Os Sabeler

TÍTULO: Os Sabeler

SUB TÍTULO: Uma família de pescadores

AUTOR: Agostinhos Farinha Isidoro

DATA EDIÇÃO: Janeiro de 1973

EDITORA: Instituto de Antropologia «Dr. Mendes Correia»
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

IMPRESSO POR:

OWNER OF COLLECTION:  Museu Digital Conservas de Portugal
CREDIT: 
IMAGES: Museu Digital Conservas de Portugal

Agostinho Farinha Isidoro – Naturalista do Instituto de Antropologia «Dr. Mendes Correa» da Faculdade de Ciências do Porto e Bolseiro do Instituto de Alta Cultura

Comunicação apresentada ao «Colóquio de Matosinhos», realizado de 7 a 11 de Julho de 1964.

Pelos meados do século XIX havia em Espinho cerca de 50 mugigangas e várias companhas, destinadas a pesca no mar.
As mugiqangas eram redes de algodão com uns 4 a 5 metros de altura e 15 a 20 de comprimento, usadas na pesca do arrasto para bordo na zona costeira.
Eram transportadas em pequenos barcos chamados bateiras, de dimensões inferiores as bateiras das companhas, impelidas a remos ou a vela.
Levavam a bordo quatro ou cinco homens e um moço, como tripulação.
Estas bateiras, apesar de serem de pequeno porte, já atingiam os pesqueiros a duas milhas da costa, isto é, a 15 e a 20 braças.
Os homens das mugigangas trabalhavam quer de dia, quer de noite e pescavam principalmente o linguado, a faneca, o camarão, o caranguejo, algum raião e polvos.
Na viagem para o pesqueiro dois dos homens iam sentados ao remo da proa, também chamado o maião, de costas para a proa e outros dois sentados ao remo da ré, também designado por remo da proa e de costas voltadas para a proa.

O outro homem, o arrais, ia em pé voltado de frente para a proa a governar a bateira.
Chegados ao lugar do pesqueiro sondavam a profundidade do mar e a natureza do solo com a sonda de mão, constituída por um cordel, com a marca das braças, chamado fieira, que tinha preso na extremidade mergulhadora um quilo de chumbo em tronco de cone,
côncavo na sua porção inferior, a que davam o nome de chumbeira.
A concavidade era cheia com sebo duro, geralmente velas de sebo de Holanda, e ao tocar no fundo do mar, conforme a natureza do solo, trazia ou não partículas aderentes.
A aderência de areia fina ou lodo ao sebo, indicava a possibilidade de existirem linguados, azevias, marmotas, alguns ruivos, chocos, caranguejos, etc.; a aderência de areão e pequenos calhaus ou marcas das pedras, indicava a existência de fanecas, cação, etc.
Reconhecida a existência de peixe num determinado lugar do fundo do mar, os pescadores fundeavam a bateira com um ferro chamado fateixa, preso a uma corda de espessura média.
A superfície da água, junto a bateira e presa a corda da fateixa, colocavam uma boia de madeira, em forma de barril, denominada odre, com uns 80 a 90 cm de altura.
Na face superior da boia, que ficava emersa, prendiam uma campainha que, com a ondulação do mar, tocava ininterruptamente, e lhe servia de ponto de referenda durante a pesca.
A seguir prendiam o cabo rassoeiro a boia, lançavam ao mar a rede, denominada mugiganga e descreviam com a bateira um círculo levando a extremidade do cabo chamado a mão da barca, até ao ponto de partida, isto e, a boia.
As mugigangas já não existem hoje em Espinho. Encontramo-las em outras praias do norte do País, nomeadamente em Matosinhos, mas em pequeno número.

As companhas, conjunto de rede, dois barcos e 60 homens, destinam-se, na costa de Espinho, essencialmente a pesca da sardinha pelo processo do arrasto para terra.

