Indústria, Comércio Externo e Intervenção Pública. As Conservas de Peixe no Estado Novo (1927-1972)

Francisco Maia Pereira Bruno Henriques – 2022

PRIMEIRA PARTE – A Missão exportadora: Estado, grupos de interesse e comércio externo.

2. Crise, lei e ordem (1927-1932).
3. A coordenação económica estatal (1933-1939).

2. Crise, lei e ordem (1927-1932).

Neste capítulo procuramos discutir as origens da intervenção do Estado na indústria de conservas. Para compreendermos melhor esse movimento devemos ter em conta o processo de mudança do regime42, o vazio constitucional deixado durante a Ditadura militar e as aspirações dos industriais e de novos agentes políticos para construir um novo quadro institucional.
Em segundo lugar, esta intervenção deve ter em conta o impacto da crise internacional dos anos trinta – não só em Portugal, mas também nos principais países consumidores das conservas portuguesas. O crescimento do protecionismo, a instabilidade monetária e a dificuldade em estabelecer taxas de câmbio fixas foram os problemas que mais afectaram o comércio internacional43. No entanto, como pretendemos demonstrar, a crise também trouxe oportunidades, tanto pelo enfraquecimento dos competidores internacionais, como também pelo aumento de consumo das conservas nos países mais industrializados.
Neste contexto, a indústria de conservas teve uma profunda reorganização com o objectivo de manter a posição dominante nos mercados internacionais. A solução encontrada para reorganizar o comércio e a produção industrial partiu de um relatório publicado em 1931 por Salazar. Nos anos anteriores, os grupos de interesse moveram-se num esforço constante para obter concessões dos governos republicanos e da Ditadura militar. O relatório de Salazar e a criação do Consórcio Português das Conservas de Sardinha, em 1932, têm sido entendidos como o resultado da «captura» do Estado pelos interesses instalados44. No entanto, como pretendemos argumentar, a criação do CPCS revela mais a autonomia do novo governo do que a cedência aos grupos de interesse.

42 Para um balanço no longo prazo do século XX, v. Hermínio Martins. As mudanças de regime em Portugal no século XX. (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2018).
43 As barreiras protecionistas aumentaram sobretudo nos países que insistiram em manter a adesão ao padrão-ouro. Ver Barry Eichengreen e Douglas Irwin, «The Slide to Protectionism in the Great Depression: Who Succumbed and Why?», The Journal of Economic History, nº 70-4 (2010): 871-897.
44 Nuno Madureira. A Economia dos interesses. Portugal entre as guerras. (Lisboa: Livros Horizonte, 2002), 55-57.

2.1. Sobreprodução e queda de preços: uma história comparada.

No final dos anos vinte o mercado internacional de conservas tinha um «equilíbrio delicado» 45. Os espaços de consumo repartiam-se por diferentes espécies de peixe a que correspondia uma produção especializada em cada país. Por exemplo, a Noruega destinava a maior parte das suas conservas de «sprat» ao mercado inglês e norte-americano, enquanto Espanha e Portugal vendiam latas de sardinha maioritariamente nos países europeus, França, Bélgica, Alemanha e Reino Unido – e nos países sul americanos. Em segundo lugar, os produtores internacionais aproveitaram para substituir a posição dos seus concorrentes sempre que estes enfrentaram crises de sardinha: foi o caso da indústria norte americana, que penetrou nos mercados latinos durante a crise espanhola (e portuguesa) de 1925-2746. A partir dos anos trinta, os equilíbrios geográficos deixaram de estar presentes devido a factores políticos, militares e monetários. Entre 1936 e 1938, as sardinhas de Marrocos e Portugal conquistaram posições aos conserveiros espanhóis depois do eclodir da guerra civil em Espanha. Portugal beneficiou ainda, depois da saída do padrão-ouro em 1931, de uma extraordinária desvalorização do escudo que, aliada a uma sobreprodução, contribuiu para inundar o mercado francês e conquistar posições às conservas da Bretanha e de Saint-Jean de Luz 47. A instabilidade monetária e a necessidade de proteger os produtores nacionais em França levou à imposição de quotas de importação. A médio prazo, França deixaria de ser o principal mercado das conservas portuguesas.

O quadro 2.1 reúne as exportações, em volume e valor, dos produtores de conservas de sardinha durante a Grande Depressão: Portugal, Espanha e França; a Noruega, apesar de não produzir sardinha, fabricava conservas de espadilha (sprat e brisling) que competiam diretamente com as restantes. Em termos gerais, verifica-se que as exportações não diminuíram em quantidade, ao contrário do que sucedeu no resto da Europa, sobretudo com a retração do comércio externo agrícola 48. Na realidade, os anos da crise coincidiram com um forte crescimento das capturas de sardinha. Em Espanha, o crescimento da frota e a redução acentuada no preço da sardinha permitiram descer os preços das conservas no mercado internacional 49. Em Portugal, a tendência foi semelhante, com um crescimento menor, mas compensado pela desvalorização do escudo. França e Noruega tiveram, em parte, uma tendência oposta: no caso francês, a moeda forte prejudicou as exportações de conservas de sardinha 50 e, na Noruega, as tarifas discriminatórias sobre as conservas de sprat exportadas para os EUA colocaram o sector em crise 51. Paradoxalmente, o consumo de conservas de pescado continuou a aumentar durante a Grande Depressão nos EUA, em torno das 40 mil toneladas anuais, na maioria produzidas nos estados da Califórnia e Maine 52. Para entender este fenómeno devemos ter em conta que as conservas eram um produto de grande durabilidade que permitia o seu armazenamento em períodos de incerteza. Devemos também ter em conta o aumento da publicidade sobre as conservas de peixe, pelo menos no mercado britânico, como foi salientado por Chris Reid 53.

45 Xan Carmona Badía, Xan Carmona Badía. Crecimiento y competitividad internacional en la industria española de conservas de pescado, 1900-1936 (Universidad de Santiago de Compostela, 1991), 117.
46 Xan Carmona Badía, «Recursos, organización y tecnología en el crecimiento de la industria española de conservas de pescado, 1900-1936». Em La cara oculta de la industrialización en España: La modernización de los sectores no líderes, org. Jordi Nadal e Jordi Catalán (Madrid: Alianza Universidad, 1994),
47André Marie d’ Avigneau, L’industrie des conserves de poisons en France métropolitaine. Analyse économique de la branche et diagnostic des entreprises. (Rennes: Impr. Bretonne, 1958), 329-338.

48 Ver Derek Aldcroft, Europe’s Third World: the European Periphery in the Interwar Years. Aldeshot: Ashgate, 2006., 43-46, e Ronald Findlay e Kevin O’Rourke, «Commodity Market Integration,1500-2000». Em Globalization in Historical Perspective, org. Michael Bordo et al. (Chicago: University of Chicago, 2001), 53-57.
49 Carmona, Recursos…, 157/158. Na Galiza, o aumento da tonelagem de pesca nos anos vinte, graças ao investimento dos lucros de guerra na construção naval, foi acompanhado por uma especialização na captura de sardinha, sobretudo em Vigo. Ver Jesús Giráldez, Crecimiento y transformación del sector pesquero gallego, 1880-1936. (Madrid: MAPA, 1996), 319-320.
50 Avigneau, L’industrie…, 325-326.
51 Piers Crocker,«Governor Nelson Dingley lives on: Maine, California, Norway and protectionism», The International Journal of Maritime History, nº 29-3 (2017): 631-633.
52 Henrique Parreira, Alguns elementos…, 83.
53 Starkey, David J., Chris Reid, and Neil R. Ashcroft, org. England’s Sea Fisheries: The Commercial Fisheries of England and Wales since 1300. London: Chatham, 2000, 157-166.

Deparamo-nos, assim, com um aparente caso de sobreprodução. O crescimento das capturas de sardinha conduziu a um excesso de oferta de conservas que não eram absorvidas pelos mercados consumidores. Todavia, a retracção do comércio, mais do que uma consequência directa da crise, foi induzida pela acção dos governos, em especial pelo aumento da protecção alfandegária e pelos limites impostos aos pagamentos externos. A este quadro soma-se, em Portugal e noutros países, um ambiente industrial constituído por pequenas conserveiras que necessitavam de receitas a curto prazo e estavam dispostas a vender conservas sem margens de lucro ou até abaixo do custo de produção. Os conflitos entre os produtores e os agentes nos mercados – que pressionam os primeiros a descerem os preços para compensar o aumento de tarifas – tornou-se evidente.

Os problemas eram comuns mas as respostas variaram em cada país. Entre os países que temos vindo a analisar destacam-se três tendências: o aumento da proteção à indústria nacional, quer por via de aumento de tarifas, quer por quotas de importação; o desvio das exportações para o consumo no mercado interno; e a diversificação da produção, com a criação de novos produtos ou conservas de outras espécies. Espanha é o país que, porventura, melhor demonstra a viragem para o mercado interno. A partir de 1932, as exportações espanholas conheceram um duplo constrangimento: em França, o principal mercado europeu, as importações foram limitadas a quotas anuais e, nos países latino-americanos, a saída de divisas estrangeiras foi bloqueada, a que se seguiram medidas de proteção às indústrias emergentes 54. As empresas sardinheiras, na sua maioria concentradas em Vigo, assumiram duas estratégias para se salvarem da crise: dirigir a produção ao mercado espanhol, à custa de uma forte redução nos preços de venda; e, na senda dessa estratégia, produzir novas conservas de atum e anchova, o que implicava a deslocalização das fábricas viguenses para o mar Cantábrico (anchova) e para a Andaluzia (atum)55. Em meados dos anos trinta, mais de metade da produção espanhola era absorvida pelo mercado interno.

A França seria, no início da década, o país mais exposto ao comércio internacional das conservas de sardinha. Além de exportador, era um dos principais países consumidores e também tinha conserveiras no litoral norte e sul do Atlântico. Na exportação, as conservas francesas sofriam uma perda de competitividade internacional desde 1919, provocada pela ação coletiva da pesca que impunha preços elevados para 50% das vendas à indústria. A crise só veio agudizar o problema: em comparação com 1929, as exportações de 1934 recuaram 56 % em volume e 46 % no valor. A quebra deu-se nos mercados tradicionais das conservas francesas – Inglaterra, Estados Unidos, Holanda, Bélgica, Suíça – onde, além da desvalorização das moedas face ao franco, em particular a libra, a produção francesa teve de concorrer com a sobreprodução ibérica. A queda só foi amortecida pelo crescimento das exportações para os mercados coloniais, sobretudo a Argélia. Do lado do consumo, houve uma expansão nos anos vinte que continuava a ser suportada pelos fornecimentos externos. Até 1931, o mercado interno continuou dominado pelo consumo das conservas de sardinha (60%) cujo aprovisionamento dependia em mais de 70% do exterior 56. Esse ano representou, no entanto, um ponto de inflexão. Depois de o mercado francês ter sido inundado com conservas portuguesas, espanholas e marroquinas, o governo francês impôs o regime de quotas às importações (Quadro 2.2.). As quotas, negociadas em acordos de comércio bilateral, eram especialmente eficazes na proteção aos conserveiros franceses que não controlavam o alto valor relativo da moeda francesa nem podiam concorrer com a diferença de preços das conservas estrangeiras. A região do Marrocos francês, para onde se tinham deslocalizado as empresas metropolitanas e de onde as exportações decuplicaram entre 1927 e 1934, beneficiou de uma preferência na atribuição de contingentes e na isenção de direitos alfandegários até cinquenta mil quintais.

A Noruega era, em 1930, o principal produtor de peixe na Europa com as capturas totais a excederem 1,1 milhões de toneladas57. A retração dos mercados de exportação foi notável no Reino Unido, após os acordos de Otava com os territórios da Commonwealth e a imposição de restrições quantitativas, e nos EUA com as novas tarifas e, sobretudo, o proteccionismo garantido aos conserveiros da Califórnia e do Maine pelo National Recovery Act. As duas reacções do sector conserveiro à crise não são menos relevantes: por um lado, com as capturas de arenque e espadilha a manterem-se elevadas e com um baixo consumo doméstico, a alternativa passou pela transformação dos excedentes em óleos e farinhas com destino à agricultura e pecuária, numa clara antecipação da principal tendência da indústria transformadora da pesca no segundo pós-guerra58. Por outro, as exportações da Noruega vão receber uma atenção pública semelhante à que ocorreu em Portugal, apesar das diferenças entre os regimes políticos. A indústria da pesca e de conservas, dispersa pelo litoral e concentrada em Stavanger, compunha-se de pequenas empresas orientadas para a exportação. A retração do comercio internacional provocou o aumento do desemprego na pesca – embora este possa não ser evidente nas estatísticas59. Para enfrentar as restrições externas e a concorrência interna entre conserveiros, o governo decidiu disciplinar a oferta e criar uma extensa regulação que incluía a distribuição da matéria-prima pelas fábricas, o licenciamento de novas unidades industriais, a fixação de preços mínimos e ainda a criação de um laboratório para análise e desenvolvimento da qualidade60. O projeto da Brislingsentral, incluindo a «cartelização estatal» da exportação, só encontrou paralelo em Portugal com a organização nascida no mesmo período.

54 Carmona, Recursos…, 159.
55 Carmona, Recursos… ; Segundo Ríos, «Origen y desarrollo de la industria de conservas de pescado en Andalucia (1879-1936)», Revista de história industrial, nº 29 (2005): 55-86.
56 Avigneau, L’ industrie…, 336-337.

57Gundmudur Jonsson, «Comparing the Icelandic and Norwegian fishing industries’s response to the economic crisis of the 1930s» (comunicação apresentada no XIV International Economic History Congress, Helsínquia, 21-25 de Agosto, 2006) .
58 Jonsson, Comparing…, 25-30. Para uma evolução semelhante nos EUA, ver Arthur McEvoy. The fisherman problem. Ecology and law in the California fisheries, 1850-1980 (New York: Cambridge University Press, 1990).
59 Jonsson,Comparing…, 6-7.

A comparação entre os diferentes países é útil e necessária para compreendermos as opções tomadas na indústria portuguesa. Em Portugal, a inexistência de um mercado interno para as conservas de sardinha distingue-o de Espanha ou França. As estatísticas demonstram que o mercado português não absorveu mais de 2% da produção entre 1933 e 1939 e o comércio colonial não foi uma alternativa, com resultados inferiores a 3% do total das exportações. Por outro lado, a produção de farinhas e óleos de peixe com destino à fabricação de adubos ou rações animais também não se intensificou, apesar das condições favoráveis da estrutura económica assente na produção agrícola. De facto, a produção de adubos cresceu nos anos trinta, mas a hesitação de os conserveiros desenvolverem os «subprodutos» deve ter em conta os grupos de interesse instalados e a vantagem tecnológica de uma grande empresa quase monopolista nesse ramo industrial, a CUF 61. Finalmente, importa notar que, excluída a pesca longínqua, a pesca portuguesa continuava em grande medida a depender do valor da sardinha vendida em lota, que por sua vez era adquirida quase em exclusivo pela indústria de conservas. A diversificação das pescas, com recurso a uma mão de obra intensiva e múltiplas unidades de pesca, dificilmente poderia passar por outro recurso que não a sardinha. Mais do que os constrangimentos, o decurso da experiência histórica obriga-nos a procurar entender as oportunidades que os poderes públicos, bem como os industriais, entreviram durante a crise internacional para a manutenção das exportações de sardinha. Grande parte dessas oportunidades assentavam na crença de o Estado, a partir de novas organizações, conseguir disciplinar os produtores, melhorar a qualidade e os preços das conservas.

Em suma, a crise internacional afectou em profundidade as indústrias de pesca europeias, em particular as de conservas, bastante expostas ao comércio internacional. As mudanças e permanências identificadas neste período são duradouras, quer entre os países que conquistaram os seus mercados internos, quer entre aqueles que se debateram com um novo enquadramento institucional para o comércio exportador. A generalização do comércio bilateral e das restrições quantitativas é a expressão mais comum do novo proteccionismo. Aqui, no entanto, devemos mais uma vez atender às subtilezas das negociações e aos resultados da investigação recente feita por outros historiadores. Em 1933, por exemplo, os exportadores de peixe da Dinamarca pareciam condenados ao aumento da protecção nominal sobre os produtos da pesca inscrita no acordo comercial com Inglaterra. A medida, que visava a protecção da indústria de pesca britânica, foi contornada pelos dinamarqueses com a criação de filetes de peixe para exportação, um produto de menor peso mas maior valor. Inesperadamente, a tentativa protecionista inglesa resultou numa valorização real das exportações da Dinamarca62. Este exemplo ilumina-nos sobre a possibilidade de os governos negociarem, num contexto bilateral, a expansão de produtos estratégicos na sua balança de comércio. Antes, porém, de analisar esta hipótese, devemos observar outro argumento: que a atenção do Estado à indústria de conservas foi o resultado da captura das instituições públicas pelos interesses conserveiros.

60 Ver Jorg Hviding. The Amazing Story of the Stavanger Sardine Industry. (Stavanger: Norsk Hermetikkmuseum, 2002).
61A CUF, dirigida por Alfredo da Silva, tinha já, no final dos anos vinte, assegurado uma importante precedência no fornecimento de adubos nas campanhas agrícolas. Ver Miguel Figueira de Faria, Alfredo da Silva e Salazar. (Lisboa: Bertrand, 2009).

62 Chris Reid e Morten K. Sondergaard, «Bilateral Trade and Fisheries Development: the Anglo-Danish Trade agreement, 1933», Scandinavian Journal of History, 37, 1 (2012): 108-128.

2.2. Os conserveiros: grupos de interesse ou pressão?

A colaboração entre os interesses da indústria e a emergência dos regimes autoritários tem sido amplamente discutida. A tese geral defende que os industriais apoiaram as soluções de «terceira via» corporativa, em alternativa ao modelo da economia liberal e a via socializante, que prometiam uma paz social e cooperação entre empresas e com os sindicatos de trabalhadores 63. Para obter a fidelidade ao novo regime, os governos autoritários concederam a reserva de mercados a sectores industriais estratégicos, encomendas públicas e o licenciamento de monopólios de proteção aos investimentos. No entanto, não se devem esquecer as oposições que, mais ou menos veladas, contestaram o novo enquadramento das relações industriais e da actividade económica. Em Portugal, a recusa à utilização obrigatória de matérias-primas de origem colonial no sector têxtil 64, ou a contestação aos encargos sociais dos horários e contratos colectivos de trabalho criados pelo Estado constituem dois exemplos de resistência à organização corporativa 65.

Uma segunda interpretação para explicar a reorganização da indústria de conservas reside na ação dos industriais e na capacidade de influenciarem as políticas públicas no início do regime autoritário. A hipótese assenta numa sequência coerente de acontecimentos entre 1927 e 1932. Em 1927, armadores da pesca e industriais de conservas reuniram-se em Setúbal num Congresso do qual resultaram as primeiras medidas de regulação do sector. A partir de 1928, os interesses conserveiros surgem representados na Secção de Pesca e Conservas da Associação Industrial Portuguesa, onde pontifica Sebastião Ramires, engenheiro industrial e membro de uma dinastia familiar conserveira. Em 1931, em plena crise internacional, Salazar decidiu visitar pessoalmente os centros conserveiros no Algarve, acompanhado por Ramires, e publicou um longo relatório sobre a visita. Um ano mais tarde, no primeiro governo de Salazar, Ramires é nomeado ministro da Agricultura, Indústria e Comércio e cria o Consórcio Português das Conservas de Sardinha, de inscrição obrigatória para todos os industriais e exportadores de conservas.

