posteriormente, outras tentativas, com mais ou menos sucesso, se realizarão para alcançar tão almejado propósito[1].

Durante as épocas das grandes descobertas dos séculos XV e XVI um dos mais terríveis flagelos suportados pelos marinheiros fora o escorbuto, pela falta de vitamina C, em consequência da ausência de alimentos frescos nas longas viagens que tinham de efectuar.

Foi na França revolucionária que o processo de conservação dos alimentos atingiu um momento de progresso técnico importante. A campanha de Itália (1796) aproximava-se: “Preocupado em abastecer os seus exércitos, o Directório oferece a quantia de doze mil francos a quem conseguisse aperfeiçoar um método viável de conservação dos alimentos. Estimulado pelo desafio, Nicolas Appert, modesto confeiteiro da Rua dos Lombard, decide encerrar a loja e a consagrar-se completamente aos trabalhos que conduz depois de 1794”[2]. Em 1785, instalou-se em Ivry onde continuou as suas pesquisas, utilizando garrafas de champanhe com vidro suficientemente espesso para resistirem à pressão[3].

Nicolas Appert (Châlons-sur-Marne, 23/10/1750[4] – 1/7/1841), filho de Jean Appert, cardador e de Marie Bonvallett, portanto, de origem muito modesta, em 1804, «pensa aquecer os alimentos em banho-maria dentro de redomas hermeticamente fechadas»[5].

Para implementar este seu projecto, em 1803, adquiriria, em Massy, um terreno de quatro hectares onde construirá uma fábrica na qual trabalharão cerca de 50 operários[6], a qual, em 1814 e em 1815, seria destruída. Aquando do Terror, Appert já tinha sofrido as amarguras da prisão.

Desde os inícios de séc. XIX que Appert começara a entregar ao público as conservas preparadas pelo seu método e a propô-las ao governo para o abastecimento da marinha. De facto, quer as altas patentes da marinha francesa, quer as da marinha alemã dirigiram-se a Appert de forma elogiosa. O Perfeito Marítimo de Rochefort, cerca de 1807, escrevia que não esqueceria «nenhuma ocasião de dar a conhecer uma descoberta que me pareceu tão útil ao Estado como interessante para os marinheiros»[7].

Appert, na procura de pedidos, em 1808, apresentara à Sociedade Real de Londres «uma garrafa de leite preparada havia seis anos e autenticada pelos sêlos e o certificado da Sociedade de Encorajamento». Os ingleses, contudo, não abriram os cordões à bolsa e teve apenas de se contentar com um «certificado elogioso»[8].

[1] www.libe.fr/objects2000/conserve1.html.
[2] Charles-Emmanuel Haquet, “La boîte de conserve a deux cents ans”, Le Monde. L’Économie, 28/6/1994. 1794 é, provavelmente gralha tipográfica, visto que outras fontes indicam 1784 (www.libe.fr/objects2000/conserve1.html.)
[3] www.libe.fr/objects2000/conserve1.html.
[4] Outras fontes apontam 17 de Novembro de 1749 como a data do seu nascimento. www.libe.fr/objects2000/conserve1.html.
[5] Charles-Emmanuel Haquet, op. cit.
[6] P. H. Lenoir, “Nicolas Appert. Benfeitor da Humanidade”, Conserve de France et de L’Union Française, cit. in Conservas de Peixe, nº 66, Set. 1951, p. 17.
[7] Ibid, p. 17.
[8] Conservas, nº 47, Nov. 1939, p. 11.

Em Junho de 1810, Appert publicará a obra O Livro de Todos os Lares ou a Arte de Conservar Vários Anos Todas as Substâncias Animais e Vegetais, que conheceria várias edições entre 1813 e 1858, na qual exporia o seu método de conservação. Este era «fundado sobre um princípio único, a aplicação do calor a um grau conveniente às diversas substâncias, depois de as ter privado tanto quanto possível do contacto do ar». E, desenvolve mais pormenorizadamente: «à primeira vista poder-se-ia julgar que uma substância, crua ou preparada ao lume, metida em seguida em garrafas, perfeitamente rolhadas, depois de se ter feito o vácuo, se conservaria igualmente sem a aplicação do calor ou de banho-maria; isto seria um erro, porque todas as experiências que eu fiz me demonstraram que os dois pontos essenciais, a privação absoluta do contacto com o ar exterior (o que possa encontrar-se no interior não deve inquietar porque está reduzido à impotência pela acção do calor), e a aplicação do calor ou banho-maria, são indispensáveis, um e outro, para a perfeita conservação das substâncias alimentares»[9].

