A INDÚSTRIA DE CONSERVAS DE PEIXE NO ALGARVE (1865 - 1945)
Joaquim Manuel Vieira Rodrigues
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – Lisboa 1997
IV A INDÚSTRIA CONSERVEIRA ALGARVIA NA I GUERRA MUNDIAL (1914-1924)
A euforia
Entre o início da I Guerra Mundial e os anos 30, a indústria de conservas de peixe do país atravessou vários ciclos. Em termos de valor poderemos considerar os seguintes:
1914-1924: fortíssima expansão; 1925-1927: crise; 1928-1931: expansão; 1932-1933: crise. Os dados testemunham as grandes oscilações que caracterizaram a indústria, a qual acompanha, grosso modo, as crises internacionais do sistema capitalista naquele período.
As conservas mais exportadas eram as de sardinha em azeite ou molhos, numa percentagem superior a 90 %. Portimão e Olhão eram os principais centros produtores e exportadores do Algarve.
A exportação de 1914 mostra uma quebra acentuada em relação a anos anteriores, a que não terá sido estranha a conjuntura que precedeu o eclodir da guerra (Quadro XXXI).
A política dos governos republicanos em relação às conservas: os armazéns gerais
Perante a crise no início do conflito e pela necessidade de auxiliar as indústrias – conservas e cortiça – mais atingidas «pelo estado anormal» que atravessava a Europa, o governo republicano, autorizava a instalação de armazéns gerais em Setúbal, Olhão e Lagos, para as conservas, e em Lisboa, Évora e Faro, para a indústria de cortiça[213]. As conservas seriam neles warrantadas ou depositadas, sendo indispensável que se procedesse a exames e análises, designadamente a prova de soldadura ou cravação, o estado do conteúdo da lata, o estado do peixe e do azeite[214].
Cerca de um ano depois, os industriais de conservas eram novamente beneficiados ao permitir-se o armazenamento das conservas em dependências das suas fábricas ou oficinas[215]. Ao longo do conflito o movimento do armazém geral de Olhão foi aquele que mostra o quadro seguinte:
[213] Dec. nº 808, de 28/8/1914.
[214] cf. Dec. nº 808 e Dec. nº 974, de 26/10/1914.
[215] Dec. nº 1972, de 19/10/1915.
Os benefícios para a indústria de conservas foram, em consequência, evidentes fornecendo os armazéns avultadas quantias que «poucos bancos teriam capacidade para fazer sem afectar o seu comércio bancário» [216]. Contudo, a sua existência parece não ter sido fácil, visto que lhe foram criadas «peias» e «dificuldades burocráticas» [217], assim como houve uma clara tendência para centralizar os seus serviços na capital do distrito, Faro, na qual eram também depositadas conjuntamente as cortiças manufacturadas. Ainda outras dificuldades foram colocadas ao seu funcionamento, designadamente, «a difícil compreensão das leis que se promulgam sobre o assunto tantas vezes emendadas e modificadas. O retraimento e desconfiança claramente assoprados pelos que se desejaram sempre a sós na especulação dos negócios» [218]. Finalmente, com os protestos dos industriais de Olhão era extinto o referido armazém pelo decreto nº 4.626, de 17 de Julho de 1918, pelo que as conservas teriam que ser depositadas, em Faro[219].
[216] Gazeta de Olhão, nº 29, 17/10/20, p. 1.
[217] Gazeta de Olhão, nº 19, 8/8/20, p. 1.
[218] Gazeta de Olhão, nº 27, 6/10/20, p. 1.
[219] Gazeta de Olhão, nº 31, 31/10/20, p. 1.
Benéfica não foi, porém, o aumento do imposto de exportação de conservas de 1 real e 12 centésimos, por quilo, para 10 réis ou um centavo. Esta subida representaria um ónus de cerca de 20 centavos por caixa de 100 latas, agravamento prejudicial, visto que incidiria sobre contratos já assinados ou que estavam prestes a sê-lo, provocando demoras no embarque com os consequentes prejuízos para os exportadores[220].
Posteriormente, porém, o Ministro das Finanças, concederia a dispensa aos industriais do imposto de que resultaria «um embarque colossal nos diferentes portos da província, embarque que representa uma boa centena de contos de reis que vem espalhar-se pelas numerosas classes que se ocupam naquelas industrias» [221].
Durante o conflito a tabela dos direitos mínimos ad valorem sobre as conservas nacionais manteve-se inalterável, situação claramente positiva para o sector.
O proliferar das fábricas
Em 1917, o distrito de Faro, possuía 239 estabelecimentos industriais, empregando 10.186 operários, 5.064 mulheres (50%) e 1.793 menores (18%). Dispunha de 70 motores, os quais debitavam uma potência de 1.430 CV[222].
Os concelhos de Olhão (53 fábricas), Vila Real de Santo António (36), Faro (32) e Alportel (28), eram os mais industrializados. O parque industrial assentava essencialmente nas fábricas de conservas de peixe e de cortiça (Quadro XXV).
[220] cf. O Algarve, 4/4/1915.
[221] O Algarve, 18/4/1915.
[223] O. Marques e Fernanda Rollo, Nova História de Portugal – Portugal da Monarquia para a República, vol. XI p. 129
A acelerada depreciação do escudo a partir de 1919, favoreceu o aumento das importações de aparelhos e máquinas industriais, material circulante para caminho-de-ferro, automóveis, matérias-primas e de artigos sumptuários[223]. Qual o impacto da importação de material industrial na indústria de conservas? Os escassos elementos não nos permitem realizar uma avaliação concreta sobre o seu grau de mecanização. Todavia, sabemos que de 1917 para 1927, o número de geradores a vapor passou, no distrito de Faro, de 93 para 179[224].
