A Embalagem de Conservas na Conserveira Pinhais, por Sara Monteiro - CAPÍTULO 03

CAPÍTULO 03

A LITOGRAFIA NOS RÓTULOS DE CONSERVA

A importância do rótulo na embalagem

A ténica de impressão litográfica

A litografia e a indústria conserveira portuguesa

A IMPORTÂNCIA DO RÓTULO NA EMBALAGEM

DESENVOLVIMENTO 

Cremos que o rótulo não se pode dissociar da embalagem e portanto começaremos por fazer uma alusão ao percurso da mesma. Como já mencionámos anteriormente, no primeiro capítulo, a história da embalagem está ligada a dois princípios, que caracterizam o surgimento e posterior desenvolvimento da sociedade industrial, a passagem da economia familiar, local, a uma economia dependente dos mercados, que culmina na actual globalização. 

Assim, partindo primeiramente da necessidade de conservar os alimentos, acto que remonta ao homem pré-histórico e ao posterior armazenamento dos mesmos, com o desenvolvimento do mercantilismo, cresce a necessidade não só de conter, como de proteger face à contaminação, ao roubo, bem como de facilitar o transporte dos produtos. Por esta altura surgem os primeiros rótulos, que na época não passavam de marcas manuais feitas nos produtos com o intuito de identificar as suas origens e que simultaneamente funcionavam como símbolos de propriedade.

É de mencionar que as primeiras embalagens eram feitas a partir de recursos naturais, como as folhas, conchas, peles, aqui deparámo-nos com opiniões contraditórias, pois para alguns autores estes recursos não são considerados embalagens, “No início, os humanos não precisavam de embalagens. Eles tinham cabaças, cascas e folhas, troncos ocos ou cascas, cestas, órgãos de animais, odres e ânforas.” (Ehmann et al., 2009, p.4, tradução livre), na verdade segundo a citação nem as ânforas, produtos artesanais fabricados pelo homem com o intuito de conter, eram consideradas embalagens. 

Outro marco importante na história da embalagem foi a Revolução Industrial, que segundo Meggs e Purvis (2009) embora se considere que esta terá ocorrido em Inglaterra entre 1760 e 1840, ela terá sido “um processo radical de mudança social e económica e não um mero período histórico.” (Meggs, 2008, p.174) Um processo que corresponde à passagem do artesanal e manufacturado para o industrial, pontuado por inovações tecnológicas e o advento da máquina. 

Podemos dizer que esta mudança foi possibilitada pelo recurso a outras energias, que não a força animal e humana, utilizadas até à época, mas, por exemplo, a energia gerada pela força do vapor. O que por sua vez leva à renovação dos meios de transporte, factor que vem impulsionar o melhoramento de estradas e a construção de linhas ferroviárias, gerando novos mercados. 

Assim, de acordo com Jury (2012), a procura por produtos embalados era pequena até ao séc.XIX, pois os estabelecimentos comerciais, os pequenos lojistas, serviam a comunidade local. Com o melhoramento dos meios de transportes já mencionado, é possibilitada a expansão dos serviços a um nível nacional e até internacional.A expansão do comércio foi assim facilitada, os produtos passam a ter uma maior distribuição o que cria a necessidade de um melhor embalamento. As embalagens começam assim a ser geradas a partir de materiais como vidro, metal, madeira, cartão e papel, ganhando formas semelhantes ás que agora conhecemos.

Neste contexto, deparamo-nos com uma influência das condições de transporte, que chegam a determinar a forma das embalagens, dando preferência ás formas lineares em vez das cilíndricas pelo rendimento e melhor aproveitamento da área de transporte, bem como ao desenvolvimento de uma segunda embalagem, ou seja uma embalagem para produtos pré-embalados, que pretendia conferir maior protecção a certos produtos, como é exemplo os frascos de perfumes, conferindo também uma facilidade no transporte, condicionando várias embalagens numa só. (Desnier & Hagene, 1994)

38 Cartaz publicitário de embalagens adequadas ao transporte (n.d.). 

O desenvolvimento dos transportes abre novas rotas de exportação, originando uma maior necessidade de produtos embalados, assim como de uma segunda embalagem, para produtos pré-embalados.

39 Rua francesa, (n.d.), demonstra a produção elevada de matéria impressa. Publicidades foram pintadas directamente na parte superior da parede, enquanto que a parte inferior é coberta por cartazes.

40 Fotografia do exterior de uma loja ’Tesco’, fundada em 1919, Londres, (Yiewsley, Middlesex, 1972). Inicialmente uma mercearia, acabaria por se tornar numa das primeiras grandes superfícies comerciais.

