Indústria, Comércio Externo e Intervenção Pública. As Conservas de Peixe no Estado Novo (1927-1972)

Francisco Maia Pereira Bruno Henriques – 2022

SEGUNDA PARTE - Recursos, Organização Industrial e Regulação Económica.

6. A pesca da sardinha: recursos e economia política.

Neste capítulo propomo-nos a estudar o crescimento da pesca da sardinha em Portugal, em particular durante as décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. A sardinha foi a principal espécie desembarcada nos portos portugueses e permitiu a expansão simultânea do consumo interno e da transformação em conservas. Contudo, enquanto recurso irregular e incerto, as capturas demonstravam importantes flutuações e ciclos de abundância e escassez. Resolver o problema das flutuações e regularizar o abastecimento de sardinha sem recorrer a importações de sardinha foi um dos principais desafios da indústria pesqueira. Por outro lado, colocava-se o «problema do pescador» querer obter o máximo rendimento sobre recursos de acesso livre que podiam ser capturados pelos concorrentes. A relação entre a iniciativa privada e as instituições de regulação de acesso aos recursos constitui um segundo problema relevante.

Para compreendermos o crescimento da pesca da sardinha não basta analisar o crescimento da frota e a evolução das capturas; seguindo a proposta de Chris Reid, é útil procedermos a uma caracterização da «cadeia de oferta de peixe»426. Este conceito parte de uma premissa aparentemente simples: o peixe é um recurso marinho vivo, mas é também uma matéria-prima que é transformada e comercializada antes de ser consumida. As relações entre os agentes económicos nas diferentes fases da cadeia de oferta, num sector tradicionalmente pouco integrado ao nível vertical e horizontal, constitui o terreno de investigação para compreender as mudanças de longo prazo. Por outro lado, como referiu Álvaro Garrido, a pesca é «um factor social total» que convoca a análise de diferentes disciplinas sobre os impactos sociais, económicos e a transmissão do conhecimento empírico sobre as espécies e os lugares de pesca 427. Além do estudo sobre a expansão da produção, consumo e comércio, é necessário abordar a economia política das pescas, que envolve a acção das instituições e a intervenção do Estado sobre o acesso e a exploração dos recursos marinhos.

O capítulo está organizado em quatro subcapítulos. Depois de identificarmos os antecedentes que deram protagonismo à pesca de sardinha, caracterizamos as tendências de evolução da produção e da produtividade numa perspectiva comparada, e a ação do Estado entre o «condicionamento» e o «fomento» da pesca da sardinha. Depois, discutimos os ciclos de consumo da sardinha no mercado interno, a concorrência entre as vendas à indústria e ao consumo em fresco e os seus reflexos nos preços de primeira venda da sardinha. Finalmente, procuramos compreender em que medida a pesca da sardinha influenciou o comércio internacional dos produtos da pesca: quer nas exportações de conservas de sardinha, quer na balança comercial de produtos da pesca que, ao contrário da tendência geral, exibe uma evolução positiva até ao final dos anos sessenta.

426 Chris Reid, “Evolution in the Fish Supply Chain”, History of North Atlantic Fisheries, org. David Starkey e Ingo Heidbrink (Bremen: German Maritime Studies, 2012), Vol II, 27-58.
427 V. Álvaro Garrido, As pescas em Portugal (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018), 10 e ss.

6.1. Os Antecedentes.

Nos capítulos anteriores discutimos a evolução da indústria de conservas de peixe ao longo de três conjunturas internacionais. Em todos os períodos, o acesso à sardinha, em quantidade e qualidade, foi o mais importante factor de competitividade internacional. Como bem destacou Xan Carmona Badía, a aquisição do pescado era o principal encargo das empresas conserveiras; as variações na abundância da pesca e nos preços de venda na lota eram determinantes para as margens de lucro das empresas e a capacidade de expansão em novos mercados428. A ocorrência do pescado junto à costa, em particular de pequenos pelágicos como a sardinha, sempre foi irregular e incerta. As capturas, no entanto, tiveram um crescimento sustentado no segundo pós-guerra, principalmente entre 1950 e 1966. Quais foram as causas e os efeitos deste crescimento? Que esforços foram feitos para regularizar o abastecimento de sardinha à indústria conserveira?

No longo prazo, duas ideias permitem caracterizar sucintamente a pesca da sardinha em Portugal: a abundância e as flutuações. Desde a segunda metade do século XIX, pelo menos, a sardinha ocupou um lugar dominante na pesca portuguesa. Segundo Alfredo Magalhães Ramalho, entre 1896 e 1933 a sardinha representou cerca de metade do valor total da pesca desembarcada 429. A abundância deveu-se,inicialmente, à capacidade de introduzir inovações tecnológicas que intensificaram as capturas de sardinha: em primeiro lugar, as artes móveis de arrasto para terra, conhecidas como xávegas, e a difusão das armações fixas, todas dirigidas aos pequenos pelágicos e mais eficazes do que as artes tradicionais da pesca costeira430. Em segundo lugar, a industrialização da pesca proporcionada pela embarcações movidas a vapor com redes de cerco, introduzidas em Portugal pelos primeiros industriais conserveiros no último quartel de Oitocentos. Foi a abundância de sardinha na orla costeira ibérica que atraiu as conserveiras francesas a deslocalizarem as suas fábricas. Todavia, após a Primeira Guerra Mundial e a consolidação da fase industrial, a propriedade dos meios da pesca e da indústria de conservas estava cada vez mais separada, apesar da sua estreita interdependência.

As capturas de sardinha registaram sempre importantes flutuações anuais e sazonais. As causas das flutuações são ainda hoje desconhecidas, mas o problema foi tema de discussão científica desde o início do século XX431. A flutuação dos stocks em diferentes territórios –o contraste entre as crises sardinheiras em França no início do século XX e o crescimento das capturas na Califórnia, por exemplo – acalentaram a discussão sobre o «mistério da sardinha», em comparação com outras pescarias. A quebra abrupta e imprevisível das capturas tinha consequências para as comunidades do litoral que dependiam exclusivamente da pesca e transformação da sardinha. Em Portugal, o debate internacional sobre as flutuações da sardinha foi acompanhado de perto, nomeadamente no Congresso de Setúbal, em 1927, onde se discutiu os resultados da investigação de 432. Desde a primeira metade dos anos vinte, Alfredo Magalhães Ramalho desenvolveu um aturado trabalho de investigação com base em campanhas oceanográficas na costa portuguesa que lhe permitiu, em 1935, afirmar que as flutuações nas capturas não se deviam a um fenómeno de escassez ou abundância. Com uma visão holística, o cientista realçava a necessidade de acompanhar o desenvolvimento das técnicas da pesca, as características das embarcações, motores e artes, as infraestruturas portuárias e as condições de descarga do pescado em cada região433. Contudo, é importante notar que, após a Segunda Guerra Mundial, quando as capturas de sardinha registaram um maior crescimento, a investigação sobre a causa das flutuações ficou esquecida. O debate internacional também não foi esclarecedor. Em 1959, na primeira conferência mundial sobre a biologia da sardinha organizada pela FAO, os representantes dos países sardinheiros discutiram o desenvolvimento das pescarias, a biologia da sardinha e as flutuações nos stocks e nas capturas434. Apesar de terem produzido importantes dados estatísticos com a agregação das capturas regionais, não houve conclusões sobre o «mistério da sardinha» nem recomendações para uma gestão multilateral do recurso marinho 435.

Antes de avançarmos, é importante estabelecer a ordem de grandeza das capturas de sardinha no conjunto da pesca nacional e em comparação com outros países. No primeiro caso, as capturas de sardinha, em volume e valor, são comparadas com as capturas de peixes pelágicos e o total das capturas de peixes marítimos, que incluem as pescarias em águas não nacionais, entre 1940 e 1960 (Quadro 6.1.). O volume da sardinha sobressai no conjunto dos peixes marítimos: entre 30% e 56% na década de quarenta e 33% e 42% na década de cinquenta. Se considerarmos apenas os peixes pelágicos, que representam 61% do volume e 47% do valor total, a predominância da sardinha é inequívoca, já que ocupa cerca de 70% do volume e valor neste segmento da pesca. Estes números traduzem uma realidade social delicada em que muitas comunidades marítimas, de norte a sul, dependiam do recurso da sardinha que, como vimos, era irregular e incerto436. Note-se, porém, a tendência de decréscimo do peso relativo da sardinha no volume e valor da pesca desembarcada enquanto, paradoxalmente, aumentavam as capturas de sardinha. Este comportamento é tributário das alterações na pesca portuguesa, sobretudo no crescimento dos desembarques das frotas de pesca longínqua, que contaram com importantes apoios públicos, e a valorização comercial dos peixes capturados com artes de anzol na pesca costeira. A tendência de estagnação dos preços da primeira venda de sardinha, já evidente nos anos trinta, continuou no segundo pós-guerra; a estratégia da pesca de cerco passou pela captura de quantidades cada vez maiores de pescado, num regime de acesso livre, para tentar compensar os baixos preços oferecidos pela indústria e pelo consumo em fresco. Note-se, ainda, que a perda de peso relativo da sardinha deveu-se ao recuo das capturas em algumas regiões, como o Algarve, que mantiveram capturas apreciáveis de outros pequenos pelágicos, como o biqueirão. A distribuição das capturas pelos três departamentos marítimos sofreu uma acentuada concentração a Norte, em torno do porto de Matosinhos, e a perda de protagonismo de outros portos sardinheiros como Setúbal, Portimão e Olhão 437.

428 Carmona, Recursos, organización y tecnologia…, 135/136.
429 Alfredo Magalhães Ramalho, «Notice sur la pêche et la biologie de la sardine au Portugal». Travaux de la Station de Biologie Maritime de Lisbon, nº 31 (1933): 29. Valores corroborados por Hugo V.
Mendes e Maria de Fátima Borges, «A Sardinha no século XX: capturas e esforço de pesca», Relatórios científicos e técnicos IPIMAR, nº 32 (2006).
430 Inês Amorim, «Técnicas de pesca na costa portuguesa: melhorar ou inventar? Um percurso de investigação». Zainak, nº 25 (2003): 349-368.
431 V. Inês Amorim, «The Social Dilemmas of the Portuguese Sardine: Overfishing, Scientific Knowledge, and Local Comunnities in the Late Nineteenth Century» em Too valuable to be lost: overfishing in the North Atlantic since 1880, org. Álvaro Garrido e David Starkey (Berlim: De Gruyter, 2020), 29-47. Para o conflito entre velhas e novas artes na área de Peniche, ver o relatório de Baldaque da Silva, Estado actual das pescas em Portugal, compreendendo a pesca marítima, fluvial e lacustre em todo o continente do Reino, referido no anno de 1886 (Lisboa: Imprensa Régia, 1891).

432 José L. Supico, Estudos sobre causas da crise na pesca da sardinha e dos meios prováveis de as atenuar. Setúbal: Typ. Mascarenhas & Guerreiro, 1927.
433 Ramalho, Notice sur la pêche…, 31 e ss.
434 V. FAO, Proceedings of the World Scientiific Meeting on the Biology of Sardines and Related Species, org. FAO (Roma: FAO, 1959).
435 Para uma análise recente do problema, v. T.Malta, P.T. Santos, A.M.P. Santos, M. Rufino e A. Silva, «Long-term variations in Ibero-Atlantic sardine (Sardina pilchardus)population dynamics: Relation to environmental conditions and exploitation history», Fisheries Research, 179 (2016): 47-56.
436 Ver, a propósito, Henrique Souto «A Pesca: condicionalismos e evolução» em Portugal: Perfil Geográfico, org. Raquel Soeiro de Brito (Lisboa: Estampa, 1994), 186.
437 Mendes e Borges, A Sardinha no século XX…, 22 (Tabela I).

A segunda comparação é com os países que, como Portugal, capturavam a sardinha europeia: França, Marrocos e Espanha(Quadro 6.2). Os dados recolhidos para os anos anteriores a 1950 foram coligidos por Riedel438 e, a partir dessa data, contamos com as estatísticas da FAO. Ao observarmos as pescarias de outros países devemos ter em conta não só os valores absolutos das capturas de sardinha, mas também o peso relativo deste pelágico no total dos desembarques. Com efeito, os países em questão oferecem dois perfis distintos. De um lado, Espanha e França. Em Espanha, as capturas de sardinha cresceram até às 150 mil toneladas, pouco abaixo das capturas de Portugal e Marrocos. No entanto, a frota espanhola sofreu uma profunda transformação que tornaria Espanha num dos principais produtores mundiais; as capturas totais subiram de 552 mil toneladas, em 1950, para 1 267 mil toneladas em 1968. França regista um processo semelhante: as capturas totais superaram as 600 mil toneladas na segunda metade dos anos sessenta, mas as capturas de sardinha nunca ultrapassaram as cinquenta mil toneladas. Em percentagem, a sardinha não ocupou mais do que 15% e 7% do volume total das capturas em Espanha e França, respectivamente. O modelo de crescimento das pescas não dependeu da exploração dos recursos costeiros, mas da exploração de bancos de pesca longínquos com estratégias de capital intensivo que incluíram a criação de uma frota de pesca congeladora. Ora, no lado oposto desta tendência encontra-se Marrocos, com o volume mais alto de capturas de sardinha e uma concentração da pesca marítima neste pelágico a rondar os 80%. O crescimento exponencial da pesca de sardinha em Marrocos está estreitamente relacionado com a procura da indústria de conservas e o abastecimento do mercado francês, pois o consumo deste peixe em estado fresco foi residual, ao contrário da tendência em Portugal439. Neste quadro, Portugal, com as capturas de sardinha a ocuparem um terço do total, assumiu uma posição híbrida: se, por um lado, a intensificação das pescas de abastecimento, com a construção de modernos navios de arrasto, correspondeu em parte ao modelo de desenvolvimento francês e espanhol, é certo que a pesca costeira de sardinha manteve uma importante quota no conjunto das pescas marítimas. O crescimento das capturas de sardinha permitiu a Portugal manter a vantagem comparativa face às indústrias de conservas congéneres, mas a concorrência com Marrocos exigia uma atenta política de qualidade para contrariar a perda de vantagem nos preços.