Para Nuno Madureira, a intervenção sobre a indústria de conservas constituiu um «tubo de ensaio» da organização corporativa em Portugal66. O Estado Novo, na sua fase inicial, teria sido capaz de conter as rivalidades e conflitos de interesse que coexistiam entre os industriais e entre industriais e exportadores. A adesão da indústria a uma solução autoritária tinha sido feita a partir da cooptação dos seus projectos de auto-regulação que tinham dados prova de ser ineficazes. Madureira defende ainda que a nova estrutura burocrática instalou a «cartelização estatal» do comércio de conservas, sobretudo através da fixação de preços mínimos de exportação.

Para caracterizar os interesses conserveiros e a sua acção colectiva impõem-se dois exercícios: em primeiro lugar, identificar o grupo social, a sua dimensão e distribuição territorial; e, em segundo, elencar as formas de representação de interesses num período relativamente longo, desde o final da Primeira Guerra Mundial até 1931, para entender em que medida o associativismo liberal foi seduzido pela organização autoritária e burocrática da representação profissional. Como salientou Phillipe Schmitter, os processos de transição de democracias liberais para regimes autoritários não equivalem à transformação de tipos ideais de “pluralismo” por um modelo de Estado “corporativo”67; o processo, em particular na indústria de conservas, é sinuoso e por vezes com tendências opostas que convivem no mesmo período. Em segundo lugar, é útil distinguir a utilização dos conceitos de grupo de interesse e grupo de pressão68. No sector conserveiro parece existir uma clara evolução de grupos de interesse latentes para um grupo de interesses organizado, que por sua vez é sucedido pela atividade de um grupo de pressão.

A partir de um cadastro industrial publicado em 1935, podemos verificar que a indústria de conservas de peixe era um sector pulverizado, distribuído de norte a sul da costa portuguesa, onde prevaleciam as empresas com uma fábrica de pequena ou média dimensão. Em 172 empresas, apenas 26 possuíam mais do que uma fábrica. Do ponto de vista dos recursos, as empresas enfrentavam um duplo constrangimento: o acesso irregular à pesca; a necessidade de importar a folha-de-flandres e os óleos e azeites refinados para o fabrico das conservas. A laboração oscilava entre momentos de forte intensidade de trabalho e paralisação do pessoal e das máquinas. Depois do desembarque, o peixe tinha de ser transformado o mais rapidamente possível para manter a sua qualidade. Este problema colocou-se com acuidade na indústria sardinheira, dada a maior fragilidade e perecibilidade dos pequenos pelágicos em comparação com outros peixes como os atuns. Com recursos incertos, a capacidade instalada nas fábricas era escassamente utilizada. Em 1933, as fábricas tinham utilizado, em média, menos de metade da sua capacidade de laboração69. O centro com menor percentagem de utilização da capacidade instalada era Setúbal, onde as capturas de sardinha se revelaram mais instáveis desde 1930.

63 Para o caso italiano, ver dois estudos clássicos de Roland Sarti, Fascismo y burguesia industrial: Italia, 1919-1940 (Barcelona: Fontanella, 1973) e Franklin Adler, Italian industrialists from liberalism to fascismo. The political development of the industrial burgueoisie, 1906-1934.(Cambridge: CUP, 1995).
64M. Anne Pitcher. Politics in the portuguese empire, The State, Industry and Cotton: 1926-1974.( Oxford: Clarendon Press, 1993).
65 Fátima Patriarca, A Questão Social no Salazarismo: 1930 – 1947. (Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 1995).

66Nuno Madureira, «Cartelization and Corporatism: Bureaucratic Rule in Authoritarian Portugal, 1926-1945». Journal of Contemporary History, 42, nº 1 (2007): 81.
67 Philippe Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à Democracia (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 1999), 106 e ss. A reorganização da representação de interesses profissionais pelo sistema corporativo não impediu a persistência de grupos de interesse que influenciaram a condução das políticas públicas e as tutelas ministeriais, nomeadamente na agricultura. Ver, a propósito, Luciano Amaral, «Portugal e o passado: grupos de interesses, política agrária e evolução da agricultura portuguesa durante o Estado Novo (1950-1974)». Análise Social, nº 123 (1994): 889-906.
68 Ver, sobre estes conceitos, a obra de Paulo Trigo Pereira, O Prisioneiro, o Amante e as Sereias: instituições económicas, políticas e democracia. (Coimbra: Almedina, 2008) .
69 Consórcio Português das Conservas de Sardinha [CPCS], «Relatório», Boletim dos Organismos Económicos, vol. 1, nº2 (1935): 221-224.

Ainda segundo o mesmo cadastro, é possível aferir a idade média das empresas em 1935. Note-se uma grande percentagem de empresas com menos de duas décadas de vida (78%), isto é, criadas durante e após a Primeira Guerra Mundial. Entre 1914 e 1923 constituíram-se 82 empresas, cerca de metade do total. Ainda que as fontes não sejam totalmente claras sobre este assunto, esta evolução coincide com o crescimento do número de fábricas de conservas: em 1912 seriam 116; em 1917, com o impulso da guerra, 188; e em 1926 atingiriam o seu máximo de «cerca de 400»70. Entre 1925 e 1933 deixaram de existir 194 fábricas e as receitas totais da exportação, a preços correntes, desceram 38%. Quando se deu a intervenção sobre o sector, este vivia já um período difícil de adaptação causado pela crise de escassez de sardinha em 1925-27 e os efeitos da crise internacional a partir de 1931.

Apenas 38 empresas (22%) tinham sido fundadas no período anterior à Primeira Guerra Mundial. Mas entre elas contavam-se as pioneiras, como as portuguesas Ramirez e a Júdice Fialho, ou as francesas Établissements F. Delory e Compagnie Arsène Saupiquet e a italiana Angelo Parodi. Ao lado dessas grandes empresas compunha-se um novo grupo que incluía as empresas espanholas Gândara, Haz e Rábago, López Valeiras e António Alonso Hijos71, em Setúbal desde 1923 e, e novas empresas portuguesas. A Marques & Neves, fundada em 1917, possuía em 1935 três fábricas em laboração. A Algarve Exportador, criada por Agostinho Fernandes em 1920, detinha 5 fábricas distribuídas pelos principais centros conserveiros. Se a primeira geração de empresas está profundamente ligada à industrialização da pesca de sardinha, a segunda caracteriza-se pela expansão do número de fábricas em novos locais de abundância da pesca da sardinha no centro e norte do país.

O segundo aspecto a ter em conta é a distribuição geográfica. Desde as últimas décadas do século XIX que a indústria se espalhou por toda a costa, de Vila Real de Santo António a Viana do Castelo. Este fenómeno justifica-se pela ocorrência de sardinha em toda a orla atlântica, com flutuações notáveis. A dispersão, entretanto, dependeu também de outros factores centrais como a existência de estruturas portuárias, que serviam não só a pesca mas também o comércio de importação de matérias-primas e exportação de conservas, e a acumulação de tecnologia. É possível, segundo estes factores, traçar uma evolução diacrónica. No período anterior à Primeira Guerra Mundial, os centros algarvios (Vila Real de Santo António, Olhão, Portimão e Lagos) dominaram a produção conserveira. A tradição prévia de conservação de peixe pelo sal, as condições climatéricas favoráveis à pesca durante grande parte do ano e, sobretudo, a industrialização da pesca da sardinha, com o aparecimento dos primeiros cercos a vapor, constituíram as principais vantagens comparativas 72. Após o conflito mundial, a par de alguns centros algarvios, foi Setúbal que se tornou líder na produção de sardinha 73. Todavia, a quebra das capturas de sardinha ao largo da costa da Galé ditou, no início dos anos trinta, um declínio gradual da actividade conserveira. A renovação do porto de Setúbal, sensível às demandas da pesca industrial, não foi suficiente para recuperar as capturas. A partir da segunda metade de trinta, empresas de Setúbal e do Algarve iniciam um êxodo para o norte do país e instalam-se no centro de Matosinhos, onde as capturas cresceram ininterruptamente entre 1933 e 1940. No Norte, a pesca realizava-se sobretudo com traineiras, embarcações com maior mobilidade do que os tradicionais cercos a vapor das conserveiras do centro e sul. Por outro lado, de acordo com os estudos de Daniel Wagner, a sardinha desembarcada em Matosinhos dava sinais de possuir um mais elevado nível de gordura, aspecto decisivo para a sua qualidade 74. Finalmente, as condições desfavoráveis do mar, em comparação com os centros de Setúbal e do Algarve, foi compensada com a transformação das condições do porto de abrigo e acostagem em Leixões. Após a Segunda Guerra Mundial, Matosinhos tornou-se o líder indisputado na produção conserveira e Leixões o principal porto sardinheiro da Europa.

70 António Pinto Barbosa. Sobre a indústria de conservas em Portugal (Lisboa: Império, 1941), 19-23.
71 Estas empresas deslocalizaram-se da Galiza para contornarem as crises sardinheiras no porto de Vigo. Ver Xan Carmona Badía, org., Las famílias de la conserva. El sector de las conservas de pescados a través de sus sagas familiares (Pontevedra: ANFACO, 2011), 170/171.

72 Rodrigues, A indústria…, I, 51-96.
73 Sobre o crescimento da indústria em Setúbal, ver Guilherme Faria. Setúbal e a indústria de Conservas (Setúbal: Tipografia do Orfanato Municipal, 1950), 21-27.
74 Daniel Wagner. Estudos sobre as conservas de sardinha portuguesas (Lisboa: Tip. da Pap. Fernandes, 1951).

A dispersão industrial concorria, paradoxalmente, com a concentração geográfica das fábricas junto aos locais de desembarque da pesca75. A sardinha, altamente perecível, deveria ser rapidamente descarregada nas fábricas e dificilmente podia ser transportada entre centros industriais sem perder a qualidade. O peso do pescado na estrutura de custos das empresas era de tal forma relevante que a principal estratégia empresarial em períodos de crise foi a deslocalização das fábricas para os locais de maior abundância de pesca. A consequência mais importante foi a formação de importantes distritos industriais que, além de vantagens competitivas, reuniram os conserveiros em grupos de interesse frequentemente identificados como a «elite» local e regional. Com presença na imprensa escrita, os conserveiros reproduziram o seu poder no exercício de cargos políticos e associativos na cidade, na prestação de serviços de assistência e «obras culturais», na pressão sobre o poder central para a concessão de financiamentos e obras públicas 76.

A geografia teve um impacto relevante na configuração dos interesses da indústria de conservas. Como o acesso aos recursos marinhos era diferente em cada região, bem como a oferta de trabalho e o grau de concentração da indústria, as diferenças sociais e ecológicas dificultaram a criação de consensos na representação de interesses. A ideia de aplicar um defeso à pesca de sardinha, por exemplo, na sequência da crise de 1925-127, opôs as associações industriais do sul e do norte 77. Além destas idiossincrasias, o circuito de produção de conservas prestava-se a numerosas rivalidades e conflitos devido ao crescimento desmesurado da estrutura industrial durante a Primeira Guerra Mundial. A percentagem elevada das matérias-primas no custo de produção comprimia as margens dos industriais e pressionava estes a obterem preços mais baixos na compra da sardinha e garantir lucros na venda ao comércio exportador 78.

75 A mesma tendência é observada na indústria de conservas em Espanha e no Canadá. Ver Xan Carmona Badía e Angel Fernández, «Demografía y estructura empresarial en la industria gallega de conservas de pescado del siglo xx» (comunicação apresentada ao 7º Congresso da Associação de História Económica, Zaragoza, 2001), e Dianne Newell, «The Rationality of Mechanization in the Pacific Salmon-Canning Industry before the Second World War», The Business History Review, nº 62 (1988): 626-655.

76 Para um estudo de formação das elites conserveira de Portimão, ver Maria João R. Duarte, Portimão : industriais conserveiros na 1ª metade do século xx. (Lisboa: Colibri, 2003).
77 V. «O Defeso da Pesca», A Indústria, 01.03.1929.
78 Este problema não se cingia à indústria de conservas. Madureira refere, para o conjunto das indústrias de bens alimentares no período entre guerras, que a aquisição de matérias-primas podia atingir 85% do valor final. V. A Economia dos interesses…, 55.

Nos últimos anos da República e no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, as associações industriais conserveiras (Quadro 2.4) estavam organizadas de forma latente, com representações ocasionais aos poderes públicos sobre a crise na pesca ou a escassez de azeite79. Em 1920, as importações de azeite foram condicionadas por lei e a laboração industrial ficou em risco. Em Janeiro de 1921, a paralisação de fábricas em Olhão conduziu mais de duas mil pessoas em protesto ao Governo Civil de Faro para reclamar a livre entrada de azeite e óleos para a indústria80. Ao mesmo tempo, num plano nacional, as associações industriais e comerciais demonstraram uma nova vitalidade, em parte motivada pela necessidade de responder à contestação operária e ao ciclo de hiperinflação. À medida que a nova República repõs gradualmente a estabilidade monetária e iniciou a recuperação das finanças públicas, os interesses comerciais e industriais opuseram-se ao aumento da carga fiscal e à revalorização do escudo, em 1924, que retirava competitividade às exportações portuguesas 81.

79 Veja-se, por exemplo, a representação da Associação Comercial e Industrial de Olhão sobre a falta de azeite e a paralisação das fábricas no inverno de 1921 (Diário das Sessões da Câmara dos Deputados, 15.02.1921, 4), e o agradecimento das associações de Matosinhos, Lagos, Faro, Portimão, Peniche e Olhão sobre a isenção de impostos sobre o pescado (Diário das Sessões…, 18.08.1924, 3).
80 Rodrigues, A indústria…, I, 175.
81 Na oposição às medidas de Álvaro de Castro, que se confunde com a crítica ao regime parlamentar, destacou-se a Associação Comercial de Lisboa e a União dos Interesses Económicos. Ver Fernando Medeiros, A sociedade e a economia nas origens do salazarismo (Lisboa: A Regra do Jogo, 1978); e António Telo, Primeira República. (Barcarena: Presença, 2010), vol. 2, 41-42.
Fontes: Rodrigues (1997); Duarte (2003); Quintas(1988); Cordeiro (1989).

Durante um triénio de grande expansão (1921-1923), o Estado não interferiu na regulamentação da indústria de conservas e beneficiou das crescentes taxas cobradas à exportação com sucessivas alterações tributárias82. A situação agravar-se-ia a partir de 1925 quando novos impostos e a valorização do escudo se somaram a quebras violentas nas capturas de sardinha. Em 1923-1924, o valor médio anual das capturas de sardinha rondou os 151 mil contos, enquanto em1925-1927 se reduziu a 90 mil contos. Por outro lado, a política de revalorização implicava uma rarefacção de moeda e a suspensão das facilidades de crédito usufruídas nos anos anteriores. Em todo o período entre guerras, é nestes anos, entre 1925 e 1927, que as conservas portuguesas mais perderam na competitividade externa83.
Os últimos governos da República não permaneceram indiferentes à crise conserveira. Em 1925, o Ministro das Finanças Armando Marques Guedes dirigiu-se ao Algarve e reclamou a criação de uma “política de vantagens indirectas” com um projecto de lei que implicava a isenção de direitos à importação de máquinas, a redução de 50% de direitos sobre a folha de flandres e a isenção da contribuição industrial por cinco anos84.
Coincidindo com o final da República e a abertura da ditadura militar, os sintomas de crise social espalhavam-se pelos centros do litoral. O excesso da capacidade instalada e a sobrecapitalização da pesca inspiravam debates na imprensa sobre o individualismo liberal, a necessidade de concentrar os industriais e regular a concorrência85. É neste período que, sem dúvida, as associações industriais passaram de um período latente para uma fase de interesses organizados e de tendência suprarregional, certamente motivada pelo vazio constitucional da ditadura e a possibilidade de influenciar as novas políticas públicas. Outros sectores industriais, como a moagem de cereais, enfrentavam problemas semelhantes de excesso de capacidade e sobreprodução e mobilizaram igualmente as atenções públicas.
O primeiro Congresso da Pesca e Conservas de Setúbal, em 1927, constituiu um ponto de viragem. Pela primeira vez, as associações liberais de industriais e armadores da pesca reuniam-se em conjunto com as autoridades marítimas e os cientistas que estudavam o problema das flutuações da sardinha. Uma primeira leitura revela as divergências regionais em torno da necessidade de instalar um defeso à pesca da sardinha ou na criação de um organismo de controlo das exportações, nomeadamente dos seus preços mínimos86. Porém, a leitura das conclusões do Congresso remete as divergências para um plano secundário. De forma evidente, o Congresso serviu para clarificar as exigências legislativas e institucionais dirigidas ao governo da ditadura. À saída do Congresso, uma comissão nomeada por decreto preparou a regulação autoritária da indústria. Os decretos proibiram a entrada de novas empresas conserveiras e de pesca com artes de cerco, bem como a alienação ou modificação das existentes, mais tarde condicionadas à decisão do Conselho Superior Técnico de Indústrias87. Mas, talvez mais importante do que a legislação – que foi pouco eficaz nos anos seguintes – foi o grupo de pressão que se formou em torno da Secção de Pesca e Conservas da Associação Industrial Portuguesa (AIP).
A actividade da AIP como grupo de pressão na transição de um regime liberal para uma solução autoritária está em grande medida por estudar. Através dos relatórios da Direcção podemos, entretanto, cotejar toda a intervenção realizada a favor da indústria de conservas (Quadro 2.5.). O conjunto de representações dirigidas aos ministros traduziu-se em importantes conquistas. Em 1927, o governo alargou o regime de drawback (importação temporária isenta de direitos alfandegários) ao azeite e folha de flandres utilizado nas conservas e obrigou a um reforço da fiscalização da qualidade88. Em 1930, contudo, o drawback foi revisto para proteger a entrada de oleaginosas coloniais no mercado nacional, numa polémica que opôs Alfredo da Silva aos interesses conserveiros. Em resposta, o governo cedeu a isenção de direitos de exportação às conservas de peixe. Esta medida é notável se considerarmos que as conservas de peixe alcançaram o topo das exportações em 1931, com 23% do valor total, e as receitas alfandegárias ainda pesavam bastante no conjunto das receitas públicas89.

82 Diário do Governo, decretos 6:667 (08.04.1920), 8:280 (22.07.1922), 8:575 (11.01.1923);
9:601 (16.04.1924); 10:016 (15.08.1924).
83 Avigneau, L’ industrie…, 329.
84 Armando Marques Guedes. Cinco meses no governo (Porto: Liv. Chardron, 1926), 282-286.
85 V. Rodrigues, A indústria…, I, 177-191.

86 Ver, entre outros, Barbosa, Sobre a indústria…, 23/24, e Rodrigues, A indústria…, 193-197.
87 Diário do Governo, decretos 15:489 e 15:581.
88 Diário do Governo, decretos 15:729,17:251, 16:607.
89 Ver, sobre este assunto, Nuno Valério, As finanças públicas portuguesas entre as duas guerras mundiais. (Lisboa: Cosmos, 1994).