É de mencionar ainda que nesta fase a publicidade ganha relevância, como meio de fazer notar produtos que nunca antes chegaram a ser comercializados por uma área geográfica tão vasta.A quantidade e variedade de publicações cresceu de uma forma dramática neste período, na realidade, nunca antes fora produzida tanta matéria impressa. (Drucker & MacVarish, 2008) A própria embalagem passa a ter esta função de comunicar e informar o consumidor.

A já referida expansão comercial tornou possível, pela primeira vez, a venda de produtos não locais, e mesmo a disponibilização dos mesmos produtos oriundos de produtores diferentes. Surgem assim os supermercados, que vêm alterar o percurso dos produtos até ao consumidor, influenciando as próprias embalagens. Um pouco mais tarde outros desenvolvimentos levaram à combinação da venda de diversos produtos que nunca tinham sido comercializados numa mesma superfície comercial. Assim além de produtos alimentares o cliente tem acesso a revistas e jornais, tabaco, produtos farmacêuticos entre outros. (Jury, 2012) Esta revolução do self-service acontece realmente, segundo Opie (2011) nos anos cinquenta, onde inovações técnicas ocorrem na área da embalagem, e passamos a ter a habilidade de colocar bebidas em lata, a disponibilizar comida congelada assim como surge o aerossol. Somos da opinião, de que é aqui, que se dá a grande valorização do rótulo e da mensagem visual nele patente. Pois até à data, era o merceeiro que seleccionava os produtos, agora o conceito de escolha como parte da experiência de compra passa para as mãos do consumidor. 

Segundo Opie (2011) nesta situação, as marcas mudam e adaptam-se, tentando fazer frente à concorrência, que partilha a mesma prateleira. A cor é utilizada para chamar à atenção, e as mudanças do rótulo tanto podem ser ligeiras, para não se perder a conecção com a marca, como podem não acontecer de todo, ou de um modo quase imperceptível, mantendo a embalagem original, onde o maior bem não é considerado o produto mas sim a embalagem que o contém, valorizando e tirando partido do sentimento de nostalgia induzido no consumidor. Assim a embalagem, por intermédio do rótulo, passa a desempenhar uma função comunicativa e informativa como nunca tinha acontecido, o seu papel evolui e passa a ser mais que um invólucro, passa a ser um meio de comunicação. 

Do mesmo modo que as condições de transporte vieram a influenciar as embalagens o mesmo se sucedeu com as grandes superfícies comerciais. Assim certos produtos, como é exemplo o leite, são disponibilizados em ‘packs’, a pensar no aprovisionamento das habitações. A standardização das embalagens também se torna eficaz pois permite a rápida identificação das marcas. Também é de mencionar o abandono dos recipientes à consignação e o desenvolvimento do descartável. (Desnier & Hagene, 1994)

41 Embalagens metálicas em cromolitografia de diversos produtos. (n.d.)

É por esta altura que a legislação também passa a colocar certas imposições nos rótulos, como a devida colocação da lista de ingredientes, advertências, informação nutritiva, condições de conservação, indicações de utilização, data de validade e o código de barras.

É de mencionar, em Portugal, que a revista Conservas de Peixe Nº180 referente a Março de 1961, dedica o editorial à temática da embalagem, e dentro do nosso conhecimento é o primeiro artigo no periódico que realmente faz notar a embalagem e a sua importância para a expansão da indústria conserveira. Assim o autor, António Botelho, começa por mencionar que foi no mesmo mês (Março de 1961), que se realizou em Lisboa, a 1ª Exposição Portuguesa de Embalagem, com o intuito de demonstrar a importância da mesma e dos problemas que a envolvem, que no caso da lata de conservas passa por exemplo, pela dificuldade da abertura da mesma. 

Botelho diz ainda que “Foi sobretudo a partir de 1950 que a problemática da embalagem se converteu em matéria de uma nova técnica sistemática, ou mesmo de uma nova ciência aplicada, assim como as actividades a ela ligadas atingiram as proporções de uma grande indústria”. Segundo ele, esta evolução, é resultado da recente expansão comercial e do progresso tecnológico utilizado na área. No artigo, é realizado ainda o apelo aos industriais para que se mantenham a par das recentes inovações nesta área, e que revejam as suas embalagens, tanto a nível funcional como a nível estético, pois sendo a indústria conserveira uma indústria exportadora será do seu interesse conseguir competir com os demais. 