438 Riedel, «European and Morrocan sardine production since 1920 off the Atlantic coast». Em Proceedings of the World Scientiific Meeting on the Biology of Sardines and Related Species, org. FAO, 883-889. Roma: FAO, 1959.
439 Domingo, L’industrie marocaine…, 333.

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Ut elit tellus, luctus nec ullamcorper mattis, pulvinar dapibus leo.

6.2. A produção.

6.2.1. Tendências de evolução.

Em 1962, Michel Giacometti gravou um documentário a bordo de uma traineira ao largo de Portimão, da conserveira José António Ritta, 440. No mar, depois de lançada a rede de cerco ao cardume de sardinhas, os homens reuniam-se em fila na amurada da traineira e recolhiam as redes com a força dos braços. A cadência do movimento era marcada pelo entoar de um cântico comum. Nas vozes dos pescadores sentimos o progressivo desgaste físico provocado pela dureza do alar manual das redes.

O filme revela a riqueza etnográfica da pesca de cerco e o modelo de trabalho intensivo que, mesmo nas embarcações de pesca industrial, durou até aos anos setenta do século XX. Todavia, desde o início do século, a pesca de sardinha sofreu mudanças importantes que provocaram um inexorável aumento das capturas. Estas mudanças merecem ser analisadas para compreendermos melhor os dilemas da frota sardinheira no segundo pós-guerra.

Como já referimos, a sardinha ocupou sempre um lugar relevante nos desembarques e no produto da pesca em Portugal. Entre as artes de pesca que podemos considerar como «tradicionais», sem motorização e com um raio de ação restrito, contam-se pelo menos três: as xávegas, as armações fixas e as sardinheiras. A difusão destas artes foi gradual, adaptada às condições ecológicas de cada região e exigiu, dos poderes públicos, um esforço de regulamentação no acesso aos recursos e regulação dos conflitos estabelecidos entre as diferentes artes. Como destacou Inês Amorim em diversos trabalhos, a questão central era poder determinar quem tinha acesso à pesca, e em que condições, com a dificuldade de a regulação se aplicar ao território onde os recursos são móveis e as capturas aleatórias 441. As xávegas, com uma expansão no litoral norte e sul do país desde o século XVIII, articulada no sotavento do Algarve com a indústria de salga da sardinha, tinham a vantagem de não depender das estruturas portuárias porque as embarcações entravam no mar a partir dos areais do litoral e eram varadas em terra depois da pescaria. O raio de acção, com os lanços de redes de arrasto a poucas milhas da terra, era reduzido e limitado às ondulações existentes. A arte xávega subsistiu na segunda metade do século XX como atividade das comunidades marítimas que conjugaram a exploração agrícola com a extração dos recursos marinhos costeiros, as temporadas sazonais nas pescas industriais e, mais recentemente, o turismo442. Por sua vez, como destacou Baldaque da Silva em 1891, a difusão das armações fixas na segunda metade do século XIX implicou um aumento da produtividade das pescarias 443. Ao contrário das artes móveis ou volantes, as armações fixas requeriam uma demarcação precisa das áreas de pesca atribuídas pelo Estado através de concessões provisórias. As armações também subsistiram no litoral português até à segunda metade do século XX, em áreas abrigadas dos mares de inverno como a costa sul de Peniche, Sesimbra e Cascais444. Por último, as sardinheiras, compostas por redes de emalhar lançadas de pequenas embarcações, eram particularmente adaptáveis às condições de mar aberto nas regiões setentrionais. Foi sobretudo na Póvoa de Varzim que se desenvolveu este tipo de arte, bem documentado na prosa etnográfica de Santos Graça 445.

Foi, no entanto, a pesca com redes de cerco que introduziu as principais mudanças na indústria da sardinha. Note-se que a primeira fase da industrialização das pescas costeiras, no final do século XIX, foi protagonizada pelos industriais de conservas que adquiriram embarcações movidas a vapor e redes de cercar os cardumes de sardinha para regularizar o abastecimento das fábricas 446. Nos anos anteriores à primeira Guerra Mundial, a forte crise de escassez de sardinha na Galiza levou algumas empresas portuguesas a adquirir os vapores galegos que, em meados dos anos cinquenta, continuavam a exercer a pesca 447. As maiores conserveiras, como a Júdice Fialho, a Algarve Exportador e a Feu Hermanos, preconizaram a integração vertical da pesca nesta primeira fase da indústria. Todavia, as principais transformações deram-se após a Primeira Guerra Mundial, com a difusão da traineira, uma embarcação mais pequena do que os tradicionais cercos a vapor, com maior mobilidade e menos exigente na acostagem dos portos. Os custos do carvão durante o conflito e as inovações tecnológicas proporcionaram a difusão de novos motores de combustão líquida nas traineiras. Em Peniche, por exemplo, os primeiros motores alimentados a petróleo foram introduzidos em 1923 e, em 1936, a generalidade das traineiras já estava motorizada448. Os anos vinte foram o período decisivo da motorização da pesca, intensificação das capturas e declínio das artes «tradicionais». Em 1926, como sublinhou vice-almirante e vogal da Comissão Central de Pescarias do Ministério da Marinha, era já notável a difusão das embarcações com motor associadas ao emprego de artes móveis na pesca da sardinha. o número total de embarcações motorizadas era de apenas 387, frente às mais de 14 mil sem motor, mas a tonelagem das primeiras alcançava já as 24 mil toneladas e o conjunto das embarcações «artesanais» as 39 mil toneladas449. Enquanto as armações fixas registavam um produto total de 13 mil contos e as redes móveis de tipo xávega cerca de 10 mil contos, o produto da pesca dos cercos e traineiras superava os 70 mil contos. Magalhães Ramalho vai mais longe na caracterização do sector e nota que, entre os períodos 1921-1925 e 1926-1931, os cercos e as traineiras foram as únicas artes em crescimento; e na segunda metade da década foram responsáveis por 78% do produto da pesca da sardinha (Quadro 6.3.).

440 V. Michel Giacometti, O Alar da Rede, 1962.
441 Sobre a diversidade de artes e profissões na pesca costeira, ver História do trabalho e das ocupações. A pesca, org. de Inês Amorim (Lisboa: Celta, 2001).
442 Para um retrato destas comunidades, ver , entre outros, Raquel Soeiro de Brito, Palheiros de Mira. Formação e declínio de um aglomerado de pescadores. (Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, 1982).
443 Baldaque da Silva, 1891, Estado Actual das pescas…. Os conflitos sobre os direitos de propriedade das pescas costeiras, e não só, foram muito comuns em diversos países. Para o caso espanhol, v Ernesto López, «La pesca en el País Vasco en el siglo XX: modernización, tradición y crisis», Areas: Revista Internacional de Ciencias Sociales, nº 27 (2008): 7-25.

444 V. Henrique Souto e Luís Martins, Cascais. Tradição e indústria nas pescas (Cascais: Câmara Municipal, 2009). Jorge Russo argumenta que, em Peniche, na primeira metade do século XX, as armações fixas tiveram um produto da pesca superior às artes móveis de cerco. V. «A pesca da sardinha em Peniche: 1900 – 1950» em Mar: uma onda de progresso, org. Escola Naval de Lisboa (Alfeite: Base Naval de Lisboa, 2016), 212-223.
445 A. Santos. O poveiro. Usos, costumes, tradições, lendas (Lisboa: Dom Quixote, 1992).
446 Ver, para o Algarve, a evolução descrita por Rodrigues, A indústria de conservas…, I, 39-49.
447 Segundo a Lista de Embarcações Industriais (Lisboa, Gabinete de Estudos das Pescas, 1956), em 1955 continuavam matriculadas 46 embarcações de pesca de cerco construídas em Espanha. Dessas, a maioria eram cercos a vapor construídos em Vigo entre 1910 e 1918.
448 Correia Peixoto, Apontamentos para a história da pesca…, 61-63. . Note-se que as primeiras artes de cerco introduzidas em Peniche, as traineiras do tipo Vigo, em 1913, eram movidas a remos e vela.
449 Almeida Eça, A Pesca. Lisboa: Imprensa Nacional, 10.

A motorização da pesca da sardinha coincidiu com a multiplicação das fábricas de conservas no litoral português; a pressão sobre os recursos marinhos tornou-se de tal forma evidente, bem como a separação entre a propriedade das embarcações e o trabalho nas traineiras, que levou a denúncias sobre os efeitos nocivos da pesca industrial na desarticulação dos modos de vida marítimos e na exploração equilibrada dos fundos marinhos 450. Na entrada dos anos trinta, a pesca de sardinha não se encontrava, de um ponto de vista tecnológico, atrasada em relação às congéneres europeias ou aos países anglófonos 451. No entanto, a sobreprodução, a dependência externa dos bens intermédios (aprestos de pesca e combustíveis) e a queda dos preços da sardinha mobilizou os armadores para pedirem a intervenção pública no sector452. As barreiras à entrada criadas em 1928, na sequência do Congresso de Setúbal, não evitaram o crescimento das unidades e empresas de pesca – a maioria já separadas da indústria conserveira. Guilherme Otero Salgado, em 1935, invocava com nostalgia a tradição mercantilista do Marquês de Pombal, que interviera sobre a produção e o comércio de peixe, e sugeria a criação de uma Federação da Pesca para expandir o consumo e resolver os problemas entre a produção e o comércio453. Certo é, porém, que o sector das pescas já se encontrava em reorganização profunda, a começar pelo abastecimento de bacalhau. Em 1938, a criação do Grémio de Armadores da Pesca de Sardinha454, que terá um importante papel no segundo pós-guerra, respondia em parte aos clamores protecionistas dos armadores; simbolizava a entrada da sardinha nas «pescas agremiadas», modelo de organização da produção em estruturas oligárquicas, controladas pelo Estado, com acesso a crédito, preços administrativos e serviços de aquisição de bens e protecção contra os riscos organizados em Cooperativas e Mútuas. De acordo com Álvaro Garrido, a pesca foi um dos sectores que sofreram uma reorganização institucional mais profunda nos primeiros anos do Estado Novo 455.

A Segunda Guerra Mundial foi o último –e porventura o mais expressivo – ciclo de crescimento da frota sardinheira. Não obstante a «guerra submarina» no Atlântico, a pesca costeira continuou em exercício enquanto outros países mobilizavam as frotas de pesca para o esforço de guerra 456. O impulso da construção naval foi notável: só em Peniche, de 1940 a 1949, foram construídas 71 traineiras, e 32 em Vila do Conde, num total de 224 novas embarcações 457. A conjuntura de guerra merece ser observada com algum detalhe a partir da observação dos preços médios da sardinha, o número de embarcações e a sua produção média (Quadro 6.4.). Entre 1938 e 1940, o aumento dos desembarques de sardinha não teve o efeito típico de descida dos preços unitários de venda, o que revela, apesar da subida dos custos de exploração, uma evidente oportunidade de aumentar os lucros da pesca. Entre 1940 e 1941 o preço médio corrente da sardinha vendida em lota quase que triplicou e estabilizou em alta no ano de 1942. Foi na senda desta sobrevalorização que o número de embarcações de pesca de cerco cresceu de forma espetacular: de 268, em 1940, para 383 em 1943; e, com ele, as capturas, que alcançaram quase 120 mil toneladas. A euforia de guerra, contudo, moderou-se a partir de 1944, com a contenção dos preços provocada pela abundância das capturas, a retração nas exportações de conservas e o tabelamento de preços de venda ao consumo. Num despacho publicado a 1 de Fevereiro de 1944, o ministro da Economia Rafael Duque fixava um máximo de 50$ pela venda de um cabaz de 45 quilogramas de sardinha para consumo público e entre 140$ a 160$ para a indústria de conservas458. O equilíbrio era delicado a todos os níveis: a indústria de conservas pressionava a descida dos preços, não só por causa da abundância de pesca, mas também pela pressão dos compradores ingleses que se tinham convertido em compradores quase exclusivos das conservas; do lado do consumo, a escassez de bens alimentares no mercado interno e a desvalorização dos salários reais obrigava à contenção dos preços de venda da sardinha, sem no entanto deixar de remunerar os armadores da pesca 459.