Eram precisamente as da indústria de alimentação, nomeadamente a de conservas que dispunham de maior número: 168 dos 178 geradores a vapor, ou seja, 94%. Obviamente que os centros de Olhão, Portimão, Lagoa e V.R.S.A. eram aqueles que tinham maior número daqueles aparelhos[225].
Os motores de combustão interna accionados a diesel, gás pobre ou rico, petróleo, gasolina e óleos, conheceram igualmente uma expansão importante, para além de debitarem maior potência. No mencionado distrito, de 1917 a 1927, a potência licenciada aumentou 232%, enquanto a potência licenciada de motores a vapor decaiu 26, 3%, dispondo a indústria de alimentação, neste último ano, de 65% do número total de motores de combustão interna – o maior número, mais uma vez, localizados nos principais centros conserveiros – com uma potência (CV) representando 68% do total[226].
O redactor do estudo com alguma premonição dizia que «A fôrça motriz a gás pobre oferece, principalmente em Portugal, grandes vantagens económicas, visto que os motores podem ser alimentados com gases obtidos de produtos e combustíveis nacionais. A fábrica Deutz constrói gasogénios para queimar lenha, lignites, carvão vegetal, detritos de madeira, cepa, casca de amêndoa, até mesmo para detritos de sisal» [227].
Durante o período da I Guerra Mundial e do após-guerra cresceu, como já vimos, exponencialmente o número de fábricas – se é que poderemos utilizar com oportunidade este conceito: 223, em 1918; 284, em 1922 e 400, em 1925. Obviamente que os centros algarvios não poderiam ter escapado a toda esta febre. Em 1923, «Uma grande parte dos estabelecimentos … são de fundação muito recente, principalmente as fábricas de conservas de sardinha, que constituem a primeira das nossas indústrias do Algarve. O seu número em toda a província triplicou durante o estado de guerra até» 1922,«e ao mesmo tempo que se acentuava êste incremento considerável da indústria conserveira, aumentava também o descrédito dos seus produtos nos mercados estrangeiros, pela falta de cuidado empregado no seu fabrico» [228]. Em 1919, registaram-se na 5ª circunscrição industrial (Algarve), 37 fábricas e 1920 registaram-se mais 8 fábricas[229]. O desenvolvimento da indústria conserveira, quer no Algarve, quer no país, pode ser atestado pelo número de estabelecimentos licenciados entre 1923 e 1927.
[223] cf. M. Caetano, A Depreciação da Moeda depois da Guerra, pp. 311 e 312.
[224] “As caldeiras que a indústria nacional utiliza. Dados estatísticos referidos a 31/12/27 e algumas caracteristicas técnicas”, Boletim do Trabalho Industrial (BTI), nº 140, 1931, p. 4.
[225] Ibid., p. 22 e 23.
[226] “Os motores que a indústria nacional utiliza. Ano de 1927”, BTI, nº 143, 1934, pp. 4, 294 e 311.
[227] Ibid., p. 504.
[228] João Simões Quintas Júnior, “Relatório dos Serviços da 5ª circunscrição industrial nos anos de 1919 e 1920. Resumo dos Relatórios”, BTI, nº 119, 1923, p. 134.
[229] Ibid., p. 135.
Neste quinquénio, na região, foram licenciadas 45,7 % do total das fábricas de conservas no país. Para este proliferar de unidades de produção de conservas contribuíram as casas comerciais e bancárias que, num contexto de rápida depreciação do escudo e de fácil recurso ao crédito, se abriram no Algarve as quais «lhes forneciam tudo desde os materiais até o dinheiro para a compra de peixe, com a condição de receberem em consignação tôdas as conservas fabricadas» [230].
O industrial chegava a sacar, sobre os importadores, até 75%, em alguns casos, recebendo os restantes 25% no acto da liquidação[231]. Terão, porventura, estes enormes capitais acumulados sido investidos na modernização das unidades industriais existentes? Provavelmente muito poucos. Alguns “industriais milicianos” canalizaram os lucros para «despesas extraordinárias em luxo, jôgo e passeios constantes, outros a comprar propriedades, fazer edificações por preços exagerados, imobilizando assim todo o capital e lucros e poucos foram aqueles que, pensando no futuro, trataram de preparar as suas fábricas com alguns melhoramentos indispensáveis para poderem trabalhar depois da guerra em concorrência com o estrangeiro que dia a dia ia aumentando a produção e garantindo o fabrico das suas marcas» [232].
Desde a revolução republicana de 5 de Outubro de 1910 que se tinha iniciado a evasão de capitais, avaliada em mais de 75 milhões de libras esterlinas pelo antigo adido comercial inglês, em Lisboa[233].
A constante quebra do valor do escudo, quer durante a guerra, quer principalmente nos anos subsequentes, corroendo drasticamente as fortunas, acelerou aquela fuga. Consequentemente, os exportadores, quer industriais, quer comerciantes temerosos «que o produto das suas exportações, transformados em escudos, já não chegasse, dentro em pouco, para a renovação dos seus stocks de matérias-primas, deixaram lá fora o ouro das suas cambiais» ” [234].
Como uma das principais industriais exportadoras durante aquele período mencionado foi a indústria de conservas, estamos em crer que muitos empresários do sector deixaram depositados em bancos estrangeiros avultados capitais à espera que novos tempos surgissem no horizonte. Comportamento que se reflectiria, em parte, nas futuras dificuldades atravessadas pelo sector e na sua falta de modernização.
[230] cf. Boletim do Trabalho Industrial, nº 133, 1927, p. 139.
[231] Ibid..
[232] Ibid., p. 140.