A embalagem tem vindo a percorrer um longo caminho, na verdade, de acordo com Reyes (2007), a sociedade evolve e o mesmo acontece com o conceito de embalagem. Desde o papel mais básico que a embalagem desempenhou de somente conter, preservar e transportar o produto, ao momento em que novos materiais foram utilizados, e o rótulo realmente foi explorado, foi crescendo o conceito de embalagem e ela passou também a ter a função de informar e comunicar, sendo considerada por muitos uma das formas mais precisas e eficientes de mídia. Ela assume cada vez mais uma função promocional, com rótulos especiais, embalagens decorativas, comemorativas esazonais, que seduzem os consumidores. A embalagem passa a ser vista como parte integrante do produto, sendo para muitos o único meio de apresentação da marca. (Mestriner, 2001)

A TÉCNICA DE IMPRESSÃO LITOGRÁFICA

Já conseguimos inferir que as inovações tecnológicas não ocorreram somente nas embalagens, mas também nos respectivos rótulos, o que nos leva ao percurso do aperfeiçoamento da indústria gráfica, nomeadamente ao surgimento da impressão litográfica, processo utilizado ainda na actualidade, para a impressão das embalagens de conserva.

De acordo com Meggs e Purvis (2009), a litografia (termo de origem grega formada por ‘lithos’ pedra e ‘graphein’ escrever)(Heitlinger, 2007), foi inventada pelo autor bávaro Aloys Senefelder, em 1796. Senefelder, que pretendia encontrar um meio de reproduzir as suas obras dramatúrgicas, fez experiências com pedras gravadas e relevos em metal, que culminariam na impressão litográfica, em que a imagem a ser impressa não é nem saliente, como na impressão em relevo, nem incisa, como na impressão em ‘intaglio’. Formada no plano liso da superfície de impressão é considerada por tal uma técnica planográfica. (Meggs & Purvis, 2009) 

42 Aloys Senefelder 1771-1834, dramaturgo bávaro, inventor da técnica de impressão litográfica. (n.d.)

“Na sua essência o processo litográfico explora o facto de que a água e o óleo se repelem.” (Jury, 2012, p.113, tradução livre) O processo inicia-se com o desenho da imagem desejada na pedra porosa e lisa, utilizando lápis e ‘crayons’ litográficos à base de gordura. 

De seguida,

(…) a pedra passa por um tratamento químico, recebendo acidulações com uma combinação de goma arábica com os ácidos nítrico, fosfórico e tânico, em proporções adequadas a cada tipo de desenho. (…) Este tratamento transforma imediatamente as propriedades da pedra. Quando se acidula a pedra litográfica, conserva-se as áreas sem desenho, eliminando nestas toda a gordura e preparando a pedra para que retenha mais água do que o faria normalmente. Prepara-se as áreas com imagem (desenhadas com gordura), para que estas possam repelir a água, mas aceitem a tinta gordurosa que será aplicada com o rolo de entintagem. (…) Deste modo formam-se dois tipos de superfície sobre a pedra: a imagem (o desenho feito pelo artista) e o branco (a não-imagem). (Heitlinger, 2007)

As possibilidades expressivas que a técnica litográfica providenciava, tendo a habilidade de imitar outros processos de impressão, o que segundo Jury (2012) levou a que a identidade da litografia se mantivesse elusiva durante a primeira metade do séc. XIX, aliado ao seu aspecto prático e simples de produção, que começaria a ser mecanizado, e mais tarde à possibilidade de utilizar cores adicionais, fez com que a técnica litográfica se popularizasse nos meios artísticos e comerciais, competindo com os restantes processos de impressão da época, como o ‘letterpress’ e a gravura.

43 Pedra litográfica (n.d.) que demonstra várias técnicas de desenho sobre a pedra. 

O desenho é realizado manualmente sobre a pedra, que pode ter um grau de textura variado. O princípio da litografia é que a gordura e a água se repelem. 

44 Exemplar de tinta litográfica séc.XX, aliada a uma fotografia de tinta do espólio da empresa de litografia Amorim & Amorim. 

45 Ilustração de uma mesa de desenhador litográfico. Imagem retirada do manual prático da litografia francesa de 1796 a 1896 de Alfred Lemercier.

Uma etapa importante para o desenvolvimento e promoção da impressão litográfica foi a opção da utilização de cores adicionais, já mencionada, além do preto comummente utilizado, processo denominado cromolitografia, inventada em 1827 segundo Samara e Baptista (citado por Castro, 2012, p.40). No entanto, outros autores dizem que experiências para uma impressão litográfica a cores eram já realizadas por Jª Bath em 1818 na Alemanha, porém os ajustamentos dos desenhos sobre a pedra, visto que cada cor teria uma matriz própria, ofereciam dificuldades e, segundo AndréBéguin (2000), somente Engelmann em 1837 terá ultrapassado estas dificuldades, tendo patenteado por um período de dez anos a cromolitografia. Que segundo Jury (2012), além de denominar litografia colorida, a sua derivação ‘chromo’ era utilizada para descrever, na última parte do séc. XIX, particularmente nos Estados Unidos, o uso da litografia para copiar e reproduzir quadros populares que seriam depois vendidos a preços acessíveis. 