Há 40 anos havia em Espinho umas 7 companhas. Hoje há apenas uma e outra em Ovar.
Dos 60 homens da companha, 24 trabalham em terra no conserto das redes e 36 a bordo.
Antigamente as companhas trabalhavam quer de dia, quer de noite, mas agora apenas de dia.
Ainda hoje, mantendo uma tradição antiga, o patrão da companha avisa os pescadores que nela trabalham e os donos do gado que arrasta a rede do mar para terra, que é dia de trabalho, mandando içar no areal da praia uma bandeira, chamada pendão.
E quando a companha sai para o mar, um dos pescadores, denominado chamadoiro, vai pela terra dentro e avisa os donos do gado para se prepararem para o arrasto das redes. Este aviso e feito ao toque duma corneta ou ao som dum buzio (1).

Antigamente uma companha ia ao mar 4 e 5 vezes num só dia.
A rede usada pela companha tem cerca de 240 metros de comprimento.
E constituída por duas mãos de rede, cada uma com 110 metros, separadas pelo saco que mede 20 metros. Este e reforçado a meio por uma rede de malha mais grossa, chamada funda, para evitar a sua rutura quando a pesca e mais abundante.
A cada extremidade da rede esta ligado um cabo de corda.
Cada um deve medir de comprimento uns 2500 metros.
Quando o barco sai para o mar, um dos cabos, o rassoeiro, fica preso a uma estaca espetada nno areal da praia, chamada bordão.
O outro cabo é a mão da barca que e levado pelo barco juntamente com a rede e os homens da pesca.
A companha tem dois barcos, mas só um e usado em cada ida ao mar. O outro fica na praia como suplente.
O barco, ao afastar-se da costa, vai largando o cabo raçoeiro até chegar ao lugar do pesqueiro.
Aqui os pescadores fazem o cerco, puxando a rede em arco.

(1) Em Aldeia da Mata, freguesia do concelho do Crato, há uns 40 anos, quando ali as mulheres se reuniam em ranchos para a apanha da azeitona, eram as mesmas agrupadas de madrugada, num determinado lugar da povoação, ao som do búzio, tocado pelo manajeiro.

A seguir trazem o cabo a mão da barca para terra. Então prendem sete juntas de bois a cada cabo ,e estas arrastam a rede até que as suas extremidades alcancem a terra. Daqui em diante são os pescadores que arrastam a rede para lhe darem a orientação que mais convém e evitar a fuga do peixe.
A sardinha chega à praia viva, a saltar e morre em pleno areal, o que, segundo nos informaram, torna-a mais saborosa e possivelmente justificava os antigos pregões ouvidos nas ruas da cidade do Porto:

« Vivinha de Espinho a saltar»
e
«Ó de Espinho viva».

Em seguida a sardinha e colocada na praia aos montes, designados por macolas.
O pescador de Espinho diz: hoje pescamos tantas macolas, como em Matosinhos dizem: hoje pescamos tantos cabazes.
Uma macola deve ter umas 1000 sardinhas e corresponde a um saco de rede chamado rapichel, meio de sardinha. A sardinha duma macola chegava para três a quatro vareiras venderem de porta em porta.
O rapichel enche-se com um saco de rede de capacidade menor, chamado nassa, que tem um arco na boca.
Os donos das companhas, eram geralmente os arrais, que também trabalhavam nas mesmas.

Um dos arrais que mais se distinguiu na pesca da sardinha em Espinho foi o Tio Zé Sabeler, apelido que lhe veio, segundo dizem, de quando alguém necessitava que lhe fizesse uma conta mais difícil lhe diziam: “Vai ao Tio Zé que ele sabe ler.”
Dizem que era um homem bom, altruísta e de bom caracter.
Conta-se que um dia, em plena rua de Espinho, tirou o casaco para agasalhar um pescador que ia preso, em camisa e sob a chuva e que, repreendia as vareiras, quando lançavam muito dinheiro na sardinha que ele vendia na praia.
Há uns 100 anos, entre 1834 e 1870, o mar iniciou a invasão da costa em Espinho e na sua fúria, destruiu as casas de muitos pescadores, incluindo as 5 casas do Tio Zé Sabeler.
Um vate desconhecido assim se expressou nos versos que ouvimos de bondosa velhinha octogenária, também dos Sabeler:

A todos faz chorar,
A quem Espinho for ver,
Os pobres dos pescadores,
Não tem onde viver!
Oh mar! Que foste fazer?
Já não tenho onde estar!
Minha terra não disfarço,
Obrigo-me a retirar!
Chegou a Rua da Palma,
A do Provérbio Conflor,
Na praça Velha União,
Entrou o mar com rancor.
Dizem que é de Leixões,
Esta desgraça fatal.
A rainha de Portugal,
Mandou tirar subscrições.

Esta última quadra foi-me dita também assim:

Dizem que é de Leixões,
Esta desgraça fatal,
A rainha de Portugal,
Mandou fazer pavilhões.

A transgressão marinha foi tão extensa que os pescadores de Espinho costumavam dizer: «há casas no logradouro das companhas».

A destruição progressiva das casas dos pescadores pelo mar, o rareamento da sardinha na costa de Espinho e, a agitação do mar ali, não permitia as companhas fazerem-se ao mar tantas vezes quantas era de desejar. Dai o êxodo que se verificou então, de muitas famílias de pescadores de Espinho para a Afurada e Matosinhos.
A principio estas famílias faziam nestes lugares apenas épocas de pesca, mas depois fixaram-se.
Uma das famílias que se fixou na Afurada foi a do Tio Zé Sabeler, que por vários anos se dedicou ali a pesca da mugiganga, às peças e a pesca do sável.
A peça é uma rede de uns 2 metros de comprimento por uns 2 metros de largura (1) que se usa ainda na pesca da sardinha.
Os pescadores de ,então armavam esta rede próximo e ao longo da costa, não só porque a costa tem uma orientação norte-sul, mas ainda porque a experiencia ensinou-os, dizem eles, que a sardinha no acejo, isto é, ao por do sol, vem em maior quantidade do mar
para terra, e ao alvor, isto é, ao romper do dia, vai em maior quantidade da terra para o mar
Esta rede, quando armada na água não toca no fundo mas mantem uma relativa fixidez, devido ao chumbo que tem preso à base inferior.
Dizem em Matosinhos que a sardinha das peças é mais saborosa do que a das traineiras, por sangrar ao emalhar-se na rede.
Ainda hoje se pesca a sardinha com as peças em Matosinhos,
especialmente no defeso da pesca da sardinha que tem sido oficialmente mantido nos meses de Janeiro a Abril de cada ano.
A pesca do sável fazia-se então no Rio Douro, nos lugares: Sobreiras, Cabedelo, lnsa, Rio de Baixo e Fonte do Preto (2), pelo processo do arrasto, como a pesca da sardinha em Espinho
pelas companhas.

(1) Agora as peças em Matosinhos, tem cerca de 50 metros. Há em Matosinhos, barcos pequenos a motor, que ligam as peças umas as outras, numa extensão de uns 500 metros e são armadas no alto mar ( 40 a 50 braços).
(2) Ainda hoje se pesca o sável ,no Rio Douro, no entanto onde ela é mais abundante é no mar, não só junto a foz como no alto mar, até 30 a 40 braças.
A rede mais usada agora e a de emalhar, chamada tremalhos.

Na pesca do savél o arrasto da rede era feito pelos homens, na da sardinha pelos bois até a rede atingir a terra.
A rede do sável era mais pequena que a das companhas.
No dia 16 de Junho de 1884, quando o velho Sabeler regressava da pesca da mugiganga, no seu barco saveiro, com mais quatro homens a bordo, dois dos quais eram seus filhos, ao chegar a entrada da barra do Douro, veio uma volta de mar, que virou o barco.
Todos os pescadores se salvaram excepto o velho Sabeler, que, por falta de forças físicas foi levado pela corrente do Rio.
O filho mais velho, José Ferreira Neto, a quem estava reservado um papel preponderante no progresso da pesca em Matosinhos, tentou soltar-se da bateira para salvar o pai, mas este, velho lobo do mar, conhecedor dos riscos que o filho ia correr, disse-lhe que não fizesse tal, pois morreria também com ele. Um pouco antes de perecer afogado pediu ao filho que cuidasse da mãe e dos irmãos, o que ele cumpriu religiosamente.
Uns dias depois o corpo do velho Sabeler arrolava a costa, a norte da Póvoa de Varzim, no lugar de Navais, em cujo cemitério ficou sepultado.