Em resumo, Appert lançava, assim, as seguintes ideias mestras: a conservação dos alimentos dever-se-ia realizar em recipientes de vidro; estes deveriam fechar-se convenientemente e submeter-se à acção do calor durante um determinado tempo, consoante as substâncias. As experiências realizadas, quer com vegetais, quer com peixes confirmaram a boa qualidade dos produtos conservados pela revolucionária técnica.

Em 1809, o Boletim da Sociedade de Fomento da Indústria Nacional, de França, evidenciava o impacto económico da descoberta de Appert, num texto saboroso, ao reconhecer que esta permitia «fazer chegar para além da fronteira, sem serem alteradas, as produções agradáveis com que a natureza favoreceu o nosso solo. Ele quer por esta forma multiplicar os prazeres do Índio, do Mexicano, do Africano, como os do Lapão e dar aos diferentes povos a possibilidade de saborear com delícia os perús com trufas, as perdizes vermelhas, os cordonizes, os «pâtés de foie gras», etc. O Sr. Appert permite transportar para França, dos países mais afastados, uma infinidade de substâncias que desejaríamos ter no seu estado natural. Os habitantes da França podem prolongar durante todo o ano os prazeres que uma só estação lhes concede… Logo que as relações comerciais forem mais fáceis, o Sr. Appert só precisará do seu talento e da sua perseverança para estabelecer um ramo de comércio que lhe será útil e ao seu país»[10].

Contudo, a sua invenção não será reconhecida pelo escol do mundo científico de então, nomeadamente, o sábio Gay-Lussac[11], embora a Sociedade de Fomento lhe tenha concedido, em 1816, uma medalha de prata, em 1820, uma medalha de ouro, em 1822, o título de Benfeitor da Humanidade e, em 1824, um prémio de 2.000 francos.

[9] Conservas, nº 47, Nov. 1939, p. 18.
[10] Conservas, n.º 47, Nov. 1939, p. 18.
[11] Gay-Lussac (1778-1850) – Físico e químico francês, descobriu a lei da dilatação dos gases.
[12] Berthollet (1748-1822) – Químico francês.

Com o apoio de Berthollet[12], conseguirá do governo francês, em 1817, um local no «Quinze-vingts» 17, rua Moreau, em Paris, onde prosseguirá as suas investigações. Será neste local que substituirá «as garrafas de vidro por lata de folha de Flandres soldadas e o banho-maria primitivo pelas marmitas auto-claves do Dr. Lemar, derivadas do «digesteur» inventado por Papin em 1681»[13] .

Pasteur [14] saberá reconhecer, ao contrário de Vergnette-Lamotte, a descoberta que o vinho aquecido em vaso hermético a 70º se tornava inalterável e que aumentava as suas possibilidades de envelhecimento natural: «Quando o sr. Vergnette-Lamotte espoliou Appert em 1850 de uma maneira tão odiosa, Appert estava morto e não pôde reclamar. Fui eu que reivindiquei os seus direitos. Quanto a mim, tenho a felicidade de viver ainda e saberei defender a verdade»[15].

Os trabalhos de Gay-Lussac, Meyer[16], Berthollet e Liebig[17] associados ao desenvolvimento da física, da química e da bacteriologia contribuíram também decisivamente para o aperfeiçoamento da técnica da conservação dos alimentos.

Para o êxito da conserva o elemento essencial era, de facto, a esterilização, a qual se começou por fazer «em banho-maria, a 100º C e os produtos assim fabricados tinham duração limitada. Mais tarde, passou a empregar-se a água com sal, de modo que se conseguia uma temperatura de cerca de 110º. A partir de 1883, utiliza-se o autoclave que permite obter a temperatura desejada muito mais rapidamente, diminuindo-se o tempo de esterilização»[18].