Esta vertente colorida da litografia começou também a surtir os seus efeitos no interior das lojas, mais propriamente nas embalagens dos produtos. “Produtos ou bens essenciais podiam agora ser ilustrados na tampa ou no rótulo do recipiente.” (Jury, 2012, p.114, tradução livre) O que, por sua vez, nos dá a conhecer outra faceta da litografia, a possibilidade de imprimir em variados suportes, que será mais tarde explorado na impressão das latas de conserva. O rótulo pode então fazer parte integrante da superfície da embalagem, além da alternativa comum da afixação do papel impresso à face da mesma. Esta técnica também levou à valorização da imagem ilustrada em detrimento do texto, a partir dos anos 80 e 90 do séc. XIX. (Samara & Baptista, citado por Castro, 2012, p.40)

Segundo Jury (2012), o melhor dos primeiros trabalhos produzidos em litografia são oriundos de França, desde 1834, sendo dado como exemplo o trabalho de J. Midolle e a sua série de alfabeto colorido e imaginativo. Jury (2012) refere ainda que durante as três próximas décadas inovações importantes promovem sofisticações técnicas, como é exemplo a superioridade das tintas francesas. Através das tintas translúcidas, exploradas pelos franceses, foi possível uma sobreposição de cores, atingindo uma maior variedade de tonalidades, o que aliado à superfície que podia ser lisa ou texturada em vários graus, potenciou a construção de imagens e composições mais realistas. A litografia oferecia então infinitas possibilidades. 

46 Ilustração litográfica (1860), e pormenor da mesma. Notamos que a superfície da pedra é texturada, fornecendo uma gradação de tonalidade ao desenho.

47 Ilustração cromolitográfica (n.d.) e pormenor da mesma, que demonstra o uso da técnica do pontilhismo para adquirir um efeito gradual de tonalidades.

Outras técnicas de impressão e acabamento começaram também a ser exploradas, providenciando outra profundidade visual e táctil. 

Rótulos e cartões de visita eram muitas vezes envernizados em certos locais, dando uma textura em relevo ou em baixo relevo. O efeito pontilhado – conjunto de pontos pequenos de vários tamanhos, diversidade e cores (normalmente azul, vermelho e amarelo, e algumas vezes rosa para os tons de pele, assim como o cinza e o preto) – seriam a base na qual a litografia colorida standardizada seria desenvolvida no séc. XX.(Jury, 2012, p.114, tradução livre) 

Nos Estados Unidos a litografia foi difundida durante os anos 30 e 40 do séc. XIX, e uma sucessão de emigrantes é responsável pela apresentação e importação de melhoramentos técnicos, fazendo-os divergir do método britânico que seguiam, onde eram utilizadas tintas opacas, ao introduzir o método francês das tintas translúcidas. Nos anos 70 do mesmo século, as máquinas litográficas a vapor ‘Sigl’ foram difundidas pelo país, o que possibilitou a produção de trabalhos comerciais em grandes quantidades, onde as imagens resultantes eram muitas vezes baseadas no romance e na aventura do Novo Mundo, no espírito pioneiro associado ao povo americano. Outro aspecto da litografia não menos importante, foi o encorajamento do uso de caligrafia ousada, elaborada e fluída, incluindo sombras, variações e extensões de todo o tipo. (Jury, 2012)

Quanto aos rótulos das embalagens, em 1860, segundo Jury (2012), os primeiros rótulos coloridos eram usados pela indústria conserveira americana. 

O primeiro rótulo conhecido numa lata de metal carrega o nome da companhia Reckhow & Larne de Nova Iorque. Um martelo e um cinzel eram requeridos para a abrir. Com a lata em metal leve e a invenção do abre latas, a indústria de latas expandiu rapidamente, e o rótulo foi um elemento essencial. Por esta razão, os anos 80 do séc. XIX foram, em particular, uma época ‘boom’ para os impressores de cromolitografia. (Jury, 2012, p.168, tradução livre) 

Outra data importante para a indústria conserveira foi 1875, ano em que a máquina ‘Sigl’, terá sido adaptada para impressão em folha de flandres. (Chappell & Bringhurst, 1999)

Com a invenção da fotografia e o seu potencial reconhecido pelos impressores, surgiram experiências de modo a tentar utilizá-la com a tecnologia da época. 