Ao mesmo tempo que a AIP se dirigia aos governos da Ditadura, surgiram no sector conserveiro tentativas de auto-regulação do sector. Na segunda metade dos anos vinte, o panorama era plural: associações liberais de dimensão local e regional conviviam com a AIP e com «Uniões» de conserveiros que, sem a participação do Estado, procuraram acordos intrassectoriais para resolver a crise. Em Setúbal, onde o tecido industrial mais havia crescido no imediato pós-guerra, a Sociedade Portuguesa de Conservas (1923-1925) reuniu catorze fabricantes de conservas90. A organização mais relevante deu-se em Matosinhos, onde quatro das maiores empresas fundaram a União dos Conserveiros (1926-1932), empenhando-se em concentrar as vendas de conservas, fixar preços de exportação e construir uma fábrica de óleos e farinhas para absorver os excedentes da pesca91. Infelizmente, estas organizações desapareceram sem deixar qualquer rasto documental e só seriam relembradas, anos mais tarde, pela incapacidade de resolver os problemas da indústria. É importante notar, contudo, que a União de Matosinhos estava atenta aos fenómenos de «cartelização« anunciados por Albano de Sousa, entre outros92, e a reorganização da indústria de conservas de na Noruega, tomada como inspiração. Os preceitos de controlo da concorrência entre os industriais e cartelização dos preços de venda não passavam obrigatoriamente pela intervenção pública.

Que conclusões podemos retirar deste percurso sobre a representação dos interesses conserveiros? A indústria de conservas, era composta por uma heterogeneidade de interesses com importantes diferenças sociais e ecológicas, determinadas pela distribuição irregular dos recursos marinhos. Até 1927, a dimensão paroquial da representação profissional impediu que fosse exercida uma maior pressão sobre os poderes públicos para a concessão de incentivos e proteção à indústria. Com a ascensão da AIP, a pressão foi mais efectiva e os industriais beneficiaram de condições favoráveis à importação de matérias-primas. Ao mesmo tempo desenvolveram-se iniciativas de auto-regulação de duração efémera. As conquistas da AIP em matéria fiscal, sendo relevantes, não foram suficientes para conter os efeitos da crise internacional a partir de 1931.
Nestas circunstâncias, dificilmente a intervenção do Estado podia ter sido o resultado da captura das instituições políticas pelos industriais conserveiros. O relatório de Salazar, publicado em 1931, reivindicava a autonomia do governo para resolver o problema das conservas.

90 Rodrigues, A indústria…, vol. 1, 209-210.
91 Cordeiro, A indústria conserveira…, 31.

2.3. Salazar e o monopólio das exportações.

Em Dezembro de 1931, Salazar publicou um estudo sobre a indústria de conservas de peixe na imprensa diária. Pela sua relevância, o documento seria glosado por diversos autores nas décadas seguintes como forma de mobilizar a atenção dos poderes públicos para a indústria, mas manteve-se algo esquecido pela historiografia93. No início da década, Salazar já se afirmava como futuro líder político mas enfrentava pelo menos três desafios. Em primeiro lugar, a cooptação dos diversos grupos conservadores que conviviam na ditadura militar, especialmente os monárquicos e os militares, bem como a neutralização dos nacional sindicalistas, para uma forma de organização administrativa que previa o surgimento de uma nova Constituição política94. Em segundo, procurava defender a resistência da economia portuguesa à crise internacional, em parte justificada pela pequena abertura ao exterior, mas também pelo sucesso da sua «obra financeira» que alcançara o equilíbrio orçamental e das contas públicas95. Finalmente, e apesar deste último diagnóstico, o futuro ditador não permaneceu indiferente às tensões provocadas pela crise e às tensões sociais nos centros do litoral, mas também nas regiões vinhateiras e na agricultura, face à concorrência das importações a baixos preços. É neste quadro que deve ser integrado o relatório da visita de Salazar às fábricas de conservas. Depois da proclamação solene dos princípios de ordem económica nos famosos discursos, em 1930, e da defesa da resiliência da economia portuguesa na imprensa, o ministro decidiu inovar, ir ao terreno, estudar os problemas e propor uma solução96.
A estrutura do relatório era clara. Na introdução, que ocupa as primeiras cinco páginas, o ministro faz questão de salientar que este não é um estudo apenas sobre a indústria de conservas. Como refere o primeiro parágrafo, era intenção do governo ocupar-se das causas do défice comercial português. Entre as várias actividades destacava-se o universo das pescas, um dos mais expostos às relações internacionais, onde existiam alguns paradoxos: um país com uma longa costa que necessitava de importar a maior parte do peixe que consumia; as dificuldades de distribuição do peixe fresco no interior; e uma indústria exportadora em crise, refém dos baixos preços impostos nos mercados internacionais97. Sublinhe-se, entretanto, que o ministro definia inicialmente o relatório como um «misto de impressões colhidas na visita às fábricas» que, não sendo definitivo, devia servir para colocar o problema em discussão. Esta ideia é relevante para compreendermos que, após a sua publicação, o texto será imposto ao «plebiscito» dos industriais. Porém, um pouco mais à frente, diz: «Apesar de tudo, convindo em que alguns pormenores possam ser retocados, duvido de que a orientação aqui apontada para a solução das questões mais importantes possa, nas suas grandes linhas, ser substituída com vantagem»98.

92 Albano de Sousa, Organisação Industrial (Matosinhos: Tip. Leixões, 1931).
93 Com as excepções de Joel Silveira, «Alguns aspectos da política económica do fascismo: 1926-1933 (da crise de sobreprodução ao condicionamento industrial)», em O Fascismo em Portugal, org. António Costa Pinto (Lisboa: Regra do Jogo, 1982), 341-399; Rodrigues, A indústria…,I, 219-230; Garrido, O Estado Novo…, 82-100. Para este esquecimento terá contribuído a inclusão tardia do relatório na série de discursos e notas proferidos por Salazar, apenas em 1953.

94 Sobre este processo de cooptação ver, entre outros, Fernando Rosas, Salazar e o poder. A arte de saber durar (Lisboa: Tinta-da-China, 2012), 99-156. V. A. Oliveira Salazar, «Princípios fundamentais da revolução política» em Discursos, p. 88. Noutro discurso, é particularmente relevante o cenário de desordem (financeira, política, económica) descrito por Salazar e a assunção de um Estado forte como garante da defesa do interesse nacional. A forma política da ditadura não é enjeitada; pelo contrário, é entendida como útil para a resolução dos problemas criados por um excessivo individualismo, a «luta de classes» e o progressivo distanciamento entre o indivíduo, ou a sociedade civil, e o Estado: «Devemos dizer mesmo que as ditaduras se têm mostrado singularmente activas no desenvolvimento de legislação e instituições que vão elevando as condições de vida das massa trabalhadora, pela maior facilidade com que, sobre a base da ordem e da disciplina, podem encarar aquele problema, sem espírito de partido ou de classe, mas somente em inteira subordinação ao maior interesse nacional» – ver A. Salazar, «Ditadura administrativa e revolução política», em Discursos, 59.
95José Luís Cardoso, «Ecos da Grande Depressão em Portugal: relatos, diagnósticos e soluções», Análise Social, XLVII, n.º 203 (2012): 371-400.
96 Recordar, no entanto, que o ministro das Finanças republicano, Marques Guedes, já tinha visitado os centros de conservas e debruçado sobre o problema em 1925. Ver Guedes, Cinco meses…, 282-286.
97 Salazar, Notas sobre a indústria…, 5-7.
98 Salazar, Notas sobre a indústria…, 10.

Na primeira parte, Salazar elabora uma descrição densa sobre a produção, as matérias-primas, a vida dos operários e a assistência social, e formula a sua principal crítica: a indústria de conservas tinha uma estrutura débil que crescera excessivamente, ancorada nas facilidades de crédito no período de inflação do anterior regime republicano. Naquele momento, perante a perda de poder de compra internacional e a «barateza» da sardinha, os conserveiros concorriam ferozmente entre si com a descida dos preços até um «dumping absurdo». Com algumas exceções, os industriais estavam em regra dependentes dos intermediários, importadores ou exportadores não fabricantes, que impunham sistemas de venda prejudiciais como a venda de mercadorias à consignação. A este cenário, que comprimia as margens de lucro da indústria, somava-se um número excessivo de marcas e formatos de latas, em constante mudança sempre que o produto perdia a qualidade ou o prestígio. A realidade, caótica, não abonava a favor da iniciativa privada.
Depois do diagnóstico, o futuro ditador propunha a terapêutica. Ao enumerar as possibilidade de organização da indústria, distanciava-se das iniciativas dos grupos de representação profissional, atribuindo-lhes um atestado de menoridade:

«Convém não esquecer que partimos da desorganização ou da absoluta ausência de organização, não havendo nenhum ordenamento racional nem na produção nem no comércio de conservas. Estamos, por outro lado, em face de filhos dum individualismo exagerado, hostis à associação, renitentes ao acordo espontâneo, sempre prontos a romper por antagonismos individuais, mesmo depois de sentirem os efeitos benéficos de um princípio de organização, indisciplinados em suma: a experiência das uniões de conserveiros de Matosinhos são do caso prova suficiente. Isto quer dizer que as condições sociais portuguesas não permitem nem ir de uma assentada para as organizações industriais de tipo complexo mas absorventes da autonomia dos produtores, ainda que fosse possível em indústria tão forçadamente dispersa, nem fazer coisa que perdure, independentemente dos actos de autoridade ou seja da intervenção da lei».

Na realidade, apesar da dureza das palavras, o desprezo pelas tentativas de auto-regulação deve ser matizado. Salazar ressalvou a existência de empresas modelares que fabricavam marcas de referência com instalações bem organizadas. Todavia, a retórica pretendia abrir o terreno para legitimar a intervenção do Estado na reorganização da indústria. E, neste sentido, o ministro fez a sua principal proposta. O Estado, em vez de se cingir a uma intervenção mínima da lei, como até então fizera, devia avançar para uma nova organização com a criação de um centro de monopólio das exportações de conservas. O monopólio devia ter uma «fórmula cooperativista», composto por industriais que teriam uma remuneração fixa ao capital e uma distribuição de lucros proporcional às vendas de cada empresa99. O novo centro deveria garantir a qualidade das conservas, reduzir o número de marcas, promover a união de produtores na aquisição de matérias-primas e ainda melhorar as relações com a pesca, excercendo uma acção reguladora sobre os preços da sardinha. Em suma: a partir de um monopólio pretendia-se instituir a colaboração horizontal e vertical no sector das conservas e conter, assim, as circunstâncias que agravavam a concorrência.

Note-se que, até esta data, a elaboração teórica de Salazar sobre a crise do capitalismo liberal, a descoordenação da economia internacional e o papel do Estado na regulação da concorrência só tinha sido feita num plano geral, em discursos solenes ou na apresentação das contas anuais do Estado. Com o estudo sobre a indústria de conservas, tornava-se claro que a intervenção pública não se ia limitar ao equilíbrio macroeconómico das finanças públicas mas também penetrar na vida social e económica das indústrias e das empresas.

Não é fácil perscrutar a reação ao estudo de Salazar entre os industriais conserveiros. O principal jornal a fazer eco do relatório e a publicar nove entrevistas a industriais foi o Diário da Manhã, que além de situacionista, era visado pela censura, como a restante imprensa escrita. À primeira vista, o estudo foi louvado por unanimidade; perante a gravidade dos problemas do comércio e da indústria, todos reconheceram a intervenção do Estado como imprescindível. Mas uma segunda leitura desperta a atenção para os receios e as hesitações da iniciativa privada quanto à monopolização estatal das exportações. Numa missiva colectiva, quatro empresas de Setúbal afirmavam que o monopólio do comércio externo entraria em conflito com as «situações de vantagem» adquiridas pelos melhores produtores100. A concorrência leal e honesta, argumentavam, seria indispensável ao aperfeiçoamento da produção. Já Fernando de Matos, gerente da empresa Lopes, Coelho e Dias e antigo presidente da União de Conserveiros de Matosinhos, recusava a ideia de cartel e propunha antes a formação de concentrações regionais da indústria e uma Federação Geral das Conservas101. Mais explícitas, ainda, foram as respostas dos exportadores. Numa exposição entregue ao Ministro das Finanças, requeriam, entre outras medidas, que não se alterassem os formatos das latas nem se restringisse o número de marcas. Defendiam a permanência do fabrico de latas brancas ou de remplissage (ilustradas com marcas estrangeiras), bem com as suas próprias marcas, «partículas inalienáveis da riqueza nacional»102. Pelo contrário, Fernando Miranda Gomes, presidente da Brandão, Gomes e Cª, concordava com a proibição de marcas estrangeiras que inevitavelmente favoreciam os importadores e prejudicavam os conserveiros nacionais103. De forma mais consensual, industriais e exportadores viam com bons olhos a possibilidade de reforçar os mecanismos de atribuição de crédito a curto prazo a partir das mercadorias depositadas em armazéns oficiais. Mas, mesmo neste caso, as mudanças eram observadas com cautela. Miranda Gomes, por exemplo, aconselhava o uso parcimonioso do crédito, através de percentagens reduzidas do valor da mercadoria depositada, para criar o efeito perverso de stocks excessivos em períodos de arrefecimento da procura externa104. Este receio era certamente inspirado pela conjuntura de final de 1931, quando a retração súbita do mercado francês e a introdução de contingentes começava a criar grandes reservas de conservas no país.

99 De resto, esta opção de constituição de um monopólio administrativo, em alternativa a cartéis privados ou grupos de auto-regulação, vem exposta noutros textos de Salazar. Alfredo Marques cita, neste sentido, outro texto no mesmo período: “As vantagens atribuídas à concorrência são duvidosas […] Para ultrapassar estes últimos, surge o monopólio sob as suas diferentes formas. Algumas destas são, no entanto, portadoras de abusos e despotismos, pelo que são condenáveis, mas o princípio de monopólio como forma de control e como alternativa à concorrência é a melhor solução para a organização do mercado e para o funcionamento da economia, desde que o poder do monopólio possa ser contrabalançado e doseado pela intervenção do Estado.V. Alfredo Marques. Política económica e desenvolvimento em Portugal (1926-1959). As duas estratégias do Estado Novo no período de isolamento nacional (Lisboa: Livros Horizonte, 1988), 98.

100 «A opinião das firmas Araujo & Bastos Ltda., Carlos Schmidt & Cª Ltda, Conservas S. Pedro e Viegas Dias & Cª Lda», Diário da Manhã, 12.12.1931, 3.
101 Um problema momentoso. O Sr. Dr. Fernando de Matos, de Matozinhos fala-nos sobre a necessidade de organizar a industria de conservas”, Diário da Manhã, 12.11.1931
102. « Os exportadores de conservas reuniram-se ontem (…) entregado representaçãoo ao Sr. Ministro das Finanças », Diário da Manhã, 17.12.1931.
103 Diário da Manhã, 11.12.1931 (entrevista a Fernando Miranda Gomes).
104 Idem.

As entrevistas expõem a heterogeneidade de interesses e rivalidades que continuavam a povoar o sector das conservas. O elenco de opiniões diversas contrastava, utilmente, com o pensamento unívoco de Salazar. Na sequência da publicação do relatório, os industriais procuraram, quase freneticamente, interferir no processo que levaria à criação da organização. Poucos dias depois da publicação, reuniu-se na AIP uma assembleia de industriais que aprovou as «Bases para a Cooperativa Nacional das Conservas». Uma comissão de industriais seria recebida por Salazar para discutir a proposta105. Os industriais previam executar o programa do Ministro das Finanças e lançar a assistência social nos centros conserveiros, contando com a presença de um Delegado de Governo e a cobrança de uma taxa de 25 centavos por quilo de conservas exportadas106. Os exportadores, reunidos na Associação Comercial de Lisboa, opuseram-se às propostas dos industriais e preconizaram a formação de um Grémio de Exportadores independente, que asseguraria a liberalização do comércio e cobraria uma taxa de exportação de apenas dois centavos por quilo107.

105 Ver os diversos artigos publicados no Diário da Manhã entre 17 e 20 de Dezembro de 1931.
106 Um dos relatos mais interessantes sobre a hostilidade dos exportadores à solução encontrada por Salazar e Sebastião Ramires encontra-se no testemunho de Alberto da Cunha Dias, Conservas de Peixe. Subsídios para um estudo de um Problema Nacional. Lisboa: Edições Delta, 1932.
107 “Os exportadores de conservas reuniram ontem tendo resolvido abandonar a Associação Comercial de Lisboa e fundar o Grémio de Exportadores.”, Diário da Manhã. 24.12.1931.

2.4. Coordenação económica: o Consórcio Português das Conservas de Sardinha.

A organização idealizada por Salazar previa não só uma mudança na representação profissional do sector, mas também a transformação radical do funcionamento da indústria. Os princípios fundamentais seguidos na criação do Consórcio Português das Conservas de Sardinha, em 1932, ilustram a ideia de coordenação económica108 e a forma como esta precedeu a criação da organização corporativa.

Existem poucas dúvidas sobre a ideia de o Estado Novo ter introduzido um novo enquadramento institucional nas atividades agrícolas e industriais. As leis protecionistas do período entre guerras, como a pauta de 1930 e o Ato Colonial, acompanhadas da Lei de Reconstituição Económica, de 1935, dos Planos de Fomento no segundo pós-guerra e o condicionamento industrial são indicados como os principais instrumentos de política económica109. Cremos, no entanto, que por vezes tem sido subestimado o impacto da coordenação económica no desempenho das actividades económicas. Se as leis e planos acima citados constituem as instituições formais que enquadraram o funcionamento da economia, os organismos de coordenação económica foram o complemento que, todavia, se tornou na essência da intervenção do Estado. A intervenção estatal espraiou-se pelos sectores estratégicos da economia portuguesa e incidiu numa abordagem microeconómica sobre os fluxos de produção e distribuição, com a gestão dos preços em cada etapa das cadeias de valor, e por vezes com os organismos a actuarem directamente nos mercados como produtores, vendedores e compradores de mercadorias110.

108 Sobre o advento da coordenação económica, os seus problemas de instalação numa perspectiva intersectorial e o efeito das conjunturas no crescimento do aparelho do Estado, continua a ser referencial o estudo de Manuel de Lucena, «Sobre a evolução dos organismos de coordenação económica ligados à lavoura (I) ». Análise Social, XIV, nº 56 (1978): 817-862.
109 Para um balanço geral, ver Anabela Nunes e J. M. Brandão de Brito, «Política económica, industrialização e crescimento». Em Nova História de Portugal, Vol.XII – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), org. Fernando Rosas. Lisboa: Editorial Presença, 1992.
110 Esta nuance é recordada por José da Silva Lopes em «Intervencionismo económico», em Dicionário de História de Portugal, org. António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol 8 (Lisboa: Figueirinhas, 1999), 292-294.