450 Ver, a propósito, os vários relatos de Raúl Brandão em meados dos anos vinte incluídos na crónica Os pescadores (Lisboa: Bertrand, 1923), em especial 79-89.
451 V. Jesús. Crecimiento y transformación del sector pesquero gallego, 1880-1936. (Madrid: MAPA, 1996), 279-305, e Arthur McEvoy. The fisherman problem. Ecology and law in the California fisheries, 1850-1980. (New York: Cambridge University Press, 1990), 123-156.
452 Arquivo Salazar, MA-1, cx. 352, capilha 5, Apresentação de propostas, pelos industriais de pesca da sardinha, para solucionar a crise da indústria da pesca da sardinha.
453 Guilherme Otero Salgado, «A crise da pesca em Portugal» em Actas do I Congresso da União Nacional, Vol. VI, 1935, 249-255.
454 V. decreto 28:616, de 1938. Nas disposições transitórias, art. 32º, o Grémio pronunciava-se sobre os novos pedidos de construção ou modificação de embarcações junto do Ministério da marinha..

455 Garrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau…, 235-259.
456 Ver, para Inglaterra, o já citado relatório Fisheries in wartime…, 30-37; e, sobre as consequências da mobilização da frota, Martin Wilcox, «”To save the Industry from Complete Ruin”: Crisis and Response in British Fishing, 1945-1951». Business History, 63:3 (2019): 353-377. 2019. Em França, a guerra teve um forte impacto no decréscimo das capturas de sardinha; ver Jean-Christophe Ficohu, «La conserverie de poisson, 1939-1945: une activité sinistrée?», Guerres Mondiales et conflits contemporains, nº 207 (2002/3), 71.
457 Os números referem-se às embarcações existentes em 1956, segundo a Lista de Embarcações Industriais (Lisboa: Gabinete de Estudos das Pescas, 1956).
458 Diário de Governo, I Série, 1.02.1944.
459 Ver, sobre estas tensões, os relatórios anuais do GAPS.
460 Na Califórnia ocorreu um efeito semelhante. V. Mcevoy, The Fisherman’s Problem…, 174.

O sintoma mais evidente da euforia passageira da guerra talvez tenha sido a redução média dos desembarques por embarcação, tanto em volume como em valor. Tal como sucedeu na Califórnia, a expectativa dos lucros de guerra e a ausência de um mecanismo eficaz de controlo de entradas conduziram ao crescimento da frota que, antes da guerra, já se achava sobrecapitalizada460. Em 1947, no segundo Congresso Nacional da Pesca, o engenheiro José Luís Supico apresentou um relato preocupante sobre o crescimento da pesca de sardinha. Numa visão de longo prazo, considerava que a indústria da sardinha alternava entre períodos de paz e crise latente com dificuldade em exercer uma actividade remuneratória salvo em momentos de euforia criados pelas guerras. O traço mais nítido no imediato pós-guerra era a descida da média do produto da pesca por cada embarcação. Apesar de o valor ter aumentado 57,8%, era inferior ao agravamento dos custos de exploração, que segundo o autor teriam duplicado desde 1940461. Enquanto membro da direcção do Grémio de Armadores da Pesca de Sardinha, Supico acusava os armadores de trabalharem «às cegas», sem o domínio das estruturas de custo e a robustez necessária para lidar com as flutuações da pesca. Sublinhava ainda que, com mais barcos a pescarem no mesmo período e na mesma área, a lota era inundada com grandes quantidades de sardinha que pressionavam a descida dos preços e obrigavam, mais tarde, a intervalos de escassez nas capturas.

A ideia subjacente ao texto de Supico era um apelo à melhor regulação do exercício da pesca, quer nas condições de entrada, quer nas regras de exploração determinadas no início da safra. Apelos que, em grande medida, não foram em vão. A intervenção pública sobre a frota sardinheira no segundo pós-guerra será, sobretudo, de «condicionamento», por oposição ao «fomento» das pescas longínquas que abasteciam o mercado interno. Ao mesmo tempo, porém, as embarcações incorporaram inovações tecnológicas que permitiram um crescimento das capturas de sardinha sem precedentes. Antes de identificarmos a intervenção do Estado devemos, por isso, debruçar-nos sobre a evolução da produtividade dos factores na pesca.

6.1.2. Traineiras e pescadores: a produtividade no segundo pós-guerra.

No início dos anos cinquenta a tendência de evolução da pesca da sardinha sofreu uma alteração: pela primeira vez desde o início do século, o aumento das capturas não foi acompanhado pelo crescimento do número de embarcações de pesca de cerco. Além disso, após a crise de 1947-1949, as flutuações nas capturas foram relativamente brandas. Entre 1950 e 1966, a pesca de cerco teve um crescimento contínuo e sem precedentes, com os desembarques a superarem as 200 mil toneladas a partir de 1962. Quais os factores que determinaram o crescimento da produção primária? A principal hipótese, que aqui desenvolvemos, foi o crescimento acentuado da produtividade do capital e do trabalho, isto é, das traineiras e dos pescadores.

A evolução da produtividade é o elemento essencial para compreender o crescimento das capturas. É a produtividade que tem um impacto mais significativo nos rendimentos da pesca e permite um aumento do investimento privado em novas tecnologias. Contudo, como veremos, o investimento não dependeu apenas das disponibilidades financeiras das empresas de pesca, mas também dos poderes públicos. Para medir a produtividade dos factores de produção é necessário, em primeiro lugar, uniformizar as várias fontes estatísticas que fornecem dados sobre a frota sardinheira, as capturas e o número de pescadores matriculados462. Em segundo, é preciso selecionar as formas de medição da produtividade: para o capital, a medida mais ajustada é o número de toneladas de pesca desembarcada por tonelada de arqueação bruta (TAB), medida mais precisa do que o número de embarcações. Para o trabalho, a medida é o número de toneladas de pesca desembarcada por pescador matriculado 463.

No conjunto da pesca portuguesa, a quantificação da produtividade permitiu a comparação com outros países pesqueiros, nomeadamente os que pertenciam à OCDE. Os dados do Quadro 6.5, para 1958, mostram que Portugal teve, no conjunto da pesca, uma menor produtividade em relação à média dos 12 países da OCDE, quer no capital (70,6%) quer, sobretudo, no trabalho (31%). Esta comparação deve, no entanto, ser matizada em dois pontos. Como alertavam os relatórios da OCDE, nos países mais industrializados os aumentos de produtividade na pesca foram conseguidos com estratégias de capital intensivo num ambiente de escassez do fator trabalho, em que os pescadores foram atraídos para atividades mais remuneratórias na indústria transformadora464. Em Portugal, a pesca continuou a ser uma actividade de trabalho intensivo, apesar das importantes inovações tecnológicas introduzidas a bordo das embarcações. Em segundo lugar, é importante notar que esta medição da produtividade se fez sobre o volume e não sobre o valor do pescado. Os países mediterrânicos, com uma baixa produtividade do trabalho na pesca, efetuavam capturas menos intensivas e com a seleção de espécies de maior valor comercial vendidas em fresco e a preços mais elevados. A menor intensidade da produtividade do capital podia ser compensada pelo valor alcançado pela pesca na primeira venda 465.

461 Supico, Situação e perspectiva da indústria…, 10. Para este período, salvo os arquivos de empresas conserveiras, não foi possível localizar fontes primárias das empresas de pesca que permitissem consultar a evolução dos balanços anuais e da estrutura de custos de produção.

 

462 De forma sucinta, podemos identificar duas fontes principais: as estatísticas de pescas marítimas, coligidas pelo Ministério da Marinha, que são habitualmente transpostas para o anuário estatístico do INE; as estatísticas reunidas pelo Grémio de Armadores da Pesca de Sardinha e, em geral, pela organização corporativa das pescas. Neste sentido, são necessários alguns esclarecimentos prévios: na rubrica das embarcações, incluído a TAB, referimo-nos aos conjunto total das artes de pesca móveis (cercos e traineiras grandes, médias e pequenas), com a exclusão das xávegas; O produto da pesca, em toneladas, refere-se ao total dos desembarques feitos pelas artes móveis, que incluem outras espécies além da sardinha, como o carapau e a cavala; quanto ao trabalho, o número refere-se aos pescadores matriculados em 31 de Julho de cada ano. Estudos preliminares sobre a produtividade da pesca, como o de Ruy Nascimento (1960), permitem-nos aprofundar a análise sobre as variações regionais e temporais da produtividade da pesca na primeira década do período em análise.
463 A informação sobre a produtividade do trabalho pode ser complementada com a análise sobre o total dos dias de pesca e do número de lanços praticados pelas embarcações, como veremos adiante.

A evolução da produtividade dos fatores da pesca demonstra um crescimento pronunciado tanto no desempenho do capital como no trabalho, sobretudo ao longo da década de cinquenta (Quadro 6.6). Em 1951, uma unidade de TAB era responsável pela captura de cerca de 9 toneladas e, em 1958, era já responsável por 15 toneladas; nos mesmos anos, a produtividade por pescador aumentou de 10 toneladas para 18 toneladas466. O aumento de produtividade deveu-se, sobretudo, às inovações tecnológicas incorporadas na construção e no apetrechamento das embarcações de pesca. Na realidade, depois de um crescimento abrupto nos anos da guerra, o número de embarcações tendeu a estabilizar um pouco abaixo das 400 unidades. A TAB média por embarcação desceu de 40 toneladas nas vésperas da guerra para 34 toneladas nos anos cinquenta e sessenta (Quadro 6.7). Apesar da cristalização do número de traineiras, o sector da construção naval e a frota sardinheira estavam em renovação. Entre 1950 e 1956 foram construídas 96 novas embarcações, 34 só em Peniche. De acordo com Correia Peixoto, neste anos os armadores procuraram ainda introduzir mudanças importantes para a conservação do pescado, como a criação de porões de refrigeração a bordo, que exigiam a autorização prévia das autoridades marítimas467.A mudança mais importante neste período foi o progressivo abandono dos cercos a vapor e a construção de novos cascos com motores de combustão líquida, e a substituição do petróleo pelos motores a Diesel, que aumentaram a potência instalada em embarcações mais leves e com maior mobilidade para a perseguição dos cardumes. Tal como foi diagnosticado em 1960, foram as traineiras médias e pequenas, com uma TAB inferior a 25 toneladas, que demonstraram os maiores ganhos de produtividade468.Note-se, no entanto, que era desejo dos armadores construir novos cascos com um comprimento cada vez maior para poderem albergar redes de maior dimensão, guinchos e, mais tarde, aladores mecânicos. Esta expansão das traineiras foi, no entanto, limitada pelos módulos de construção oficialmente aprovados pelo Ministério da Marinha e que constituíam, em si, uma política de «condicionamento» do esforço de pesca e da sobrecapitalização do sector.

464 O crescimento do número de pescadores na década de cinquenta foi variável. Países houve onde desceram (Reino Unido, Alemanha, França, Noruega) e outros com subida (Islândia). Os países meridionais tenderam para uma manutenção do número médio de pescadores, tal como no Canadá. Nos EUA, o número de pescadores esteve em decréscimo desde 1948. V. OCDE, Politiques de peche…, 1960, 37.
465 OCDE, Politiques de peche…, 1960, 37-42.
466 Na maioria dos países da OCDE, entre 1948 e 1958, as capturas por TAB diminuíram, mas as capturas por pescador matriculado subiram mais de 50% em pelo menos oito países. Enquanto nos países mais industrializados a tendência foi para a construção de navios de pesca oceânicos de grande tonelagem, em Portugal, sem prejuízo da renovação da frota da pesca de bacalhau e de arrasto, a frota de pesca dos pequenos pelágicos teve um aumento moderado da tonelagem média por embarcação de pesca.V. OCDE, Politiques de peche…, 1960, 41.

467 Luís Correia Peixoto, Apontamentos para a história da pesca da sardinha e da construção naval em Peniche (Peniche: Câmara Municipal, 1991), 100/101.
468 Ruy Nascimento, A captura de pelágicos…, 24.

A instalação das sondas electrónicas a partir da primeira metade dos anos cinquenta permitiu uma maior eficiência da actividade no mar e uma redução na aleatoriedade das capturas469. A substituição das redes de algodão por redes de nylon e a criação de uma rede de postos de rádio ao longa da costa contribuiu não só para melhorar a eficiência da pesca mas também para conferir uma maior segurança às tripulações e às embarcações. Por último, não podemos olvidar as transformações portuárias, com a criação de novos cais de acostagem e o aumento da proteção com a extensão das muralhas artificiais dos portos. Este desenvolvimento foi particularmente visível em Matosinhos, onde as melhores condições portuárias vão permitir uma concentração dos desembarques de sardinha e, gradualmente, uma redução no uso intensivo da mão de obra.