A fotografia era uma maneira popular de produção de imagens no meio do século (séc. XIX). Mas na história das artes gráficas, a fotografia foi não só uma tecnologia de produção de imagens; foi também uma ‘meta-technology’ que facilitou a reprodução. (Drucker& MacVarish, 2008, p.145, tradução livre)

48 A interpretação de gradação de tonalidades por um desenhador, adquirida pelo desenho de linhas cujo tamanho e espessura é variável, em contraste com um halftone fotomecânico, onde as tonalidades da fotografia são transformada em pontos. 

Assim, nos anos sessenta do séc.XIX, já eram utilizadas técnicas de transferência de fotografias, que permitiam por exemplo a sua reprodução pelo processo litográfico. Citando André Béguin (2000), foi Poitevin que em 1855 inventou a fotolitografia, uma técnica de reprodução fotográfica na pedra. Tratava-se de um método de impressão químico, dispondo goma bicromada na superfície da pedra tornando-a fotossensível, mais tarde o processo seria realizado tendo por base uma chapa de zinco, um material mais leve e flexível, denominado por alguns de fotometalografia. Quando a fotolitografia foi aperfeiçoada nos anos oitenta do mesmo século, os artistas tinham então à sua disposição manipulações básicas da fotografia como escala, recorte e ajustes de contraste. Futuramente seriam realizadas experiências importantes com ‘halftones’, para traduzir a tonalidade contínua conseguida na fotografia para uma forma impressa. (Drucker & MacVarish, 2008) 

49 Fotografia original e impressão da mesma, através do halftone fotomecânico (1914). É de notar todas as anotações realizadas para se proceder à reprodução da fotografia, pois segundo Jury (2012) as fotografias podiam ser excessivamente retocadas.

Podemos inferir que até à época, era só possível, pela impressão litográfica, a impressão de áreas, onde cada cor requerida teria que ser fabricada, e cada qual teria uma matriz própria, como já salientamos anteriormente, sendo conseguidas, no entanto, outras tonalidades através da sobreposição de tintas translúcidas, e o pontilhismo manual era já utilizado nas ‘chromo’ para adquirir um maior realismo. No entanto, sempre que se pretendia dar a noção de degradé, esta só era conseguida pelo pontilhismo já referido ou pela impressão de vários tons, da cor requerida, próximos uns dos outros.Com o ‘halftone’ fotomecânico o degradé tornou-se possível. O processo decorria da seguinte maneira:

Duas folhas de vidro, cada uma com linhas paralelas gravadas, eram coladas de modo a que as linhas fizessem ângulos rectos entre elas (criando uma trama). Quando uma imagem  era projectada pela tela de vidro para a superfície fotossensível, os tons graduais da fotografia eram mudados para pontos. Onde os tons eram escuros, os pontos na superfície fotossensível eram largos, e portanto, próximos, criando um tom escuro. (Jury, 2012, p.117, tradução livre)

No entanto, cremos que o halftone, por si só, não criaria um degradé colorido. O princípio de que a cada cor corresponde uma pedra litográfica, uma matriz, ainda é válido, logo não podemos numa só impressão conseguir a mudança de tonalidades, terá que haver sempre um ajustamento na impressão de cada matriz e portanto de cada cor. Com o halftone consegue-se um pontilhismo automatizado, liberto da manualidade, adquirindo este uma correspondência de tons mais realista, mas não deixa de ser uma espécie de pontilhismo. Pelo que podemos inferir, em conversa com Joel Teixeira, desenhador gráfico da empresa de litografia e latoaria, Rio Caima S.A., só com a introdução de filtros coloridos, e portanto, pressupomos, que a partir de uma fotografia a cores, no processo da fotolitografia em conjugação com o processo do halftone, é que é possibilitada a separação das cores a partir da imagem original, e portanto uma reprodução mais fiel de cada área da imagem à matriz (e portanto cor) que lhe corresponde. 