Como sublinhou Manuel de Lucena, o problema da coordenação económica surgiu quando se discutia a futura natureza do Estado e as relações com a sociedade civil111. Apesar de esta discussão ser feita no âmbito da difusão dos corporativismos, em particular pela receção da obra de Manoilesco, a criação das primeiras organizações de coordenação exibiam um modelo de centralização do poder no Estado. O problema de acudir aos sectores em crise, em particular aqueles mais orientados às exportações, precede a institucionalização da economia corporativa, formalizada na Constituição de 1933 e no Estatuto do Trabalho Nacional. Na indústria de conservas, os diplomas fundacionais estabelecem a disciplina e a cooperação entre produtores de cima para baixo. Em 1935, a organização corporativa vai emanar da estrutura de coordenação económica criada em 1932. A «fraude» do corporativismo de associação não deixará de ser sentida pelos industriais que, com uma forte tradição de representação profissional, se viram arredados das esferas de decisão.

A 27 de Agosto de 1932 publicaram-se os três diplomas que mudaram o enquadramento institucional da indústria de conservas de sardinha e cujo funcionamento se estenderia até 1974. A partir da estrutura de coordenação económica e, mais tarde, a articulação com a organização corporativa, o Estado penetrou na vida quotidiana do funcionamento da indústria, criando um poder «infraestrutural» com regras aplicáveis a todas as fases de produção e às relações industriais entre trabalhadores e industriais112. Os novos diplomas incluíam mecanismos de controlo de concorrência, uma nova fiscalidade, a regulação no acesso aos recursos, a criação de um sistema de crédito a curto prazo e práticas sancionatórias para quem não cumprisse a adesão compulsiva à nova organização.

Dos três diplomas, o primeiro, dedicado à «regulamentação da indústria de conservas», é o mais relevante. Nota-se à partida a ambição de controlar o comércio, desde a garantia da qualidade dos produtos à fixação de preços e criação de modelos de marcas e formatos, e a produção, que inclui o crédito industrial, o defeso do fabrico nos meses de inverno e a modificação do regime de compra da sardinha na lota. Para justificar uma intervenção tão ampla, o legislador recordava os apoios dados à indústria desde 1930, nomeadamente a isenção de direitos de exportação e a desvalorização do escudo, que não serviram para remediar os problemas. A «profunda desorganização» e a «imprevidência dos interessados», mais do que os efeitos da crise internacional, seriam os principais culpados. Perante os desvarios da concorrência entre particulares, seria missão do Estado intervir «pelo direito que lhe pertence e pelo dever que lhe cabe de assegurar aos vários sectores da economia nacional as condições de vida indispensáveis».

Na realidade, a invocação dos direitos e deveres do Estado ocorria num vazio constitucional, pelo que deve ser entendida como um anúncio premonitório do novo projecto constitucional, em preparação, e que o primeiro governo de Salazar tomaria como uma das suas prioridades113. Na segunda parte do primeiro diploma, vêm espelhadas quatro características desse processo de extensão dos poderes públicos cuja matriz essencial foi a restrição das liberdades individuais e a obrigatoriedade de adesão à nova organização. Em primeiro lugar, a criação do CPCS revertia a ideia inicial de ser criado um monopólio das exportações mas, em contrapartida, tornava obrigatória a inscrição de todos os industriais e exportadores. Para melhorar a qualidade proibiu-se o fabrico de conservas com o chamado peixe de inverno, capturado nos meses em que a sardinha se considerava imprópria para a conserva. As exportações passaram a carecer de um certificado de qualidade emitido pelo CPCS. Em segundo lugar, a organização implicava a criação de novos mecanismos de intervenção nos mercados, em particular a competência de estabelecer os preços mínimos de exportação das conservas. No que respeita à oferta de crédito industrial a curto prazo, através da warrantagem114, a lei previa que o velho sistema de armazéns formado durante a República fosse integrado na orgânica do novo «organismo de interesse público especializado». Finalmente, o diploma revelava uma faceta menos compulsiva de defesa dos industriais nas relações intersectoriais, com a promessa de modificar o regime da lota, em particular as diferentes medidas utilizadas para a venda do pescado nos diferentes portos sardinheiros. Apesar da bondade da medida, a instalação de unidades fixas de compra da sardinha só seria adoptada em 1954.

111 Lucena, Sobre a evolução…, I, 821-827.
112 V. Michael Mann, «The autonomous power of the state : its origins, mechanisms and results», European Journal of Sociology, nº 25-2 (1984): 185-213.

113Paula Borges Santos, «O modelo político do Estado autoritário português: a ideia corporativa na constitucionalização do regime (1931-1933)», Espacio, Tiempo y Forma, nº 27 (2015): 59-84.
114 A warrantagem consistia no depósito de mercadorias em armazéns oficiais e a concessão de um empréstimo de curto prazo sobre o valor das mercadorias. Inicialmente foi apenas aplicado às conservas de sardinha, mas seria alargado a conservas de outras espécies e a matérias –primas como a folha-de-flandres e o azeite.

Resta-nos sublinhar que a parte final do decreto 21:621 preconizava um verdadeiro novo código industrial: do fabrico à exportação, do funcionamento dos armazéns à venda do peixe, tudo seria regulamentado com minúcia. Presumia-se que a nova estrutura burocrática, para ser eficaz, deveria não só ocupar todos os segmentos de produção mas também criar um todo orgânico em que as diferentes fases do processo dependiam do cumprimento das normas anteriores. Assim, por exemplo, para determinar que a exportação para os mercados mais exigentes só admitia conservas de qualidade superior, a organização devia primeiro formar um sistema de certificação e fiscalização aplicado a todas as fábricas. Esse sistema de controlo da qualidade servia também como critério para as percentagens de desconto atribuídas às mercadorias em warrantagem115. No comércio, os «preços mínimos» incluíam «o lucro da actividade exportadora, a comissão de agência, bónus e concessões especiais.»116. Ao mesmo tempo, proibiam-se as vendas à consignação e a entrega de qualquer indemnização aos importadores, bem como a posse de mais do que um agente exclusivo em cada praça estrangeira. As multas para os infractores podiam atingir os 200 contos, a suspensão temporária ou definitiva.

Os restantes diplomas deram o enquadramento institucional às medidas preconizadas no decreto 21:621, com a criação do CPCS e a regulamentação do condicionamento da indústria de conservas117. O decreto 21:622 definia o CPCS como o organismo executor do programa de reorganização industrial; as competências diversas, que antes estariam distribuídas por vários ministérios, eram agora centralizadas numa estrutura de coordenação económica com personalidade jurídica e órgãos directivos nomeados pela tutela ministerial. Por outro lado, o CPCS estabelecia uma taxa de 25 centavos por quilograma de conserva de sardinha exportada, passando assim a lei a proposta «maximalista» formulada na assembleia de industriais da AIP, em 1932, e preterindo a proposta dos exportadores. A cobrança dessa taxa era, implicitamente, legitimada pela série de benefícios garantidos aos industriais: o acesso ao crédito, as políticas de qualidade e o contributo para os fundos sociais destinados a subsidiar os operários nos períodos de defeso de fabrico. Finalmente, sob o pretexto de criação de «Marcas Nacionais», o CPCS assumia-se ainda como um «poderoso organismo de acção» que poderia intervir directamente no mercado com serviços próprios de vendas e «propaganda», bem como lançar as indústrias subsidiárias de óleos e farinhas, fornecer matérias-primas e encomendar o fabrico de «marcas nacionais»118.

O terceiro e último decreto, sobre o condicionamento da indústria de conservas, revela, pelo seu detalhe, que os investimentos das empresas e a concorrência interna teriam uma regulamentação tão densa quanto o fabrico e a exportação de conservas. Em teoria, não sobravam áreas de funcionamento da indústria que tivessem ficado à margem da lei e permitissem aos industriais iludir as normas criadas pela coordenação económica. É certo, no entanto, que os empresários contornaram os limites impostos pelo condicionamento industrial. Nos mercados externos, como veremos, estiveram em permanente conflito com os «preços mínimos» oficiais.

Além da legislação, é importante traçar um quadro geral sobre a situação financeira do CPCS e do organismo de coordenação económica que lhe sucedeu, o Instituto Português das Conservas de Peixe (IPCP). A visão geral sobre as contas permite-nos saber se a organização dispôs de meios para executar as múltiplas tarefas a que se propôs. Neste sentido, uma primeira leitura revela um certo desafogo financeiro, com saldos anuais positivos, assegurados logo em 1933 e repetidos no final da década (Quadro 2.5). A principal causa é o volume de receita adquirido pelas taxas sobre a exportação, cuja cobrança se estendeu a outras conservas de peixe a partir de 1935119 . A operação de warrantagem também se revelava lucrativa, ainda que a percentagem do valor da mercadoria atribuído em empréstimo fosse bastante conservadora para não substituir a procura do mercado. Por outro lado, entre as despesas, é notável o peso das rúbricas «Inspecção Geral de fiscalização» e «Despesas com pessoal e material» que absorvem mais de dois terços do total e confirmam o peso burocrático da vigilância sobre a produção. A «propaganda e publicidade» nos mercados externos, um dos principais desideratos da acção do CPCS e do IPCP, ocupou uma posição secundária no total de despesas. Finalmente, deve ter-se em conta que os encargos com a assistência ao operariado, onde se incluem os subsídios do defeso, foram comparticipados por transferências do Comissariado do Desemprego, aliviando a estrutura de coordenação económica.

113Paula Borges Santos, «O modelo político do Estado autoritário português: a ideia corporativa na constitucionalização do regime (1931-1933)», Espacio, Tiempo y Forma, nº 27 (2015): 59-84.
114 A warrantagem consistia no depósito de mercadorias em armazéns oficiais e a concessão de um empréstimo de curto prazo sobre o valor das mercadorias. Inicialmente foi apenas aplicado às conservas de sardinha, mas seria alargado a conservas de outras espécies e a matérias –primas como a folha-de-flandres e o azeite.

115 Todas as mercadorias para exportação careciam de um certificado de qualidade e da inscrição prévia do industrial ou exportador; o certificado era emitido após verificação do lote na alfândega (arts. 10º a 13º). Quanto ao crédito, os warrants eram emitidos pelo CPCS, mas o depósito de mercadoria nos armazéns dependia da passagem do certificado de qualidade (art. 21º). A classificação das mercadorias era rigorosa:
« Art. 5º Toda a conserva deverá ser classificada pelo CPCS e pela forma seguinte:
a) Como mercadoria «Extra-fino» a conserva em azeite ou molhos similares que satisfaça as condições seguintes: Peixe fresco e gordo, de igual tamanho, de primeira escolha, sem defeito em qualquer das camadas, sem sinais de grelha, não apertado, bem enlatado, carne branca levemente rosada, espinha facilmente delível, em azeite puro de oliveira, claro e sem gosto a fruto, ou em outros molhos compostos de produtos de qualidade extra, cobrindo o molho, perfeitamente, o peixe.
b) Como «Extra» a conserva que satisfaça às condições seguintes: Os peixes da primeira camada devem corresponder, sensivelmente, às condições de aspecto dos peixes da qualidade «Extra-fino» mas permitindo, nas outras camadas, peixes com pequenos defeitos, carne branca levemente rosada, espinha facilmente delível, azeite claro ou molhos de primeira qualidade.
c) Como mercadoria «Bom-corrente» a que satisfaça as seguintes condições: Peixes com defeitos resultantes das operações de manipulação, carne branca ou levemente rosada, azeite, óleo claro ou molhos de primeira qualidade.
1. O azeite e o óleo devem ainda satisfazer, no que se refere a acidez, qualidades organolépticas e características, às condições que pelo CPCS forem estabelecidas.
2. Na classificação de especialidades, como toutiços, filetes ou outras, serão exigidas todas as condições indicads neste artigo que forem aplicáveis.».

116 Diário de Governo, Decreto 21:621, art. 16º.
117 Ver, respectivamente, os decretos 21:622 e 21:623.
118 Ver Diário de Governo, Decreto 21:622, capítulo «Atribuições e fins do Consórcio – Marcas Nacionais». O legislador esclarecia que as «marcas nacionais» seriam propriedade exclusiva do Consórcio, e a partir de 1934 as «marcas nacionais» seriam obrigatoriamente fabricadas por todos os industriais, na percentagem de cinco por cento da sua produção normal (arts. 14º e 15º). Todavia, as marcas nacionais só surgiram em 1940, no contexto particular do comércio na Segunda Guerra Mundial.
119 Existe um certo entusiasmo em torno do sistema de crédito instituído pelo CPCS. Num relatório apresentado pela organização para o período 1933-34, o crescimento dos depósitos nos armazéns do CPCS em Portugal contrastava com a tendência de queda dos depósitos de conservas no estrangeiro – método que, em princípio, favorecia a descida dos preços. Com baixas taxas de juro e uma comissão de 0,5% reembolsável se a mercadoria fosse vendida em 30 dias e com pagamento célere, o CPCS lisonjeava-se com o facto de as “férias de sábado” poderem ser pagas com a mercadoria fabricada na quarta-feira (CPCS, Relatório…, 168.). No entanto, em 1935, menos de um quarto dos industriais tinham recorrido aos serviços de crédito do CPCS.

Podemos, enfim, considerar que a intervenção do Estado sobre a indústria de conservas enquadra-se no problema da génese da coordenação económica. Em 1978, Manuel de Lucena instigava os seus leitores a compreenderem como a crise internacional e a conjuntura europeia autoritária implicavam um recuo sobre os ideais de instalação de um corporativismo de associação e a democracia orgânica120. Em 1932, a obra legislativa do ministro Ramires enunciava os problemas criados pela crise na economia portuguesa. Após tomar posse em Julho, Ramires regulou as importações de trigo, fixou preços aos produtores e garantiu a distribuição de trigo à indústria de moagem; um mês mais tarde, ocupou-se da indústria de conservas e, em Novembro, criou a Casa do Douro. O comércio de bacalhau e arroz, os vinhos comuns e as frutas seguiram-se na criação de organismos de coordenação vertical e horizontal da produção121. Esta obra era a resposta uma série de reivindicações, grupos de interesse regionais e oposições intrassectoriais que antecederam as soluções autoritárias do Estado Novo122.

Nos vinhos comuns, o impacto da crise internacional foi acentuado pelo efeito de sobreprodução causado por anos de boas colheitas. Contudo, a questão vinícola datava, pelo menos, de finais do século XIX. As oposições entre a produção de vinhos de consumo e de aguardentes para beneficiar o vinho do Porto, por exemplo, e o conflito «latente e insolúvel» entre produtores e comerciantes precedia a crise internacional no «país vinícola»123. O vinho do Porto merece uma atenção especial por ser, à semelhança das conservas, um produto exclusivo de exportação124. Os produtores de vinho do Porto tinham estruturas frágeis de controlo da qualidade e armazenamento dos stocks. A representação de interesses dos vitivinicultores do Douro estava organizada, pelo menos desde 1907, em comissões locais respaldadas por poderes municipais. No início dos anos trinta, a quebra das exportações acentuou os conflitos entre produtores e exportadores, com os primeiros a proporem a «sindicalização obrigatória» dos viticultores. A Casa do Douro, criada em 1932 como uma «federação sindical de viticultores» de inscrição obrigatória, afirmava a necessidade de proteger o lavrador duriense dos preços praticados pelos exportadores e lançar créditos a curto prazo a partir de mercadorias armazenadas 125. Curiosamente, a intervenção estatal justificava-se com a tradição mercantilista do Marquês de Pombal, que centralizara as exportações de vinho, e contradizia o ideal de auto-regulação do corporativismo doutrinário126. O legislador reproduzia ainda a ideia de «atraso» da iniciativa particular, condenada a um cultivo dispendioso e de baixa produtividade, que a impedira de reunir capitais para exercer o comércio e ficara dependente das condições impostas pelos comerciantes ingleses.

A atenção pública ao vinho do Porto e às conservas de sardinha permite-nos ir mais longe e sugerir que o Estado assumiu uma nova missão exportadora. Entre 1930 e 1932, os dois produtos valeram 42% das exportações127. Ao tomar para si a resolução dos problemas de cada um dos sectores, o governo de Salazar não só tornava as conservas e o vinho do Porto num objeto político, mas também assumia a insuficiência do modelo de autarcia. Por maior sucesso que tivesse a substituição de importações, não era possível isolar a economia nacional das trocas com o exterior. Através de novas organizações, o Estado tentou ocupar o lugar dos comerciantes, «classe» mais fragmentada do que os produtores, e intervir diretamente no mercado. Numa visão de típico nacionalismo económico, o governo de Salazar vai sentir-se no poder de determinar os preços de venda nos espaços de consumo. Uma pretensão que se revelou mobilizadora mas ilusória.

120 Lucena, Sobre a evolução…, 829/830.
121 Ver as análise de Dulce Freire, A questão do vinho no Estado Novo (Lisboa:Âncora, 2010), Álvaro Garrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau (Lisboa: Temas e Debates, 2010), e Leonardo Aboim Pires, «A Junta Nacional das Frutas: corporativismo, desenvolvimento industrial e modernização agrícola no Estado Novo (1936-1974)». Tese de Mestrado, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2018.
122 Um dos fundos documentais que melhor documenta este processo de organização compulsiva dos interesses pertence ao Ministério do Comércio e Indústria (1933-1940), depositado na Torre do Tombo. Encontra-se sem tratamento arquivístico.
123 Freire, A questão do vinho…, 93-105. Neste sentido, notam-se pelo menos duas coincidências com a indústria de conservas: o ciclo de sobreprodução e a dificuldade de colocação de excedentes; o recurso ao armazenamento como solução promovida do Estado para regular a oferta e introduzir uma política de verificação da qualidade.
124 Existe copiosa bibliografia sobre o Douro e o vinho do Porto assente na ideia que o seu comércio serviu de base às relações económicas externas portuguesas num longo prazo, em particular com Inglaterra. Para uma síntese recente, ver François Guichard, Philippe Roudié e Gaspar Martins Pereira, org. O vinho do Porto e o Douro no século XX e início do século XXI. (Porto: Afrontamento, 2019).
125 V. Diário do Governo, Decreto 21:883.

126 Vital Moreira sublinha a persistência no longo prazo do princípio de regulação na produção e comércio de vinho do Porto, por oposição à liberdade de comércio; dentro do princípio de regulação, desenvolve em que medida se desenvolveram a regulaçãoo estadual e a auto-regulação profissional e regional. V. O governo de Baco: a organização institucional do vinho do Porto (Porto: Afrontamento, 1998), 69 e ss.
127 As conservas 20,1% e o vinho do Porto 21,9%; v. Estatística Comercial, INE.

2.5. Conclusão: um novo paradigma.

Ao longo do capítulo procurámos estabelecer os nexos entre as conjunturas que justificaram a reorganização da indústria conserveira em 1932. Não existe uma relação causal com cada uma das três variáveis: a crise internacional, a «captura» das instituições pelos grupos de interesse ou a ação autónoma de Salazar e do seu primeiro governo. São as relações entretecidas por estes fenómenos que, na sua historicidade, trouxeram as conservas de sardinha para o centro do debate político. Como dependia exclusivamente das exportações, a indústria sofreu com o recuo do comércio internacional, o encerramento de fábricas e o aumento do desemprego nos centros industriais. Em comparação com outros países produtores, a indústria portuguesa manteve a orientação para as exportações devido à ausência de alternativas no mercado interno. O consumo alimentar, concentrado no peixe fresco ou salgado, e a procura agrícola, com a produção de adubos por grandes empresas que impediam a valorização das farinhas de peixe, ofereciam escassas possibilidades de diversificação. Mas esta explicação não é suficiente. No início dos anos trinta, as dificuldades impostas no comércio internacional inspiraram não só os industrialistas a lançar projectos de substituição das importações, mas também revelaram a importância de aumentar as exportações como fonte de divisas estrangeiras e equilíbrio das balanças de comércio e pagamentos, em particular após a quebra das remessas do Brasil. Foi a atenção estratégica ao comércio exportador, quase simultânea do abandono do padrão-ouro e a desvalorização do escudo, que atraiu Salazar a estudar o «problema das conservas» em 1931.