O remanescente da família dos Sabeler, passados alguns anos, veio fixar-se em Matosinhos, em busca de melhores condições de vida, como já tinham feito muitas outras famílias de pescadores de Espinho.

Alexandre Alves da Rocha ( Casebre) publicou no jornal «Defesa de Espinho», nº 1343, de 22-12-1957, um artigo intitulado «Breve resenha histórica de Leixões e da indústria de Pesca de Matosinhos». Refere nele os nomes de famílias de Espinho que vieram para Matosinhos, e diz que muitos dos seus elementos se distinguiram, uns como pescadores, outros como negociantes de sardinha e outros a principio como negociantes de sardinha e depois
coma industriais conserveiros.
Com a devida vénia transcrevemos a referência feita pelo ilustre articulista:

«Os primeiros espinhenses que aqui se fixaram e deram impulso a pesca, foram os do Anão (Família Sá Pereira), os Rochas, os Zagalas, os «Sanguedos», os Luças, os Aluais, os «Sabeler», os Chalões, os Felícios, os da Florinda, os «Patelas», os Claras, «os do Mar», os da Vitorina, os Ritas, Sales, Graças, os Vinte-e-Quatro, os Clementes, Dionisio, Gaiteiros, Chetas, Caseiros, os da Americana, da Machada, os Cunha Folhas, Ourives, ( da família de
António Zé); os da Graça, da Caetana, Vilares, Cartolas, Fragrateiras, Ferreirinha, Arruelas ( da família Caronha); as Tarecas, os do Ti Gregório, os Chuchas, da Gança, Cancujos, da Marcada; os Anastácios, Barombas, Correias, Carapuços, Guilherme ( da família Maganinho), Noras, os da Vareira. etc., etc., todos pescadores, muitos deles também artífices.»
Em Matosinhos, os Sabeler, como muitos dos seus conterrâneos, continuaram a dedicar-se a pesca da sardinha com as redes designadas por peças, ou redes de emalhar, à mugiganga e a pesca da tarrafa.
A tarrafa era uma rede que funcionava como um cerco e era usada especialmente na pesca da tainha. Também podia ser pescada a sardinha com a tarrafa, mas só quando esta atingia o litoral.
Os Sabeler possuíam cinco barcos de peças, com os nomes Roberto, Anjo da Guarda, Os três irmãos, o Amor da Pátria e o Restaurador.
Em Matosinhos corria então a seguinte quadra alusiva a estes barcos:

Vivam os cinco barcos da casa,
Roberto e Restaurador,
Anjo da Guarda e os Três Irmãos,
Viva o barco da Pátria e Amor.

Nesse tempo também eram usadas em Matosinhos, na pesca da sardinha, as armações, também designadas por artes fixas, porque chegavam a estar armadas no mesmo local uns seis meses.
Eram constituídas por várias redes que se dispunham ligadas umas as outras, atingindo muitos metros de comprimento. Todos os dias os pescadores lhes tiravam o peixe.

Estas armações existem ainda hoje na costa de Sesimbra.
A pesca da pescada era feita com lanchas, embarcações de boca aberta, sem convés, que usavam redes chamadas rascas, largadas a 100 ou a 120 braças de profundidade.