No trabalho, o primeiro a assinalar é que, a par do aumento da produtividade, o número de pescadores não parou de crescer: de 8177 em 1946, os pescadores matriculados a 31 de Julho chegaram a 13 mil em 1962. Não admira, por isso, que o aumento de produtividade registado na primeira metade de cinquenta tivesse um abrandamento no final da década, e no início dos anos sessenta, recuperando apenas na segunda metade dos anos sessenta. O que explica a utilização intensiva do trabalho na indústria da pesca da sardinha? As explicações são variadas e incorremos no risco de criar uma generalização. Podemos, no entanto, distinguir três argumentos. O primeiro é a própria evolução tecnológica do sector que permitiu o aumento da produtividade mas não dispensou o uso do trabalho manual. Com efeito, de todas as inovações introduzidas nas traineiras, os aladores mecânicos das redes foram a última inovação, só generalizada em meados dos anos sessenta. Até essa data, o alar das redes continuou a ser manual, tal como foi descrito por Giacometti, e a utilização de redes de maiores dimensão obrigou ao recrutamento de mais homens. As estatísticas demonstram que as traineiras terão alargado a permanência no mar e o raio de acção, que se traduziu num aumento da produtividade por dias de pesca (Quadro 6.8). A produtividade por lanços de pesca foi menos expressiva devido às limitações das embarcações em albergarem redes de maior dimensão e à estrutura dos porões para a conservação do pescado. Por outro lado, devemos considerar que muitos portos sardinheiros não possuíam ainda condições ideais de descarga do pescado, recorrendo a embarcações auxiliares (as «enviadas») e ao transporte manual da sardinha descarregada para a lota. O segundo argumento, do ponto de vista do pescador, era, até aos anos sessenta, a falta de alternativas ocupacionais nos centros do litoral, onde o turismo e outros sectores da indústria tinham um desenvolvimento ainda incipiente, bem como a emigração. Finalmente, do ponto de vista de recrutamento do trabalho, os armadores e mestres mostraram uma relutância em prescindir do trabalho manual das traineiras. Devemos, ainda, ter em conta as condições de remuneração estabelecidas em contratos de matrícula firmados entre os armadores e os capitães dos portos, com o enquadramento institucional das Casas de Pescadores, e que resultavam na contenção dos salários dos pescadores, apesar do aumento da produtividade. A este propósito, é notável o documento enviado pelo Director Geral do Trabalho e Corporações, Veiga Macedo, a Salazar, sobre os conflitos entre pescadores e armadores da pesca de sardinha em Matosinhos, que já tinham provocado desordens públicas 470. Os primeiros reclamavam sobre as formas de remuneração dos armadores e recusavam-se no início da safra a matricularem-se; o director geral confessava, com um certo desafio ao ideal de representação de interesses na organização corporativa, que os pescadores não tinham quem os representasse e que o diálogo estava comprometido. Mais do que a expressão de uma oposição política relacionada com ideias comunistas, o Director Geral alertava para a justeza das reclamações dos pescadores e a necessidade de rever os salários.

469 Peixoto, Apontamentos para a história da pesca…, 96/97; e José Feu, «A utilização das sondas ultrassonoras na pesca da sardinha», Separata do Boletim da Pesca, 1951.

470 Arquivo Salazar, CR-3, cx. 68, capilha 18.Situação de litígio entre os armadores e os pescadores da sardinha de Matosinhos.

Podemos concluir que foi o avanço da produtividade, mais do que a acumulação de capital físico, que esteve na origem do crescimento das capturas de sardinha, o principal factor de competitividade da indústria portuguesa de conservas. O número de embarcações de cerco estabilizou mas deu-se uma importante renovação dos cascos, motores e aparelhos de auxílio à navegação e detecção de cardumes. As traineiras passaram mais tempo no mar e aumentaram o volume de pesca obtido por cada dia da safra. A manutenção do número elevado de pescadores, além da tradição cultural, remete para uma organização económica e social mais ampla que envolve a ausência de alternativas ocupacionais e a política de contenção salarial provocada pelos acordos unilaterais entre armadores e as autoridades marítimas. Como veremos, uma das causas desta contenção salarial eram também os preços de venda da sardinha, sobretudo para consumo em fresco, que durante estes anos se consolidou como alimento destinado ao abastecimento das populações mais pobres.

6.2.2. A acção do Estado: «condicionamento» e «fomento».

A julgar pelas publicações dedicadas às pescas organizadas pelo Ministério da Marinha e o Gabinete de Estudos das Pescas, o Estado teria sido o principal responsável pelo crescimento na produtividade da pesca da sardinha471. A sobrecapitalização do sector antes de 1939 enquadrava-se no discurso crítico sobre os efeitos da economia liberal e o excesso de concorrência individual entre os agentes económicos privados que retirava rentabilidade aos armadores. A partir de 1950, o Estado Novo adoptou uma política de apertado condicionamento no exercício da pesca da sardinha a partir de dois vectores: a regulação das transformações na frota e a regulação no acesso aos recursos marinhos.
Na realidade, o «condicionamento» do número e tipo de embarcações era já antigo. Em 1928, a comissão saída do Congresso de Pescas e Conservas de Setúbal preconizou a proibição do registo de novas embarcações de pesca de cerco, bem como a participação de estrangeiros nas sociedades de pesca, numa clara tentativa de impedir a participação de armadores espanhóis em empresas mistas que atuavam no sotavento do Algarve e a norte do rio Douro. Contudo, este enquadramento legal não seria eficaz para conter o crescimento do número de traineiras durante a guerra, sobretudo entre 1942 e 1943. Em 1944, entraram em vigor novas regras: além da suspensão temporária e geral das autorizações para construção de novas embarcações, eram limitadas as reparações, a renovação de matrícula após cessação por um ano e a transferência de registos de pesca com artes de cercar para barcos registados noutras pescas. Foi também estabelecido um comprimento máximo às traineiras.

A questão de fundo subjacente ao «condicionamento» da pesca de sardinha era a perda do rendimento médio, em peso, das capturas por cada embarcação. Como demonstra o quadro, referindo-se apenas à captura de sardinha e excluindo outros pelágicos capturados com artes de cerco, só em 1954 é que a frota recuperou a média de capturas por arte anterior à guerra. Atenta à conjuntura, a direção do Grémio de Armadores da Pesca de Sardinha denunciava, nos relatórios anuais, a existência de
um número excessivo de embarcações que realizava uma pesca intensiva e incessante, inclusive durante o período de desova da sardinha. Em 1947 defendiam que a «perseguição excessiva da sardinha», somada à irregularidade habitual da pesca, reduzia o número de dias efectivos de pesca e o rendimento médio de cada barco, aumentando o seu custo de produção; nas lotas, por sua vez, a afluência de grandes quantidades de peixe – que, note-se, não podia ser armazenado – favorecia a quebra dos preços de venda e dificultava o funcionamento regular da distribuição e venda no mercado472. Em 1948, num ano de escassez, o Grémio calculava que, no total de 391 «artes», 207 tinham tido prejuízo na exploração, 95 não tinham sido lucrativas ou deficitárias e apenas 89 com pequenos lucros, «sem margem para amortizações e constituição de reservas»473. A redução na expansão da frota, que começou apenas a ser sentida em 1954, foi consagrada nas reformas da pesca de sardinha aprovadas por despachos do Ministro da Marinha. Entre outras medidas, foram criados os arquétipos de construção de novas traineiras, reguladas as condições de exploração dos recursos durante a faina e, em 1957, criado um fundo de amortização gerido pelo GAPS e destinado a atribuir subsídios às empresas que vendessem os barcos para o estrangeiro ou para as colónias, que estivessem dispostas a abandonar a atividade ou a «reunir» duas embarcações numa embarcação maior 474.

O decreto nº 41451, publicado a 18 de Dezembro de 1957, veio dar forma definitiva à política de «condicionamento» da pesca da sardinha. As artes consideradas «tradicionais» – xávegas, armações e sardinheiras, que subsistiam no litoral português – continuaram a ser reguladas pela legislação anterior. A pesca de cerco, no entanto, era submetida a uma apertada malha de autorizações prévias, classificação das embarcações e outras medidas a estabelecer por despacho ministerial. Entre as autorizações prévias contava-se, como no passado, a construção substituição ou reparação dos cascos das traineiras, bem como o registo como « traineiras» de embarcações registadas noutras pescas. A estas medidas era acrescentada a autorização prévia sobre a modificação de máquina e motores de propulsão e a renovação das licenças de pesca. O ministro da Marinha podia, no entanto, estabelecer um conjunto de regras por despacho que abrangiam toda a actividade: desde a limitação do número de traineiras por categoria e portos de pesca, aos períodos e zonas de defeso da pesca, bem como os tamanhos mínimos da sardinha e outros pelágicos. As sanções aplicáveis no caso de, por exemplo, serem encontradas a bordo redes com comprimento superior ao que fosse fixado, resultavam em multas e na apreensão e venda em hasta pública. O mesmo se aplicava ao pescado capturado durante o defeso ou abaixo dos tamanhos mínimos, com a possibilidade de retirar aos mestres as cartas e cédulas marítimas. Finalmente, a imposição das penalidades continuava a estar a cargo dos capitães dos portos, seguindo a tradição de delegar a autoridade marítima nas capitanias. O articulado do decreto pode fazer supor que esta regulamentação traduzia uma concentração de poderes no Ministro da Marinha. Todavia, tanto o Grémio dos Armadores como a Comissão Central de Pescarias seriam tidos em conta na elaboração de pareceres, a maior parte deles com um peso vinculativo. A Comissão foi, como veremos, particularmente respeitada e solicitada na produção de conhecimento sobre a gestão dos recursos marinhos 475.

471 Ver as duas publicações: A Evolução das Pescas e o seu contributo para o abastecimento alimentar do País. (Lisboa: Gabinete de Estudos das Pescas, 1966), 1966, e Américo Tomás, Impulso dado às Pescas e à Construção Naval em meados deste século pelo Ministro da Marinha (1944-1958), 2. Vols (Lisboa: Orbis, 1971).

472 GAPS, Relatório e Contas, 1947, 9.
473 GAPS, Relatório e Contas, 1948, 6.
474 Despacho nº 160, 22.06.1954, em Tomás, Impulso dado…, 119-123. Despachos nº 156, 25.07.1955, e Despacho nº 264, 30.12.1955, ,161-163 e 179-183, respectivamente. Para o estudo da reforma da pesca da sardinha, v. os despachos nº 231 e 232, Idem…, 275-283; e as condições de criação do fundo de amortização pelo GAPS, v. despachos Nº 32 e 33, 29.1.1957, Idem.., 329-333.

A segunda dimensão do «condicionamento» aplicado à pesca da sardinha está relacionada com o acesso aos recursos marinhos. Mais uma vez, a ação do Estado no segundo pós-guerra é tributária de medidas anteriores e também uma resposta aos desequilíbrios originados pelo crescimento da frota durante a Segunda Guerra Mundial. A pesca de sardinha possuía o seu próprio regulamento desde 1903, que incluía importantes medidas como os tamanhos mínimos das capturas. O regulamento e as primeiras medidas de conservação do recurso resultavam do labor da Comissão Central de Pescarias que, ao tomar em conta os argumentos de armadores, pescadores e os primeiros cientistas do mar, procurava um equilíbrio entre a conservação dos recursos, os meios de pesca autorizados e os rendimentos dos pescadores 476. A gestão do recurso sardinha não implicou uma restrição quantitativa às capturas de âmbito nacional, regional ou sazonal; nem impediu as crises sardinheiras, em particular a de 1925-1927 e a de 1947-1949. Mas foi a reação às crises que suscitou, pela primeira vez, limites indiretos à pesca. Em 1927, em Setúbal, o defeso da pesca foi sugerido por José Luís Supico, mas a aplicação do defeso só seria feita ao fabrico de conservas de sardinha, em 1933, após a criação do Consórcio Português de Conservas de Sardinha. Note-se que esta primeira restrição tinha uma conotação económica, na medida em que impedia a exportação de conservas com a sardinha de Inverno, período em que o peixe estava mais «magro» e comprometia a qualidade da conserva477. Durante a Segunda Guerra, a pressão para a captura da sardinha foi transferida da indústria para o consumo público. A pesca, induzida a uma quase interrupção entre os meses de Fevereiro e Abril pela paragem da indústria conserveira, voltou a ser feita durante o ano inteiro de forma intensiva e incessante 478. Em 1947, perante os primeiros sinais de escassez da sardinha, a direção do GAPS não hesitou em afirmar que estavam perante um fenómeno de «sobrepesca» 479. Esta afirmação resultava de comentários empíricos sobre o comportamento das traineiras, ainda que fosse pouco conhecida a distribuição do manancial ao longo da costa portuguesa, bem como o conhecimento sobre a reprodução da espécie. Esta percepção do problema era certamente influenciada pela recepção em Portugal da obra de Edmund Russel sobre o problema da sobrepesca, traduzida ao Português em 1946 480.

Se na indústria de conservas a ideia de defeso tinha sido introduzida com o propósito de preservar a qualidade das conservas, na pesca da sardinha a ideia de defeso é também inicialmente defendida pela suas vantagens económicas. Com efeito, acreditava-se que, se as capturas fossem interrompidas no momento da desova da sardinha, o peixe voltaria a frequentar as mesmas águas durante o ciclo de reprodução, aumentando a quantidade de peixe disponível no raio de acção da pesca costeira. Timidamente, foi imposta em 1948 a paragem obrigatória de 15 dias a todas as embarcações de pesca, com a condição de cada armador escolher os dias em que deveria cessar a pesca. Em 1954, respondendo aos apelos da Direcção do Grémio de Armadores e com o parecer favorável da Comissão Central de Pescarias, o defeso à pesca de sardinha foi imposto durante os meses de Fevereiro, Março e Abril, com a possibilidade de os armadores manterem as traineiras em exercício para a captura de outros pelágicos e, caso se desse a captura acidental de sardinha, esta não ultrapassar os 15% do total481. Tal como sucedeu na indústria de conservas, o período de início e conclusão do defeso em cada região foi tema de ampla discussão, tendo em conta diversos aspectos como o teor de gordura da sardinha, a mobilidade das artes de pesca e a desigualdade criada entre os centros de conservas482; a tendência geral foi, a partir de 1957, a simultaneidade do defeso da sardinha em todos os portos. Tendência que se nota, de resto, na variação mensal das capturas de sardinha (Quadro 6.10). Para o período 1927-1954, as capturas entre Fevereiro e Abril alcançaram, em média, 7,2 %, enquanto em 1957 obtiveram 2,5 % e em 1966 apenas 4,1%. Por outras palavras, a política oficial de defeso veio consolidar uma tendência recorrente que tinha sido suspensa durante a euforia da guerra. Apesar de não existir uma gestão do stock a partir do conhecimento sobre o estado do stock e os limites sustentáveis da captura, a prática do defeso poderá ter contribuído para a abundância, e a redução das flutuações anuais, que se testemunharam a partir de 1954.