Segundo esta perspectiva, a tese de «captura» das novas instituições pelos grupos de interesse perde vigor. É certo que, primeiro com a crise de escassez da sardinha e, mais tarde, com a abundância da pesca e a sobreprodução, as associações liberais mobilizaram-se, criaram organizações de auto-regulação e preconizaram, junto da AIP, as primeiras soluções autoritárias. Todavia, estes acontecimentos não indicam uma absoluta sincronia com o novo regime; a «sindicalização obrigatória» não parece ser apenas um resultado da pressão exercida pelos agentes económicos, ou a resolução duradoura dos problemas de uma «economia desarticulada», povoada de conflitos entre produtores e comerciantes, que levara ao colapso democrático da Primeira República128.

Para contrariar esta interpretação, devemos ter em conta duas ideias: em 1932, a intervenção do Estado foi legitimada pela dita «anarquia» entre os conserveiros, o que se deve traduzir pela existência de um pluralismo representativo no sector, a que se somavam as diferenças sociais e ecológicas entre os núcleos regionais. Em segundo, a criação do Consórcio implicava uma restrição das liberdades individuais que vinha, com toda a clareza, enunciada no decreto fundador. Mas essa restrição supunha a adesão prévia dos industriais ao projecto do Estado Novo. Logo em 1932, por exemplo, o Ministro Ramires convidou as associações industriais a proporem os nomes de representantes para o conselho de administração do futuro Consórcio; porém, ao mesmo tempo, escrevia aos governadores civis e administradores concelhios, fiéis à «situação», para vigiarem o processo e comentarem as escolhas feitas pelos industriais129.

A intervenção sobre a indústria de conservas, ainda que justificada pelas circunstâncias aqui desenvolvidas, é a expressão de algo maior: o processo de extensão dos poderes e estrutura do novo Estado. Neste sentido, a coordenação económica desempenhada por novas organizações tornou-se uma função essencial do poder público. Como estruturas «paraestatais», os organismos de coordenação económica sublinhou Manuel de Lucena, os organismos de coordenação económica coexistiram ao lado dos órgãos da administração central e subtraíram competências relevantes como a fiscalização da qualidade dos produtos ou o licenciamento das operações comerciais. Com a criação do Consórcio, era estabelecido um novo paradigma em que se estreitavam as relações entre os indivíduos e o Estado. A tomada de decisão nas empresas ou o aproveitamento das oportunidades nos mercados externos careciam da interpretação que os poderes públicos fizessem sobre o sector. Uma mudança radical que influenciou o rumo da indústria nas décadas seguintes.

128Ver Kathleen Schwartzman, The social origins of democratic collapse : the first portuguese republic in the global economy (Kansas: University Press of Kansas, 1989), 83-90.
129 ANTT, MCI, Cx. 1 (Gabinete do Ministro, Correspondência Expedida, 1932). .

3. A coordenação económica estatal (1933-1939).

Após a criação de um novo paradigma institucional, a «organização» tinha a missão de recuperar as exportações de conservas. Todavia, entre 1930 e 1933, as condições dos mercados externos mudaram drasticamente. Foi neste período que se consumaram as principais estratégias protecionistas para reduzir as importações de conservas, proteger as indústrias domésticas e procurar, em alternativa, a intensificação das relações comerciais com os espaços coloniais.

A questão central que se colocou neste período foi a eficácia do Estado, através da coordenação económica, gerir os preços de exportação. A cartelização estatal teve uma evolução negativa no sector das conservas: partindo do objectivo ambicioso de fixar um «preço justo» que correspondesse ao custo de produção, a situação evoluiu para uma prática generalizada de fraude e, por extensão, levou à descredibilização da organização. As outras medidas previstas no plano do Consórcio foram em grande medida secundarizadas pelo problema da gestão dos preços.

Neste capítulo começamos por colocar em perspectiva comparada a intervenção pública no sector das conservas. Na realidade, existe um paralelismo com outras indústrias congéneres europeias, mas nenhuma parece ter tido uma doutrina de renovação política como o caso português. Em segundo lugar, identificamos as principais alterações nos mercados consumidores e a forma como os preços se tornaram o problema principal.

Na segunda metade da década, a estrutura de coordenação económica foi adaptada à nova orgânica corporativa. Além de analisarmos o processo segundo a evolução legislativa, focamo-nos sobretudo na forma como os industriais viram as suas expectativas de representação profissional serem defraudadas. Por outro lado, os engenheiros que apoiaram uma visão «industrialista» para o Consórcio também viram as suas estratégias adiadas, em grande parte devido à burocratização do comércio exportador.

3.1. Uma iniciativa isolada?

Em 1941, António Pinto Barbosa defendia, na sua tese de doutoramento, que a organização da indústria de conservas em Portugal era uma inovação à escala internacional 130. Se a afirmação é verosímil para os países que produziam conservas de sardinha, levanta algumas dúvidas quando comparamos com outras congéneres europeias. Nos anos trinta nasceram múltiplas organizações criadas pelos governos para reorganizar as indústrias da pesca, protege-las dos efeitos de sobreprodução e responder às tendências do comércio internacional, na Noruega, Dinamarca, Inglaterra e outros países setentrionais. Qual seria o denominador comum nesta intervenção? Em primeiro lugar, a atenção política excedia a importância relativa que as indústrias da pesca e conservas tinham nas respectivas economias. Mas , quer pelo seu carácter simbólico, quer pela exposição ao comércio internacional, tornaram-se espaços de uma privilegiada intervenção estatal. Em segundo lugar, os países em que os produtos da pesca ocupavam uma posição mais relevante na estrutura das exportações foram os que receberam uma intervenção publica mais profunda. Finalmente, a pesca e transformação de peixe, sobretudo de pequenos pelágicos como o arenque e a sardinha, era desempenhada por empresas de pequena escala com bases económicas frágeis, sem controlo do comércio, dependentes de vendas a curto prazo e de trabalho intensivo nas regiões do litoral, onde são os principais empregadores. A intervenção do Estado sobre essas comunidades significará, sem prejuízo das diferenças entre regimes, a conquista de bases de apoio social para o exercício político.

Num primeiro plano encontram-se os países nórdicos: Dinamarca, Noruega e Islândia. A pesca na Dinamarca tinha uma importância residual no conjunto do PIB (0,6%) e nas exportações, inferiores a 4% do total entre 1923 e 1938131. Em meados dos anos vinte, o sector entrou em crise e revelou a necessidade de uma mudança estrutural: na produção primária, os preços caíram 40%, agravado pela retração do mercado alemão com a desvalorização galopante do marco e ainda as medidas protecionistas no mercado inglês. Com o sector em crise, estabeleceu-se um debate público sobre a necessidade de criar uma indústria transformadora capaz de diversificar os mercados e aumentar a oferta de emprego132. Em 1929, o governo social democrata de Thorvald Stauning criou uma Comissão de Novos Mercados que recomendou a criação de um banco cooperativo, a prospecção de novos mercados e um laboratório para melhorar a qualidade dos produtos. Mas o Conselho de Pescas, incumbido de concretizar as estratégias de modernização, viu a sua tarefa interrompida pelas consequências da Grande Depressão133. A introdução de quotas na exportação para os mercados de Inglaterra e Alemanha mobilizaram a acção do Conselho de Pescas que passou a ser o responsável pela distribuição das oportunidades de exportação entre os produtores. Em todo o caso, as transformações na oferta foram obtidas com acordos voluntários para decidir quais as espécies de peixe que deveriam ser selecionadas para exportação.

Na Noruega e na Islândia, apesar das semelhanças nos dois países entre a estrutura industrial, a produção e a participação nos mercados internacionais, as medidas protecionistas tiveram resultados diferentes134. A indústria de pesca dos dois países representava, em 1930, cerca de um terço da produção europeia com uma dependência dos mercados externos – 80 a 90% da produção era exportada. Na Islândia, a economia da pesca tinha uma importância inusitada pois representava cerca de 90% das receitas de exportação. À semelhança do que ocorreu na Dinamarca, os primeiros anos vinte foram de expansão, com pequenas empresas que se viram constrangidas com a descida dos preços e as barreiras protecionistas nos anos trinta, em particular nos países mediterrânicos, para onde exportavam o bacalhau salgado 135. Na Noruega, as tentativas goradas de acordos voluntários para fixação de preços mínimos entre associações de produtores foi ultrapassada em 1932 com a aprovação no parlamento do Klipfish Act, um cartel estatal para o comércio, quotas de exportação e obrigação de compra de bacalhau aos produtores nacionais. Na produção de arenque, a intervenção do Estado dirigiu-se ao mercado interno com quotas para as diferentes actividades transformadoras. A indústria conserveira, duramente atingida pelo proteccionismo norte-americano, foi dos subsectores mais regulados com organizações especializadas em cada produto e fixação de preços à produção e exportação. A Brislingcentral, por exemplo, era vista em Portugal como tendo sido criada à imagem do Consórcio Português das Conservas de Peixe 136. Na Islândia, a exportação de arenque esteve sujeita a um monopólio estatal desde 1928.

Num segundo plano temos os países anglo-saxónicos, a Inglaterra e os Estados Unidos, onde a influência das pescas no conjunto da economia é menor. Apesar da sua tradição liberal, os dois países revelam mudanças nas políticas sobre o sector. Nos Estados Unidos, a protecção à indústria da pesca não foi inicialmente uma prioridade; a tarifa Smoot-Hawley, de 1930, desenhada para proteger a produção agrícola, teve um pequeno impacto nas importações de produtos da pesca. As conservas da Noruega, seguidas pelas portuguesas, continuaram a aumentar as exportações até 1936, aparentemente devido à incapacidade da indústria do Maine competir com a qualidade e preferência dos consumidores pelos produtos estrangeiros137. Do lado da oferta, as mudanças foram mais substanciais: a indústria de conservas foi abrangida pelos códigos de «concorrência justa» aplicados a diversos sectores industriais, ao abrigo do National Recovery Act. O impacto das medidas então adoptadas, como a fixação de preços de venda no mercado interno, é ainda pouco claro138. É certo, porém, que a indústria da Califórnia encontrara na produção de farinhas de peixe uma alternativa à criação de excedentes que pudessem criar uma descida abrupta dos preços; além disso, também mostrou uma maior capacidade de entrada nos mercados dos países latino-americanos, especialmente depois das medidas protecionistas levantadas às conservas espanholas e italianas. Em Inglaterra, as barreiras administrativas às importações de produtos da pesca foram pouco eficazes, em especial com a Dinamarca. Entretanto, no parlamento britânico, a discussão sobre a «reorganização industrial» ganhou força como uma estratégia para enfrentar a crise internacional. O debate político referia-se não só à necessidade de aumentar a eficiência das indústrias domésticas mas também promover o emprego e a estabilidade social139. No domínio das pescas, a maior inovação ocorreu no subsector do arenque, cuja produção e exportação atravessava um período de decadência desde o final da Primeira Guerra Mundial. A perda de mercados, a concorrência internacional e o crescimento do proteccionismo conduziram à formação do Herring Industry Board , em 1935, com o objectivo de intervir nos mercados com a fixação de preços mínimos. Ao mesmo tempo, a nova organização implementou mecanismos de aumento da produtividade, decantados das políticas agrícolas britânicas, e concedeu apoios técnicos e financeiros à modernização das frotas. Apesar de conseguir a retoma de vendas no mercado britânico, a indústria não resolveu o problema da criação de excedentes e da subutilização das capturas140.

Finalmente, importa mencionar os casos de Espanha e França no que concerne à organização do subsector da indústria de conservas. Em Espanha, nos anos anteriores à depressão económica, a escassez e preços altos da matéria-prima levaram a um reforço dos acordos entre empresas sobre preços e mercados, sempre num âmbito regional141. Com a ditadura do general Primo Rivera, os conserveiros das diferentes regiões foram convocados a estabelecer uma organização corporativa nacional, capaz de superar as diferenças sócio-ecológicas entre os diversos centros, mas a iniciativa não chegou a concretizar-se antes da instalação da Segunda República.142. Subsistiram, no entanto, poderosas associações regionais com um perfil de defesa da produção local: a Federación de Conservas del Litoral Cantábrico na produção de anchovas, A Unión de Fabricantes de Galicia no fabrico de sardinhas e o Consórcio Nacional-Almadrabero, na Andaluzia, que reuniu todas as artes de captura e fabricantes de conserva de atum vermelho e em 1930-31 era já responsável por 12 a 18% do total da produção de conservas espanholas143. Após a Guerra Civil, o primeiro franquismo seviu-se das associações empresariais para implementar um programa de intervenção na indústria. A união dos fabricantes galegos, por exemplo, foi responsável pela distribuição das matérias-primas a partir de 1940, num contexto de escassez, e determinava grande parte dos custos de produção das empresas144.

Se o caso de Espanha mostra que a organização corporativa não foi uma condição essencial para a coordenação económica da indústria de conservas, em França temos o seu contrário: o corporativismo parece ter funcionado como sistema de representação de interesses e resolução de conflitos intrassectoriais sem que o regime pudesse ser classificado como autoritário. Como descreve Pinto Barbosa, a partir de 1935 a representação de interesses esteve organizada a partir de organismos de base, sindicatos regionais, reunidos numa união de conserveiros que, por sua vez, participava num conselho nacional onde tinham assento os produtores das indústrias subsidiárias145. Organização que subsistia, em grande medida, em meados dos anos cinquenta146.

130 Barbosa, Sobre a indústria…, 36.
131 Morten Sondergaard, «The State and the formation of the fishing industry: Denmark in the interwar period», em Managing Crises and De-Globalisation. Nordic Foreign Trade and Exchange, 1919-1939, org. Sven-Olof Olsson (Londres: Routledge, 2010),175.
132 Sondergaard, The State…, 176-179. A mudança estrutural foi, em parte, concretizada com o expressivo aumento da produção de conservas de peixe entre 1931 (969 toneladas) e 1939 (5300 toneladas). O principal destino das conservas era o mercado doméstico.
133 Sondergaard, The State…, 183-185. A diferença fundamental é que Inglaterra impôs quotas sobre o peso das importações, enquanto a Alemanha fê-lo sobre o valor das importações. Esta medida permitiu que, no comercio bilateral com Inglaterra, as exportações reduzissem o peso mas aumentassem o seu valor, induzidas pelos limites das quotas. V. Chris Reid e Morten K. Sondergaard, «Bilateral Trade and Fisheries Development: the Anglo-Danish Trade agreement, 1933», Scandinavian Journal of History, 37, 1 (2012): 108-128.
134 Jonsson, Comparing…, 127.
135 Jonsson, Comparing…,132-137. No comércio de bacalhau existe uma verdadeira retaliação entre exportadores e importadores, polarizada entre os países nórdicos e mediterrânicos, respectivamente. V. Álvaro Garrido, «Political Economy and International Trade: the Portuguese Market for Salt Cod and its institutions in the Interwar Period». International Journal of Maritime History, nº 17 (2005): 61-85.
136 Diário da Manhã, 22.05.1933.
137 Crocker, Governor Nelson…, 631.
138 Ver Jason Taylor, Deconstructing the monolith: The microeconomics of the National Industrial Recovery Act (Chicago: The University of Chicago Press, 2019), em particular o segundo capítulo.

139Julian Greaves, Industrial reorganization and government policy in interwar Britain (London: Routledge, 2017), 2-4.
140 Chris Reid, «Underutilization, Undersupply, and Overfishing in the Herring Industry 1930-1980: A Case Study in the Evolution of Britain’s Productivist Fisheries Policy», em Too valuable to be lost: overfishing in the North Atlantic since 1880, org. Álvaro Garrido e David Starkey (Berlim: De Gruyter, 2020), 89-91.
141Xan Carmona Badía. Crecimiento y competitividad …, 106.
142 Projecto que contava com a sindicalização obrigatória de todos os conserveiros. Ver Carmona, Crecimiento y competitividade…, 109.
143 Ríos, Segundo. «La gran empresa almadarbero-conservera andaluza entre 1919 y 1936». Historia Agraria, nº 41 (2007), 59.
144Xan Carmona Badía, «Desarrollo industrial y associacionismo empresarial en la história del sector conservero gallego», em 100 años de unión conservera, 1904-2004.(Vigo: Anfaco, 2004),111-114 .
145 Armadores de pesca, fabricantes de folha de flandres e agentes distribuidores. V. Barbosa, Sobre a indústria…, 36/37.
146 Avigneau, L’industrie…, 387-399.

Este retrato colectivo permite-nos retirar duas conclusões. A primeira é que a ideia de «cartelização» pública, ou de intervenção directa dos governos sobre os preços nos mercados internacionais, foi uma tendência transnacional, aplicada com diferentes intensidades em regimes autoritários ou democracias liberais. Em todos eles subjaz não só a vontade de atenuar as consequências sociais e económicas provenientes da crise das exportações, mas também a convicção que era possível disciplinar os mercados, controlar os mecanismos complexos de formação dos preços e regular a distribuição de recursos e das quotas de exportação. Esta burocratização do comércio, de que resulta a formação de novas organizações ou a adaptação de antigas associações liberais ao controlo do Estado, prolongou-se para além dos anos trinta. O Instituto Português das Conservas de Peixe, tal como o Herring Industry Board, sobreviveram longas décadas após a Segunda Guerra Mundial até que a regulação sobre a pesca e a indústria transformadora foram transferidas, em grande medida, para as instituições europeias. Frank Dobbin sugeriu que as políticas conjunturais tomadas durante a Grande Depressão foram efémeras porque contrariavam, em grande medida, a tradição da economia política de cada um dos países147. Porém, ao contrário do que é sugerido por este autor, as rupturas institucionais no sector das pescas parecem ter uma importante longevidade. Ao integrarem-se no funcionamento quotidiano das indústrias tornaram-se cada vez mais indispensáveis ao seu funcionamento.

3.2.Mercados e proteccionismo comercial.

A evolução dos mercados de conservas de sardinha durante os anos trinta ilustra o processo de «desglobalização» do comércio externo em curso desde 1929. Com a exceção de Inglaterra, os países que importavam conservas portuguesas deixaram de ter um ambiente concorrencial livre entre os diferentes produtores internacionais. O sucesso comercial passou a depender de condições previamente estabelecidas por acordos comerciais ou de pagamentos. Apesar da imprevisibilidade criada sobre os agentes económicos, as novas formas de comércio trouxeram oportunidades que foram aproveitadas pela indústria conserveira.