Outras experiências foram realizadas para obter imagens a partir de três cores standard. O processo foi demorado devido à crença de que só com as três cores primárias seria possível conseguir o preto, a partir do momento em que aceitaram a necessidade do preto como quarta cor, o processo ‘full-color’ foi possivel. “(…) o azul (ciano), o vermelho (magenta), amarelo e preto, tornou-se um processo standard de reprografia.” (Jury, 2012, p.168, tradução livre) 

Em Portugal a introdução da impressão litográfica ocorreu em 1823 (sendo reconhecida oficialmente no ano seguinte), por Luiz da Silva Mouzinho de Albuquerque que teve a oportunidade de estudar em França o processo. Em 1822 Albuquerque envia ao pintor Domingos António de Sequeira uma prensa, algumas pedras litográficas e outros utensílios, fazendo dele o primeiro pintor litográfico português, estando algumas das suas obras depositadas à guarda do MuseuNacional de Arte Antiga em Lisboa. (Heitlinger, 2007) 

Estavam assim reunidas as bases para a utilização do processo litográfico pela indústria, nomeadamente a indústria conserveira.

A LITOGRAFIA E A INDÚSTRIA CONSERVEIRA PORTUGUESA

A litografia, indústria subsidiária da indústria conserveira, tem vindo a acompanhar o crescimento e desenvolvimento da mesma, assistindo-se à concentração e à fundação de empresas desta área junto dos grandes núcleos conserveiros. Em Matosinhos a mais antiga litografia, fundada em 1936 na Avenida Menéres Nº612, tem o nome de Amorim & Amorim, Lda., tendo elaborado trabalhos para a Conserveira Pinhais, tornou-se essencial para o caso em estudo. No entanto, com o seu encerramento em Dezembro de 2001, perdeu-se grande parte do seu espólio, tendo o conteúdo da fábrica, desde máquinas de impressão, chapas, e todos os materiais associados, assim como o espólio, sido adquirido pela empresa de latoaria e litografia Rio Caima S.A., de Vale de Cambra. 

Segundo nos revelou o Sr. Gramaxo6, interlocutor da Amorim & Amorim, o funcionamento desta empresa sempre esteve baseado na elaboração litográfica passando pela utilização da pedra litográfica assim como da impressão off-set. E acrescenta, explicando como a impressão era feita em pedras, mármores de Carrara, extremamente polidas, base para os desenhos delicados e minuciosos dos desenhadores gráficos. 

Ele diz-nos ainda que, “os desenhadores, eram operários muito especializados, alguns quase analfabetos e praticamente anónimos, sem escola e a sua aprendizagem surgia naturalmente com o tempo, ensinados por sua vez por outros operários que, de geração em geração, iam passando os seus conhecimentos aos vindouros. De vez em quando, surgiam verdadeiros e enormes artistas. Evidentemente que eram pessoas muito talentosas, muito modestas mas com grande seriedade e brio, criativas mas sem qualquer qualificação profissional. O seu trabalho surgia quase por encanto, rotinado, mas muito belo e artístico.”

A fase seguinte do trabalho consistia na passagem do desenho para os transportes litográficos, o mesmo era separado por cores e decalcado para chapas de zinco, que seriam por sua vez, montadas na máquina litográfica para aí se fazer a impressão na folha. Dependendo da máquina, a impressão era feita folha a folha, cor a cor, nas máquinas mais recentes, com várias unidades de impressão, correspondentes a cada cor, a folha repetia este processo numa só tiragem. 

Quanto ás cores utilizadas o senhor Gramaxo explica-nos que, “normalmente os desenhos tinham poucas cores. Limitavam-se a um fundo amarelo, vermelho ou laranja, com as ‘aberturas’ nas cores, de forma a que os ‘dizeres’ (o texto da lata), ficassem realçados e visíveis. E os dizeres eram invariavelmente os mesmos: Sardinhas Portuguesas em Azeite de Oliveira, Sardinhas Portuguesas sem Pele e sem Espinha em Óleo Vegetal, Sardinhas em Tomate e Azeite de Oliveira, etc., e assim sucessivamente e em quatro ou cinco línguas diferentes, em português, francês, inglês e alemão, pelo menos.”

50 Interior da litografia Amorim & Amorim (2013). Empresa que durante anos, produziu os rótulos das embalagens da Conserveira Pinhais

51 Pormenor de uma pedra litográfica com a impressão do rótulo da marca ‘Nuri’. Espólio da Amorim & Amorim (n.d.).

52 Pormenor de um teste de impressão, para aprovação, do rótulo da marca ‘Pinhais’. Espólio da Amorim & Amorim (14.08.1953).

Ainda segundo este, as cores eram escolhidas de acordo com a associação da mesma ao tipo de conserva, ou seja, amarelo para sardinha (ou outras espécies) em azeite ou óleo, vegetal ou de amendoim, o vermelho para conservas em tomate, e o laranja para os picantes, assim era a regra havendo, no entanto, excepções. 