475 Ver, a este propósito, as divergências que se formavam entre os pareceres da Comisão Central de Pescarias e a Direcção de Pescarias sobre as medidas de exploração da pesca; divergências que dificultavam a tomada de decisão do ministro. Despachos nº 156, 25.07.1955, e Despacho nº 264, 30.12.1955 in Tomás, Impulso dado… ,161-163 e 179..
476 Ver Souto e Martins, “Preservação e exploração nas pescas…” Geoinova, nº 11 (2005): 125-137. A coleção de pareceres da CCP, depositada na DGRM, é uma fonte indispensável para o estudo da evolução das artes de pesca e da regulação do Estado no acesso aos recursos, que não foi ainda devidamente investigada.
477 Na Califórnia, à semelhança de Portugal, a baixa qualidade das conservas de sardinha parecia dever-se às grandes quantidades colocadas no mercado por produtores que procuravam reduzir ao máximo os custos de produção, incluindo o recurso a sardinha de qualidade inferior. v. Mcevoy, The fisherman’s problema…, 168.

478 Assim, por exemplo, na safra de 1944-45 (Abril de 1944 a Março de 1945), as capturas entre os meses de Fevereiro e Abril corresponderam a 9,2% (cálculos segundo as Estatísticas das Pescas marítimas, 1945, p. 12/13). Após a imposição do defeso da sardinha em 1954, este valor será virtualmente nulo; as capturas das artes de cerco referem-se a outros pequenos pelágicos como o biqueirão, a cavala e o carapau.
479 GAPS, Relatório e Contas, 1948, 8.
480 Sobre a divulgação do problema da sobrepesca em Portugal, v. A. Garrido, Economia e Política das pescas portuguesas…, 30-46.
481 Despacho nº 35, de 8.2.1954, Tomás, Impulso dado…, 101-103.
482 Em 1954, por exemplo, o IPCP tinha discordado do parecer da CCP que sugeria um desfasamento entre o período de defeso no Algarve e nos outros centros piscatórios, o que permitiu aos barcos de pesca no Algarve pescarem em Janeiro e desembarcar sardinha fora da região. O Ministro segue e aceita as orientações da CCP. V. Despacho nº 305, 6.11.1954, Idem…, 133-135.

Da política de «condicionamento» podemos retirar duas conclusões prévias. A primeira é que, em geral, esta resultou em benefício para a pesca da sardinha. A contenção no número de embarcações foi acompanhada por um aumento das capturas médias por embarcação e um aumento da produtividade criado pela introdução de novas tecnologias; por outro lado, o defeso, permite colocar a mera hipótese de ter contribuído para a reprodução do stock e o crescimento – senão sustentável, pelo menos sustentado – das capturas. Com efeito, a ideia de «sobrepesca» em voga no imediato pós-guerra deixou de estar entre as preocupações de armadores e conserveiros até à segunda metade dos anos sessenta… com ela soçobraram também as investigações aplicadas ao recurso da sardinha que, não obstante alguns estudos desenvolvidos pela Estação de Biologia Marítima, entraram numa letargia prolongada após a morte de Alfredo Magalhães Ramalho, em 1959.

Em todo o caso, a ausência de limites quantitativos à captura de sardinha colocaria em Portugal aquilo que Arthur Mcevoy designou como o «problema do pescador», no seu caso de estudo sobre a sardinha da Califórnia. Num cenário de acesso livre aos recursos marinhos, os produtores procuravam obter o máximo rendimento possível porque, se não o fizessem, outros poderiam capturar os recursos em maior quantidade. Na ausência de um conhecimento científico e uma prática regulatória que apontasse para limites máximos por safra e por dia de pesca, a consequência mais notável foi o constante aumento das capturas acompanhado pela desvalorização dos preços da sardinha vendida na lota, tanto para a indústria como para o consumo. Em 1950, após a recuperação das capturas, a direcção do GAPS sentenciava que «a queda dos preços ameaça a pesca da sardinha quase tanto como a escassez do peixe»483. Noutros países da OCDE, a partir dos anos sessenta, o problema da criação de excedentes, a exploração intensiva dos recursos e a desvalorização da pesca levou à criação de apoios financeiros durante a paragem da faina. Em Portugal, ainda que os subsídios fossem atribuídos ao defeso da indústria de conservas, o mesmo não aconteceu na pesca de sardinha484. A pesca de outros pelágicos, cujas capturas tinham flutuações ainda mais pronunciadas do que a sardinha, nunca ofereceu um valor comercial que pudesse substituir a sardinha. Sublinhe-se, ainda, a impossibilidade de armazenar o peixe fresco e a dependência dos compradores que fixavam o preço à pesca na primeira venda em lota. A indústria da salga – que permitiria regular a oferta de sardinha à indústria de conservas e ao consumo público – entrou numa lenta agonia pautada pela mudança nos hábitos de consumo no país e no exterior. Eis um dos paradoxos deste período: a sardinha, recurso abundante, foi um factor de competitividade internacional para a indústria de conservas e teve um forte crescimento no consumo interno entre os anos cinquenta e setenta; no entanto, a exploração deste recurso criou comunidades pobres, com escassa remuneração na actividade extrativa, «condenadas» a aumentar consecutivamente a extracção de recursos para compensar as despesas correntes da exploração.

A partir deste diagnóstico podemos supor que o «fomento» da pesca da sardinha não foi a prioridade das políticas públicas dirigidas ao sector das pescas. Com efeito, a renovação das frotas de pesca longínqua, com a construção de novas embarcações de arrasto, em articulação com o desenvolvimento da rede de abastecimento e distribuição no mercado interno, foram o fulcro do fomento à pesca485. Em 1951, o despacho do Ministro da Marinha que anunciava o primeiro plano de financiamento esclarecia a posição sobre a pesca de sardinha:

«Nesta pesca não se justifica qualquer ampliação da frota existente. Ela é mais do que suficiente, pois quando a sardinha é abundante não há possibilidade de consumir toda a que é pescada. Os investimentos a fazer nesta pesca destinam-se, somente, a introduzir nas embarcações os indispensáveis melhoramentos (…) Entre eles avulta o equipamento com sondas ultra-sonoras, para detecção dos cardumes, o que permite diminuir consideravelmente o número de lances sem sucesso e reduzir as dimensões das redes, e com telefonias, que constituem elemento importante para a segurança das tripulações»486.

Uma outra forma de avaliar o escasso «fomento» à pesca de sardinha, em comparação com outras pescas, são as emissões de obrigações do Fundo de Renovação e Apetrechamento das Pescas (FRAIP), criado em 1953. Por exemplo, na terceira obrigação emitida em Abril de 1955, o pedido de empréstimo foi de 50 mil contos, mas apenas dois mil diziam respeito à pesca da sardinha; na quarta obrigação, em 1956, a percentagem destinada à pesca de sardinha era apenas de 1% e, para 1957, de 2%487. No balanço sobre o primeiro plano de fomento das pescas, o relatório esclarecia que o «melhoramento» da pesca de sardinha previa, essencialmente, a aquisição de 150 sondas ultra-sonoras no valor de 4600 contos488; contudo, dizia o mesmo relatório, muitos armadores não tinham mostrado interesse em adquirir as sondas e radiotelefonias a partir dos empréstimos do FRAIP. A grande maioria dos empréstimos seria aplicada na substituição dos cascos ou na aquisição de novos motores489. Note-se, ainda, que não foram satisfeitas as pretensões do Instituto Português das Conservas de Peixe que, no rescaldo da crise de 1947-1949, propusera a construção de dois barcos frigoríficos para transportar a sardinha das lotas onde havia mais abundância para os centros conserveiros onde a sardinha escasseava.

Na preparação do II Plano de Fomento (1958-1964), a pesca da sardinha ganhou alguma importância relativa com a previsão de 10% do total dos investimentos. Previa-se a construção de 25 traineiras e a substituição das 64 traineiras com data de construção anterior a 1936 que continuavam a exercer a faina490. O principal incentivo do segundo plano era dirigido à construção naval. Note-se que as perspectivas de aumento do consumo de sardinha no mercado interno – uma variável que passou a constar nos planos de fomento, a par de uma mais desenvolvida reflexão sobre a economia portuguesa491 – eram díspares: por um lado, previa-se um aumento demográfico que podia resultar num acréscimo de consumo de sardinha; por outro, com a expectável «elevação do nível de vida», temia-se que o gosto dos consumidores se alterasse e a sardinha perdesse na capitação do consumo492. Finalmente, as previsões para o terceiro Plano de Fomento (1968-1973) dá-nos uma ideia sobre a evolução das ajudas públicas ao sector das pescas. Estas tinham sido dirigidas, sobretudo, à renovação das frotas de pesca longínqua. Na prospectiva adivinhavam-se, no entanto, dois problemas essenciais: o alargamento da área das águas territoriais, que a breve trecho iria impedir as frotas portuguesas de frequentar os bancos de pesca; e o tabelamento dos preços máximos do pescado, política que, subordinada ao princípio axiomático de controlar a inflação e os salários, criou um sector descapitalizado, com dificuldades em adoptar novas estratégias de capital-intensivo 493.

Na realidade, se restringirmos a análise à execução dos Planos de Fomento podemos ficar com uma visão distorcida sobre a acção do Estado. Nesta acção devemos incluir a atuação do GAPS, criado por decreto em 1938, cujo papel no «fomento corporativo» à pesca de sardinha foi fundamental. Com efeito, mesmo antes da entrada em vigor dos planos de fomento das pescas em 1953, o GAPS concedeu empréstimos que permitiram a introdução de novas tecnologias e o subsequente aumento da produtividade. Estes empréstimos foram concedidos durante a fase de maior retração das receitas obtidas com a pesca, através da Cooperativa de Armadores da Pesca da Sardinha, com baixas taxas de juro e prazos longos de amortização (Quadro 6.11).

483 GAPS, Relatório e Contas, 1950, 8.
484 V. OCDE, Subventions et autres aides financiéres aux industries de la pêche dans les pays membres de l’OCDE (Paris: OCDE, 1965), e Carmel Finley, All the boats on the Ocean. How Government Subsidies led to Global Overfishing. Chicago: The University of Chicago Press, 2017.
485 V. Álvaro Garrido,«Políticas de abastecimento no segundo pós-guerra: a “Organização das Pescas”». Análise Social, XXXV, nº156 (2000): 651-694.
486 Despacho nº 171, de 8.12.1951, Tomás, Impulso dado a…, 67.
487 p., nº 85, Ver despacho nº 85, de 29.04.1955. – 3ª obrigação FRAIP e sua aplicação, Idem…,145-149. Ver também despacho nº 70, 23.03.1956 (Revisão do FRAIP), Idem…, 189-195; e despacho nº 82, 31.03.1956 (4ª obrigação do FRAIP), Idem…, 201-205.
488 Seis anos de actividade do FRAIP…,19.
489 Idem…, 21-23.

490 p.. Ver Despacho nº 121, 19.05.1956, em Tomás, Impulso dado às pescas…, 225-241.
491 V. Nunes e Brito, Política económica, industrialização e crescimento…, 323 e ss.
492 Para ver as duas perspectivas divergentes: Presidência do Conselho, Projecto de Plano de Fomento para 1959-1964. Lisboa, 1958, 50 a 54; «O II plano de Fomento e a indústria da pesca», Jornal do Pescador, XX (1958): 22.
493 Presidência do Conselho. III Plano de Fomento para 1968-1973, 49/50.

A atribuição de crédito pelo GAPS esteve subordinada ao princípio axiomático de as empresas reduzirem os seus custos de produção. Ao mesmo tempo que concedia créditos, o organismo corporativo pugnava pela redução da extensão das redes, realizava testes e encomendas de novas redes com fios sintéticos – mais resistentes e baratas do que as tradicionais redes de algodão – e instalou em 1947, a título experimental, a primeira sonda ultra-sónica numa traineira494. Obteve ainda condições favoráveis de fornecimento de combustíveis e apetrechos de pesca. Os resultados foram visíveis: o aumento de produtividade das embarcações fez com que, entre 1950 e 1958, a produção das artes de cerco tivesse duplicado com praticamente o mesmo número de embarcações. Note-se que o modelo de construção das traineiras permitia a incorporação de novas tecnologias sem a transformação radical das dimensões ou dos cascos das embarcações. Veja-se o exemplo de um armador em Olhão, relatado pelo jornalista Manuel Domingos Terramoto:

«Aproveitámos a ocasião para nos dirigirmos ao armador Carlos Barros e Vasconcelos , proprietário da traineira «Clarinha» (…) Aproveitou as facilidades do Fundo de Renovação das Pescas e contratou com o construtor naval de Olhão, Licínio Mendes Correia, a construção da «Nova Clarinha», sob um plano já aprovado pelo Ministro da Marinha. Após seis meses de trabalho ficará concluída a traineira, que disporá de um motor de 230 cavalos e iniciará a sua actividade na safra seguinte. Este barco terá cerca de quatro metros mais de comprimento do que o antigo, que tem um motor de 120 cavalos, será provido de melhores condições para a navegação e acomodação do pessoal, enfrentando o mar com mais desassombro, pois que «palmo de borda é palmo de vida», na gíria marítima. Empregará também uma rede integralmente de «nylon», porquanto está demonstrada a sua superioridade sobre a de algodão que exige mais trabalho com a conservação, limpeza e consertos, sendo por conseguinte mais «pescalheira» »495.