Os processos usados na pesca em Matosinhos até ao princípio deste século, eram rudimentares, rotineiros e passivos. Permitiam a pesca da sardinha e de outras espécies marinhas, apenas junto a costa ou um pouco mais além.
A pesca era em pequena quantidade e mal chegava para as necessidades do então pequeno povoado piscatório de Matosinhos, situado na foz do rio Leça e aldeias das suas redondezas pouco povoadas (1). As embarcações usadas eram frágeis, sem o mínimo de segurança para as vidas dos pescadores. Uma leve volta de mar, obrigava os pescadores a recolherem a doca, as vezes em circunstancias bem difíceis. Passavam horas e horas molhados da cinta
para baixo, ora devido as ondas que varriam o barco, ora devido ao alar frequente das redes durante a faina da pesca.
Eram necessárias embarcações maiores que aguentassem mais o mar e lhes permitissem pescar longe da costa, em outros pesqueiros.
No sul do Pais, em Setúbal, havia já nesse tempo um processo de pesca mais rendoso – o das redes ali designadas por cercos americanos.
Estas redes tinham cerca de 300 braças de comprimento. Eram transportadas ao alto mar, por embarcações maiores. Ali pelo processo do cerco pescavam maior quantidade de sardinha.

(1) A população do concelho de Matosinhos, nos anos de 1900 e 1911  era de 25 080 e 34 265 almas, respectivamente.

José Ferreira Neto, o Sabeler, sobre quem alguém escreveu interessantes dados biográficos no jornal já referido, num artigo intitulado José Ferreira Neto, o Sabeler (Notas biográficas do benemérito pescador), não satisfeito com os processos correntes da pesca da sardinha em Matosinhos, apesar de ser um humilde pescador, mas de acção e de larga visão, ao ter conhecimento da existência destes cercos em Setúlbal, pensou usá-los na pesca, na sua terra adoptiva.
Havia um grande obstáculo a vencer: a oposição dos outros pescadores, que não viam com bons olhos a inovação. Achavam que o novo processo de pesca originaria o extermínio da espécie e dai põr em perigo a actividade de que lhe vinha o pão de cada dia para si e para os filhos.
Mas, José Ferreira Neto não desistiu do seu intento. Em seu entender os cercos americanos proporcionariam uma pesca mais abundante pois trazia-lhes possibilidades de pescarem mais ao largo da costa. Assim com uma pesca maior, haveria maiores possibilidades
materiais para todos os pescadores e para Matosinhos.
E não estava errado.
Para isso fez um requerimento as autoridades de Lisboa a pedir autorização para serem usados em Matosinhos os cercos americanos de Setúbal. Entretanto os pescadores opositores enviam uma comissão a Lisboa e conseguem que a petição de José Ferreira Neto
seja indeferida. Estávamos então no reinado de D. Carlos.
José Ferreira Neto não se dá por vencido. É um homem de antes quebrar que torcer, dotado de caracter forte, plasmado pela luta incessante com o mar desde a sua tenra idade. E assim passados alguns anos, agora no tempo da República, com o Dr. Afonso Costa, como Ministro das Finanças e com o apoio do capitalista Rodrigues Guedes, vai a Lisboa repetir de viva voz o seu desejo, que é deferido e origina que fosse ordenado oficialmente se organizassem
cooperativas de pescadores para se adoptarem em Matosinhos os cercos americanos para a pesca da sardinha.
No entanto a quase totalidade dos pescadores de Matosinhos, reagindo contra a nova ideia não queria obedecer as ordens do governo central.
Apesar disto José Ferreira Neto vai a Setúbal com os seus irmãos e alguns familiares, compra ali um barco tipo galeão, com o nome de Setúbal e trazem-no à vela e a remos para Matosinhos.
Nesta viagem demoraram oito dias (1).
Na sua ausência em Setúbal, alguns dos seus camaradas que comparticipavam do seu propósito e tinham ficado em Matosinhos, preparavam uma rede para o novo processo de pesca, conforme as directrizes dadas por José Ferreira Neto.
Esta rede tinha de comprimento umas 250 a 300 braças; as das traineiras -e motoras actuais, que sucederam aos cercos americanos, tem cerca de 300 braças de comprimento.
Em Matosinhos José Ferreira Neto e alguns familiares compraram dois barcos auxiliares chamados buques. No alto mar o cerco era realizado com o galeão e o transporte da sardinha para terra era feito nos buques. Em ocasiões de pesca abundante o galeão também
transportava sardinha para terra. O galeão transportava dois pequenos barcos de tamanho e forma semelhantes as chalandras de hoje, denominados arolas, para auxiliarem a fazer o cerco.
O cerco americano, no seu primeiro dia de trabalho pescou mais sardinhas que todas as peças em Matosinhos.
Os pescadores contrários a este processo de pesca, quando viram a abundancia de sardinha trazida pelo cerco, tentaram pisar a sardinha do cerco, agredir os pescadores que nele trabalhavam e foram à Capitania com ameaças.
Mas as autoridades estavam do lado dos Sabeler e protegeram- nos das ameaças dos seus colegas.
Uma onda de má vontade e de incompreensão invadia naquele tempo a classe piscatória de Matosinhos.
José Ferreira Neto foi durante algum tempo, na sua ida para o mar e vinda, protegido pelos seus familiares, também pescadores.
Eram frequentemente vaiados com a seguinte quadra:

Lá vai o cerco pr’ó mar,
Atrás vai o galeão,
As p … do Sabeler,
Já ganharam pr’ a um cordão!

(1) Não encontramos o registo da matricula do barco Setúbal no Arquivo da Capitania do Porto de Leixões, apesar da boa vontade do pessoal da mesma.
É possível que o mesmo se encontre na Capitania do Porto de Setúbal, onde o barco foi adquirido.

A esta quadra insultuosa respondiam os Sabeler com esta outra:

Lá vai o cerco pr’ó mar,
O galeão vai à frente!
Ora vivam os Sabeler,
Que fazem ver toda gente!

Apesar da animosidade dos pescadores todos os dias o cerco saia para o mar e cerca de um ano foi o único em Matosinhos.
Perante a abundância de sardinha trazida pelo cerco, a opinião da classe piscatória começou a abrandar e até a desaparecer por ser reconhecido que o processo da pesca da sardinha pelo cerco americano não tinha os inconvenientes que os pescadores imaginaram e apresentava vantagens palpáveis sabre a pesca da sardinha pelas peças.
E, como contra factos não há argumentos, vários pescadores e, até contra o que fora resolvido superiormente, algumas pessoas estranhas à pesca, seguindo o exemplo de José Ferreira Neto, puseram cercos ao mar.
Ao galeão, adquirido em Setúbal, impelido até agora a remos e a vela, adaptaram-lhe um motor de 35 cavalos vapor e fazem dele o primeiro barco a motor na pesca da sardinha em Matosinhos.
Assim, em Matosinhos, aos cercos americanos, que tiveram a sua época, sucedem-lhe na pesca da sardinha as traineiras e as motoras, as primeiras acionadas a máquinas a vapor e as segundas a motores de 200 a 500 cavalos vapor.
Os Sabeler mantiveram-se durante muito tempo ligados à pesca da sardinha em Matosinhos. Governaram e foram donos de traineiras e motoras. O último deles foi Mário José de Matos, sobrinho de José Ferreira Neto, que durante muitos anos foi proprietário da «Empresa de Pesca Santa Rita», à qual pertenceram vários barcos de pesca, entre eles o «Galileia», o «Moreia», o «Camões», o «Jamaica» e o «Jerusalém».
Matosinhos, merce, em grande parte da inteligência e tenacidade de José Ferreira Neto, deixou de ser o pequeno povoado piscatório do principio deste século, localizado em volta da praia do Espinheiro, na Foz do rio Leça, para se tornar numa vila de extrema importância, na pesca, na indústria e no comércio.
É bem que os homens hoje a frente dos destinos desta vila, com foros a cidade, não se esqueçam de perpetuar, de forma condigna, o nome deste ilustre filho adoptivo de Matosinhos.
Seja posto em pratica o conselho do Apóstolo das Gentes:
«Portanto dai a cada um o que deveis; a quem tributo, tributo, a quem imposto, imposto, a quem temor, temor e a quem honra, honra» ( Romanos, 13: 7) .

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