[233] cf. Armando Marques Guedes, Páginas do Meu Diário, p. 185.
[234] Id., ibid., pp. 162 e 185.
A produção e a exportação de conservas pelo Algarve
Até aos anos trinta, as estatísticas sobre a produção de conservas de peixe, quer a nível de todos os centros, quer a nível dos centros algarvios são muito exíguas. Para este período, apenas conhecemos a produção de 1915 e 1916, em caixas de 100 latas de 1/4 club 30 mm (Quadro XXXV).
De 1915 para 1916, o peso económico da produção do Algarve no conjunto do país sofreu uma quebra assinalável ao descer de 55% para cerca de 44%.
Destacadíssimos encontravam-se os centros de conservas de Portimão e de Olhão. Como tendências de longa duração podemos afirmar que de 1915 a 1934, a indústria de conservas conheceu um processo de deslocamento de sul para norte, visto que «enquanto em 1915, 55% da quantidade de conservas de sardinha produzidas no País provinham do Algarve, em 1934, aquela província fabricou apenas 22,2% do total Para êste facto muito concorreu, certamente, o desaparecimento de peixe, das costas algarvias» [235].
A guerra que dilacerá a Europa durante alguns anos, proporcionará, a partir de 1915, uma expansão rápida dos níveis de exportação, nomeadamente pelo aumento dos preços das conservas exportadas. A maior exportação de conservas de sardinha verifica-se, em 1923, 53.599 toneladas, quantidade que nem mesmo durante a II Guerra Mundial será ultrapassada, no valor de 190.211 contos, favorecida pela desvalorização do escudo, de 1915 a 1924[236]. No ano seguinte, embora a exportação decresça 17%, o valor, porém, crescerá ainda 2,7%.
[235] Boletim dos Organismos Económicos, nº 2, vol. 1º, Dezembro 1935, p. 254.
[236] cf. Oliveira Marques, História da República Portuguesa. As Estruturas de Base, p. 507.
Este aumento da exportação ficou, também a dever-se, quer à promulgação de medidas restritivas da exportação de conservas, em alguns países produtores, nomeadamente na França, como às boas capturas que se realizaram durante estes anos, designadamente no Algarve.
Em 1915 e 1916, em percentagem, as produções dos centros conserveiros algarvios foram as seguintes: Lagos, 12,56% e 8,62%; Portimão, 17,32% e 16,95%; Olhão, 20,08% e 14,77% e Vila Real Santo António, 5,33% e 4,44%, respectivamente[237].
Entre 1907 e 1925, as principais exportações pelo porto de Vila Real de Santo António, foram o minério de ferro, a alfarroba, as conservas de peixe em azeite, os figos secos e a cortiça[238].
Embora fragmentados e parcelares, estes dados confirmam, de uma forma geral, que as exportações de conservas de peixe deste centro, não o mais importante do Algarve, coincidiram com as de nível nacional. As quantidades máximas foram alcançadas entre 1921-1924. Embora, em quantidades, os minérios ultrapassassem largamente as de conservas, em valor, estas foram superiores àqueles. O minério escoado pelo porto de Vila Real de Santo António era principalmente o cobre, embarcado em Pomarão, no Rio Guadiana, a Sul de Mértola, extraído das minas de S. Domingos, no Alentejo.
Com o propósito de garantir o ouro das exportações e de colocar um travão à evasão de capitais foi publicada importante e vasta legislação, nos crepúsculo dos anos republicanos, a qual englobaria também a indústria de conservas, nomeadamente o regime de sobretaxas que tinha como propósito munir o Estado de cambiais para os seus encargos externos, sem necessidade de depender da praça[239].
Em 8 de Abril de 1920, pelo decreto nº 6.519 eram fixadas as sobretaxas de exportação de sardinha ou biqueirão em salmoura, em $04/Kg, e a sardinha ou biqueirão prensado ou seco, em $08/kg. Pelo decreto nº 6.667, de 7/6/20, às conservas de azeite, incluindo taras, foram-lhes fixadas um regime de sobretaxas de exportação, ad valorem de 5%.
O decreto nº 6.678, de 14/6/20, isentava de licença do Ministro do Comércio e Comunicações a exportação de conservas de peixe em azeite, para além de outras mercadorias nacionais.
Importante foi a publicação do decreto nº 8.280, de 22/7/22, segundo o qual as mercadorias constantes de uma tabela anexa ficavam sujeitas, na exportação ou reexportação de Portugal Continental,
[237] Boletim dos Organismos Económicos, nº 2, vol. 1º, Dez. 1935, gráfico 22.
[238] Carminda Cavaco, O Algarve Oriental. As vilas, O Campo e o Mar, vol. 2 , p. 357.
[239] cf. A. Marques Guedes, Páginas do Meu Diário, p. 184.
Açores ou Madeira, para o estrangeiro, ao pagamento das sobretaxas especiais e seriam cobradas independentemente das que ainda vigorassem. No caso das conservas de peixe (incluindo taras), a caixa pagaria uma sobretaxa de 5$00, a sardinha ou qualquer outro peixe fresco ou salgado, a sardinha, biqueirão e qualquer outro peixe em salmoura (incluindo taras), 200$00/tonelada e a sardinha, biqueirão e qualquer outro peixe prensado, seco e enxovado (incluindo taras), 250$00/tonelada.
A importância das sobretaxas seria depositada pelo exportador ou reexportador ou, em seu nome, por um banco ou banqueiro, no Banco de Portugal, suas agências ou filiais.