Deste percurso sobre o «condicionamento» e o «fomento» público da pesca da sardinha podemos retirar duas conclusões. Em primeiro lugar, é preciso notar que toa a política de «fomento» esteve subordinada à intensificação da exploração dos recursos pelágicos costeiros. Desde os modelos de construção das traineiras às obras de construção dos portos de pesca com cais acostáveis para pequenas embarcações, o investimento público procurou modernizar a pesca da sardinha sem alterar a sua relação essencial com o hinterland, como o abastecimento de sardinha á indústria de conservas e a utilização intensiva da mão-de-obra masculina disponível nos aglomerados urbanos do litoral. No final dos anos sessenta, com a queda abrupta e espontânea das capturas, os armadores reconheceram não estar preparados para lançar a faina m territórios longínquos e transportar a sardinha congelada para a abastecer a indústria e o mercado interno496. A ausência de estratégias de capital-intensivo não é imputável apenas aos empresários ou aos poderes públicos. A jusante da pesca, o consumo de sardinha congelada era praticamente nulo; a indústria de conservas, em particular, proibiu o seu uso até aos setenta com o receio de afectar a qualidade das conservas.

Em segundo lugar, é importante notar que o «condicionamento» no acesso à sardinha não acompanhou a discussão em curso sobre a gestão dos recursos pesqueiros a partir de um máximo sustentável das capturas 497 . O desconhecimento sobre o comportamento do recurso foi exemplarmente exposto no já citado terceiro Plano de Fomento: para o período de 1968-1973, era prevista uma captura anual acima das 240 mil toneladas quando, na realidade, em 1968 as capturas desceram abaixo das 70 mil toneladas498. O aumento da produtividade das embarcações foi seguido com a crença que o manancial de sardinha não estava em perigo e, pese embora algumas flutuações, podia continuar a ser explorado de acordo com a procura do mercado.

494 V. GAPS, Relatório e Contas, 1948.

495 «Anotação sardinheira em Olhão», Jornal do Pescador, nº 273 (1961), 42-44.
496 Ver «A pesca da sardinha. As dificuldades com que lutam os industriais de conservas», Jornal do Pescador, nº 359 (1968).
497 V. Garrido e Starkey 2020; Finley, 2017.
498 Presidência do Conselho. III Plano de Fomento…, p. 58.

6.2. Consumo e preços.

A jusante da produção primária, a distribuição e utilização do pescado teve importantes mudanças durante o segundo pós-guerra. Essas mudanças, inseridas na «cadeia de oferta de peixe», induziram novas transformações na seleção das espécies capturadas e produziram, em diversos casos, uma exploração ultraintensiva e não sustentável dos recursos marinhos. A pesca da sardinha da Califórnia e, mais tarde, a anchova capturada no Pacífico Sul, são casos emblemáticos de como as instituições nacionais, a ciência e os interesses da pesca não se conciliaram a tempo de criar uma estratégia de preservação dos recursos marinhos. A exploração dos recursos aparece, assim, sujeita a pelo menos três tendências que vão mais além da relação entre o desenvolvimento tecnológico e a abundância relativa do peixe. Em primeiro lugar, é importante recordar que a pesca é exercida por empresas com custos fixos, sujeitas a taxas de juro para amortização dos seus ativos e com uma distribuição irregular de capital e trabalho499. A exploração mais intensiva dos recursos e a diminuição da sua abundância induz a elevação dos custos de produção, o que pode obrigar as empresas de pesca a alterar a distribuição e utilização do pescado – incluindo o «desperdício» ou inutilização de capturas – para manterem os níveis de rendimento e os preços desejáveis no mercado. Em segundo lugar, as indústrias da pesca dependem da integração económica que têm com outros sectores, sobretudo com a atividade agrícola e pecuária. O crescimento espetacular da produção de farinhas de peixe após a Segunda Guerra Mundial – nalguns países, como a Noruega e os Estados Unidos, esse protagonismo é ainda anterior à guerra – é tributário do aumento da procura por fertilizantes e rações animais, sobretudo no mercado norte-americano500. Em terceiro lugar, o consumo de peixe move-se num ambiente de irracionalidades económicas em que o preço, sendo importante, não é o único factor a ter em conta; com os preços concorrem as tradições de consumo, as campanhas de publicidade, o desenvolvimento de redes de distribuição e dos espaços domésticos. Os governos atuaram sobre estas condicionantes com o apoio aos serviços de abastecimento de peixe e à difusão de redes de frio industrial, bem como a gestão dos preços do pescado, sobretudo quando este continuava a ser uma das principais fontes de proteína animal501. Se a economia política da produção primária incidiu sobre o «condicionamento» e «fomento» da frota e do acesso aos recursos, nesta fase centra-se na regulação – ou criação – das estruturas de distribuição e na gestão de preços de venda a grosso e no retalho.

Antes de entrarmos no domínio particular da distribuição da sardinha em Portugal, destacamos as duas principais tendências internacionais: o problema da criação de excedentes e a transformação nos hábitos de consumo dos produtos da pesca. Note-se que, quanto ao primeiro, que devemos entender como «excedente» a quantidade de peixe capturado que não atingia um preço de venda aceitável para o produtor 502. A criação de excedentes, a partir dos anos cinquenta, devia-se a dois factores: o esforço de reconstrução das frotas de pesca e da potência instalada, que levou a um crescimento espectacular das capturas após a Segunda Guerra Mundial; e a perecibilidade do peixe, cuja qualidade se deteriorava logo após o desembarque, e exigia a criação de estratégias de capital-intensivo para distribuir e alargar o consumo nas áreas distantes dos portos de pesca. Além da fragilidade do peixe, as capturas eram irregulares, o que aumentava o risco de investimento em redes de frio para distribuição do pescado. A criação de excedentes em alguns segmentos da produção foi compensada com o fabrico de novos produtos. Com o final da Segunda Guerra Mundial, o consumo de conservas de arenque produzidas no Canadá, por exemplo, diminuiu drasticamente, e a produção de arenque foi dirigida para o fabrico de farinhas de peixe. Em Inglaterra e na Noruega ocorreu o mesmo fenómeno503. De acordo com a FAO, a produção de farinhas de peixes já absorvia cerca de 15% das capturas mundiais em 1955 e, entre 1947 e 1953-54, crescera de um total anual de 400 mil toneladas para 950 mil504. A criação de excedentes, em suma, não implicou uma moderação na actividade extrativa; serviu de impulso à criação de subprodutos que, após a sua valorização do mercado, tornaram-se no principal output da produção pesqueira industrial. Além de provocarem uma nova pressão sobre os recursos marinhos, a produção de farinhas originou conflitos com os pescadores que dirigiam as capturas para o consumo humano 505 .

A segunda tendência, como referimos, foi a transformação nos hábitos de consumo. Não podemos aqui desenvolver em detalhe essa transformação, mas salientar alguns aspectos que influenciam o consumo das conservas portuguesas. Quando observamos a tendência global da produção pesqueira, as conservas, a par do fabrico de farinha de peixe e do peixe sagado, são os segmentos que mais crescem 506. Todavia, foi a produção de peixe congelado que teve um crescimento mais expressivo e que passou a dominar o consumo nos países mais industrializados, em conjunto com o peixe fresco. A congelação de peixes inteiros, especialmente atuns e similares, permitiram não só uma forte expansão da distribuição e do consumo mas também a regularização do trabalho na indústria de conservas, que passava a dispor de uma matéria-prima durante todo o ano507. Em 1955, como descreve o relatório já citado da FAO, as importações de peixe congelado no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos tiveram um crescimento notável e protagonizaram o comércio internacional de produtos da pesca508. Ao mesmo tempo, os hábitos de consumo mudavam não só devido aos preços mas também à acção da indústria transformadora, da publicidade e da venda a retalho. No Reino Unido, por exemplo, o consumo de white fish e do peixe fresco em geral caiu face à popularidade do peixe processado e a comercialização de novos produtos como o fish finger e as refeições pré-cozinhadas 509. Nos EUA, o consumo per-capita de pescado foi estável nas década centrais do século XX, mas houve alterações sensíveis no consumo. Enquanto o consumo de peixe salgado foi gradualmente desaparecendo o consumo de conservas manteve-se em um terço do total, o grande crescimento deu-se no consumo de peixe fresco e congelado. Para isso contribuiu não só o aumento dos salários e a maior procura por proteínas animais, mas também a generalização dos frigoríficos nos lares americanos, um dos electrodomésticos mais precoces510. Todas estas tendências têm impacto no consumo de conservas: com uma perda de protagonismo entre os consumidores com maior poder de compra e a maior expansão a verificar-se nos países menos industrializados, a indústria de conservas ver-se-ia obrigada a reduzir preços de venda e comprimir os custos de produção.

Na realidade, as tendências globais que acabámos de descrever não se refletiram no desenvolvimento das pescas portuguesas, sobretudo no segmento da pesca da sardinha. Entre 1946 e 1970, a sardinha capturada em Portugal teve dois destinos quase exclusivos: a indústria de conservas e o consumo público em fresco. A congelação da sardinha, quer para consumo doméstico ou para exportação, bem como a transformação em farinhas, foi insignificante: cada um dos processos não superou habitualmente as 5 mil toneladas num período em que as capturas médias se situaram acima das 150 mil toneladas anuais. A indústria da salga, por sua vez, entrara em declínio, não só pela retração do consumo interno e externo mas também pelas restrições à entrada de novos salgadores no mercado 511. Porque é que a idústria transformadora portuguesa seguiu este rumo? A resposta é complexa e exige, ainda que brevemente, a invocação de duas circunstâncias. A primeira é a relação paradoxal da indústria da pesca com a produção agrícola. Num primeiro plano – o da produção primária no litoral – a pesca estava plenamente integrada com a actividade agrícola, num ciclo de sazonalidades ocupacionais, com a exceção dos núcleos urbanos ligados à indústria de conservas. Contudo, num plano nacional, a pesca não fornecia rações animais ou fertilizantes ao sector agrícola que continuava a ser, até meados dos anos 60, a principal actividade económica portuguesa. Num ambiente de economia protegida, o fabrico de adubos e fertilizantes estava há muito tempo concentrado em grandes empresas, como a CUF, e recebeu a participação do Estado em projectos industriais autónomos 512. A produção de farinhas de peixe, acalentada nos anos 30 pelos engenheiros do Consórcio e perseguida no malogrado episódio da «fábrica corporativa» de Alhandra, redundou em fracasso e subsistiu apenas nos centros conserveiros como aproveitamentos dos resíduos da indústria de conservas. Em segundo, devemos ter em conta que Portugal não só detinha um dos maiores consumos per capita como ostentava um programa público de abastecimento de peixe, sobretudo de espécies demersais, que também influencia a distribuição e consumo de sardinha. No caso da sardinha, a carestia vivida durante a Segunda Guerra Mundial trouxe uma mudança de grande fôlego: as fontes apontam para uma média de 21 mil toneladas anuais destinadas ao consumo público, entre 1925 e 1939, mas a partir de 1943 esse valor ultrapassou as 60 mil toneladas, tornando-se, em volume, o principal destino da pesca de cerco. E ainda que este crescimento sustentado do consumo interno se possa dever à melhoria das estruturas de transporte, a distribuição continuou a ser feita por meios tradicionais, nomeadamente pelas varinas na cidade de Lisboa, o principal mercado consumidor. Ainda que os preços da sardinha não fossem fixados por via administrativa, o tabelamento dos preços da pesca de abastecimento serviu para moderar o preço de venda da sardinha fresca e mantê-la acessível aos segmentos mais pobres das populações urbanas.

Na realidade, o estímulo ao crescimento da pesca da sardinha parece ter estado numa complementaridade entre a procura da indústria de conservas e o consumo público. A conjuntura favorável de crescimento dos dois consumos originou um aumento desmesurado das capturas que, sem flutuações muito pronunciadas durante cerca de 15 anos, só deram sinais de ruptura em 1967. O problema dos excedentes induzido pelo desenvolvimento da pesca industrial oceânica não chegou a colocar-se na pesca costeira em Portugal, ainda que os baixos preços de venda da sardinha ao público pudessem indiciar a saturação do mercado. Será apenas no final dos anos sessenta, com a escassez de sardinha na costa, que as estruturas da pesca e da indústria transformadora vão ser pressionadas a introduzir transformações radicais para reduzir os custos de produção e diversificar o modelo das capturas.

499 V. Mcevoy, The Fisherman’s Problem…, 168.
500 FAO, The state of food and agriculture…, 179/180.
501 De acordo com a OCDE, a intervenção sobre os preços do pescado era ainda uma prática corrente em diversos países ocidentais nos anos sessenta. V. Politiques et economies de pêche. Paris: OCDE, 1966.
502 OCDE, Le Marché du Poisson…,65-68.
503 FAO, The state of food and agriculture…,180. Para Inglaterra, v. Chris Reid, «Underutilization, Undersupply, and Overfishing in the Herring Industry 1930-1980: A Case Study in the Evolution of Britain’s Productivist Fisheries Policy» em Too valuable to be lost: overfishing in the North Atlantic since 1880, org. Álvaro Garrido e David Starkey, (Berlim: De Gruyter, 2020), 87-109.
504 FAO, The state of food and agriculture…,180.