Na obra de Appert, antes citada, encontramos os principais preceitos que deveriam ser seguidos por todos os conserveiros: selecção da matérias-primas, tempo reduzido ao mínimo entre a colheita e o início da fabricação, limpeza meticulosa, rapidez nas operações e determinação exacta dos tempos de ebulição. Contudo, o pasteleiro francês, cuja obra não continha qualquer interpretação científica, considerava que os alimentos se conservavam devido à sua incorruptibilidade[19].

Com uma intuição notável enumerava as vantagens da sua descoberta. Entre elas registemos: de conservar para o consumo, em toda a parte e em qualquer momento, as produções alimentares abundantes em determinada época do ano ou em certa região, evitando-se, quer o seu desperdício, quer profundas alterações de preço; de fornecer a hospitais, aos exércitos, à marinha, uma alimentação rica do ponto de vista vitamínico e energético e, finalmente, uma indústria nova que proporcionasse riqueza para o país que a desenvolvesse[20]

[13] Conservas, n.º 47, Nov. 1939, p. 18
[14] Pasteur (1822-1895) – Químico e biologista francês. Estudou a fermentação, demonstrando que esta era devido à acção de microorganismos e que a «geração espontânea não existia. Depois de um estudo sobre o vinho, desenvolveu um método de conservação das bebidas, a pasteurização. Realizou, ainda, imensos outros trabalhos, dos quais destacamos a descoberta da vacina contra a raiva (1886).
[15] Conservas, n.º 47, Nov. 1939, p. 19
[16] Viktor Meyer (1848-1897) – Químico alemão. Estudou as densidades dos vapores e a química orgânica.
[17] Justus Liebig (1803-1873) – Conhecido principalmente pelos seus trabalhos em química orgânica.
[18] Henrique Parreira, “A evolução duma grande indústria”, Livro de Ouro das Conservas Portuguesas de Peixe.
[19] cf. J. A. Ferreira da Costa, “ Conservas, nº 19 , p. 17-18 e nº47, Nov. 1939, p. 11.

As épocas de prosperidade e de dificuldades, nomeadamente financeiras, alteraram-se na vida do percursor da esterilização. Numa carta de um capitão de navio, Freycinete, seu admirador, escrita em 14 de Julho de 1822, podia-se ler: «… Não posso evitar-me um sentimento doloroso ao ver êste homem, mais que sexagenário, numa situação que se aproxima da necessidade. Limitado aos seus recursos, não pode fazer todo o bem que êle concebe; a sua fábrica está periclitante, enquanto as pessoas mais felizes se apoderam e se enriquecem por tôda a parte com os produtos da sua indústria»[21].

Posteriormente, Appert não será recompensado pelas suas descobertas, tendo-se outros, designadamente ingleses, apoderado dos resultados dos seus trabalhos, atribuindo-se a si próprios as invenções, como, aliás, reconhece, ainda, Freycinet: «Os ingleses, mais que nós, digo-o com mágoa, fazem justiça, não ao autor, mas, aos seus processos, porque é um inglês, um senhor Donkin, que êles atribuem a conservação indefinida das substâncias alimentares»[22].

Appert, à semelhança de muitos outros inventores a quem em vida não lhes foram reconhecidos os seus méritos, pobre morrerá e enterrado será na vala comum.

O avanço científico-tecnológico da Inglaterra, fruto da Revolução Industrial que a colocava na vanguarda dos países mais desenvolvidos do mundo de então, explica o aproveitamento que os ingleses faziam desta como de outras descobertas.

Na Inglaterra, antes mesmo da publicação do livro de Appert, já a sua descoberta fora conhecida e aplicada. Como no caso da França, o aprovisionamento da poderosa marinha inglesa esteve na origem do desenvolvimento da técnica de conservação de alimentos.