Caso a venda fosse feita em moeda nacional, os exportadores e reexportadores não eram dispensados de entregar aos bancos ou banqueiros o produto da venda, devendo o banco ou banqueiro entregar ao Estado 50% desse produto, – elevado a 75%, pela Portaria nº 3.906, de 19/2/24 – transformado na moeda do país do destinatário ou em esterlino ao câmbio sobre Lisboa do dia da cobrança na praça em que fosse cobrado, se outro não houvesse sido anteriormente fixado e comunicado ao Banco de Portugal.
O decreto nº 8.387, de 26/9/22, modificava algumas disposições de decreto 8.280, designadamente a sobretaxa para as conservas de peixe em azeite ou óleo ou azeite e óleo (incluindo taras), que passariam agora a ser de 500$00/tonelada.
A 11 de Janeiro de 1923, pelo decreto nº 8.575, o atum em conserva (incluindo as taras de folha de Flandres), o carapau, bogas, biqueirão e cavala, em conservas de azeite e as sardinhas em conservas (incluindo as taras de folha de Flandres) registariam de direitos ad valorem, respectivamente, 8$00, 2$00 e 4$00, por quilo. Em Setembro do mesmo ano, pelo decreto nº 9.121, a sardinha em conserva (incluindo as taras de folha de Flandres), registaria uma ligeira descida para os 3$50, por quilo, de direitos ad valorem. Contudo, esta descida seria momentânea, visto que em 16/4/24, pelo decreto nº 9601, aquele conjunto de produtos veria aqueles direitos serem agravados para 10$00, 2$50 e 4$50, o quilo. Aumentos que, nomeadamente para a conservas de sardinha, em relação a Setembro de 1923, representava um aumento de 28,6%. Mas não ficaria por aqui o agravamento, já que, este último produto registaria novo aumento, agora de 5$00, por quilo (Dec. nº 10.016, de 15/8/24).
Finalmente, pelo decreto nº 10.917, de 30/6/25, aqueles mesmos produtos registariam, agora, uma descida de, respectivamente, de 7$20, 1$600 e 3$200, por quilo.
Em resumo: os governos republicanos pelas dificuldades financeiras atravessadas, principalmente após o fim da I Guerra Mundial, tiveram a tendência para aumentarem os direitos de exportação das várias espécies de conservas.
Para Ivens Ferraz, o câmbio não tinha para a indústria de conservas a influência que se supunha, visto que, se por um lado a folha-de-flandres e o estanho eram importados, «pagando o industrial esses materiais e os respectivos fretes e direitos em ouro», por outro lado, a sardinha subia imediatamente de valor na lota, logo que aumentava o valor do franco ou da libra. Consequentemente, qualquer aumento dos direitos de exportação não era sinónimo de receitas para o Estado, visto que a exportação poderia reduzir-se[240], o que veio, aliás, a acontecer de 1923 a 1926. Caberá saber em que medida o aumento das taxas contribuiu para a quebra das exportações.
Aliás, as conservas nacionais mostraram, nos anos 20, uma relativa receptividade, por parte de alguns países. Testemunha tal facto o acordo assinado, em 11/12/22, entre o governo português e o governo da nova Checoslováquia, o qual se obrigava a permitir a importação de vários produtos, designadamente um contingente anual de 3000 toneladas de conservas de peixe em azeite ou em salmoura[241].
Outro importante acordo comercial rubricado foi com a Alemanha, em Berlim, a 28 de Abril de 1923. Durante a sua vigência, o governo alemão não cobraria qualquer taxa aduaneira superior a 30 marcos por 100 kg, sobre sardinhas em azeite, de origem e procedências portuguesas, em latas hermeticamente fechadas[242]. Ora, precisamente de 1923 para 1924, a exportação para aquele país crescerá em quantidade 180,6%, e, em valor, mais espectacularmente, 322%, apenas ultrapassada pela França.
A pesca e as conservas fonte de rendimento para o Algarve
Entre 1914-1923, o produto da pesca nos portos do Algarve foi o mais alto do país, com excepção do último dos anos referidos: o total ascendeu a 111.172 contos. Em 1923, este produto atingiu 42.030 contos, correspondendo a 43,25 % do total do país, apenas ultrapassado por Setúbal com 64.028 contos[243].
[240] Ivens Ferraz, “Direitos de exportação das conservas”, A Pesca Marítima, nº 10, Abril de 1924, p. 150.
[241] cf. “Documentos relativos a um acordo comercial entre os Governos Português e Tcheco-Slovaco”, Diário do Governo, nº 261, 16/12/22.
[242] cf. “Acordo Comercial provisório entre Portugal e a Alemanha”, Diário do Governo, nº 95, 9/5/23.
[243] cf. Duarte Abecassis, Estudo Geral Económico e Técnico dos Portos do Algarve, quadro inserido entre as pp. 16 e 17.
De 1914 a 1924, os valores da pesca da sardinha, no país, aumentaram 5.326%, enquanto os valores da conserva de sardinha exportada registaram um exponencial crescimento de 11.542%.
Perante estes valores, não será estranho que tivesse sido publicada vária legislação autorizando as Câmaras Municipais do Algarve, onde se localizavam os seus principais centros piscatórios – Albufeira, Lagos, Vila Real de Santo António – a lançaram um imposto de 1% ad valorem sobre as mercadorias exportadas, vultuoso rendimento num período de escassos meios financeiros por parte do poder central[244].
No decreto que aprovava o regulamento da Junta Autónoma do Porto de Vila Real de Santo António, as receitas proviriam da sobretaxa de 1% ad valorem sobre a importação e exportação de todas as mercadorias efectuadas por aquele porto e sobre as mercadorias entradas ou saídas pela barra do Guadiana. Entre as mercadorias entradas encontravam-se algumas relacionadas com a indústria de conservas: o chumbo, a folha de flandres e o azeite, cuja máxima cobrança por tonelada seria, respectivamente, de 20$00, 15$00 e 10$00. Entre os produtos exportados tínhamos as conservas de atum (35$00) e as de sardinha (20$00), o que evidencia a importância de V.R.S.A. na produção e exportação de conservas de atum[245].