505 Coull, World fisheries resources …, 214.
506 Idem…, 216.
507 Finstad argumenta, no caso da Noruega, que a introdução do peixe congelado transformou a cultura costeira da Noruega. Com esta inovação, a indústria transformadora introduziu modelos de produção «fordística» com uma nova divisão do trabalho e uma desintegração social com os modelos de organização das pescas locais sazonais. V. Bjorn-Petter Finstad, «The Frozen Fillet: The Fish that changed North Norway?». International Journal of Maritime History, XVI-1 (2004), 34 e ss.
508 FAO, The state of food and agriculture…, 175.
509 Reid, Evolution in the Fish Supply…, 39-41.
510 V. Paul Josephson, «The Ocean’s Hot Dog: The Development of the Fish Stick». Technology and Culture, 49 – 1 (2008); em especial 45-58.
511 V. capítulo sobre o condicionamento industrial. No início dos anos cinquenta, os armadores da pesca de sardinha pugnavam pela reabilitação da indústria da salga para que esta funcionasse como um regulador do preço da sardinha em lota, em particular nos momentos em que tanto a indústria de conservas como o consumo público tinham quebras na procura.
512 Sobre a «indústria-base» de adubos azotados e a participação do Estado, v. J. Martins Pereira, Para a história da indústria…, 39-52.

6.2.1 Os ciclos de consumo.

A análise dos mercados da sardinha é fundamental para compreender o crescimento da produção primária; o desenvolvimento tecnológica da pesca não é um elemento suficiente para explicar o crescimento das capturas e a sua especialização na sardinha. As outras espécies pelágicas, além de apresentarem flutuações tão grandes ou ainda maiores do que a sardinha, nunca obtiveram o valor alcançado pela sardinha nas vendas à indústria. A distribuição da sardinha entre a indústria de conservas e o consumo público revela duas tendências. Em volume, o consumo público foi o principal destino das capturas; mas, em valor, foi a indústria de conservas que dominou e aquela que mais contribuiu para as receitas globais da pesca. O preço pago pela indústria chegou, nalguns casos, a ser o dobro daquele pago para consumo público. Os dois consumos tiveram uma relação dinâmica, com três fases distintas, que sustentaram o contínuo crescimento da pesca.

Antes de analisar os ciclos de consumo, importa salientar que a tensão essencial entre conserveiros e vendedores de peixe ao público se fazia na lota, durante a primeira venda do pescado. Salvo porventura em Portimão, onde existia uma forte integração vertical entre a pesca e a indústria, os conserveiros não conseguiram controlar a variação dos preços513. Esta vulnerabilidade, que se tornou a principal polémica discutida na imprensa conserveira no segundo pós-guerra, era agravada pela ausência de estruturas de frio nos portos conserveiros e a relutância em utilizar sardinha refrigerada ou congelada no fabrico de conservas. O decreto 40:787, de 1956, que previa o estabelecimento de preços de venda da sardinha à indústria, nunca chegou a ser posto em prática. Note-se , por outro lado, que o mercado livre da venda de sardinha abrangia os preços de venda ao consumo que foram particularmente baixos em comparação com outras espécies. Apesar de a sardinha não estar sujeita ao tabelamento de preços, a contenção salarial e os preços fixos das espécies demersais arrastaram os preços da sardinha. A descapitalização do sector só foi evitada com a livre procura exercida pela indústria de conservas.
Podemos situar um primeiro ciclo de consumo entre 1943 e 1953, isto é, o período final do conflito mundial e o imediato pós-guerra. Durante onze anos, o volume de sardinha absorvido pelo consumo público foi superior à indústria. Com efeito, este é o período de maior crescimento do consumo público de sardinha que, em 1947, em plena crise de abastecimentos, atingiu as 62 mil toneladas a um preço médio de 2$ por quilo. Contudo, durante a crise de 1948-49, a indústria de conservas recuperou o seu peso no volume das capturas demonstrando que, num cenário de escassez, os preços pagos pela indústria foram, em média, entre 20 a 30% mais elevados do que a sardinha vendida para consumo em fresco. Os conserveiros beneficiaram do «direito» de escolher os melhores indivíduos, em melhor estado de conservação e com os tamanhos ideais para o fabrico de conservas, e de comprar a sardinha em períodos de forte concorrência com o consumo público, como os meses de Verão. Note-se, todavia, que entre 1947 e 1952 a indústria de conservas atravessou uma forte contração que impedia, no médio prazo, a compra de sardinha a preços elevados, correndo o risco de perder a competitividade internacional. Neste período «híbrido» de forte expansão do consumo público e moderação da produção industrial, a procura foi suficiente para contornar o decréscimo do rendimento médio das embarcações. Foi a expectativa de retomar o comércio europeu de conservas, conjugado com a expansão do consumo interno, que deu alento à introdução de novas tecnologias na pesca.

O segundo ciclo, que podemos situar entre 1954 e 1964, é um período de inusitado crescimento em que as capturas superaram as 100 mil toneladas anuais, excepto em 1955 e 1956. Em todos os anos, a indústria de conservas absorveu a maior quota de sardinha, tanto em volume como em valor. O período de maior crescimento da pesca da sardinha coincide com a etapa de maior expansão da indústria de conservas, sobretudo devido aos efeitos de liberalização do comércio intraeuropeu e o crescimento das exportações para a Alemanha. Uma segunda característica deste período é a aproximação entre os preços médios da sardinha vendida à indústria e ao consumo. Até 1957, a intensa procura permitiu a subida dos preços médios, mesmo em anos em que aumentou o volume das capturas. A partir de 1958, os preços médios anunciam um abrandamento. Estes dados indicam, como hipótese mais fiável, que a procura conjunta da indústria de conservas e do consumo atingia um máximo de cerca de 110 mil toneladas. Ora, as capturas, apesar dos rendimentos decrescentes e da comprovada melhoria das receitas globais em anos de contenção do esforço de pesca, não pararam de crescer. Em 1964 atingiram um máximo de 157 mil toneladas que colocavam Portugal como segundo produtor mundial da sardinha europeia, logo atrás de Marrocos.

Finalmente, o terceiro ciclo abrange o período entre 1965 e 1972, em que a característica mais saliente é a quebra contínua das capturas de sardinha, com uma queda de quase 40% entre 1967 e 1968 e, a partir desse ano, um valor médio inferior às 80 mil toneladas. Neste período, o consumo público passou a absorver a maior quota dos desembarques de sardinha, tanto em volume como em valor. Este dado é particularmente relevante no triénio 1965-67, enquanto as capturas se mantiveram acima das 100 mil toneladas, porque revelam o arrefecimento da procura da indústria de conservas. Houve, no entanto, um evidente acréscimo do consumo público, que recuperou os valores registados em 1947. As capturas, no entanto, recuaram abruptamente e os preços atingiram máximos históricos em 1969. Em 1971, pela primeira vez em 30 anos, os preços médios atingidos pelo consumo superaram os preços da indústria. Em desespero, os industriais de conservas ensaiaram durante estes anos, também pela primeira vez, a importação de sardinha congelada. A subida dos preços deve ter em conta diversos factores. Além da escassez do poder de compra e o aumento do poder de compra dos consumidores, os primeiros anos setenta conheceram uma nova tendência de inflação. Por outro lado, é plausível que o final do tabelamento dos preços da pesca longínqua e de arrasto tenham influenciado os preços da sardinha e a consequente perda de competitividade da indústria de conservas portuguesa.

 
 

Em síntese, poderíamos afirmar que, partindo da conjuntura do imediato pós-guerra em que a sardinha foi distribuída em grandes quantidades para o abastecimento público, a etapa de maior crescimento deu-se com a reabilitação da indústria de conservas nos mercados externos. Todavia, a exportação de conservas deu sinais de abrandamento a partir de 1965 e, a partir desse período, o consumo público recuperou o protagonismo, apesar da escassez e a consequente subida nos preços. Quer pela leitura dos relatórios do GAPS e da legislação, quer pela análise das estatísticas das pescas e dos preços, podemos afirmar que não existiram esforços de abrandar o esforço de pesca sempre que as capturas ultrapassaram as 100 mil toneladas e os preços de primeira venda tenderam a descer. Mais uma vez devemos ter em conta o «problema do pescador» identificado por Arthur Mcevoy na Califórnia, que se traduz pela ausência de mecanismos regulatórios que pudessem compensar os agentes económicos privados pela paralisação da pesca. Além de operarem num regime de acesso livre aos recursos, com exceção do período de defeso, os armadores debatiam-se, segundo as fontes oficiais, com uma carga fiscal que alcançava os 20% da receita global bruta 514.


A complementaridade entre os consumos deu-se não só em conjunturas anuais – em que os stocks de conservas influenciavam os preços e a procura – mas também numa articulação sazonal do mercado. O quadro 6.15 apresenta a variação mensal dos preços de venda da sardinha para «fabrico» no continente e para consumo nos principais mercados de Lisboa (Ribeira Nova) e Matosinhos, entre 1956 e 1965. O período de venda exclui os meses de defeso, Fevereiro e Março. A partir de Abril e até Junho, a retoma do funcionamento da indústria e o consumo público estimulavam a procura, mas o peixe ainda «magro» provocava uma contenção nos preços pagos pela indústria. Os meses iniciais do verão mostram a importância da sazonalidade do consumo com os preços em Lisboa a superarem os preços pagos pela indústria, em Junho, e os preços de consumo em Matosinhos e de «fabrico» no continente a atingirem os valores mais altos em Julho. Mas a intensificação das capturas estava reservada para os meses de Outono, quando a sardinha atingia o teor máximo de gordura e era mais procurada pela indústria. Era neste período, que se prolongava até Janeiro, que a indústria dominava a lota com os preços mais altos e absorvia as maiores quantidades de sardinha. Em todo o caso, a retração do consumo público no Outono e Inverno permitia que os preços não subissem excessivamente.

513 Sobre a influência de grandes empresas no preço da sardinha na lota, por via da compra ou dos desembarques das traineiras de que eram proprietários, ver a correspondência entre José Feu e Agostinho Fernandes, AMP, Feu Hermanos, Caixa 15.

514 V. A Evolução das Pescas…, 72.

A par dos ciclos de crescimento, os desembarques de sardinha registaram importantes variações regionais. Enquanto espécie migratória, a sardinha estava exposta a diferentes factores biológicos que determinam a sua distribuição. Note-se, no entanto, que artes de cerco também eram móveis, o que significa que as traineiras podiam mover-se até às zonas de pesca mais abundantes e também descarregar a sardinha nos portos com maior procura, tanto na indústria como no consumo público. De acordo com o quadro 6.16, o aspecto mais notável do segundo pós-guerra foi a concentração dos desembarques na região Norte. À medida que as capturas cresceram, a percentagem relativa dos desembarques a Norte foi cada vez mais relevante. Mais uma vez, devemos ter em conta a complementaridade dos consumos: se, por um lado, o consumo de sardinha nos núcleos urbanos do norte foi notável, por outro, a indústria de conservas em Matosinhos tornou-se o principal centro de conservas do país frente à decadência dos centros algarvios e de Setúbal. A concentração dos desembarques aumentou, assim, as assimetrias regionais da indústria em que o preço do peixe, além de factor de competitividade internacional, era também um factor de concorrência interna. A proibição de transportar sardinha a mais de 150 quilómetros do local de desembarque para outros centros industriais, a somar aos custos de transporte, compunham o problema dos centros conserveiros com menor volume de capturas.

Entre 1950 e 1964, o porto de Leixões tornou-se um dos maiores portos sardinheiros do mundo, em conjunto com Safi e Agadir, em Marrocos. É neste período que o centro conserveiro de Matosinhos consolida as suas vantagens competitivas típicas do fenómeno de cluster. As vantagens de Matosinhos devem-se à concentração de bens e serviços auxiliares à indústria de conservas, à disponibilização de uma abundante mão de obra feminina com um custo de trabalho mais baixo do que noutros centros e à cooperação entre fábricas de pequena e média dimensão para a criação de economias de escala515. O preço do pescado foi, no entanto, o elemento que mais vincou as vantagens comparativas e as assimetrias regionais (Quadro 6.17). Em Matosinhos, a concentração dos desembarques permitiu a venda da sardinha à indústria com os preços mais baixos em todo o país. Em Setúbal, o encarecimento da sardinha deveu-se a uma menor quantidade de desembarques mas também a uma maior percentagem de utilização em conservas que pressionou a subida dos preços. Em Peniche, pelo contrário, a menor percentagem dos desembarques destinados à indústria provocou uma ligeira contenção dos preços. O desenvolvimento no Algarve é inverso ao do norte: as safras, cada vez menos abundantes, fizeram subir os preços da sardinha a preços superiores a 4$ por quilo na primeira venda, enquanto no norte se situavam em torno dos 3$. Apesar da integração da pesca e da produção de conservas de maior valor acrescentado, como as especialidades de sardinhas sem pele e sem espinha vendidas para os EUA, as empresas algarvias tiveram dificuldades cada vez maiores em manter a produção de sardinha e optaram, em particular no sotavento, por aumentar a produção de anchovas a partir do biqueirão.