Gramaxo menciona ainda que, “o normal era as latas terem apenas duas cores, o amarelo e preto, o amarelo e azul, o vermelho e preto (ou azul) e o laranja e preto (ou azul), o verde e preto e pouco mais. Só muito mais tarde, é que se começaram a usar as quadricromias, o que tornava as latas muito mais sugestivas e bonitas, mas também o seu custo era maior. A cada aumento de cor, a litografia era naturalmente mais cara e por isso os industriais evitavam que a lata ficasse mais onerosa. No fundo o que interessava era uma marca com um nome e um desenho o mais sugestivo possível, tornando-se necessário que cada fábrica registasse devidamente a sua marca e forma.” 

Os processos de fotolitografia, halftone e quadricromia eram praticados na Amorim & Amorim, contudo tendo em conta que os trabalhos para a indústria conserveira utilizavam somente duas ou três cores, evitando trabalhos elaborados, a recorrência aos mesmos devia ser mínima. 

No caso da Conserveira Pinhais & C.ª L.ª, o Sr. António Pinhalrevelou-nos, como já foi citado, que no início da laboração estes possuíam sector de latoaria recorrendo a empresas externas, como é o caso da referida Amorim & Amorim, somente para a impressão das folhas de flandres, pois possuíam um desenhador na empresa. Assim, o desenho elaborado pelo desenhador da Pinhais, teria que ser tratado e redesenhado de modo a adaptar-seà impressão litográfica, e à quantidade de cores sugeridas. Apósimpressa, a folha era entregue na Pinhais para a confecção e soldagem das latas propriamente ditas. 

53 Fotografias do interior da Conserveira Feu Hermanos, Portimão, sector de litografia. Fotografias Museu de Portimão (n.d.).

54 Máquina rotativa de impressão litográfica, em exposição no Museu de Portimão (n.d.). 

Tendo o espólio da Amorim & Amorim sido adquirido, pareceu-nos de especial interesse, para o nosso projecto, contactar a empresa de litografia e latoaria, Rio Caima S.A., onde tivemos a oportunidade de trocar impressões com o desenhador gráfico, Joel Teixeira. 

Nas instalações pudemos observar um processo litográfico mais actual, onde o desenho é comummente realizado em suporte digital, e com o auxílio dos meios informáticos, é feita a separação de cores e onde a sobreposição das mesmas e a repetição pela matriz (dada a pequena dimensão das latas, numa matriz estão dispostos vários exemplares repetidos, originando a impressão de várias latas numa só passagem) é facilitada pelo programa utilizado. O desenho é impresso em películas e passado para um transporte de metal, através da sensibilização da sua superfície fotossensível, que passa pelo ‘regulador’ onde é fixada a ‘imagem’. 

A linha de fabrico é composta pela preparação da folha, onde são dados primários e vernizes conforme a sua finalidade, pela sensibilização da chapa, acima mencionada, pela estampagem na máquina off-set, e de seguida pela operação de estufa, terminando com um envernizamento final. Daqui, a folha impressa segue para a secção da latoaria, onde é cortada, e onde são moldados os tampos e os corpos das latas. O tampo ganha forma, de seguida é dado um meio corte, zona de enfraquecimento da lata por onde ela abrirá, e será também colocada a anilha, por fim levará uma borracha líquida na extremidade da parte inferior do tampo, que acaba por arrefecer e solidificar, conseguindo assim a vedação da lata pela cravação. O corpo da lata por sua vez também passa pela formação do mesmo, e ao contrário do tampo, com a linha de enfraquecimento, leva linhas em relevo, um ‘ondulado’ no fundo, assim como caneluras nas laterais que fornecem resistência à lata.

55 Fotografias ilustrativas da linha de produção na empresa de litografia e latoaria Rio Caima S.A. (2013).

Impressão da folha na máquina off-set; controlo da subreposição de cada chapa.

56 Fotografias ilustrativas da linha de produção do sector de latoaria da empresa Rio Caima S.A. (2013). 

Folha com a impressão dos tampos pronta para corte; cunhagem das tampas da lata; cunhagem do corpo da lata.

Achamos certas peculiaridades interessantes, como o facto de o verniz ser dado conforme o pH, o nível de acidez dos alimentos, onde o tomate é mencionado como um alimento de elevada acidez, que sem a aplicação do verniz adequado poderia corroer a lata. As tintas por sua vez, têm que ter uma certa flexibilidade para que quando se der a forma à lata, a tinta não estale, e podemos notar como nas laterais do corpo da lata a tinta repuxada se torna mais baça, revelando-se assim um mau local para ilustrações. Por fim, há também a possibilidade de dar um verniz dourado como base, assim as áreas não impressas da lata acabam por ter essa tonalidade em vez da tonalidade prateada da folha virgem. 