Será Brian Donkin, associado a John Hall fundador da Dartford Iron Works, membro da Royal Society, já antes referido por Freycinet, quem irá começar a produzir conservas em latas em escala industrial, «depois de ter estudado o livro de Appert»[23]. Este mesmo Donkin terá igualmente sido o primeiro fabricante de conservas a utilizar latas de folha-de-flandres.[24]

[20] P. H. Lenoir, “Nicolas Appert. Benfeitor da Humanidade”, Conserve de France et de L’Union Française, cit. in Conservas de Peixe, nº 66, Set. 1951, p. 19.
[21] cit. in Ibid.
[22] cit. in Ibid.
[23] P. H. Lenoir, “Joseph Colin”, Conservas de Peixe, nº 69, Dez. 1951, p. 18.
[24] Ibid.

O processo de Appert seria aperfeiçoado pelo bretão Pierre Joseph Colin (1785 – 1848), que, em 1824, abriria na cidade de Nantes, a primeira fábrica de conservas em lata metálica[25]. As suas primeiras tentativas «para explorar últimamente a descoberta de Appert contaram com numerosos insucessos. Mas a sua perseverança triunfou e, dentro em pouco, encontrava-se chefe de uma empresa cuja prosperidade tende sempre a aumentar. Esta fábrica fornece 5/6 das conservas que a cidade de Nantes entrega ao comércio. A sua produção actual é de 100.000 latas, das quais 36.000 de sardinhas e 15.000 de legumes. As 49.000 restantes são mais importantes, umas pela sua qualidade, outras pela sua raridade como as aves e o salmão recheados»[26].

[25] www.multimania.com/histonantes/colin.htm e P. H. Lenoir, “Joseph Colin”, Conservas de Peixe, nº 69, Dez. 1951, p. 18.
[26] Guepin, Nantes au XIX Siècle, cit. in Ibid., p. 19.

Também por este autor, vislumbramos, mesmo que tenuamente, o processo de produção das conservas de sardinha nos seus primórdios: «Cincoenta mulheres estão então ocupadas em abrir as barrigas à sardinha e lavá-las na ribeira que fica ao pé. Estas mulheres estão divididas em secções e cada secção tem o seu trabalho especial. Vê-se lá, na mesma altura, cerca de 20 soldadores ocupados em soldar lata»[27]. A partir de 1848, a indústria de conservas de Nantes conheceria uma rápida expansão.

À semelhança de Appert, Colin sofreu as vicissitudes de uma indústria ainda na aurora, a falência e problemas financeiros, e, morreria na miséria, sem ver reconhecido o seu esforço.

[27] P. H. Lenoir, “Joseph Colin”, Conservas de Peixe, nº 69, Dez. 1951, p. 19-20

Entretanto, produziam-se alguns aperfeiçoamentos técnicos, nomeadamente, a utilização, a partir de 1851, do autoclave com manómetro de graduação decimal.[28]

Paulatinamente, o processo de esterilização descoberto por Appert começava a ser implementado noutros países como na Inglaterra, Irlanda, Escócia, América do Norte «onde a corrida para os terrenos auríferos do Norte e do Oeste e depois a guerra da Secessão, estimulara o desenvolvimento da indústria da conserva» [29], na Noruega (1841) e no Japão (1871).

A conquista do mercado mundial pelas conservas de sardinha deve-se, ainda, à revolução nos transportes, nomeadamente o camimho-de-ferro e nos navios, não só na Europa, como, em e para outras regiões, e às grandes exposições nacionais e internacionais, às quais as conservas portuguesas concorreram com assinalável êxito.

As guerras que marcaram e marcam o processo histórico das sociedades humanas contribuíram decisivamente para a implementação da técnica e da produção da conservação dos alimentos. Os exércitos necessitam de alimentos que satisfaçam alguns requisitos, como sejam o valor energético e vitamínico e o reduzido peso e volume para facilitar o transporte.

As descobertas de Appert e seguidores enquadraram-se numa conjuntura marcada pelas guerras que dilaceraram a Europa após a Revolução Francesa, nas quais era premente a alimentação de milhares de homens em campanha.

[28] Ibid., p. 20.
[29] Ibid., p. 20.

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