515 V. capítulo 7.

516 A Evolução das Pescas…, 60-63.

Em teoria, a maior concorrência na aquisição de pescado a norte teria provocado a subida dos preços. Mas isso não veio a acontecer porque as capturas cresceram de forma ininterrupta até 1965. Além disso, como a procura da indústria de conservas era irregular, dependente dos mercados internacionais, o abastecimento público permitiu compensar as flutuações da procura, absorver os excedentes e manter a remuneração à pesca. Todavia, a partir de 1961, a estabilização dos preços internacionais das conservas e o aumento dos custos da produção na pesca criaram uma nova pressão sobre os armadores. Tal como reconheciam os relatórios oficiais, a estratégia de combate aos rendimentos decrescentes da pesca foi o aumento consecutivo da produção primária, mesmo que este implicasse um novo aumento dos custos por as traineiras terem de se deslocar a maiores distâncias, e passarem maior tempo no mar, sem verem o esforço de pesca compensado nos preços516. Esta evolução permite, no fundo, identificar as bases da profunda crise que atinge a indústria de conservas e da pesca da sardinha no final da década. O arrefecimento da procura externa pelas conservas e a perda de rendimentos na pesca precederam a quebra abrupta e continuada das capturas a partir de 1967.

6.4. O comércio internacional.

Tal como argumentou Chris Reid, a «cadeia de oferta de peixe» está dependente de condições exógenas que não controla como as políticas comerciais e monetárias e a evolução da concorrência internaciona 517. O comércio internacional influencia a produção primária da sardinha em Portugal, na medida em que os preços e as quantidades de pescado disponível atribuem a principal vantagem competitiva da indústria portuguesa. Em 1931, no seu famoso relatório, Salazar sugeria que a reabilitação dos preços das conservas, através do controlo da qualidade e dos preços pelo Estado, traria um efeito de valorização sobre a pesca da sardinha. Mas a tendência no segundo pós-guerra evoluiu em sentido inverso: à medida que as exportações de conservas cresceram, os preços das exportações estabilizaram os preços da sardinha desceram. Em que medida o comércio internacional contribuiu para a intensificação das pescarias e a desvalorização do pescado? Para respondermos o melhor possível a esta questão, devemos ter em conta dois aspectos: a evolução da balança comercial dos produtos da pesca em Portugal, em comparação com outros países; e a evolução comparada dos preços das exportações e dos preços de venda da sardinha.

O facto mais surpreendente deste período é, talvez, o superavit da balança comercial dos produtos da pesca entre 1946 e 1972 (Quadro 6.18). Note-se que, tradicionalmente, a balança das «pescarias» foi considerada deficitária porque a rúbrica nas estatísticas oficiais não incluía a exportação de conservas de peixe. Se alterarmos o método e incluirmos as rúbricas de importação e exportação de conservas de peixe e peixe congelado, o problema muda de figura. O mérito do superavit nas décadas do pós-guerra deve-se a três factores: a substituição das importações de pescado, sobretudo de bacalhau, e o consequente aumento do grau de auto-aprovisionamento desta espécie em Portugal518; as importações de pescado são de produtos de baixo valor acrescentado, com um modesto nível de transformação, sendo praticamente nula a importação de conservas e peixe congelado, produtos mais sofisticados; as exportações, por sua vez, concentraram-se em produtos de maior valor acrescentado, como as conservas, que representam mais de 80% do total. Há que sublinhar ainda que as exportações de conservas, apesar de incorporarem bens intermédios importados como a folha-de-flandres, dependiam de recursos endógenos como a sardinha, cujas importações foram sempre irrelevantes. Por último, as exportações dirigiram-se aos mercados europeus onde, além de existir uma maior cooperação comercial, as conservas eram, ainda em 1957, o principal produto nas importações de produtos da pesca 519.

517 Reid, Evolution in the fish supply…, 29-30.
518 Garrido, O Estado Novo e a campanha do Bacalhau…, 297-306.

519OCDE, Politiques de pêche en Europe…, 54/55.
520 Chris Reid, «Britain’s Most Antiquated Industry: Mr. Tunstall and the Fishing Industry», International Journal of Maritime History, XXII – 2 (2010): 172/173.

Na realidade, este perfil da balança comercial destoa da tendência de outros países europeus. Em Inglaterra, por exemplo, a balança comercial dos produtos da pesca tornou-se deficitária devido à crise nas exportações de arenque e o aumento das importações de peixe fresco e congelado, sobretudo da Noruega e da Dinamarca, que o governo britânico não pôde evitar depois da adesão ao GATT e à EFTA520. Na Alemanha, com a rápida difusão dos circuitos de distribuição de frio, as importações de peixe congelado aumentaram exponencialmente. Em meados dos anos cinquenta, os índices de preços para os produtos da pesca estiveram sempre abaixo da média dos produtos alimentares, em parte devido à acção de poderosas organizações de retalho que atraíram novos consumidores com preços baixos 521. Num regime de comércio mais ou menos livre, as importações beneficiavam o consumidor porque aumentavam a oferta, diversificavam os produtos disponíveis e reduziam os preços.

Todavia, mesmo com a adesão a organizações supranacionais, os governos nacionais mantiveram sistemas protecionistas em funcionamento – o controlo das importações de bacalhau em Portugal, sobre as quais era cobrada uma taxa que financiava os preços da produção nacional e que esteve em vigor até à segunda metade de sessenta, é um caso emblemático 522. A balança dos produtos da pesca destoa, também, da balança geral do comércio português, cujo défice aumentou progressivamente desde 1955, a par de uma maior abertura da economia portuguesa. Em grande medida, o aumento do défice comercial português deveu-se à maior procura por bens intermédios importados e à deterioração dos termos de troca 523. No que diz respeito às exportações, o valor da tonelada exportada continuava a ser extraordinariamente baixo, o que significa que os produtos de exportação tinham um nível de transformação baixo ou eram dirigidos a mercados de forte poder de compra. As conservas, por sua vez, mantiveram um nível bem acima da média até, pelo menos, a segunda metade dos anos sessenta. Só a partir desse período, com a diversificação da estrutura industrial e uma nova orientação para as exportações de produtos manufacturados, as conservas perderam o seu valor relativo – e, por extensão, o seu peso político.

As exportações portuguesas de conservas estavam sujeitas às tendências do consumo nos mercados internacionais. A persistência de barreiras alfandegárias e de taxas ad valorem, a somar às mudanças do consumo de conservas para um consumo de massas a partir da compra em grandes superfícies de retalho, pressionavam a descida dos preços. E mesmo quando as tarifas tenderam a desaparecer – como aconteceu com a Inglaterra, após a entrada na EFTA, e com a Alemanha, depois da entrada no GATT – a exportação enfrentou outro desafio: o aumento da concorrência internacional, particularmente de Marrocos, que nos anos sessenta regista uma produção regular anual de conservas de sardinha acima dos dois milhões de caixas 524.

A tendência geral foi, por isso, para a estabilização dos preços das conservas. Mas a estrutura de custos exibiu novas pressões na década de sessenta, nomeadamente no aumento dos custos do trabalho e das matérias-primas, em particular dos azeites e óleos 525. Para absorver estes aumentos de custos deu-se a tentativa de reduzir os preços da sardinha (Quadro 6.19).

521 Krohn, Klaus H. Krohn e Arnold Alewell. Sea-fish marketing in the Federal Republic of Germany (Roma: FAO, 1957), 85/86. No conjunto das importações de produtos da pesca na Alemanha, as conservas representavam 14,9% e 12,6% em valor nos anos de 1953 e 1954, respectivamente.
522 Garrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau…, 319-327.
523 V. Pintado, Structure and Growth…, 278-287.
524 Domingo, L’industrie marocaine…, 308.

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Ut elit tellus, luctus nec ullamcorper mattis, pulvinar dapibus leo.

Em suma, o comércio internacional contribuiu para a expansão da pesca da sardinha mas, por estar demasiado concentrado na exportação de conservas, criou também uma tendência para a desvalorização do pescado. Nos mercados internacionais, a exportação de peixe congelado foi o segmento que mais valorizou a produção primária. O comércio é apenas um dos factores que influencia os preços de venda da sardinha. A par da pressão da indústria de conservas para a descida dos preços, estavam os limites do consumo público, mesmo num período de aumento do consumo per-capita, pela dificuldade de transportar e alargar o consumo de peixe fresco no interior do país. Ao contrário de outras pescarias, as importações de sardinha foram quase nulas no período em análise e não influenciaram os preços do peixe. O facto de as exportações de conservas de sardinha estarem concentradas em poucos mercados, onde a concorrência internacional foi cada vez maior, foi determinante para a estabilização dos preços internacionais e a subsequente pressão sobre os preços das matérias-primas.

525 Ver capítulo seguinte.

6.4. Conclusão: a especialização internacional.

O período após a Segunda Guerra Mundial testemunhou um rápido processo de industrialização das pescas, uma extensão da área de extração dos recursos marinhos e a convicção que o estado dos stocks das espécies com maior valor comercial era robusto526. As pescas portuguesas acompanham este crescimento, em particular no domínio da renovação tecnológica das frotas, mas sem uma diversificação assinalável quer nos territórios de pesca, quer nas espécies capturadas. Esta ausência de diversificação confere um padrão de especialização da pesca costeira no recurso da sardinha sobre uma área que sofreu uma crescente pressão, traduzido num aumento consecutivo do esforço de pesca 527.

À semelhança de outras indústrias transformadoras em Portugal, a indústria de conservas de peixe dependia da utilização de recursos naturais que lhe concedia uma vantagem competitiva. A captura e transformação da sardinha tem uma longa tradição de artes extractivas, técnicas de processamento e conhecimentos empíricos acumulados ao longo da costa portuguesa. No entanto, esta característica não inibe a sua dupla exposição ao comércio internacional: por um lado, o desenvolvimento da pesca dependia do ritmo da procura externa pelas conservas de sardinha; por outro, a pesca e a indústria de conservas necessitavam de importar bens intermédios como a folha de flandres, as redes, aparelhos electrónicos e combustíveis, sem os quais não podiam laborar.

A par da história da tecnologia, a análise sobre o consumo, a distribuição e os impactos do comércio internacional ajudam a entender o crescimento da pesca da sardinha. Houve uma inequívoca aceleração tecnológica na pesca durante o segundo pós-guerra, graças à renovação da frota e da introdução de equipamentos auxiliares de segurança e detecção dos cardumes. Mas o crescimento dependeu da dinâmica procura interna, repartida entre a indústria e o consumo público, e a expansão dos mercados externos, pelo menos até meados dos anos sessenta. Neste sentido, a pesca de sardinha apresenta duas singularidades: a primeira é o facto de ter sido, desde finais do século XIX até meados dos anos setenta, responsável por mais de metade dos desembarques da pesca costeira, quer em volume quer em valor. Este protagonismo não deixa de ser inusitado por este ser um recurso limitado, com conhecidas flutuações e crises periódicas de escassez. A segunda singularidade prende-se com o mercado de primeira venda da sardinha em que as vendas para a indústria alcançavam um valor unitário superior às vendas para consumo fresco. Esta tendência contrariava a lógica de valorização do consumo de peixe fresco, refrigerado ou congelado nos países industrializados. Tal como na indústria de conservas, não podemos dissociar o funcionamento do mercado da sardinha da intervenção do Estado. Se, aparentemente, a venda da sardinha era feita a partir do livre jogo da oferta e procura, na realidade estava subordinada às políticas de abastecimento público de pescado onde imperava o tabelamento de preços. A indústria da pesca costeira habituou-se assim a uma complementaridade e equilíbrio delicado: enquanto a indústria pagava preços «remuneratórios» e tinha precedência na lota, o consumo público permitia regular a oferta e impedia a criação de excedentes. Teoricamente, este modelo podia prolongar-se até os recursos marinhos darem sinal de exaustão. A complementaridade dos consumos contribuiu para a concentração das capturas e uma especialização internacional na pesca da sardinha que só foi superada por Marrocos.

As formas tradicionais de consumo – conservas e em fresco – alhearam a indústria da pesca das tendências de produção de farinhas de peixe e produtos congelados. Esta configuração do mercado teve reflexo nas empresas – de pequena dimensão, com embarcações que passam um período máximo de um dia no mar, e com diversas resistências à mecanização do trabalho a bordo das traineiras. O alar manual das redes não era apenas uma relíquia etnográfica; era o sintoma da disponibilidade do trabalho masculino nos centros do litoral, onde tinham crescido polos de desenvolvimento regional com base na sardinha. A ruptura das economias sardinheiras deu-se a partir de 1967 com uma dupla sincronia: ao mesmo tempo que a estrutura industrial se diversificava, com o aparecimento de novas indústrias ligeiras com recurso a trabalho intensivo feminino e alternativas ocupacionais no turismo, as capturas de sardinha vão ter uma queda prolongada – e que, ao contrário das crises anteriores, não recuperaram para os valores anteriores à crise.

526 Carmel Finley, «The Industrialization of Commercial Fishing, 1930-2016». Em Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science, 2 e ss.
527 Esta tendência já era visível no período anterior à Segunda Guerra, entre 1927 e 1937. V. Mendes e Borges, A Sardinha no Século XX…, 14.

Scroll to Top