Em primeiro lugar, é necessário comparar a evolução das exportações de conservas portuguesas com o total internacional e, de seguida, comparar a exportação de conservas com o conjunto das exportações portuguesas (Quadro 3.1.). Os anos de abundância na pesca em 1930-31 e a descida de preços das conservas criaram uma situação paradoxal em que a exportação atingiu um máximo de 45 mil toneladas em 1931, o valor mais alto desde 1923. Na realidade, 1933 é o ano em que se sente pela primeira vez o impacto da depressão internacional nas quantidades da exportação: a redução de 14 mil toneladas, face a 1932, foi causada principalmente pela política de quotas em França, o principal mercado português. Ainda assim, a partir de 1934, a exportação de conservas de sardinha cresceu em quantidades superiores à média anual de 1927-1929. Neste período distinguem-se duas fases: a recuperação inicial, entre 1934 e 1936, e uma nova queda, entre 1936 e 1938148 – ano em que as exportações recuam ao nível do ano malogrado de 1932.

Esta flutuação a meados da década contrasta com o crescimento contínuo das exportações globais149. Com o aumento da oferta de conservas de sardinha no mercado internacional, as conservas portuguesas tiveram dificuldade em manter a sua posição. Note-se, ainda, que apesar das flutuações no produto total da exportação de conservas, a percentagem deste produto no comércio externo português estabilizou em torno de um sexto do total, recuando em relação aos anos anteriores (1930-32), em que tinha representado cerca de 20%. Entre 1934 e 1939 as exportações portuguesas recuperaram sobretudo nos países europeus, em particular na Alemanha150.

147Frank Dobbin, «The Social Construction of the Great Depression: Industrial Policy during the 1930s in the United States, Britain and France», Theory and Society, nº 22: 1-56.
148 O recuo das exportações entre 1936 e 1938 não se deveu, aparentemente, a uma maior escassez de sardinha. É certo que as capturas tiveram uma queda desde um máximo em 1935 (141 mil toneladas) para 1938 (113 mil toneladas). Contudo, estes valores eram superiores, em geral, às capturas da década anterior e o consumo de sardinha fresca não constituía ainda um forte elemento de procura como veio a ser após a segunda guerra mundial. V. Instituto Português de Conservas de Peixe. Compilação de elementos estatísticos sobre conservas de peixe. (Lisboa: IPCP, 1955), 24.
149 Além dos países incluídos no quadro 3.1., devemos também referir o Japão, que teve um aumento das exportações de conservas de sardinha de 300% entre 1934 e 1937. V. Barbosa, Sobre a indústria…, 194.
150, José de Araújo Correia, Portugal económico e financeiro (Lisboa: Imprensa Nacional, 1938), .

Em segundo lugar, a distribuição das exportações mostra-nos que Portugal manteve o seu principal foco nos mercados europeus com ligeiros sinais de diversificação entre 1935 e 1937 (Quadro 3.2.). Os principais mercados – Alemanha, França e Inglaterra – absorveram 69% do valor das exportações em 1932-34 e 66% entre 1935-1937. Além da concentração, o aspecto mais notável é a substituição da França pela Alemanha como principal destino das exportações. As importações em Inglaterra foram estáveis, em torno das 5 mil toneladas anuais até 1938. Além do crescimento do consumo das conservas no mercado britânico, uma das causas para a estabilização da procura era a presença de «marcas acreditadas», sobretudo a Marie Elisabeth, da empresa Júdice Fialho, que em 1938 fora responsável por um quarto das exportações.

O comércio com a França e a Alemanha exemplifica bem os limites e as oportunidades do comércio bilateral. A quebra de liderança das conservas portuguesas no mercado francês foi, provavelmente, o problema mais delicado para a nova organização do Estado Novo. Importa recordar que uma parte das empresas conserveiras em Portugal era francesa e vários pequenos industriais fabricavam por encomenda marcas francesas. Em 1931, o governo francês impôs restrições quantitativas às conservas portuguesas e espanholas que tinham inundado o mercado interno. A partir dessa data e até pelo menos 1937, Portugal e França disputaram um conflito aduaneiro caracterizado por respostas consecutivas à elevação dos direitos e taxas discriminatórias sobre os produtos de cada país. Como recordava Lucien-Graux, diplomata francês atento à realidade portuguesa, a França exportava uma grande variedade de produtos essenciais, enquanto Portugal exportava sobretudo vinho, cortiça e conservas de sardinha. Portugal devia, por isso, adoptar um “proteccionismo pragmático” que, salvaguardando a colocação das exportações, permitisse também a importação de bens essenciais, como o bacalhau, para colmatar as insuficiências das políticas autárcicas151.

Em 1934 foi assinado um acordo de comércio bilateral com a França. O ministro Ramires, chefe da missão diplomática, foi louvado por dezenas de industriais conserveiros152. O presidente do Consórcio das Conservas, Luís de Azevedo Coutinho, participou nas negociações. O acordo assegurava, à partida, condições favoráveis para as conservas portuguesas, com 78,44% do contingente total de importações deste produto. Porém, a indústria francesa tinha já adoptado estratégias de adaptação à crise e procurou desenvolver relações com os espaços coloniais. As exportações de conservas de Marrocos e Algéria para França continuaram a crescer sem interrupções e com a isenção de direitos até aos cinquenta mil quintais153. A retração das exportações portuguesas não era justificada pelo consumo, que continuava a crescer. Segundo um relatório enviado ao Consórcio pelos importadores franceses, os produtores franceses deixavam de produzir conservas em azeite, a não ser na Bretanha e dirigidas ao mercado de luxo, devido ao alto custo do azeite. As conservas portuguesas em azeite “bom corrente” eram procuradas nos mercados de Paris, Normandia e norte de França, enquanto as marroquinas, fabricadas em maioria com óleos vegetais, se distribuíam pelo sul do país154. O potencial de crescimento das exportações estava, contudo, truncado pelo proteccionismo comercial. A gestão interna das quotas impostas por França seria um teste à eficácia da coordenação económica do novo regime.

A Alemanha, por sua vez, reuniu condições surpreendentes para o crescimento das exportações de conservas. Após o ciclo de hiperinflação e o pagamento das reparações de guerra imposta em Versalhes, a política comercial do terceiro Reich vai procurar a estabilidade monetária através de diversos mecanismos. Um desses mecanismos é o acordo de clearing estabelecido em acordos de comércio bilateral, isto é, o equilíbrio entre pagamentos internacionais a que deveria corresponder um equilíbrio nas balanças de comércio. Acresce a isto que, a partir de 1934, os planos de reindustrialização da Alemanha assentam na intensificação das relações comerciais com os países do sudeste europeu que forneciam matérias-primas e consumiam as manufacturas alemãs155. A relação comercial com Portugal, na periferia «ocidental» europeia, não difere muito deste equilíbrio com outros países. As restrições iniciais às trocas, como a aquisição de cambiais de exportação em 1932, foram superadas com um acordo cambial em 1934156. As exportações de conservas para a Alemanha cresceram de forma sustentada (Gráfico 3.3.)

151Lucien Graux, Le Portugal économique. Rapport à Monsieur le Ministre du Commerce et de l’ industrie (Paris: Étienne Chiron, 1937), 193-198. E Silveira, Alguns aspectos…, 381-382.
152 V. ANTT, MCI, Cx. 40 (Correspondência Expedida , Secretaria Geral, nº 9).
153 Em 1938, apesar do efeito positivo que a valorização do franco e o aumento do consumo poderiam ter sobre as importações, 70% do aprovisionamento era já ocupado pela produção nacional, marroquina e argelina. Ver «Conservas em França», Conservas, nº 26 (1938): 18 a 20.
154 DGRM, IPCP, Mercados Internacionais (França).

155 Aldcroft, Europe’s Third world…,60 e ss.
156 ANTT, AOS, Exportação de conservas de peixe para a Alemanha, dificuldades na cobrança devida ao contingentamento alemão na aquisição de cambiaisV. Também ANTT, AOS, Acordo cambial entre Portugal e a Alemanha . Em 1937, os acordos de clearing tenderam para um desequilíbrio porque as importações portuguesas para a Alemanha, na sequência da Guerra Civil de Espanha, tinham aumentado em maior proporção do que as exportações alemãs para Portugal.
157 DGRM, IPCP, Mercados Internacionais (Alemanha).

O crescimento das exportações na Alemanha foi especialmente positivo porque as conservas portuguesas não concorriam com a produção alemã. Mais uma vez, o Consórcio recebia dos importadores de Hamburgo uma informação detalhada: as conservas de sardinha em azeite eram preferidas ao sprat norueguês, confeccionado com molhos de tomate, que concorria directamente com as conservas de sprat e arenque alemãs157. Adolfo Dircks, um dos maiores agentes neste mercado, dizia por outro lado que desde a primeira grande guerra que os alemães se Além dos mercados francês e alemão, o comércio português teve dificuldades de comercialização e concorrência internacional que impediram uma maior expansão nos principais mercados consumidores. Em Inglaterra e nos Estados Unidos, existem vários indícios de que os produtos portugueses não se vendiam em maior quantidade não por falta de qualidade, mas pela dificuldade em comercializar o produto. Numa carta enviada a Salazar, António Santos Mendonça, antigo conserveiro e representante da casa de Portugal em Londres, descrevia o mercado britânico e o sucesso de vendas das conservas da Noruega, as «Skippers», nas lojas Mark&Spencer e Woolworth. A publicidade nas vendas a retalho, argumentava, permitiu-lhes triunfar sobre a concorrência159. Por outro lado, as conservas portuguesas viram limitadas as hipóteses de expansão fora da Europa, designadamente nos países sul americanos e a oriente. Os grandes produtores mundiais ocuparam as áreas onde as conservas portuguesas tinham ainda uma presença tímida. O Canadá triplicou as exportações de pilchard, com 90% destinadas a África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. O Japão, com um desempenho semelhante, passou a dominar os mercados do extremo oriente e só colocava 3% das suas exportações na Europa. Os países latinoamericanos, para onde se tinham reduzido as exportações espanholas, aumentaram consideravelmente o seu protecionismo pautal e receberam também os excedentes da produção de sardinha da Califórnia, que nestes anos atingiu o seu máximo. Neste contexto, a indústria portuguesa tendeu a manter a tradicional distribuição geográfica das suas exportações. A ação do Consórcio e das empresas dirigiu-se mais aos mercados em contração do que a novos mercados e a defesa dos preços tornou-se, por isso, a questão crucial.

Talvez a ideia central a reter é que o comércio bilateral nem sempre trouxe resultados negativos às exportações. Se em França os resultados foram prejudiciais, na Alemanha os produtores de conservas adquiriram vantagens com a prática comercial do clearing. Além disso, subsistiram outros problemas,como a distribuição e comercialização das conservas, que penalizavam as exportações. Fora da Europa, as medidas protecionistas e o crescimento da produção japonesa e norte-americana limitaram as possibilidades de diversificação. A acção do Estado concentrou-se, por isso, nos tradicionais mercados europeus.

158 Revista Conservas. p. 22-24, nº 28, Abril de 1938 . 159 V. ANTT, AOS, EC-12, cx. 75, capilha 1, “Situação da indústria de conservas de peixe” (1939 – 1953).

3.3.A gestão pública do comércio exportador.

Recorde-se que a formação do Consórcio de Conservas se legitimou pelo combate à «anarquia» entre os industriais e a crítica às formas de comércio no exterior. Os decretos tinham dado amplos poderes ao Consórcio para disciplinar a produção e intervir no mercado nas mais diversas formas: como agente de concessão de crédito, comprador e distribuidor de matérias-primas; como vendedor de «marcas nacionais»; e ainda, sobretudo, como entidade capaz de fixar preços mínimos de exportação. Esperava-se que a transformação da oferta resultasse numa valorização das exportações nos países de consumo que se adaptariam a produtos de melhor qualidade e com menor diversidade de formatos, pesos e marcas. As circunstâncias e os arquivos do CPCS sugerem, no entanto, um caminho inverso. Se o propósito de instaurar um modelo de coordenação económica não foi abandonado, este ficou, no entanto, refém das condições que os países impuseram aos industriais e exportadores portugueses.

Ao cotejarmos as primeiras circulares e actas dos órgãos gerentes do Consórcio, verificamos que o problema das quotas em França mobilizou quase todos os recursos da nova organização. A exportação, que antes se fazia num regime livre, era agora condicionada por limites quantitativos em cada trimestre e o CPCS, recém-criado, encarregou-se da complexa tarefa de distribuir as oportunidades de exportação por cada centro conserveiro e por cada industrial e exportador160. O critério de distribuição, baseado nas exportações dos anos anteriores, impedia a entrada de novos agentes no comércio exportador e incluía outras obrigações oficiais, como ter em dia o pagamento da contribuição industrial – imposto directo do Estado cuja cobrança passava a ser vigiada pelo Consórcio. O protecionismo francês produziu, sobretudo, uma maior conflitualidade intrassectorial e serviu de teste ao ideal de cooperação que inspirava a nova organização. De um lado, perante a escassez de oportunidades, os industriais reclamavam a distribuição exclusiva das quotas a quem produzisse conservas; do outro, os exportadores contestavam a dispersão das quotas para vender conservas, que provocaria a desconfiança nas relações comerciais, bem como a dificuldade de responder às encomendas das marcas dos importadores franceses161. A controvérsia arrastou-se até à formação da organização corporativa em 1934: os Grémios de Industriais seriam acometidos da responsabilidade de distribuir as quotas e o Grémio de Exportadores, a quem se atribuía uma quota única, deveria eliminar a inscrição de empresas que não cumprissem um valor mínimo de vendas162. Por outro lado, o proteccionismo francês condicionava uma das políticas mais queridas ao Consórcio: a eliminação gradual dos depósitos de conservas no estrangeiro. Face à imprevisibilidade do número de quotas estabelecido pelas autoridades francesas, os conserveiros e exportadores antecipavam a colocação das mercadorias no estrangeiro antes que estas sofressem novas restrições. Os depósitos no estrangeiro, em vez de descerem, subiram pelo menos até 1935163 e dificultaram a fiscalização dos preços mínimos de exportação.

O problema das quotas expunha, em suma, as dificuldades em implementar a coordenação económica num sector exposto a condições exógenas que não podia controlar. A acção do Consórcio dirigiu-se, no entanto, a diminuir ao máximo os desequilíbrios que o comércio bilateral podia induzir na estrutura industrial. Ao mesmo tempo que se acudia às urgências do comércio, o Consórcio instituiu paulatinamente um novo código industrial através da emissão de circulares com normas que os industriais deviam acatar compulsivamente e que abarcavam todo o circuito de produção. O Consórcio concretizou, por exemplo, a obrigatoriedade de todos os produtores declararem os seus stocks, os movimentos de importação de matérias-primas, o registo das marcas e a identificação dos agentes exclusivos164. A extensão da vigilância do Estado ao quotidiano das empresas não foi pacífica: os industriais resistiram à declaração dos stocks e, em resposta, a organização não hesitou em divulgar os nomes dos infratores e as multas que lhes eram endereçadas165. O objectivo da organização não era apenas a reunião de informação para produzir uma malha regulatória mais fina. Em Maio de 1933, a organização já intervinha na exportação de conservas com a seleção prévia das mercadorias que, de acordo com a categoria definida nos certificados de qualidade, podiam vender-se nos mercados mais exigentes. E, no final do ano, afirmava-se como agente comercial e planeava as primeiras encomendas das «marcas nacionais» que se encarregaria de vender no exterior166.

Este controlo sobre a produção, que se pode apelidar de «totalizante», foi comum a outros sectores estratégicos do comércio externo. Na indústria de conservas colocavam-se dois problemas de difícil resolução: a interrupção do fabrico de conservas nos meses de inverno, que implicava a paralisação das fábricas até quatro meses; e os desequilíbrios regionais na produção. Curiosamente, o Consórcio procurou encontrar uma solução de conjunto para os dois problemas. O defeso tinha ligeiras variações temporais em cada região de acordo com a variação dos índices de gordura da sardinha. Além desta diferença, as mudanças nos mercados afectavam de forma diferente cada centro. A retração do mercado francês penalizou sobretudo os centros conserveiros tradicionais de Olhão e Setúbal, enquanto Portimão produzia sobretudo para o mercado britânico e Matosinhos acompanhava o crescimento do mercado alemão (Quadro 3.3.). Na prática, o defeso teria um maior impacto em Setúbal, o centro com maior número de fábricas e operárias, onde a conjuntura era duplamente negativa: à retração do mercado francês acrescentou-se a queda nas capturas de sardinha.

160 Ver as primeiras sete circulares do CPCS, entre 15 de Novembro e 19 de Dezembro de 1932, em DGRM, CPCS, Circulares.

161 Para limitar o fabrico de marcas francesas em Portugal e promover a sua substituição por marcas nacionais, a exportação de latas reemplissage não poderia ser inferior a 500 caixas (cada caixa continha 100 latas). Contudo, devido à natureza fragmentária das quotas, os exportadores tinham dificuldade em realizar contratos com um volume elevado de mercadorias. Sobre a questão das quotas e os conflitos entre industriais e exportadores, ver: DGRM, CPCS, Conselho de Gerência, 7ª sessão (07.02.1933), 9ª sessão (11.03.1933) e 10ª sessão (21.03.1933); Conselho de Administração, 1ª Sessão (11.1932), 2ª Sessão (s.d.).
162 Diário do Governo, Dec. 24:497, art. 80. A ideia subjacente era a substituição dos pequenos exportadores não fabricantes pelas vendas directas dos industriais ou, em última instância pelo próprio CPCS. Em 1935, o CPCS afirmava que essa tendência de substituição já estava em curso. Se em 1929 os exportadores não fabricantes tinham sido responseveis por 36,5% das vendas, em 1934 tinham reduzido a sua quota para 24,8%. V. CPCS, Relatório…, 290.
163 CPCS, Relatório…, 283/284.
164 DGRM, CPCS, Circulares. Ver, respectivamente, as circulares CPCS/10, de 20.12.1932, e CPCS/50, de 08.04.1933; CPCS/23, s.d.; CPCS/60, de 26.5.1933
165 DGRM, CPCS, Circulares, CPCS/101, de 21.04.1934.
166 DGRM, CPCS, Circulares, CPCS/61, de 30.05.1933. Antes da Segunda Guerra Mundial, a participação do organismo de coordenação económica (já transformado em IPCP) como agente comercial alcança a sua expressão máxima em 1938, quando o IPCP assina contratos de venda exclusiva de conservas para os EUA. Ver DGRM,IPCP, Actas do Conselho Geral, 10 a 13.08.1938.

As reacções à imposição do defeso em 1933 foram, por isso, virulentas, em particular em Setúbal, onde o movimento operário inspirado no anarcosindicalismo ainda tinha uma forte presença. No final da safra de 1933, o Consórcio decidiu congelar os quadros de pessoal das empresas para conter a distribuição dos subsídios durante o defeso, mas o número de operários continuou a aumentar167. Em 1934, depois de imposto o defeso, os subsídios a entregar aos operários sofreram um atraso de duas semanas que causou diversos tumultos, feridos e a morte de um homem168. Já em 1936, o recém-criado IPCP reconheceu as dificuldades da paralisação das fábricas e ensaiou uma alternativa: a produção de conservas de peixe magro, durante os meses de inverno, com a marca «Gremium» que só poderia ser vendida em mercados secundários fora da Europa. As conservas «Gremium» eram confessadamente um «fabrico social» destinado a ocupar o maior número possível de operários durante o defeso. Para os países da Ásia oriental, as conservas deveriam ser fabricadas em formato oval de maior dimensão, semelhante às conservas japonesas e norte-americanas, cujo fabrico ocuparia mais operários do que o formato tradicional das conservas de ¼ club. A produção da «Gremium» viria a ser deficitária e a maioria dos stocks acumularam-se em Setúbal sem compradores no estrangeiro. As transferências dos fundos corporativos de outros centros, nomeadamente de Matosinhos, para compensar os prejuízos de fabrico da «Gremium» em Setúbal criaram novas animosidades regionais. Ao mesmo tempo, porém, os industriais procuravam soluções para combater o problema da escassez de sardinha na região de Setúbal, sobretudo por via do aumento do esforço de pesca com a transferência de traineiras do porto de Leixões, mas a medida solidária contou também com a oposição dos conserveiros do norte.