Foi na visita a esta empresa que pudemos também visualizar um exemplar da lata de azeite da marca ‘Pic-Nic’, extraordinário, pela manualidade e pormenor característicos. Com uma ilustração extremamente colorida, com mais de cinco tonalidades, tirando partido de áreas não impressas expondo a folha virgem, e da conjugação de tintas opacas aliadas a tintas translúcidas, certas áreas tornam-se brilhantes. Pormenores e realces são também conseguidos pela técnica de ‘pontilhismo’, fornecendo uma certa volumetria ao desenho. 

O exemplar da lata ‘Pic-Nic’, é assim, para nós, exemplificativo das possibilidades oferecidas e conseguidas pela técnica de impressão litográfica sobre a folha de flandres. 

Quanto aos motivos ou temáticas ilustradas nas latas de conservas, de acordo com informação cedida pelo Gabinete de Arqueologia e História de Matosinhos, assim como pela antropóloga Ana Ramos do Museu de Portimão, os temas são relacionados com a cultura popular ou moderna da época, o cinema com a referência a actores e actrizes, o romantismo e os mundos infantis com crianças, sereias, princípes e princesas, assim como referências à Antiguidade Clássica, onde proliferam as divindades e guerreiros, como as referências marítimas que também não deixam de estar presentes. Assim, ora aproximando-se de uma realidade da indústria, ora se afastando com uma abordagem mais fantasiosa como alguns temas já referidos, as conservas apresentam-nos diversas temáticas e atmosferas.

57 Pormenor de um xemplar da lata ‘Pic-Nic’, que consideramos exemplificativo das possibilidades da técnica litográfica. O autor tira partido do brilho da folha, misturando tintas opacas e tintas translúcidas, deixando transparecer em momentos a própria folha sem impressões. É notória também a diversidade de cores, que são utilizadas em tons planos aliadas à técnica de pontilhismo.

58 Exemplares de envólucros de embalagens de conserva produzidas na Conserveira Feu Hermanos. 

‘La Rose’ e ‘Rita’– Embamar, Lda; ‘Le Tournoi’; ‘Fishermaid’ (n.d.).

59 Ilustração original, realizada pelo desenhador da Pinhais, para a marca ‘Marinheiro’.

60 Uma primeira fase da adaptação da ilustração original, de modo a adequar-se à técnica de impressão litográfica. Numa maquete final, a colocação das cores seria necessária, para aprovação do cliente, neste caso, a Conserveira Pinhais. 

Espólio Amorim & Amorim (n.d.).

61 Impressões finais de envoltórios em papel, para embalamento de latas virgem (sem impressão) da marca ‘Pinhais’, da Conserveira Pinhais. (n.d.)

62 Prova de impressão da marca ‘Emporium’, para impressão litográfica sobre a lata. Composta por uma ilustração destinada à tampa da lata, e uma outra para colocação na tira, a lateral da lata. Marca da exportadora Luís Viana & C.ª L.ª. 

Espólio Amorim & Amorim (n.d.).

63 Envoltório das conservas ‘Emporium’, onde podemos verificar as cores impressas e especular sobre a coincidência das mesmas serem associadas à marca.

64 Embalagem cartonada para a marca ‘Mascato’ da Conserveira Pinhais. (n.d.)

Impressão de cinco cores, sendo uma delas o dourado, com a utilização de alto-relevo.

65 Envoltório das conservas ‘Fredy Sonny Boy’, da exportadora Luiz Viana & C.ª L.ª, que recorre á impressão de uma fotografia. A temática de crianças foi recorrente, e podemos também verificar a utilização da mesma nas publicidades às conservas, cujas propagandas afirmavam que estes alimentos eram adequados às crianças. Pode-se verificar a adesão a esta temática nas publicidades que se encontram na Revista Conservas entre os anos 1940 e 1941.

66 Rótulo da embalagem de azeite Pic-Nic, mencionada anteriormente, como exemplo das possibilidades que podem ser adquiridas pelo uso da técnica litográfica em conjugação com a folha de flandres.

Espólio Rio Caima S.A., (n.d.).

67 Pormenores do rótulo Pic-Nic, onde é de notar a variedade de cores utilizadas, tendo sido algumas adquiridas pela sobreposição da impressão. A técnica de pontilhismo foi utilizada para se conseguir noções de gradação de cor, e efeitos de volumetria. Na digitalização do rótulo não é, no entanto, possível verificar as áreas brilhantes, pela impressão de tintas aguadas sobre a folha virgem, em contraste com outras áreas da ilustração, que foram impressas sobre uma camada de cor branca.

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