As dificuldades na aquisição de folha de Flandres e no fornecimento de azeite
Durante a I Guerra Mundial a indústria atravessou sérios problemas no fornecimento de folha de flandres, nomeadamente as localizadas no Algarve. Em 1917, a Inglaterra permitia a sua exportação em quantidades limitadas, a qual, porém, tinha de ser rateada pelos fabricantes. Os soldadores solicitavam, contudo, que no rateio não se compreendesse na mesma proporção os fabricantes de latas feitas com as máquinas, pois estas iam de encontro aos seus ganhos[246]. Era mais uma variante da luta entre os soldadores e a mecanização da indústria conserveira, nomeadamente no fabrico de «vazio».
Um decreto de 1918 travava a distribuição de folha e de estanho no país com o objectivo de realizar uma distribuição equitativa pelas empresas conserveiras, as quais reclamavam do Estado a sua intervenção. O açambarcamento destes produtos originara a constituição de grandes fortunas[247]. Ainda durante a I Guerra Mundial e segundo o Primeiro de Janeiro parecia «estar em vias de solução o caso da folha de Flandres, que importamos de Inglaterra e de que o governo inglês, por motivos especiais, quereria privar-nos». Segundo entidades londrinas, relatava aquele jornal, «a folha era posta no Tejo pelo preço (suponhamos) de 30, chegava, porém, às mãos dos negociantes que necessitavam dela para a sua indústria por 120. Esses industriais exportavam para a Inglaterra a mesma folha manufacturada em latas de conserva por um preço ainda agravado pela mão de obra, de maneira que a mesma conserva vinha a ficar singularmente cara». Em resultado desta situação, a que obviamente não seria estranha o estado de guerra e os grandes negócios especulativos que se fizeram à sua sombra, a Inglaterra preferia exportá-la para a Escandinávia, de onde importava, também conservas, mas onde o comércio de folha era mais parcimonioso[248].
[244] cf. Lei nº 337, de 2/8/15, C.M.A.; Lei nº 362, de 25/8/15, C.M. de V.R.S.A. e Dec. nº 6.592, de 4/5/20, C.M.L.
[245] cf. Dec. nº 9.306, 13/12/23 e Lei nº 1.585., 15/4/24.
[246] O Algarve, 15/4/17.
[247] O Algarve, 21/4/18.
[248] cit. in O Algarve, 6/10/18.
Dificuldades houve-as também com o estanho, em virtude do embargo inglês e com o receio dele ser reexportado para a Alemanha[249]. A sua falta conduziria ao encerramento das fábricas de conservas numa altura em que «por motivo da guerra, as nossas conservas alimentícias têm tido extraordinária saída» [250].
Também em relação à aquisição de óleos e de azeite deparou-se ao sector conserveiro algumas dificuldades. O regime republicano adoptou algumas medidas que foram no sentido de conciliar, quer o sector colonial ligado à produção de oleaginosas, quer o sector oleícola metropolitano, quer a indústria de conservas em pleno crescimento das suas exportações.
No primeiro caso, foi promulgada o decreto nº 5.513, de 5 de Maio de 1919, o qual isentava o óleo de amendoim do imposto de $10/quilo, peso bruto, destinado às fábricas de conservas[251]. As dificuldades encontradas, posteriormente, ao fim da guerra, na comercialização do azeite, quer pela escassez, quer pelo contínuo aumento de preço atingido, dificultando a sua aquisição pelas classes menos abastadas, obrigaria aquele regime a providenciar medidas atinentes à indústria de conservas.
Pelo decreto nº 6.723, de 26 de Junho de 1919 que determinava que o azeite de oliveira não tivesse outro destino que não fosse a alimentação do público, designadamente, o consumido directamente ou o utilizado nas conservas de peixe.
Entretanto, a situação agravava-se. A persistência da escassez, o preço excessivo alcançado, a fraca safra do ano, a «desmedida especulação dos comerciantes e intermediários», tudo se conjugava para uma nova intervenção governamental na sua comercialização, nomeadamente no sector conserveiro.
[249] cf. O Algarve, 16/5/15.
[250] O Algarve, 23/5/15.
[251] ver ainda a Lei nº 864, de 29/8/19, que continuava a isentar o óleo de amendoim daquele imposto.
Assim, e a fim de se reconhecer as necessidades de azeite daquela indústria, a Direcção Geral de Economia e Estatística Agrícola, inquiriria das respectivas fábricas o consumo normal e o possível do referido produto até ao final de Outubro de 1921 e, ainda, arrolaria as existências nas mesmas fábricas[252].
Precisamente dois meses decorridos novas medidas em prol da indústria foram tomadas. Pelo decreto nº 7.228, de 7 de Janeiro de 1921, as fábricas de conservas, somente poderiam adquirir no país o azeite com menos de um grau de acidez. O azeite de acidez inferior a cinco graus era livre e isento de direitos a sua importação, desde que os fabricantes o empregassem no uso da indústria que explorassem. O azeite que fosse requisitado destinado à indústria de conservas para exportação seria «por esta entregue contra escudos a importância em ouro ou em moeda dos países a que as mesmas se destinassem, pela paridade existente entre os mercados importadores e o mercado de Londres, sendo o câmbio fixado ao do dia da requisição da mercadoria».