A coordenação económica apresenta-se, em suma, como uma espada de dois gumes. Por um lado, é de admitir que a estrutura burocrática ajudou à manutenção dos mercados onde as medidas protecionistas foram mais exigentes. Podemos questionar se teria sido possível manter as exportações para França sem uma distribuição mais ou menos equitativa das quotas no mercado interno, o que permitiu manter em funcionamento um grande número de empresas. Outras medidas, como a melhoria de qualidade imposta às conservas exportadas para os EUA, também contribuíram para a manutenção desse mercado. Todavia, a coordenação parece ter perdido eficiência quando a organização se quis adentrar na produção industrial ou nas decisões tomadas pelas empresas. A acumulação de stocks das conservas «Gremium» e a oposição dos conserveiros em que se deslocassem as traineiras de Matosinhos para Setúbal são provas de ineficiência na criação de sistemas de cooperação interregional. Para manter a sua competitividade, as empresas conserveiras utilizaram a estratégia clássica de deslocalizar as fábricas de Setúbal e dos centros do Algarve para Matosinhos, onde as capturas de sardinha eram cada vez mais regulares e abundantes.

167 Ver CPCS, Relatório…, 178.
168 ANTT, MCI, Cx. 9. A 8 de novembro de 1935, Francisco Luiz Supico, governador civil de Setúbal, descrevia ao Ministro do Comércio e Indústria os graves problemas em Setúbal, como os « escandalosos abusos, principalmente de mulheres que foram feitas operárias 8 ou 15 dias antes do início do defeso » e o perigo da expansão de «ideias bolchevistas» entre os operários

3.4.Os preços mínimos de exportação.

A fixação de preços administrativos foi uma das práticas mais recorrentes na política económica do Estado Novo. O precedente do «pão político», durante a crise de subsistências que assolou a República no final da Primeira Guerra Mundial, foi estendido aos sectores mais importantes de abastecimento do país. Note-se, aliás, que Salazar, enquanto jovem professor de Finanças Públicas na Universidade de Coimbra, já advogara a criação de um Estado «ditador de víveres». Com o desenvolvimento do Estado Novo, a fixação de preços abrangeu os diversos sectores da produção nacional para evitar os desequilíbrios mais frequentes: os preços elevados nas situações de monopólio ou oligopólio da produção; nos bens de consumo essencial, com fixação de preços baixos ao consumo, compensados aos produtores por taxas cobradas sobre as importações; e ainda em diversos sectores da agricultura e indústria, nas fases intermédias dos circuitos de produção e venda por grosso e a retalho, para regular as margens obtidas entre os diversos agentes económicos privados. O controlo de preços funcionou como mecanismo central no controlo da inflação acompanhado por outras medidas, como o controlo salarial a partir da contratação colectiva, também fortemente controlada pelo Estado169.

Na realidade, o controlo dos preços estendeu-se do mercado interno aos principais produtos de exportação. Os preços das exportações de conservas e vinhos do Porto foram os primeiros a serem alvo de uma intervenção profunda, quase evangelizadora sobre os mercados externos. Em 1934, na véspera da greve insurrecional de 18 de Janeiro, Sebastião Ramires discursou no teatro São Carlos sobre as «soluções corporativas no comércio e indústria». Para o ministro, após a definição do quadro institucional do Estado Novo, o governo tinha a missão de conter os abusos da liberdade individual e estabelecer o máximo equilíbrio entre a produção e o consumo. Os preços, dizia Ramires, deviam ser «funções do custo das respectivas produções e não da concorrência»170. Nesse sentido, opunha o «preço baixo» determinado pela livre concorrência ao «preço justo» que o Estado tinha a faculdade de fixar em nome do interesse nacional171. O exemplo a dar seriam as conservas, onde os preços mínimos fixados em Março de 1933 já teriam provocado a subida das cotações internacionais e também permitido a valorização da sardinha vendida em lota. Note-se, de facto, que o CPCS tomou a fixação dos preços mínimos como instrumento axial da coordenação económica, contando com o apoio inicial dos mais importantes industriais172. Em 1935, no relatório que expunha a acção do Consórcio, as estratégias para o cálculo dos preços mínimos eram divulgadas com o máximo detalhe, revelando a convicção que era possível dominar todas as variáveis que determinavam o custo de produção e o transporte e distribuição das conservas até à venda do consumidor173. A «cartelização» fora um dos objectivos gorados das associações liberais de Setúbal e Matosinhos e que o novo Estado prometera cumprir.

169 Sobre a estrutura artificial de preços no mercado interno, v. José da Silva Lopes, A economia portuguesa no século XX. (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004), 141-143.
170 Ramires, «Soluções corporativas no comércio e indústria»,15.
171 Ramires, Soluções corporativas…, 18/19.
172 DGRM, CPCS, Conselho de Administração (intervenções de Agostinho Fernandes, Júdice Fialho e outros).
173 CPCS, Relatório…, 272-284.

Mas os preços mínimos de exportação enfrentavam dois problemas fundamentais. Em primeiro lugar, a dinâmica da procura internacional. Se os preços oficiais fossem superiores aos preços oferecidos no mercado, as conservas portuguesas corriam o risco de não se venderem. O problema, mais uma vez, colocou-se com maior acuidade em França onde a concorrência, o proteccionismo e a instabilidade monetária promoveram uma descida dos preços. Em Setembro de 1936, o governo da Frente Popular decretou o abandono do padrão-ouro e o franco teve uma desvalorização significativa. O aumento dos preços médios das importações, que quase duplicaram, revela bem a diminuição de poder de compra em França. Por outro lado, as conservas marroquinas, com uma quota de importações isenta de direitos e condições de oferta competitivas, pressionavam a descida dos preços portugueses. Surpreendentemente, contra a tendência do mercado, os preços oficiais não só não desceram, como acabaram por subir, com o argumento que os custos das matérias-primas em Portugal – sardinha e sobretudo o azeite – tinham aumentado174.

Por outro lado, mesmo que os preços fossem impostos no mercado interno, podiam ser alterados no exterior. A dificuldade estava na fiscalização. Do lado da oferta, a direcção do Consórcio presumia que os custos de produção não variavam substancialmente entre as diferentes regiões e podiam ser calculados a partir de uma recolha exaustiva de informação junto das empresas. O cálculo do preço mínimo seria feito de acordo com o custo da mercadoria, o lucro do exportador, as despesas de transporte, com os fretes e seguros marítimos incluídos, a comissão de agência e os encargos bancários175. Para dominar estas variáveis o Consórcio desdobrou-se em pedidos e ordens às empresas para o registo dos contratos de exportação, a revelação dos custos com a importação de matérias-primas e a unificação dos fretes e seguros de transporte marítimo cobrados em cada porto176. Todavia, nos países de consumo, não havia uma fiscalização comparável. Os preços mínimos tinham o ensejo de fixar um valor ligeiramente superior às transacções dos anos anteriores e poder, assim, contribuir para a valorização das exportações e reclamar a descidas das tarifas alfandegárias.

174 Sobre as mudanças no mercado francês, v., Avigneau, L’ industrie…, 329-342; e também o relatório de José Lemos, «Relatório da viagem à França e à Bélgica, precedido de breves considerações sobre a indústria e comércio de conservas de peixe (Janeiro de 1939)», (AHP,AN,Cx. 70, nº 1). Entre 1934 e 1937, o preço de uma caixa ¼ club de conservas de sardinha de qualidade «bom corrente» subiu 93$50 para 98$25.

175 À primeira venda das conservas não era imposto um preço mínimo, nem à exportação de espécies similares da sardinha. V. CPCS, Relatório…, 278.
176 Ver as diversas circulares emitidas sobre os preços mínimos. DGRM, IPCP, Circulares (1933 a 1938).

Em teoria, o cumprimento dos preços mínimos seria uma vantagem para os industriais que tinham, através de uma prática administrativa, as suas margens de lucro asseguradas. Contudo, a fraude aos preços mínimos tornou-se a regra geral. A partir de 1933, multiplicaram-se as denúncias dos industriais que não estavam dispostos a acatar as novas regras. A fraude era cometida pelos agentes comerciais que, sob pressão do importador no país estrangeiro, vendiam a mercadoria abaixo do preço mínimo. Entre 1933 e 1934, foram abertos 40 processos de contencioso sobre os preços mínimos no Consórcio177. As tensões intrassectoriais voltaram a agudizar-se: os exportadores exigiam a fixação da comissão de venda para assegurar que os seus lucros não seriam comprimidos e os industriais pediam a fixação do preço de venda ao exportador, argumentando que tal medida ajudaria a regularizar os preços da sardinha em lota178. A tensão evoluiu para uma oposição mais ou menos concertada, quer no seio da organização, quer na imprensa escrita. Em 1934, os industriais de Matosinhos apresentaram um abaixo assinado contra a circular que impunha o cumprimento dos preços mínimos. Na revista Conservas, publicada em Matosinhos, e no jornal A Indústria, de Setúbal, as críticas aos preços mínimos generalizaram-se, questionando a missão do Consórcio e a sua utilidade na defesa dos interesses conserveiros. Em resposta, os serviços de censura foram alertados pelo gabinete do Ministro para informarem previamente sobre todos os artigos relativos à matéria em causa179. A reação oficial não foi menos enérgica: multiplicaram-se as multas e sanções, a publicitação do nome dos exportadores expulsos da organização e o convite à delação compensada com 25% do valor da multa a cobrar ao prevaricador 180.

O carácter punitivo do Consórcio teve um endurecimento em 1936, quando deu lugar à formação do Instituto Português das Conservas de Peixe (IPCP). O clima da guerra civil de Espanha, além de afetar a produção e a concorrência internacional, inspirou uma grande intransigência na obediência às medidas legais181. O IPCP aprimorou as faculdades de vigiar e punir: instalou agentes secretos na Bélgica como compradores de conservas, que apanharam exportadores portugueses em flagrante delito, e deu novos apoios aos delatores. Em 1937 surgiu a medida mais ousada: o director do IPCP, Luís de Azevedo Coutinho, promoveu a sindicalização obrigatória dos importadores estrangeiros nas principais praças europeias. Em Bordéus, depois do assentimento inicial, os comerciantes rejeitaram em grupo a imposição do IPCP. Em Londres, entretanto, os acontecimentos foram ainda mais relevantes. Como relatava António Mendonça a Salazar, a Associação de Sardinhas Portuguesas, fundada em 1937, não tinha impedido a queda dos preços verificada desde essa data182. Antes da sua dissolução, deu-se uma assembleia geral extraordinária que contou com a presença de Azevedo Coutinho. Os importadores britânicos não só se opuseram a fiscalizar os preços mínimos como também alertaram para a existência de importadores de conservas fora da Associação de Sardinhas Portuguesas. Perante as insistências de Azevedo Coutinho, alertaram o director do IPCP para o facto de, em Inglaterra, se negociar com liberdade e que era impossível impor os preços mínimos às exportações portuguesas. A julgar pela acta da reunião, Azevedo Coutinho saiu humilhado de Londres, ao mesmo tempo que a Associação se dissolvia. Meses mais tarde, apresentaria a demissão como director do IPCP.

As críticas mais contundentes chegaram, no entanto, do seio da própria organização. José Lemos, director dos serviços comerciais do IPCP, ofereceu um relato desassombrado sobre as vendas no exterior depois de uma viagem de estudo à França e Bélgica. Em Paris, dizia, «os agentes confessam francamente o fracasso que aguardará todo aquele que procure trabalhar com os preços mínimos do IPCP»183. Na Bélgica, alertava que os agentes estavam a substituir as conservas portuguesas pelas conservas de outros países que as vendiam por preços mais baratos. Note-se que Lemos, numa demorada introdução ao seu relatório, demonstrava um entendimento profundo dos mercados conserveiros, o desenvolvimento da concorrência internacional e as vantagens comparativas de cada país. Não tinha dúvidas em afirmar que a concorrência era a única determinante do preço no mercado internacional e «a hora presente caracteriza-se, pois, pelo predomínio do preço sobre a qualidade»184. Propunha, sem se compatibilizar com a organização, que a única forma de dispor de um melhor preço seria a criação de marcas fortes que, pela regularidade e boa qualidade, ganhassem a confiança do consumidor185. Num outro plano, os industriais procuram alternativas à gestão comercial do IPCP, interpelando directamente o Presidente do Conselho. Caetano Feu, decano dos conserveiros de Portimão, incitava ao regresso à ideia inicial de Salazar concentrar as exportações num organismo ou «Bolsa de Conservas», em que os industriais recuperavam a autonomia na decisão sobre os preços e a selecção dos mercados de acordo com a qualidade das conservas186. Nas vésperas da Guerra Mundial, os conserveiros demonstravam um claro desalento com a forma como evoluíra a organização corporativa e a coordenação económica da indústria.

177 CPCS, Relatório…, 192.
178 DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, 26.06.1936.
179 Ver os resumos semanais dos serviços de censura apresentados ao Ministro do Comércio e Indústria entre 1936 e 1940 (ANTT,MCI, Cx. 23, pt. 9); e a correspondência de Cancela Abreu, chefe de gabinete do ministro, com a comissão de censura, a exigir o conhecimento prévio das notícias a publicar sobre o Consórcio, depois do Ministro ter considerado «absolutamente inconveniente« a publicação de notícias sobre pescas e conservas no jornal A Revolução, em Junho de 1933 (ANTT, MCI, Cx. 15, pt.3).
180 DGRM, IPCP, Actas do Conselho Geral, (9ª sessão, Março de 1936).

181 Lucena, Sobre a evolução…, II, 126-129. 182 ANTT, AOS, EC-12, cx. 75, capilha 1«Situação da indústria de conservas de peixe” (1939 – 1953)».
183 AHP,AN,Cx. 70, nº 1, Relatório da viagem à França…, 103.

3.5. A organização corporativa: expectativas e realidade.

À medida que a institucionalização da economia corporativa avançou, maior foi o distanciamento dos industriais conserveiros em relação ao Estado Novo. Como caracterizar este processo? Como ponto de partida, devemos ter em conta que a política de preços mínimos hostilizou muitos industriais que não conseguiram exportar as mercadorias com os preços que lhes eram impostos. Em segundo lugar, devemos admitir que a oposição à organização corporativa deveu-se a uma certa incompreensão sobre a representação «orgânica» dos interesses e o princípio de regular as relações industriais a partir de novos organismos e convenções como os contratos colectivos de trabalho 187. Porém, no caso das conservas, a hipótese que nos parece mais plausível é que os industriais – pelo menos aqueles que exprimiram as suas ideias na imprensa e ocuparam as direções dos organismos corporativos – tiveram a consciência que foram gradualmente arredados dos centros de tomada de decisão. A ideia de «cooperativa industrial», vagamente anunciada no relatório de Salazar em 1931, degenerou num modelo de gestão autoritária e centralizada. Mas esse processo não só não foi imediato como se revestiu de resistências, protestos e medidas repressivas.
Numa perspectiva do novo poder estrutural do Estado, colocaram-se dois desafios à organização da indústria de conservas: harmonizar os diversos grupos de interesse regionais com a cooptação das elites num organismo suprarregional e conceder vantagens aos agentes económicos em troca da sua arregimentação compulsiva em organizações criadas pelo Estado. A transição do pluralismo representativo das associações liberais para uma representação institucional de interesses é uma questão central na formação dos novos regimes corporativos188. Na indústria de conservas podemos inquirir este processo através da leitura cruzada de diversas fontes primárias: a legislação, a organização financeira dos organismos e a participação dos industriais nos organismos através das suas actas.
No que diz respeito à construção jurídica do enquadramento corporativo da indústria, podemos distinguir três fases. A primeira, em Agosto de 1932, começou com a criação do CPCS. A formação do Consórcio distinguia-se de uma associação liberal tanto no plano doutrinário como na prática, na medida em que impôs a inscrição obrigatória de todos os industriais e exportadores que quisessem continuar a exercer a sua actividade. No seu decreto fundador, o preâmbulo definia-o como uma «configuração nova», distinta de uma associação ou sociedade comercial, ainda que promovesse a representação dos interesses da indústria e pudesse ser um agente exportador de conservas. Era, porém, a definição de “instituição de interesse público”, cuja missão e atribuições era fixada por lei, que distinguia o Consórcio da anterior tradição liberal:

«O Consórcio, porque é uma instituição de interesse público, pode impor a sua autoridade a todos os industriais e exportadores, aplicar multas e outras sanções. Pela mesma razão são inaplicáveis as regras de direito comum para recursos das deliberações dos órgãos directivos, estabelecendo-se na lei disposições especiais»189.

Esta mudança era, no entanto, temperada com promessas de representação. As associações industriais foram convidadas a apresentar os nomes que constituíram a lista de nomeação para os órgãos do Consórico. O Conselho de Gerência deveria ser ocupado por industriais e o Conselho de Administração, composto por delegados de todos os centros industriais, tinha amplos poderes deliberativos. Porém, logo em Novembro de 1933, após a entrada em vigor da nova Constituição, deram-se os primeiros acertos na representação «orgânica»: à margem do Conselho de Administração foi criada uma Comissão Delegada, onde se concentram os poderes do primeiro Conselho de Administração, e o conselho de Gerência passou a ser composto por nomeação ministerial e com a presença de um delegado de governo190.

184 Idem, p. 7 e ss.
185 Idem, p. 25. Em alternativa aos preços mínimos, sugeria que o IPCP aprofundasse a criação de «marcas nacionais» de acordo com as competências que lhe foram atribuídas pelo Decreto 21:622 (arts. 14º a 17º).
186 Ver «Estudo e propostas, elaborados por Caetano Feu, sobre o desenvolvimento da indústria de conservas de peixe e a sua exportação» (ANTT, Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros [SGPCM], cx. 15, proc. 227/7;) e «Relatório do Instituto Português de Conservas de Peixe relativo a um projecto da criação da “Bolsa das Conservas» (ANTT, SGPCM, cx. 36, proc. 342/18, nº 8.
187 Para uma análise sobre as resistências à organização corporativa no sector agrícola, v. Dulce Freire, «Sector vinícola contra a organização corporativa», Ler História, 42, 175-198.

188 Ver, como referência, os estudos de Álvaro Garrido (2016), António Costa Pinto (2017) e as análise clássicas de Philippe Schmitter (1999).
189 Diário do Governo, Decreto 21:622. Na distinção que o legislador faz entre o Consórcio e um modelo de sociedade comercial, a inspiração autoritária é também clara: «A sociedade comercial supõe um contrato de que é elemento essencial o livre consentimento e neste caso tudo é imposto: a inscrição, a subscrição do fundo social, o quantitativo atribuído a cada associado, a forma de escolher os corpos gerentes, o modo de representação, a divisão dos lucros, as regras de funcionamento interno, a dissolução, em uma palavra, tudo o que normalmente compete definir aos sócios de qualquer sociedade.».
190 Diário do Governo, Decreto 23:198.