No centro de Olhão, mais precisamente, encontravam-se paralisadas a 24 de Fevereiro de 1921 as fábricas de conservas, apontando-se os açambarcadores como os principais responsáveis. Em solidariedade com aquela indústria, com enorme peso na vida económica da vila, tinham encerrado também o comércio e as restantes indústrias locais. Em sinal de protesto pela escassez daquele produto, cerca de 2.000 a 3.000 pessoas deslocaram-se ao Governo Civil de Faro onde solicitaram providências para a resolução do problema. Entre os manifestantes encontravam-se representantes da Câmara Municipal de Olhão, da Associação Industrial, da União dos Sindicatos Operários, da imprensa local, da Junta de Freguesia, de operários e de industriais. Belmiro Ferreira da Silva, presidente da Associação Industrial solicitava «a livre entrada de azeite e de óleos estrangeiros…,», enquanto outros oradores sublinharam as dificuldades económicas atravessadas por Olhão.[253]
A falta de azeite que obrigava ao encerramento de fábricas de conservas durante mais de um mês tornava dramática a situação dos operários pela falta de trabalho que originava. Apelava-se para a união dos interesses algarvios para que a sua voz fosse ouvida «junto dos altos poderes do Estado» [254]. Escassez que ter-se-á prolongado ao longo de todo o ano, pois, apenas, em Dezembro, é que se fazia sentir alguma animação económica, em Olhão[255].
Uma outra medida favorável à indústria de conservas foi a publicação de um Edital do Comissariado Geral dos Abastecimentos[256], pelo qual se determinava que o azeite extra-fino utilizado em conservas e com uma graduação não superior a sete décimos, fosse comercializado pelos produtores a 4$20, ou seja, a um preço inferior ao azeite de consumo.
[252] cf. Decreto nº 7.097, de 6/11/20.
[253] cf. “A paralisação das fábricas e cercos de pesca. Grande movimento de protesto por causa de dificuldades creadas para obtenção d’azeite para as conservas”, Gazeta de Olhão, nº 48, 27/2/21, p. 1 e o Algarve, 27/2/21.
[254] Folha Tavirense, nº 3, 5/3/21, p. 1.
[255] cf. “Males e remedios. A indústria de conservas em Olhão”, Gazeta de Olhão, nº 78, 11/12/21, p. 1.
[256] Diário do Governo, nº 92, 4/5/21.
O impacto económico-social da guerra no Algarve: “encheram-se latas de sardinha com tudo...”
O ciclo expansionista que a indústria conheceu na província provocou movimentos migratórios, quer nela própria, quer na sua direcção. Não havia braços que chegassem para a laboração das fábricas. «Aldeões e camponeses da serra e do barrocal vêm para a vila [de Portimão] e aqui ficam com os seus. Doutros pontos do país vêm também os artífices e os que se vão dedicar ao comércio, e assim se constitui e multiplica a população portimonense» [257]. Este afluxo de população agravava crónicos problemas de habitação, de higiene e de salubridade.
Em Olhão o impacto da guerra também se fez sentir, visto que «o fornecimento de peixe em conserva, tanto em molhos como em salmoura, quer às tropas portuguesas envolvidas em operações de guerra em África e na Flandres (…), quer aos exércitos dos outros países Aliados contra a Alemanha, fez aumentar muito o número de fábricas…». Neste centro conserveiro, no final da contenda, existiriam cerca de 80 unidades, embora, algumas «verdadeiramente improvisadas nas instalações e apetrechamento, sem organização eficaz e sem suporte financeiro suficiente, …», pelo que, terminadas as hostilidades, muitas encerraram[258].
A exportação enriquece grande número de industriais; Júdice Fialho – «o maior armador de pesca de todo o mundo» [259] – de Portimão; os Ramires, de Vila Real de Santo António; os Padinhas, de Tavira, entre outros. Embora, em 1916, a pesca tivesse atravessado uma crise «a elevação constante do preço das conservas tem compensado, com largueza, industriais e pescadores dos prejuízos que o facto podia representar para eles» [260].
[257] Joaquim António Neves, Portimão, p. 42.
[258] Antero Nobre, História Breve da Vila de Olhão da Restauração, p. 160.
[259] Adelino Mendes, O Algarve e Setúbal, p. 94.
[260] Ibid., p. 93.
Um outro grande industrial conserveiro portimonense, Magalhães Barros, tinha em 18 de Setembro de 1915, exportado para França, sessenta contos de sardinha em lata: «Os exércitos aliados, nos campos de batalha, são os grandes consumidores da conserva portuguêsa. Os embarques para Inglaterra e Bordeus são sucessivos» [261]. Este industrial, aliás, como outros, nomeadamente, Júdice Fialho, eram grandes proprietários rurais do Algarve.
Nas fábricas de Magalhães Barros a azáfama era enorme. Nelas existiam também salas de leitura, sala de bilhar e caixa de previdência. Os soldadores, a categoria mais bem paga, cerca de 20$00 de salário semanal, dispunham, por vezes, da sua leira de terra e da sua casa de habitação. Para o autor que vimos seguindo, a luta de classes não existiria. A cooperação entre o capital e o trabalho seria a nota essencial: «Patrões e operários são cooperadores da mesma obra e, portanto, amigos» [262].
O clima de euforia perante os tempos que corriam, a ganância dos industriais, a falsificação da qualidade do produto e as consequências futuras, foi retratada por um técnico da Direcção-Geral das Indústrias: «Veio depois a Grande Guerra, em 1914, e então a grande maioria dos conserveiros portugueses pôs absolutamente de parte todos os princípios de higiene a que já me referi, e, tendo unicamente como objectivo fabricar muito e vender depressa, porque então tudo se vendia para os países em luta, começou a encher as latas com qualquer espécie de peixe e assim tivemos ocasião de ver, como conservas de sardinha portuguesas, o carapau, a cavala, toutiços, cabeças, etc.
Resultou de todo este abuso, como era de esperar, o descrédito da nossa indústria de exportação, que durante tantos anos marcou na nossa balança económica do nosso país como a de maior rendimento em moeda estrangeira.
Mas não pararam aqui as aspirações industriais, que nunca pensaram um momento nas consequências funestas que este estado de coisas havia de causar a toda a indústria! Continuaram montando mais fábricas nas mesmas condições, com todos os defeitos de instalação, sem que aparecesse alguém com autoridade que lhes embargasse o passo. [ … ]» [263].
[261] Ibid., p. 97.
[262] Ibid., p. 101.
[263] Boletim do Trabalho Industrial, nº 133, p.139.
Um outro autor dá-nos conta do comportamento dos vários sectores sociais ligados às conservas neste período de vacas gordos. Com a guerra «a indústria de conservas absorvia sempre mais peixe. Cresceram os armadores, multiplicaram-se os conserveiros e os exportadores.
E as conservas portuguesas desacreditaram-se!», visto que «encheram-se latas de sardinha com tudo: – cabeças de sardinha, talos de couve, serradura…
E, então, ninguém reclamou ao Governo!
A trampolinice criminosa, fazia-se, contando com o afundamento do barco, para roubar a companhia de seguros.
Autor do crime o industrial, seu cúmplice, às vezes instigador, o comerciante» [264].
Do descrédito do produto resultava a falta de compradores, dificuldades óbvias na exportação e, consequentemente, «graves perturbações, que tanto afectaram as condições de trabalho industrial» no Algarve[265].
Aliás, a I Guerra Mundial fora um maná para o Algarve. Não só se exportaram conservas, mas igualmente outros produtos: «O Algarve é um dos grandes abastecedôres dos exércitos aliados. A França e a Inglaterra devoram as suas conservas de peixe. O seu figo amontôa-se já nos armazéns dos exportadores, à espera da hora em que ha de seguir para os mercados ingleses e francêses. E vende-se tudo caro» [266].
As conservas algarvias beneficiavam do aumento dos preços de exportação. Os valores médios, em princípios de 1925, da tonelada das principais mercadorias de exportação da região eram:
[264] Da Cunha Dias, Conservas de Peixe. Subsídios para o estudo de um problema nacional, pp. 177 e 179.
[265] Boletim do Trabalho Industrial, nº 119, 1923, p. 134.
[266] Adelino Mendes, op. cit., p. 116.
Se em 1914 o valor médio da tonelada de conserva de sardinha atingia cerca de 91$00, em 1925 esse valor crescera exponencialmente para os 3.589$00, ou seja, um aumento de 3.844%. Crescimento ainda superior se considerarmos o valor da tonelada, não em 1925, mas em 1924.
Note-se o valor atingido, quer pelo atum, que conheceu em determinados anos um aumento significativo das exportações, quer pela amêndoa em miolo.
Contudo, estas exportações eram dificultadas pelo estado deplorável em que se encontravam os portos do Algarve, desprovidos de qualquer obras de adaptação para o serviço comercial, inacessíveis para os navios de maior tonelagem e mesmo para os pequenos durante determinados períodos da maré ou com certas agitações de mar. Em 13/4/29, o Dec. nº 16.728 classificara em portos de 2ª classe, entre outros, os de Lagos, Portimão, Faro-Olhão e Vila Real de Santo António; como portos de 3ª classe os de Albufeira e Tavira e como portos de 4ª classe o da Fuzeta[267]. Nos portos algarvios os navios estacionavam «ao largo, sujeitos aos temporaes, tendo por vezes que esperar dias e dias que os barcos de carga lhes possam trazer mercadorias ou receber-lh’a, para o que muitas vezes é necessário reunir condições favoráveis de tempo e de maré» [268]. Situação que provocava elevados salários para as tripulações e aumento dos fretes. O transporte na fragata do cais para o navio, fora da barra, era para as conservas de 28$00 e para a amêndoa de 31$00.
Os fretes marítimos por tonelada de carga, para os portos do Norte da Europa, ou para Marselha eram os seguintes:
[267] Diário das Sessões, de 7/12/38, p. 29-(9).
[268] D. Abecassis, Estudo Geral Económico e Técnico dos Portos do Algarve, p. 45.
O que prejudicava de algum modo, a concorrência dos produtos algarvios nos mercados externos.
O fim da guerra e as primeiras dificuldades
1914-1924: a década de ouro para as conservas nacionais e que correspondeu a um verdadeiro take off do sector e à sua enorme valorização. Se em termos de quantidades deparamos com alguns anos de quebra, a tendência, contudo, foi nitidamente para o crescimento das exportações: entre 1914 e 1923, aquele cifrou-se em 190%. Mas foi em termos de valor que o seu aumento se tornou mais espectacular; entre 1914-1924, atingiu 11.542%.
A acumulação de capitais fora enorme:
«Lucros, muitos lucros! Fábricas, muitas novas fábricas!
Era verdade que o escudo se desvalorizava quási dia a dia; que os preços das matérias primas subiam vertiginosamente; que os escudos que se recebiam pela venda das conservas, não chegavam para fabricar a mesma quantidade de mercadoria.
Mas ninguém, ou poucos, se preocupavam com essas ninharias.
Estava-se num período áureo de «laissez faire», de «laissez aller», da economia liberal.
Porém, «Acabada a guerra, deu-se a queda vertical de todos os valores. E os lucros e as fortunas, esvairam-se em fumo,…Algumas fábricas desapareceram logo. Outras, ficaram ainda a lutar, numa ânsia desesperada de se salvarem do naufrágio, que espalhou a ruina por todos os centros conserveiros» [269].