A segunda fase decorreu da adaptação do Consórcio à nova orgânica corporativa, tendo em conta o decreto-lei 23:049, de 23 de Setembro de 1933, que criou os grémios de inscrição obrigatória e previa, no seu artigo 10º, que as associações patronais fossem integradas no novo modelo. A acção da organização alargou-se à indústria de conservas de outras espécies, além da sardinha, e as delegações regionais do Consórcio deram lugar à criação de quatro Grémios de Industriais e um Grémio de Exportadores. O CPCS, passando a denominar-se Consórcio Português das Conservas de Peixe (CPCP), foi igualmente designado como organismos intermédio da organização corporativa com o nome de União de Industriais e Exportadores de Conservas de Peixe. Esta adaptação da estrutura «pré-corporativa» não trouxe alterações às atribuições conferidas inicialmente ao Consórcio. Porém, no caso concreto da representação profissional, era dado mais um importante passo na burocratização dos centros de decisão e a separação dos interesses industriais. Segundo o decreto 24:947, a direcção do CPCP era acrescida de poderes e passava a estar vedada aos industriais. O principal argumento era a necessidade de manter uma direcção independente dos interesses industriais, capaz de defender o interesse nacional e que respondia apenas perante o ministro, sem correr o risco de julgar em causa própria.

A terceira fase, que se prolonga entre 1936 e 1974, caracteriza-se pela fundação do organismo de coordenação económica, o IPCP, que passa a coexistir com cinco Grémios de Industriais e um Grémio de Exportadores, todos de inscrição obrigatória. A criação do IPCP correspondia à institucionalização da coordenação económica feita pelo decreto-lei 26:757, em Julho de 1936. Na prática, as atribuições do IPCP serão as mesmas que foram atribuídas ao Consórcio, como testemunha, aliás, a continuidade documental entre os seus arquivos históricos. Mas esta estrutura definitiva revelava outro pormenor relevante. Aos Grémios era atribuída, além de diversas competências, a missão de prestar assistência aos operários no período de defeso e distribuir os créditos aos industriais sobre as mercadorias armazenadas. Essas operações seriam feitas com recurso aos fundos corporativos e de previdência social, constituídos por taxas provenientes da exportação de conservas, e cuja aplicação era solidária entre os diversos centros industriais. Todavia, por meio de uma complexa redistribuição, os Grémios tinham autonomia sobre apenas 15% dos fundos. A aplicação da grande maioria, 85%, era decidida pelo IPCP191. Com a fundação do IPCP ficou também consolidada a nova fiscalidade corporativa sobre as empresas e o conjunto da produção. Em 1938, por exemplo, o valor das taxas cobradas sobre todas as conservas de peixe foi superior a 9 mil contos, o que correspondia a 5,4% do valor das exportações nesse mesmo ano. Em 1973, o relatório sobre a indústria de conservas encomendado à consultora Mckinsey afirmava que as contribuições corporativas ocupavam um terço das margens líquidas dos industriais192. Além dos projectos industriais foram financiados com os fundos corporativos dos Grémios, a maior fatia das taxas entregues ao IPCP era dirigida ao fundo de Assistência e Previdência Social. Este, por sua vez, apesar das múltiplas aplicações com carácter assistencial mas também solidário com outros organismos de de enquadramento social, como a FNAT e as Casas dos Pescadores, era sobretudo destacado para financiar o defeso do fabrico e a assistência aos operários doentes (Quadro 3.6.).

191 Aparentemente, a distribuição das receitas as taxas de exportação favorecia os grémios (60%) em vez do organismo de coordenação económica (40%). Note-se, no entanto, que a distribuição das receitas nos Grémios tinha a seguinte ordem: fundo de exercício (5%), fundo corporativo (45%) e fundo de Previdência Social (50%). No fundo de Previdência Social, apenas 15% podia ser utilizado livremente por cada Grémio, enquanto 85% carecia de autorização do Subsecretário de Estado e o aval do IPCP. A aplicação dos fundos corporativos, com a excepção das operações de crédito a curto prazo dentro dos limites estabelecidos pelo IPCP, carecia também da autorização do organismo de coordenação económica.
192 Mckinsey, A strategy for the Portuguese canning industry (Lisboa: Fundo de Fomento de Exportação, 1973), 2-2 .

193 José Lopes e Alberto Sousa. A indústria de conservas de peixe em Setúbal (Santa Maria da Feira: Estuário, 2015), 121-134.
194 AMO, GICPSA, (Pasta «Incidente IPCP, 1938)».

A autoridade do organismo de coordenação económica vem confirmada não só pela força da lei, mas pela distribuição financeira que anquilosou o funcionamento quotidiano dos organismos primários. No entanto, a capacidade de os industriais se oporem a este modelo foi relevante. Em Setúbal, a insuficiência das verbas atribuídas para pagar aos operários durante os meses de defeso criou graves conflitos, em 1935, e a confrontação directa entre os directores do Grémio e a autoridade exercida pelo IPCP, de que resultou o afastamento de Mariano Coelho, um dos mais importante industriais da cidade193. Em Olhão, em 1938, um «incidente» entre a direção do Grémio de Industriais do Sotavento e o IPCP provocou a imediata exoneração da direção194. No Grémio do Centro, com sede em Peniche, Agostinho Fernandes aproveitou os relatórios anuais para tecer duras críticas ao funcionamento da organização e à teimosia com que eram impostos os preços mínimos de exportação195.

A organização corporativa da indústria de conservas revela, em suma, que a adesão das «forças-vivas» não se fez apenas com um equilíbrio entre a fiscalidade corporativa e a concessão de privilégios aos industriais ou do enquadramento compulsivo dos operários da indústria em sindicatos nacionais e em convenções de trabalho colectivas. A criação dos contratos colectivos de trabalho na indústria de conservas, em 1936, mecanismo habitualmente entendido como factor de contenção dos custos de trabalho, foi inicialmente recebida com um forte protesto dos industriais que sublinhavam que uma indústria sazonal não podia garantir trabalho fixo à maioria dos seus trabalhadores196. Subsistia uma força representativa «liberal», consentida na imprensa conserveira, em particular na revista Conservas, fundada em 1936 em Matosinhos, e no jornal A Indústria, em Setúbal. Em simultâneo, a corporativização do sector foi acompanhada de uma clara repressão composta pela censura, as exonerações imediatas, acompanhadas de acusações «bolchevistas» que ganhavam peso na conjuntura de temor criada pela Guerra Civil de Espanha.Todas estas ações tornaram os membros dos Grémios menos livres e mais dependentes do Estado.

3.6. Um industrialismo latente.

Em 1947, na Assembleia Nacional, quando a comissão de inquérito aos elementos da organização corporativa fez uma análise exaustiva do funcionamento dos organismos de coordenação económica, o IPCP enviou uma série de estudos de engenharia de que se orgulhava ter sido o promotor197. Os estudos incluíam análises sobre a possibilidade de fabricar os subprodutos da indústria de conservas, as farinhas e os óleos de animais marinhos. Outra série de estudos incluía relatórios sobre a presença de chumbo nas latas de conservas, a estanhagem das grelhas de cozedura instaladas nas fábricas, a variação anual do teor de gordura da sardinha e um estudo para determinar o prazo mínimo ideal de maturação das conservas, antes do seu consumo. Os objectivos eram reduzir o desperdício, assegurar a qualidade dos produtos e garantir a «segurança» dos consumidores.
A formação do Consórcio, em 1932, foi inegavelmente acompanhada de um impulso industrialista, a que não era alheio o ministro Sebastião Ramires, engenheiro formado no Instituto Superior Técnico que, na sua juventude, se ocupara em estudar um modelo para melhorar a organização técnica das fábricas de conservas no Algarve. A formação de quadros de engenheiros, a crise internacional e o forte impulso dado às obras públicas no início dos anos trinta deram uma nova projecção pública aos engenheiros enquanto grupo social com a autoridade do conhecimento e a vontade de acção198. Na indústria de conservas, a procura pelos serviços de engenharia centrava-se em três necessidades. A primeira, e mais premente, era a fiscalização da qualidade das conservas, o que requeria não só a formação de um laboratório, mas também a aplicação de conhecimentos de química aplicados ao pescado e aos molhos que compunham as conservas. Em segundo, era solicitado aos engenheiros que desenvolvessem projectos de «fábricas corporativas»: quer para o aproveitamento dos resíduos e transformação em subprodutos, quer para a produção de folha-de-flandres, cuja substituição das importações era vista como uma oportunidade estratégica de aproveitamento dos recursos minerais, nomeadamente o estanho199. Em terceiro, os engenheiros são chamados a pronunciarem-se sobre os pedidos de condicionamento industrial e a fazer vistorias às fábricas para assegurar que todas as normas impostas pelo CPCS estavam a ser executadas. Em síntese, a acção dos engenheiros era imprescindível para o CPCS aplicar a sua política de qualidade. No relatório publicado em 1935, o Consórcio fazia um autoelogio ao considerar que os parâmetros de qualidade das conservas portuguesas tinham sido adoptados pelos seus países concorrentes. A investigação sobre as propriedades químicas das conservas acompanhava a tendência seguida na Noruega onde também se instalou um laboratório químico dedicado à indústria.

O laboratório do CPCS começou a funcionar logo em Julho de 1933 e fez milhares de análises aos azeites, à sardinha e, sobretudo, ao problema do chumbo presente nas latas depois de esterilizadas. A fiscalização dos lotes de conservas para exportação permitia detectar fraudes mas também comprovar a qualidade dos produtos. Em 1935, por exemplo, o Consórcio recebera uma queixa de importadores da Bélgica que afirmavam ter recebido um lote com azeite adulterado – misturado com óleo de amendoim, uma das «fraudes» mais comuns – mas, após as análises feitas no laboratório, provou-se que as conservas tinham apenas azeite e «a boa fé dos industriais portugueses»200 . Por outro lado, o fabrico de óleos e farinhas, e as expectativas de crescimento dos mercados externos destes produtos, foram analisadas por Henrique Parreira, director dos serviços industriais e antigo colega de Ramires no Instituto Superior Técnico; do seu labor resultou a criação da fábrica experimental de Matosinhos, anunciada como um projecto industrial de vanguarda201. De uma maneira geral, podemos defender que os engenheiros não tiveram uma presença passiva, reservada às suas funções burocráticas, mas quiseram influenciar e propor a difusão dos melhores princípios técnicos e científicos, sobretudo no que dizia respeito ao à apresentação e higiene do fabrico. Charles Lepierre, director do laboratório, professor no IST e reputado químico, resumia, em 1938:

“A fábrica de conservas deve ser um verdadeiro laboratório de microbiologia – ou melhor – pode-se comparar a uma sala de cirurgia onde o operador emprega todos os meios para que o doente não seja infetado. O mesmo problema realmente existe na conserva: é indispensável um asseio rigoroso em todas as manipulações porque o peixe, cuja substância é eminentemente sensível, está sempre sujeito a ser contaminado” 202.

Em todo o caso, podemos considerar que o industrialismo esteve apenas latente na indústria de conservas durante os anos trinta. Em comparação com outros produtos, como o trigo, submetido a projectos científicos de criação de novas espigas que estiveram no centro de uma «modernidade fascista», segundo Tiago Saraiva, ou até mesmo com a presença dos engenheiros em grandes projectos industriais no primeiro franquismo 203, o caso das conservas teve pouca expressão. Além dos subprodutos, não se promoveu a criação de novos tipos de conservas nem, até ao segundo pós-guerra, a evolução na organização técnica das fábricas.

195 Ver os relatórios e contas anuais do GICPC, escritos por Agostinho Fernandes, em particular nos anos de 1937 a1939.
196 Ver, por exemplo, «Salários», A Indústria, 9.10.1936. Neste periódico de Setúbal é visível a oposição dos industriais à assinatura das convenções que fixavam uma diferença salarial entre os centros de Setúbal e Matosinhos, onde os salários mínimos dos contratos colectivos de trabalho eram inferiores. Os industriais exortam a direção do Grémio a não assinar as convenções.
197 AHP, AN, Cx. 69, nº4.
198 Tema já bastante desenvolvido por Rollo (2002); Brito (1989); Madureira (2002); Rodrigues (1999).
199 Charles Lepierre, Estudo da folha de flandres (ferro estanhado) usada na indústria de conservas de peixe. (Lisboa: [S.n.], 1939).

200 CPCS, Relatório…, 197-198.
201 Henrique Parreira, Fábrica experimental de farinha de peixe de Matozinhos : relatório de contas do 1o exercício (Lisboa: IPCP, 1938).
202 Charles Lepierre, «A química da conserva», em Livro de Ouro das Conservas de Peixe (Lisboa: IPCP, 1938).
203 Tiago Saraiva, Fascist pigs. Technoscientific organisms and the history of fascism.(Cambridge: The MIT Press, 2016), e Lino Campubrí, Los ingenieros de Franco. Ciencia, catolicismo y guerra fría en el Estado franquista (Barcelona: Crítica, 2017).
204 CPCS, Relatório…, 203-213.

Esta secundarização foi, em parte, provocada pelas circunstâncias nos mercados externos. No verão de 1933, em Inglaterra, e no início de 1934 nos Estados Unidos da América, foram apreendidos lotes de conservas portuguesas (e também norueguesas) por conterem um número de sais de chumbo superiores ao autorizados pelas leis sanitárias. A paralisação dos mercados, sobretudo o norte-americano, obrigou o laboratório a concentrar todos os esforços em identificar as origens do chumbo nas conservas portuguesas204. Enquanto se desenrolava um diferendo diplomático com os EUA, o CPCS instituiu novas medidas de segurança e higiene em todas as fábricas, como a obrigatoriedade de revestir as grelhas de cozedura das sardinhas com estanho puro e a recomendação de utilizar autoclaves em separado para os processos de cozedura do peixe e esterilização das latas. A investigação concluiu que seria impossível eliminar qualquer vestígio de chumbo nas conservas, a menos que a folha de flandres não tivesse qualquer presença de chumbo e os processos de soldadura das latas deixassem de ser manuais. As autoridades americanas acabaram por relaxar as medidas restritivas, mas o Consórcio não apelou à mecanização do fabrico das latas, medida que teria um forte impacto sobre a redução dos trabalhadores masculinos nas fábricas.

Neste trabalho não pretendemos analisar o alcance da investigação científica em torno da sardinha e da composição química das conservas. Sublinhamos apenas que o Consórcio conseguiu mobilizar, inicialmente, alguns dos mais reputados cientistas neste campo em exercício em Portugal. Porém, a difusão dos resultados junto dos industriais ficou aquém do previsto. Daniel Wagner, num tom especialmente crítico, repudiava a insistência dos fabricantes no «empirismo», indiferentes aos avanços da investigação205. A este problema de divulgação somava-se uma ausência maior sobre a investigação em torno da produtividade industrial, a redução dos tempos e custos de fabrico e, eventualmente, a mecanização de alguns segmentos da linha de produção. Estas preocupações colocar-se-ão no segundo pós-guerra quando se tornou evidente a perda de competitividade externa da industria portuguesa. Neste período – talvez por «defeito» das fontes primárias, que não devemos deixar de ler criticamente – paira uma certa ideia de ciência militante, ao serviço do organismo paraestatal, sem autonomia para produzir resultados disruptivos. Essa postura é exibida subtilmente, por exemplo, no discurso encomiástico sobre as qualidades únicas das conservas portuguesas que Charles Lepierre descrevia, em 1938, como um «alimento perfeito» capaz de aumentar em 67% o valor alimentar (medido em número de calorias por 100 gramas) da sardinha consumida em fresco 206.

204 CPCS, Relatório…, 203-213.
205 AHP,AN, Cx. 69, nº 4.
206 Lepierre, A química da conserva….

3.7. Conclusão: o fracasso da «cartelização estatal».

A segunda metade dos anos trinta foi um período de importantes mudanças nos planos nacional e internacional. Nos mercados de conservas, as medidas protecionistas tiveram impacto nas exportações portuguesas. Enquanto certos países substituíam as importações a favor de uma maior integração da produção doméstica e colonial, outros continuaram a preferir as conservas portuguesas, quer pela preferência e aumento do seu consumo, quer pela necessidade de compensar as relações comerciais bilaterais estabelecidas com Portugal. Foi este cenário, marcado pela actuação dos governos e da diplomacia económica, que determinou os primeiros passos da coordenação económica executada pelo Consórcio Português de Conservas de Sardinha. Do ímpeto reformista enunciado nos diplomas legais em 1932, o Consórcio passou a ocupar-se de um expediente burocrático de distribuição das quotas de exportação e controlo da qualidade dos produtos. A sua principal missão seria pugnar pelo cumprimento dos preços mínimos de exportação. Contudo, as fontes primárias demonstram como a «cartelização» pública foi um logro. Incapaz de controlar o comércio nos países consumidores, o Consórcio pôs à prova a sua credibilidade e, por extensão, a possibilidade de o Estado empreender a «missão exportadora» de reabilitar as exportações portuguesas.

O fracasso da «cartelização» não significa, porém, a ausência de coordenação económica no sector. Pelo contrário: a evolução do comportamento da organização conserveira revela dois paradoxos. O primeiro é que, enquanto os organismos se revelavam incapazes de controlar os preços mínimos de exportação no estrangeiro, os custos de produção da indústria dependiam cada vez mais das decisões tomadas pelo governo. A decisão sobre os investimentos nas fábricas, a compra de matérias-primas e a regulamentação do trabalho foram transferidas para a administração central e para o organismo de coordenação económica que, a partir de 1936, distribui competências executivas entre os Grémios de industriais. O segundo paradoxo é o da «corporativização»: à medida que, entre 1932 e 1935, se institucionalizou a ordem corporativa e a criação dos organismos da indústria conserveira, os industriais foram perdendo o seu poder de decisão na auto-regulação da actividade económica. Os protestos, indicidentes e demissões revelam não só o défice de representatividade das novas instituições, mas também a relutância em compreender e aceitar a extensão dos poderes infraestruturais do Estado sobre a vida quotidiana da indústria. Absorvida por um expediente burocrático de distribuição de recursos e quotas, a «Organização» deixou latente o industrialismo dos engenheiros que foram chamados a participar na direcção do CPCS e do IPCP.

Daqui resulta que a criação do Consórcio, ou a assunção de uma política de coordenação económica, não se destinava apenas a aumentar a eficiência da indústria, mas também a mobilizar política e socialmente os industriais e os trabalhadores. Todavia, a entropia na actuação do organismo colocava um problema de credibilidade sobre a capacidade de o Estado promover o comércio externo. Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, na Assembleia Nacional, a actuação dos organismos de coordenação económica era alvo de escrutínio e revelava excessos de burocracia, uma tributação desadequada sobre as actividades que regiam e a dificuldade de adaptar os preços oficiais às alterações constantes do consumo interno e externo207. As críticas adequavam-se ao sector das conservas; mas o conflito mundial daria uma oportunidade à «organização» de provar a sua utilidade.

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207 Diário das Sessões da Assembleia Nacional, nr. 32, 07.02.1939 (intervenções de Cincinatto da Costa e Sebastião Ramires).

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