Quadro semelhante era descrito pelo engenheiro João Simões Quintas para quem o fim do conflito teria marcado o início de um período de crise no sector: «surgiram logo as primeiras dificuldades para a grande maioria dos nossos industriais, por falta de capital, por falta de consumo das suas conservas, muitas das quais demoravam anos nos entrepostos da Europa sem liquidação, apareceram as reclamações do estrangeiro de toda a espécie pelas fraudes praticadas durante quatro anos, e as casas comerciais e bancárias que faziam a exportação, depois de terem explorado vergonhosamente o industrial inconsciente nas suas liquidações de juros e comissões […], começaram a apertar com aquele para o pagamento das respectivas, o que não conseguiram, e então vêem-se obrigados muitas delas a tomar conta das suas instalações para as explorarem por conta própria ou para as liquidarem» [270].
Numa intervenção, na Assembleia Nacional, em 1/4/35, o deputado José Luís Supico, descreveu igualmente em tons negros, a situação do sector conserveiro findo o conflito, numa perspectiva acentuadamente ideológica, sublinhando os malefícios da economia liberal e, consequentemente, ressaltando os benefícios que trouxera a intervenção corporativa :
«Gozaram estas indústria um pouco de prosperidade artificial durante a guerra e após a guerra.
A tam querida liberdade de comércio da economia liberal produziu nelas, e infelizmente em muitos outros sectores da economia, as suas devastações.
Capitais avultadíssimos foram aplicados, na loucura de após guerra, em fábricas, em barcos de pesca, etc».
[269] F. Guerra, A Indústria das Conservas nos Contratos Colectivos e no após-guerra, p. 18.
[270] Boletim do Trabalho Industrial, nº 133, p. 140.
Verdadeira multidão de trabalhadores encaminhou a sua actividade para essa indústria, e é claro que não podia deixar de ser a breve trecho o reverso da medalha, a ruína e a miséria, provocadas por uma concorrência desordenada, provocada por uma produção de larguíssimo excesso sobre as possibilidades do consumo: «Êsse período foi, também, um período de descrédito para o fabricante, que, querendo sobreviver à catástrofe, não hesitava em fazê-lo à custa da qualidade do produto» [271].
Fazia-se, deste modo, sentir o retraimento dos mercados estrangeiros e a concorrência das conservas espanholas, no mercado italiano, pela má qualidade das portuguesas, nomeadamente de sardinha prensada e em salmoira[272].
A guerra tinha conduzido à constituição de grandes depósitos de conservas nos armazéns gerais, contra um relativo abono a liquidar quando a mercadoria fosse vendida. Com o fim do conflito, contudo, e com a estagnação das exportações, os industriais encontravam-se agora em situação difícil para escoar o produto, vendido a preços altíssimos numa situação de «normalidade de viver». Em 12 de Abril de 1919, reuniram-se, em Lisboa, os industriais de conservas, para não só exporem ao governo as suas dificuldades, como solicitarem «aos delegados dos aliados à conferência da Paz», que fosse «recomendado o consumo das conservas portuguesas nos países que os nossos aliados» tivessem submetido à paz. «Puro idealismo!», exclamava lucidamente o jornal[273].
A indústria encontrou igualmente dificuldades na aquisição de peixe, de azeite, de folha de Flandres, de estanho e de chumbo, estes três últimos produtos «em virtude das oscilações cambiais». Razões mais do que suficientes para provocar o encerramento de muitas fábricas durante meses, «sendo muito provável o seu desaparecimento pela ausência de capitais que possam suportar uma tam grande crise» [274].
[271] “Pedido de informação do Deputado Sr. engenheiro José Luiz Supico na sessão da Assembleia Nacional de 26 de Março de 1935”, Diário das Sessões, de 3/4/35, p. 791.
[272] cf. O Algarve, 13/3/21.
[273] cf. O Algarve, 20/4/19.
[274] João Simões Quintas Júnior, “Relatório dos Serviços da 5º circunscrição industrial no ano de 1919 e 1920. Resumo dos relatórios”, Boletim do Trabalho Industrial, nº 119, 1923, p. 134.
Nos idos de 1925, a crise da pesca na costa do Algarve fora avassaladora, «tendo fechado já as suas portas talvez 90% das fábricas de conservas, cujos operários se vêem abraços com a miséria»[275].
Considerações finais. Nas páginas antecedentes deixámos já alguns elementos para podermos concluir, quer do forte desenvolvimento da indústria conserveira algarvia, quer mesmo a nível nacional. Neste último caso, recordar-se-á que o número de fábricas aumentou entre 1917 e 1925 cerca de 113% e que o número de operários, embora não seja objectivamente conhecido, terão obviamente crescido os seus efectivos. Em relação ao Algarve, se considerarmos que em 1915 se contavam aproximadamente 30 fábricas e que em 1918 esse número terá chegado, senão mesmo ultrapassado as 80, encontrar-nos-emos certamente muito próximo da evolução que efectivamente terá ocorrido.
Mais difícil será avaliarmos o número de operários, mas que pelo aumento do número de fábricas, terá crescido, assim como a evolução do salário auferido pelo operário conserveiro. Contudo, as dificuldades atravessadas pela população durante a guerra, nomeadamente o impacto do custo de vida, o racionamento dos géneros e, consequentemente, a agitação social que então eclodiu, nos permita afirmar com alguma segurança que o salário no sector conserveiro ter-se-á degradado significativamente.
Terminara o ciclo da guerra.
[275] Idem, “Relatório dos Serviços da 5º circunscrição industrial no ano de 1925”, Boletim do Trabalho Industrial, nº 133, p. 141.